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A MÍDIA E A PRODUÇÃO DO CONSENSO EM TORNO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: o caso do Novo Ensino Médio

Authors:

Abstract

O artigo apresenta uma análise das propagandas veiculadas por canais de mídia, especialmente de televisão, acerca da principal política educacional em voga, qual seja, o Novo Ensino Médio. A partir dos conceitos de ideologia, em Marx e Engels, e de hegemonia e ideologia em Gramsci, analisa o caráter ideológico das propagandas, buscando demonstrar como as mesmas retratam a realidade agregada de elementos de mistificação e como isto constitui tarefa de classe. Aborda, ainda,o caráter usurpador e retrógrado da reforma, relacionando-a à ascensão ultraliberal e conservadora do Brasil contemporâneo. Conclui que a mídia segue sendo veículo essencial de disseminação da ideologia dominante, e que se fora importante em todo tempo histórico, hoje é absolutamente imperativa.
A MÍDIA E A PRODUÇÃO DO CONSENSO EM TORNO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: o caso
do Novo Ensino Médio
Maria Carolina Andrade
1
Vânia Cardoso Motta
2
Resumo
O artigo apresenta uma análise das propagandas veiculadas por canais de mídia, especialmente de televisão, acerca da
principal política educacional em voga, qual seja, o Novo Ensino Médio. A partir dos conceitos de ideologia, em Marx e
Engels, e de hegemonia e ideologia em Gramsci, analisa o caráter ideológico das propagandas, buscando demonstrar como
as mesmas retratam a realidade agregada de elementos de mistificação e como isto constitui tarefa de classe. Aborda,
ainda,o caráter usurpador e retrógrado da reforma, relacionando-a à ascensão ultraliberal e conservadora do Brasil
contemporâneo. Conclui que a mídia segue sendo veículo essencial de disseminação da ideologia dominante, e que se fora
importante em todo tempo histórico, hoje é absolutamente imperativa.
Palavras-chave: Políticas públicas. Empresariamento da educação de novo tipo. Novo Ensino Médio. Ideologia.
Propaganda.
THE MEDIA ANT THE PRODUCTION OF CONSENSUS AROUND EDUCATIONAL POLICIES: the case of the New High
School
Abstract
The article presents an analysis of advertisements broadcast by media channels, especially television, about the main
educational policy in vogue, namely, the New High School. From the concepts of ideology, in Marx and Engels, and
hegemony and ideology in Gramsci, analyzes the ideological character of advertisements, seeking to demonstrate how they
portray the aggregated reality of elements of mystification and how this constitutes a class task. It also approaches the
usurping and retrograde character of the reform, relating it to the ultraliberal and conservative rise of contemporary Brazil.
Concluding that the media continues to be an essential vehicle for the dissemination of the dominant ideology, and that if it
had been important in all historical times, today it is absolutely imperative.
Keywords: Public policies; new type of education entrepreneurship; New High School; ideology; advertising
Artigo recebido em: 21/12/2021 Aprovado em: 20/05/2022
DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2178-2865.v26n1p46-61
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, E-mail:
carolina.andradep@gmail.com
2
Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
vaniacmotta@gmail.com
Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta
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1 INTRODUÇÃO
“Tempos difíceis” é muito pouco para caracterizar o que vivemos hoje se é que,
enquanto trabalhadores, podemos falar em vida. No Brasil, notadamente desde 2016, a expectativa da
massa trabalhadora tem sido tão somente sobreviver a uma avalanche de perdas: perdas econômicas,
políticas e sociais; perdas de direitos, lazer, espaços, saúde, empregos, moradias, alimentação, como
corolário, a perda de mais de 600 mil vidas ao final de 2021.
Nesse sentido, é urgente salientar que a despeito da gravidade e letalidade do vírus da
Covid-19, a ascensão ultraliberal-conservadora que se gesta no Brasil no período do golpe
empresarial-parlamentar que depôs a então presidente petista, é fulcral nesse conjunto de perdas.
Ainda em 2016, quando a possibilidade de uma pandemia habitava apenas nossos pesadelos mais
longínquos, promoveu-se o desmonte das leis trabalhistas, medidas de (contra)reforma na educação
via Medida Provisória e o congelamento dos gastos públicos, corrigidos apenas pela inflação, por vinte
anos – medida sem igual em qualquer país do planeta.
A atual crise orgânica do capitalismo brasileiro, consolidada em 2015, é um marco notável
nesse processo. Como demonstra Motta e Andrade (2020), entender a complexidade do que o período
carrega em seu ventre exige mais do que atentar para a grave crise econômica. A crise de hegemonia
que se desenhara paralelamente, sobressaltada pela descolagem das massas dos partidos e
ideologias tradicionalmente dominantes, torna a situação “delicada e perigosa, pois abre-se o campo
para as soluções de força [...] representadas pelos homens providenciais ou carismáticos (GRAMSCI,
2007, p. 60).
