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“Eu não gosto de música”
A música é uma linguagem autor-
referencial, sem qualquer signifi-
cado. Com ela podemos movimen-
tar as emoções das pessoas mas
não conseguimos pedir um copo
de água; contudo, ninguém duvida
que a música é significante. Muitos
etnomusicólogos, entre eles Bonnie
C. Wade, concordam em que as pes-
soas tornam a música significan-
te, seja significado individual ou
coletivo, porém, o significado não
reside no próprio material musical
e é-lhe atribuído por alguém ou por
alguma razão particular. Há real-
mente algo de marcial na música
tocada por uma banda de metais,
como podem ser as marchas mili-
tares, ou isso é uma associação de
ideias aprendida que se transfor-
mou em crença? Uma canção de
embalar faz de verdade dormir uma
criança, ou é qualquer outra coisa
como a atenção amorosa o que a
acalma e a faz sentir-se segura?1
Há músicas que podemos amar ou
odiar não pelo significado que pos-
sam ter em si mesmas, senão pela
memória que guardamos do sig-
nificado que tiveram para nós no
contacto com elas, nomeadamen-
te quando estão associadas com
emoções fortes como o sofrimento
ou o descobrimento amoroso, e o
significado que isso teve naquele
momento crucial da nossa vida. A
música define, representa, simbo-
liza, expressa, constrói, mobiliza,
incita, controla, transforma, une,
e muito mais. Desse modo as pes-
soas dão utilidade à música. Mas se
perguntarmos pelo lugar que a mú-
sica ocupa nas suas vidas, podem
responder-nos que para nada estão
interessadas na música, mas admi-
tem que escutam música no carro e
ocasionalmente assistem a algum
espetáculo musical, que dançam
numa data determinada ou que
fazem exercício ouvindo música, e
alguns mesmo dirão que põem mú-
sica nas suas vidas. Essas pessoas
categorizam essas atividades musi-
cais como prazer ou entretenimen-
to, mas todas elas fazem com que a
música tenha uma utilidade.
Numa entrevista que a jornalista
Maria Augusta Silva fez a Agustina
Bessa-Luís, lemos:
- Porquê a sua animosidade re-
lativamente aos poetas?
- A animosidade que tenho vou
dizê-la de uma vez para sem-
pre. Maomé detestava poesia. A
maior poesia mundial é orien-
tal, mas na poesia não há pen-
samento, há palavras. É a arte
da sensualidade e da coloca-
ção das palavras. Um pensador
oriental diz: se me dedicasse
à poesia seria uma verdadeira
torrente de pérolas.
- Poesia é criatividade, emoção,
indissociáveis do pensamento…
- O grande pensamento não tem
emoção. Leia os poetas árabes e
compreenderá. Nada mais belo
do que um poema de amor de
um árabe.
- Só dos árabes?
- É uma natureza poética de-
les. Nos poetas árabes há uma
linha muito fina entre emoção
e qualquer coisa que já não se
entende o que seja mas que não
é pensamento. Como lhe digo,
estou do lado do Maomé.
- Camões, Baudelaire, Goethe,
Eugénio, Pascoaes são umas
cabeças de vento?
- São grandes poetas, ainda
bem que existem.2
Uma grande escritora que detesta
a poesia pode resultar perturba-
dor mas os seus argumentos são
coerentes e sensatos. Pensamento,
emoção, beleza e criatividade não
são sinónimos e podem ofuscar-se
mutuamente pelo que é preciso ser
muito exigente com a qualidade e
concretização dos conceitos para
evitar a truculência. “Se os poetas
se calassem subitamente […] penso
que até as guerras se iam extinguin-
do, sem derrota e sem vitória, com
a mansidão das coisas estéreis”3.
O modo de expressão de Agusti-
na Bessa-Luís exige de um pensa-
mento forte que na escrita poética
ficaria enfraquecido, mas para ela
a utilidade da poesia está sempre
presente, ainda que mais não seja
para provar a eficácia comunicativa
da sua prosa, pois “o laço da ficção,
que gera a expectativa, é mais forte
do que todas as realidades acumu-
láveis”4.
Alejo Carpentier, o autor cubano
que aproveitou a sua formação
musical para escrever romances
em vez de sinfonias já que o pla-
no criativo é o mesmo, conta que
Heitor Villa-Lobos, quando morava
em Paris, compunha as suas obras
sempre com o rádio ligado e, assim,
o futebol, as carreiras de cavalos,
a lotaria, as novelas, e todo o tipo
de banalidades radiofónicas ajuda-
vam-no a abstrair-se do ruído am-
biental. O rádio era para ele como
aquela música para mobilar as ca-
sas que sonhara Erik Satie, que es-
taria sempre presente para que nin-
guém reparasse nela5. Felizmente
os dicionários já incorporaram um
novo substantivo para esse tipo de
som organizado humanamente mas
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em
Educação Artística e Ensino de Música
12OUT’22
que fica muito aquém da categoria
de música: a musiqueta. Só que
tanto nos pode deixar indiferentes
como provocar irritação se a quali-
dade é mesmo muito má.