A questão não se reduz, porém, a um problema político entre dominantes e dominados,
embora este exista de fato. Na crise orgânica, há também um problema de hegemonia no interior das
classes: se os trabalhadores enfrentam problemas de organização que os tornam incapazes de
aproveitar a desordem a seu favor, a classe dominante apresenta dificuldades de reestabelecer a
mínima homogeneidade necessária para redefinir a direção a seguir, abrindo o caminho para
pensamentos que contêm os “perigosos fermentos ideológicos” que alimentam e engrandecem os
monstros (GRAMSCI, 1999, p.323). Não surpreendentemente, é precisamente nessas crises de
distensão dos vínculos entre estrutura e superestrutura que emergem a descrença nas instituições, na
política e na própria democracia; a apresentação de velhas ideias como inovações e, ainda, as
tentativas mais bizarras de solucionar o problema.
Não desejamos, nem poderíamos, esgotar a complexidade do tema. No escopo desse
texto, abordamos suas relações com as políticas públicas de educação. Demonstramos que, meio ao
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furacão ultraliberal-conservador, doravante pandêmico, a política educacional empresarial carro-chefe
para o Ensino Médio se consolida como o que há de mais obscuro e retrógrado no âmbito da educação
pública desde a ditadura empresarial-militar. Outrossim, que a mídia vem servindo como importante
nervura no processo de convencimento em torno desse projeto reproduzindo incessantemente
ideologia e o projeto dominante de educação pública. Nesse sentido, destacamos que, enquanto
aparelho privado de hegemonia (APH), a mídia vem servindo como importante aliado do empresariado
educacional (MOTTA; ANDRADE, 2020a), que na disputa de hegemonia com algumas frações mais
conservadoras o campo educacional se apresenta, agora como farsa, como solução para os problemas
seculares da educação brasileira.
O texto está dividido em três partes: na primeira, fazemos um breve resgate das
concepções teóricas que embasam nossa análise. Na segunda, apresentamos o resultado de nossa
pesquisa de cunho midiático, apresentando as principais propagandas em torno do tema, seus veículos
de comunicação e seus conteúdos, dialogando com a seção anterior. À guisa de conclusão,
explanamos os motivos pelos quais urge a luta pela produção de um novo consenso e de uma nova
realidade radicalmente distintas das hodiernas.
2 NEXO IDEOLOGIA-HEGEMONIA: a importância da produção do consenso na sociedade de classes
A pluralidade semântica e conceitual do termo “ideologia” é algo inegável: uma vasta
literatura histórica sobre o tema oferece distintas formas de apreender e manejar o tema. Mesmo
restringindo o conceito ao nosso campo teórico, e tratando apenas dos autores que com ele se
identificam, não convergência total acerca do sentido que o termo assume em um ou outro autor,
como, por exemplo, em Marx
1
.
De nossa ótica, o sentido de ideologia em Marx é essencialmente negativo, isto é, está
diretamente vinculado à dominação de classe. Compreendemos a ideologia como uma forma de
expressão ideal particular à época em que a externarão e a objetivação, dimensões ontológicas da
teleologia humana, configuram-se necessariamente como estranhamento. Noutros termos, é a forma
de consciência característica da sociedade produtora de mercadorias fetichizadas, cuja “própria
consistência ontológica implica um certo não-conhecimento de seus participantes”, isto é, trata-se de
uma “efetividade social cuja própria reprodução implica que os indivíduos ‘não sabem o que fazem’”
(ZIZEK, 1998, p. 303).
Precisamente nesse sentido é essa própria realidade, e não sua expressão ideal, que
deve ser concebida como ideológica. Ademais, em se tratando da apreensão ideal, toda e qualquer
distorção se configura como necessidade imposta pela própria realidade, e não como erro ou desvio
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intelectual. Nas palavras de Marx e Engels (2007, p. 94) “também as formações nebulosas na cabeça
dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente
constatável e ligado a pressupostos materiais”, de modo que todas as ideologias “são privadas aqui da
aparência de autonomia que possuíam até então”.
Com base nessa compreensão, entendemos que a ideologia é uma forma particular, que
se pretende universal, de expressão ideal da realidade, permeada por elementos de mistificação,
naturalização, justificação, inversão e ocultamento. A força dessa expressão reside não na qualidade
das mesmas em si, mas, antes, na ressonância que encontram na realidade imediata dos indivíduos.
Noutros termos, embora a ideologia, enquanto consciência, seja de fato produto da atividade
intelectual, a sua força não é imanente; deriva, antes, das próprias relações materiais de dominação.
Isto é, são justamente estas relações que tornam universais as ideias particulares de uma classe, ainda
que seu conteúdo real seja transmutado.
Em que pese a introjeção de uma série de representações que conformam os indivíduos
em harmonia com o “modo de ser burguês” desde as primeiras fases da vida, Marx e Engels tinham
plena consciência de que a monopolização do trabalho intelectual e de seus meios de difusão era fator
determinante no âmbito da dominação ideológica. Para os autores,
A classe que tem a sua disposição os meios da produção material dispõe também
dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos,
aproximadamente ao mesmo tempo, os pensamentos daqueles aos quais faltam os
meios da produção espiritual [...]. Na medida em que dominam como classe e
determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em
toda sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como
pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das
ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes
da época (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).
No limiar do século XX, Gramsci observa a complexificação do movimento de dominação
de classe. O autor percebe que a classe dominante, além de monopolizar os meios de produção
intelectual, é capaz de realizar ideologias via aparelhos “privados”
2
de hegemonia. De tais aparelhos,
explica o autor, a classe materialmente dominante se mune não para promover a interiorização
prática de uma nova concepção de mundo, mas também para ajustá-la sempre que necessário, de
modo a cimentar socialmente as alterações estruturais e superestruturais ao longo da história. De
acordo com Gramsci (2002, p.78), tais aparelhos integram a “estrutura ideológica da classe dominante,
isto é, a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’ teórica ou
ideológica”, da qual “a imprensa é a parte mais dinâmica [...] mas não a única: tudo o que influi ou pode
influir sobre a opinião pública, direta ou indiretamente, faz parte dessa estrutura”.
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Os aparelhos de hegemonia conferem, concretamente, uma robusta estrutura material às
ideologias dominantes que, por sua vez, na perspectiva do autor, formam um complexo de casamatas
que protegem de sobremaneira Estado capitalista, funcionando como uma trincheira onde a luta se dá
antes de atingir o núcleo da dominação direta. Gramsci (2007, p. 73) observa a complexificação da luta
de classes no século XX: o lócus de exercício da hegemonia, ou seja, a sociedade civil, torna-se “uma
estrutura muito complexa resistente às ‘irrupções’ catastróficas do elemento econômico imediato
(crises, depressões, etc)” e suas superestruturas “são como o sistema das trincheiras na guerra
moderna” ou como “sistemas de defesa na guerra de posição”. A luta de classes passará, portanto, e
perpassa necessariamente o convencimento e a conquista da confiança dos subalternos.
Gramsci demonstrou a ininterruptividade do abstruso trabalho intelectual das classes
dominantes nesse sentido: além de ter organizações materiais voltadas para defender e
desenvolver a sua própria visão de mundo, Gramsci mostrou a importância da capacidade
organizativa dessa classe e seus impactos positivos no âmbito do exercício da hegemonia, tanto
sobre os aliados quanto sobre os dominados – especialmente na chamada fase liberal-democrática
do Estado
3
.
Quando este passa a assimilar as massas e estas aderem à vida econômico-corporativa,
colaborando com o desenvolvimento desse Estado, a função diretiva passa aos organismos coletivos,
isto é, à sociedade civil, que se distingue da sociedade política apenas em termos teóricos. Tal
incorporação, explica Gramsci (2007, p. 119), pressupõe uma certa colaboração das massas, ou seja,
a democracia liberal pressupõe que se governe com o consenso dos governados, mas “não genérico e
vago tal como afirma-se no momento das eleições: o Estado tem e pede o consenso, mas também
‘educa’ este consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos
privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente”.
Como explica o autor, a produção do consenso é um aspecto constitutivo, inerente à ação
intelectual e à tarefa hegemônica. Embora se apresente sob várias formas historicamente, está sempre
vinculada à intima interseção entre as tarefas educativas, organizativas, diretivas e conectivas dos
intelectuais, que em seu conjunto constroem e difundem uma determinada ideologia
4
. No que tange à
direção-dominação dos subalternos, Gramsci (2007, p. 95), afirma que ela deve ser exercida “sem que
a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça
apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública”.
O que se chama de ‘opinião pública’ está estreitamente ligado à hegemonia política,
ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o
consenso e a força. O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria
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preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos
elementos da sociedade civil (GRAMSCI, 2007, p. 265).
A chamada “opinião pública” está estreitamente relacionada àquilo que Gramsci chamava
de “visão ou concepção de mundo”, que no caso dos dominados pode corresponder ao que se chama
de “senso comum” o grau mais baixo de elaboração intelectual, constituído majoritariamente pelos
elementos do cotidiano, do imediato e do aparente (GRAMSCI, 1999). Em sendo assim, o “senso
comum” é constituído de elementos que acabam por formar um todo caótico, desordenado e muitas
vezes incoerente, mas que ainda assim é incorporado pelos indivíduos e opera no seu cotidiano. Para
o autor, as ideologias operam como força material, isto é, operam concretamente guiando o pensar, o
sentir e o agir dos indivíduos.