No Dicionário Imperfeito, que con-
tem excertos significativos da obra
de Agustina Bessa-Luís, não há
uma entrada para a música e mes-
mo o substantivo ‘música’ só apare-
ce doze vezes nas mais de trezentas
páginas. Certamente que devia per-
turbá-la e, na verdade, a música in-
comoda quando queremos pensar e
ela reclama a nossa atenção.
Eis aqui as frases do Dicionário Im-
perfeito onde a palavra ‘música’ é
usada seguindo as entradas onde
se encontram:
Arte. Mas se todos os artis-
tas da terra parassem durante
umas horas, deixassem de pro-
duzir uma ideia, um quadro,
uma nota de música, fazia-se
um deserto extraordinário.
Botas, Mário. Estava embria-
gado da vida que o animava e
interpretava-a como um com-
positor faz com a música, re-
nunciando à análise, proposto
apenas à infalibilidade do mo-
mento.
Brinde. Assim, a cultura, como
essa primitiva música de Pã,
tem que ser dúctil e persistente
ao mesmo tempo.
Homem ocidental. Ele odeia o
anglo-saxão fazedor de contra-
tos; odeia a sua cultura dinâ-
mica, a sua música violenta, as
suas ideias quase só artificiosas
e corruptas.
Intelectuais. Sem isso, o que
parece aritmética e música não
passa de confusão e ruído.
Mecenato. A maneira como um
violinista é lançado nos tempos
livres do pessoal duma fábrica
de cigarros dá para odiar a mú-
sica e o tabaco também.
Paz. […] a paz é um absurdo,
[…] É para isso que se pinta,
que se compõe música, que se
faz poesia: para abolir o absur-
do.
Porto. A cultura é, portanto,
desesperante para os gover-
nantes; eles preferem proteger
a música, para não se consagra-
rem como beócios. […] As con-
versas dos que se casam e dei-
xam de se ver e se reencontram
num passeio da praça entre
cauteleiros e música de tômbo-
la e rajadas de asas de pombas.
Roma. À noite, na Praça Ese-
dra, sentam-se os romanos na
borda da fonte das Náiades e na
obscuridade escutam a música
que irrompe de sob as arcadas
onde uma multidão mais per-
dulária toma gelados.
Tédio. O jovem lê, dedica-se à
música ou ao desporto, e isso
não constitui senão variantes
do aborrecimento.
Virgílio. Tem uma espécie de
arca ao pé: e do outro lado a es-
tante que parece de ler música
e que é onde desenrola os ma-
nuscritos.
Lendo estes excertos não temos in-
formação suficiente sobre o signifi-
cado que a música tinha para Agus-
tina Bessa-Luís, nem o tipo de mú-
sica que poderia ocupar um lugar
na sua vida, mas na prática literária
dela encontramos técnicas de com-
posição musical como a narrativa
repetitiva, uma espécie de leitmotiv
transversal a vários romances, ou
a metaficção onde o tema é a base
motívica e contrapontística recor-
rente ao longo da obra.
No filme Conversazione a Porto de
Daniele Segre – uma longa con-
versa acontecida em 2005 entre
Agustina Bessa-Luís e o realizador
Manoel de Oliveira –, o cineasta diz
que, segundo da Vinci, a música
é a estrutura do invisível, ao que
Agustina responde: “Um pensador
nunca gosta da música. Eu não
gosto de música, tira-me a atenção,
incomoda-me. Acho bonito mas in-
comoda-me”6. Nesta última frase
temos uma informação valiosa pois
ao contrário da poesia que, literal-
mente, detestava, achava a música
‘bonita’, quer dizer que lhe presta-
va atenção e por isso não gostava
de ouvi-la quando se dava ao traba-
lho de pensar e escrever.
Villa-Lobos não ouvia música no
rádio, só um barulho espacial que
circundava a sua concentração
musical. Eu também não gosto de
ouvir música, incomoda-me, quan-
do estou criando a minha própria
música, que nestes últimos anos
anda à volta de uma peça teatral de
Ruy Neiva na qual todas as perso-
nagens estão mortas e que contém
um prólogo escrito por Agustina
Bessa-Luís, em 1987, onde diz que
“somos um deserto de reis mortos,
essa é a nossa liberdade”, e finaliza
“talvez o quinto império principie
por causa disto, e é o suficiente”7.
12OUT’22
1 Wade, B.C.:
Thinking musically
.
New York, Oxford University Press,
2004, p. 14.
2 https://casaldasletras.com/Tex-
tos/AGUSTINA%20BESSA%20
LUIS.pdf p. 5.
3 Bessa-Luís, A.:
Dicionário imper-
feito.
Lisboa, Guimarães Editores,
2008, p. 20.
4
Ibid.
5 Carpentier, A.: E
se músico que
llevo dentro.
La Habana, Letras
cubanas, 1980, p. 62.
6 Segre, D. (Realizador):
Conver-
sazione a Porto.
[Filme] 2006, m.
16’16”
7 Neiva, R.:
Diálogo das Infantas
Mortas.
Viana do Castelo, Edição
do autor, 2.ª ed. 2017, p. 3.
FOTO: DR