É precisamente nesse sentido que a ideologia, isto é, a “concepção de mundo” dos
indivíduos, é ponto fulcral da atividade hegemônica do grupo social dominante, assumindo
funcionalidade concreta tanto na dominação quanto na direção intelectual e moral dos aliados e dos
subalternos. Para Gramsci, exercer hegemonia é exercer uma direção eficaz, que por sua vez depende
do quanto os dirigidos consentem e até mesmo colaboram com o projeto hegemônico. Aqui reside a
importância da conquista da confiança e da construção do consenso, haja vista que, embora não haja
direção aniquilada de elementos de força, “a direção política se tornou um aspecto da função de
domínio”, e que “não se deve contar apenas com a força material que o poder confere para exercer
uma direção eficaz” (GRAMSCI, 2002b, p. 63).
Outro ponto importante a salientar é que o chamado “exercício da força” transcende o
confronto direto e violento. Para o autor, a chamada “coerção “sobre os dominados pode ser exercida
tanto pela via repressiva-violenta através das forças policiais quanto pela via jurídica-legislativa, que
legitima a coerção econômica e política incluindo a precarização das condições concretas de
existência. Ademais, a própria linha da construção do consenso poderia conter aspectos
potencialmente coercitivos: para Gramsci (2007, p. 302) “o poder legislativo máximo reside no
pessoal estatal, que têm à disposição as forças coercivas legais do Estado. Mas não se pode dizer
que os dirigentes de organismos e organizações "privadas" também não disponham de sanções
coercivas [...]”.
O exercício hegemônico na sociedade civil pode lançar mão, ainda que em menor escala,
dos elementos de força, sobretudo a partir da “‘coação’ [que] não é estatal, mas de opinião pública, de
ambiente moral, etc.” (GRAMSCI, 2007, p. 240). Nesse sentido, o consenso segue aqui encouraçado
pela coerção exercida não só pelo aparato da sociedade política, pela coerção direta, mas também
pela coerção indireta, a partir de diversos elementos de violência subjetiva: simbólica, chantagistas
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ou massivamente repetitivos este bastante eficaz para agir sobre a mentalidade popular
(GRAMSCI, 1981).
A elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homogênea requer múltiplas
condições e iniciativas. A difusão, por um centro homogêneo, de um modo de pensar e de agir
homogêneo, é condição principal, mas não deve e não pode ser a única. [...]. A capacidade do
intelectual profissional de combinar habilmente indução e dedução, de generalizar sem cair no
formalismo vazio, [...] constitui uma “especialidade”, uma “qualificação”, não um dado do senso
comum vulgar. E por isso, portanto, não basta a premissa da “difusão orgânica, por um centro
homogêneo, de um modo de pensar e agir homogêneo”. [...]. A “repetição” paciente e
sistemática é um princípio metodológico fundamental: mas a repetição não mecânica,
“obsessiva”, mas a adaptação de cada conceito às diversas peculiaridades [...] (GRAMSCI,
2002, p. 206).
Em suma, tanto Gramsci quanto Marx e Engels oferecem elementos indispensáveis para
entendermos a importância da ideologia na luta de classes, bem como a indispensabilidade da
construção do consenso em torno do projeto hegemônico, incluindo a conquista do apoio dos
subalternos. Os elementos de naturalização, inversão, justificativa e ocultamento integrantes da
ideologia, a que se referiam Marx e Engels, parecem ser justamente os elementos compósitos do que
Gramsci entendia como “senso comum”, onde a realidade é apreendida tal como se apresenta
fenomenologicamente, com amplo apoio e respaldo dos intelectuais dominantes, que dia após dia
trabalham na construção da opinião pública que lhes convém.
Deve-se destacar ainda que a realidade ausente de mediações não só é apreendida pelos
indivíduos como é vivida pelos mesmos cotidianamente; é a realidade que constantemente lhes salta
aos olhos, sobretudo na perspectiva acrítica. Justamente aqui reside a força de ideologia, do senso
comum: na ressonância concreta que a mesma encontra no cotidiano humano, cujas lentes pelas quais
os dominados o observa é, cada vez mais, as lentes dos próprios dominantes.
Sabemos que, historicamente, a mídia é um aliado importante das classes dominantes. À
época da ditadura empresarial-civil-militar, por exemplo, as grandes propagandas dos indicadores do
assim chamado “milagre econômico”(crescimento do PIB, das exportações, das matrículas escolares,
a baixa inflação e outros), escondiam a fome crônica, as proporções do analfabetismo, o aumento da
mortalidade infantil, as relações sociais arcaicas, o aumento da jornada de trabalho e o rebaixamento
dos salários, além dos enormes índices de desemprego, alavancados sobretudo pela proletarização
dos trabalhadores do campo não acompanhada pela geração de novos empregos.
A mídia segue sendo. Analisaremos, a seguir, um exemplo concreto e hodierno de como a
mídia funciona como aparelho de hegemonia difusor de determinada ideologia com vistas à construção
do consenso em torno do projeto educacional empresarial, ocultando, invertendo, legitimando,
naturalizando e justificando a realidade brasileira a despeito de todos os aspectos cruéis e inaceitáveis.
Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta
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3 A MÍDIA COMO PONTO NODAL NA ASSIMILAÇÃO IDEOLÓGICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
DE EDUCAÇÃO: o caso do Novo Ensino Médio
O Novo Ensino Médio (NEM) é uma política educacional que promove duas grandes
mudanças nessa etapa: mudanças no currículo e mudanças na carga horária. Resumidamente, o
carro-chefe da proposta é “tornar a etapa mais atraente para o jovem”, deixando que o mesmo escolha
uma parte da sua trajetória formativa. Nesse novo modelo, o alunado cursa uma parte denominada
“comum”, instituída pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio, e uma parte
“diversificada”, instituída pelos chamados itinerários formativos.
O modelo foi aprovado em 2016 via Medida Provisória (MP 746/2016), pouco após o
golpe empresarial-parlamentar e a assunção do Ministério da Educação (MEC) por parte da coalizão
liberal-conservadora representada por Mendonça Filho e Maria Helena Guimarães de castro (antiga
integrante do MEC de Fernando Henrique Cardoso, explicitamente aberto ao desmonte da educação
pública). À época, a medida baixada de forma autoritária e contendo as propostas mais absurdas e
retrógradas (a exemplo da exclusão do currículo de disciplinas como Filosofia, Sociologia) sofreu
significativa resistência docente e discente em todo país: ocupações de escolas, interrupção de
audiências públicas, notas e moções de repúdio por parte de associações de educação e sindicatos,
dentre outros movimentos. Diante de tamanha resistência, a Medida aprovada como lei nº 13.417/2017,
em fevereiro de 2017, sofreu algumas alterações e concessões, mas manteve intactos os seus eixos
estruturantes.
Diversos autores demonstram como a Reforma do Ensino Médio retroage à política
educacional característica da ditadura empresarial-militar; como expropria as bases do conhecimento
científico-tecnológico e historicamente acumulado, como educa para o conformismo e aprofunda o
apartheid educacional e todas as dimensões do empresariamento da educação de novo tipo (BORBA;
ANDRADE; SELLES, 2019; MOTTA; ANDRADE, 2020a; MOTTA; ANDRADE, 2020b; LEHER, 2019). A
despeito de todos esses estudos e todas as resistências que sofreu, a proposta segue, atualmente, em
fase de implementação.
Entendemos que as propagandas massiva e repetidamente difundidas em emissoras de
rádio e televisão foram fulcrais para a conquista de algum apoio da população em geral em relação ao
tema. Analisamos a seguir cinco propagandas produzidas pelo MEC, que foram amplamente difundidas
no canal Globo de Televisão, entre 2018 e 2021, e a entrevista coletiva realizada por Mendonça Filho,
quando da aprovação da medida. As propagandas encontram-se no YouTube, e podem ser acessadas
pelos links indicados em nota
5
. A coletiva de imprensa do então ministro da educação, Mendonça Filho,
pode ser encontrada no link indicado nessa nota
6
.
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54
Como se pode observar sobretudo na coletiva de imprensa, quatro são as justificativas
centrais para a aprovação da proposta, quais sejam i) a qualidade da educação é baixa: o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) avançou apenas 0,3 pontos percentuais em dez anos; ii)
os índices de evasão e repetência são altíssimos, o que reflete a falta de interesse dos alunos em
estudar e concluir o Ensino Médio devido ao currículo enciclopédico e ultrapassado; iii) o jovem deixa
essa etapa sem estar preparado para o mercado de trabalho, o que faz com que este possua vagas
ociosas e iv) a formação dos jovens trabalhadores é fator causal da baixa produtividade do
trabalhador brasileiro e, logo, das péssimas condições de vida desses trabalhadores.
Precisamente nessa lógica, as propagandas difundem centralmente as ideias de que i)
“com o Novo Ensino Médio a qualidade da educação vai dar um salto”; ii) “agora é real! Nós
(estudantes) vamos poder escolher o caminho que queremos seguir”; iii) “estão disponíveis 500 mil
novas vagas para o Ensino Médio em tempo integral, agora focado no projeto de vida do aluno, a partir
de um investimento de 1,5 milhões de reais”; iv) de que “com o NEM o ensino tem tudo para ficar
mais estimulante e de acordo com o que os alunos querem de verdade: a proposta, semelhantemente
outros países, combina o conteúdo obrigatório essencial à formação de todos (definido pela BNCC)
com a liberdade de escolha de acordo com os sonhos dos alunos”; v) “com o NEM o aluno tem a
liberdade de escolher o que quer estudar conforme sua vocação e por isso quem conhece a proposta a
aprova”; vi) “pela primeira vez o Brasil aprova um documento que assegura a igualdade na
aprendizagem da educação básica “e vii)“com a Base todos os estudantes do país têm os mesmos
direitos de aprendizagem e isso é bom, porque se a base da educação é as oportunidades também
serão”.
É Interessante observar como aparentemente não qualquer problema de
encadeamento lógico de ideias, bem como o quanto a proposta é sedutora. Quem se posiciona contra
a melhoria da qualidade da educação? Quem não deseja a equidade, a igualdade de oportunidades?
Que adolescente não quer estudar somente o que gosta e o quer exercer qualquer tipo de
“liberdade? “No entanto, uma análise cuidadosa revela o encadeamento imediato de fatores (no sentido
de estar ausente de mediação); a naturalização, a justificação, a inversão e a omissão de tantos outros.
O primeiro ponto a atentar é que a “qualidade da educação” a que se referem as
propagandas é inexistente. Isso porque o termo “qualidade”, por si só, comporta uma variedade
semântica e subjetiva que não pode ser ignorada. A “qualidade da educação” referida é, na realidade,
uma concepção particular que se apresenta como universal; tem um sentido incorporado diretamente
vinculado a uma visão de mundo específica, que de modo algum é compartilhada universalmente.
Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta
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São dois os problemas maiores vinculados a essa primeira ideia: o primeiro, o de que a
qualidade da educação da classe dominante é hegemonicamente vinculada à concepção econômica
de educação, calcada na Teoria do Capital Humano (SCHULTZ, 1960), ou, conforme Motta (2012), na
“Ideologia do Capital Humano”. Nessa variante teórica-ideológica, a função da educação é
essencialmente a preparação para o mercado de trabalho; quanto mais associada e restrita a educação
estiver às necessidades do mercado, tão maior é a sua qualidade. É uma concepção radicalmente
distinta, por exemplo, daquela que considera a educação como potencial meio de emancipação
humana; que considera o trabalho como princípio educativo ou até mesmo como educadora de agentes
livres e transformadores da sociedade.
Ainda no que tange à qualidade, nessa perspectiva, o comentado Ideb assume a
máxima importância, pois a educação é um processo comensurável e sua qualidade pode ser medida
objetivamente por indicadores tal como qualquer outro fator estatístico. O que não se apresenta é que,
na verdade, o cálculo do Ideb considera apenas dois grandes fatores: o desempenho dos alunos em
avaliações padronizadas e externas e a os dados do fluxo escolar. Ao considerar o Ideb como indicador
da qualidade educacional pressupõe-se, necessariamente, que uma boa educação é aquela que
condiciona os alunos à realização de testes construídos por profissionais externos à escola. Outrossim,
uma educação à qual o aluno segue o fluxo padrão, sem qualquer intercorrência, não importando os
motivos ou as condições.
Por fim, mas não menos importante, deve-se lembrar que as chances estatísticas de
alterações grandiosas no Ideb, ou mesmo de que ele chegue a patamares altíssimos, é
estatisticamente improvável e impossível, respectivamente. Isso porque um Ideb nota dez, por
exemplo, significaria que em nenhum canto desse Brasil houve sequer um aluno reprovado ou com
nota menor do que dez nas avaliações padronizadas.
É interessante notar que se de fato o novo modelo de Ensino Médio reduz a evasão e a
repetência, melhora o desempenho em avaliações padronizadas e prepara os alunos para o mercado
de trabalho através de estágios e de um momento da educação voltado especialmente para esse fim
(independente das suas condições, como será visto adiante), o modelo realmente, pelo menos em
potencial, melhora a qualidade da educação. Nessa perspectiva, a afirmação de que o discurso é
“mentiroso” perde totalmente o sentido. Não se trata de uma mentira; trata-se de uma concepção
particular, que se apresenta como universal, e que omite fatores importantes para que seja possível
esse entendimento.
No que tange a essa preparação para o mercado de trabalho, também deve-se observar
que em nenhum momento, de um lado, menciona-se explicitamente que “mercado” é esse,
concretamente; de outro, não se questiona as condições desse mercado. Deveríamos ajustar a
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educação à precariedade do mundo do trabalho ou deveríamos estar debatendo por que esse mercado
oferece cada vez menos garantias, direitos e até mesmo condições razoáveis de trabalho?
Em 2017, o Brasil atingiu a maior taxa de desocupação desde 2003, e pela primeira vez
na história recente o número de pessoas ocupadas no trabalho informal superou àquelas ocupadas na
formalidade (MOTTA; ANDRADE, 2020b). Entre 2015 e 2017, o Brasil fechou 3,5 milhões de postos
formais de trabalho; em 2016 e 2017, as reformas trabalhista e da terceirização desmontaram o
aparato que garantia alguma segurança ao trabalhador formal.
Em 2013, quando a taxa de desocupação era a menor da história, o mesmo argumento já
era manejado para abordar a necessidade de reformulação do Ensino Médio nos moldes atuais. A
despeito da fala de que o Ensino Médio não prepara para o mercado e de que o Ensino Superior não
faz tanta diferença na empregabilidade, a porcentagem de desocupados como Ensino Médio completo
é de 12% - quase a metade daqueles desocupados com essa fase incompleta (20%) e o dobro
daqueles com ensino superior completo (6%) (MOTTA; ANDRADE, 2020b). De fato, todavia, a
desocupação é maior entre os jovens, mas não exatamente porque são mal formados. Na realidade,
trata-se do fato de que o “emprego para os jovens é mais impactado por crises” e que são eles os mais
afetados por fatores como a “inexperiência, busca pelo primeiro emprego e menor custo de
desligamento” (IBGE, 2018, p.12).
Novamente, vale observar que considerando a estrutura dos itinerários formativos,
amplamente voltados para “processos criativos”, “empreendedorismo” e “economia criativa”, bem como
a robusta educação soco emocional voltada para a resiliência, para a volatilidade e para as incertezas,
o novo modelo, realmente, preparará esses jovens para adentrarem ao mercado. Uma vez mais, não
se trata de uma proposta enganosa; ao contrário, ela oferece exatamente aquilo a que se propõe.
Outro aspecto importante e amplamente manejado é sobre as altas taxas de evasão e de
repetência – e as afirmações são verdadeiras. De fato, o Brasil tem uma das maiores taxas de evasão
e repetência do mundo: de acordo com o último censo da educação, uma média de 12% dos alunos
deixavam a escola a cada ano. As taxas de evasão na 1ª, e série dessa etapa é de,
respectivamente, 12,9%, 12,7% e 11,2%. Nasérie, chega a 15,3% a taxa de repetência; Em 2018,
30,7% dos alunos entre 15 e 17 anos (idade média esperada do alunado) estavam atrasados ou não
frequentavam mais a escola. Mais precisamente, cerca de 1,3 milhão de adolescentes estão fora
(INEP, 2020).
No entanto, os nexos causais estabelecidos entre esses dados reais e o desinteresse, por
exemplo, aparece invertido. De acordo com a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT), o
abandono escolar se deve, primeiramente, ao advento de uma gravidez inesperada e/ou para ajudar
Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta
57
nas tarefas domésticas (52,7%). Em segundo lugar, com 30,4%, estão os jovens que não conseguiram
conciliar escola e trabalho, tendo optado pelo trabalho devido à necessidade de colaborar com o
orçamento familiar. Questões ligadas à escola, como ter sido reprovado, não estar interessado na
educação/formação, não ter uma escola por perto e dificuldade de transporte são o terceiro grupo mais
citado (16,8%)” (OIT, 2018, p. 26).
No que tange à ampliação da carga horária um dos mais fortes pontos de consenso
sobre a proposta – também é verdade que estão disponíveis 500 mil novas vagas de Ensino Médio em
tempo integral, a partir do investimento de 1,5 milhão através do “Programa Ensino Médio em Tempo
Integral” (EMTI). O que não se explicita é que esse investimento, imediatamente tido como vultoso,
abarca uma porcentagem ínfima de alunos: o Brasil tem, hoje, cerca de 7,8 milhões de alunos
matriculados no Ensino Médio, dos quais cerca de 1 milhão está na rede privada. Dos 6,7 milhões
restantes, cerca de 670 mil alunos são contemplados com a jornada de sete horas diárias, dita
integral. Restam, portanto, 6 milhões de alunos, dos quais apenas 500 mil preencherão as novas vagas
anunciadas em propaganda.
Ademais, pressupor que um documento-lei “assegura” direitos de aprendizagem é, no
mínimo, uma abstração. Pressupor que mesma “base de educação” reverbera necessariamente em
“oportunidades iguais” é elemento de falseamento. Em que pese a realidade que salta aos olhos, bem
como o fato de que os indivíduos observam, fenomenologicamente, que piores condições educacionais
normalmente reverberam em mais cruéis condições de vida, estabelecer uma relação determinista,
linear e imediata entre leis, direitos e igualdade é falsear a realidade.
É, ainda, negar a negação de tantos direitos, garantidos em lei, às nossas crianças e
jovens. De acordo com a Fundação Abrinq (2019), cerca de 10 milhões de crianças e jovens brasileiros
vivem em situação de extrema pobreza, isto é, com uma renda domiciliar per capita mensal inferior ou
igual a um quarto de salário mínimo. Se aumentarmos essa referência para até meio salário mínimo per
capita esse número sobe para 47,8%. Isso significa que mais de 20 milhões de jovens vivem em
condição domiciliar de baixa renda, sem acesso muitas vezes a moradia, saúde, alimentação, lazer,
saneamento e a tantos outros direitos.
Na mesma linha segue a afirmação de que os jovens terão “liberdade de escolha”.
Primeiramente, deve-se reparar a omissão de que, embora sejam cinco itinerários formativos previstos,
a lei obriga o oferecimento de, no mínimo, dois itinerários. Em sendo assim, a dita escolha entre cinco
opções pode ser entre apenas duas, três ou quatro. Ademais, omite-se também que as possibilidades
de escolha provavelmente refletirão as conhecidas desigualdades regionais: pensando em termos de
estrutura, não parece crível que nos tantos municípios que têm apenas uma única escola de Ensino
Médio como é o caso de Coqueiro Seco (Alagoas), Bom Jesus da Serra (Bahia), Itacuruba
A MÍDIA E A PRODUÇÃO DO CONSENSO EM TORNO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: o caso do Novo Ensino
Médio
58
(Pernambuco),Afonso Cunha (Maranhão), Barroquinha (Ceará), Alcinópolis (Mato Grosso do Sul),
Acaica (Minas Gerais), Porto Real (Rio de Janeiro) e outros seja possível oferecer tantas
possibilidades. Isto sem contar aqueles municípios que não têm sequer uma escola de nível médio,
como é o caso de Barro Preto (Bahia).
Considerando o conjunto de argumentos, tem-se uma lógica que em si mesma justifica e
naturaliza a realidade. A condição degradante de existência na qual vive grande parcela da população
brasileira deriva de uma condição de educação ruim, mas que pode ser melhorada via cartilha
realizada. Nessa lógica, a realidade é apresentada como dada e imutável: existe O MERCADO, a
entidade que paira acima de qualquer racionalidade e que demanda, imediatamente, novas formas de
trabalho e existência. Afirmar a necessidade de reformar a educação para agradar o mercado, isto é,
de que uma nova conformação psicofísica é imperativa para melhorar as condições de vida é
pressupor, antes de tudo, que o mercado é imutável, inatingível, insuperável. Do mesmo modo, tornar a
educação a causa da baixa produtividade do trabalhador brasileiro, e esta a causa das condições
desumanas de existência, é considerar que ser produtivo, que produzir para outrem, é condição sine
qua non de uma existência menos degradante. Em suma, a totalidade argumentativa pressupõe,
indubitavelmente, que o modelo de sociedade em que nós vivemos é o único possível. Acreditamos
nisso?
4 CONCLUSÃO
Buscamos demonstrar anteriormente como o conceito de ideologia em Marx e em
Gramsci o ferramentas conceituais importantes para entender o conteúdo de propagandas
vinculadas em mídias aqui, especialmente, no que tange às políticas educacionais. Marx e Gramsci
continuam atuais e indispensáveis.
Devemos ratificar a gravidade do que se processa. O chamado “novo” modelo de Ensino
Médio provoca alterações estruturais nessa etapa que retroagem às políticas educacionais mais
obscuras da história da educação brasileira, como a Lei 5.692/1971, que tornou compulsória a
profissionalização precária da juventude brasileira. São trinta anos de redemocratização e de luta
permanente pela consolidação de um razoável modelo democrático; uma luta que gerou conquistas
alcançadas tão recentemente já nos são arrancadas, como a própria obrigatoriedade do Ensino Médio
e a inclusão de disciplinas como sociologia e filosofia no currículo. O Ensino Médio passou a integrar a
Educação Básica obrigatória em 2013; as disciplinas passaram a integrar o currículo obrigatório em
2008. Pouquíssimos anos após, em 2016, via medida autoritária, destrói-se o modelo de ensino médio
Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta
59
que lutamos tanto para que a população pudesse alcançar. e, a despeito disto, está claro para quem
quiser ver: “Sob aplausos do mercado financeiro, empresários já lucram com reforma do ensino médio”
(BORGES, 2017),
É importante salientar que o episódio revela uma característica importante da democracia
capitalista, mas especialmente a democracia típica do capitalismo dependente (FERNANDES, 1981).
Os direitos das minorias são tolerados desde que não entrem em confronto com as necessidades mais
imperiosas da acumulação capitalista – o que ocorre especialmente em momentos de crise, que aqui
são particularmente gritantes. Nesse sentido, é preciso ter claro que a luta pela democracia é
essencial, haja vista que a mesma “[...] não teria nenhuma utilidade para o proletariado se não servisse
de maneira imediata para realizar algumas medidas que atacam diretamente a propriedade privada e
asseguram a existência do proletariado.” (ENGELS, 2016, p. 35). No entanto, é preciso repensar se
a luta nos limites da ordem é suficiente para alcançarmos o que realmente desejamos.
No que tange especificamente às propagandas, é preciso ter claro que a ideologia pode
congregar elementos mentirosos e de falseamento, mas ela não é, em si, uma mentira. Demonstramos
aqui que essa afirmação é descabida. Nesse sentido, é preciso transcender o discurso que se limita ao
debate moral sobre as propostas operadas pelas classes dominantes: o problema do capitalismo não é
uma questão moral, e tanto Marx quanto Gramsci sabiam muito bem disso. A ideologia é elemento
constitutivo do capitalismo porque a realidade assim exige, assim clama, assim se apresenta. Enquanto
houver capitalismo, haverá ideologia – e ela jamais poderá ser acusada de “fake news”.
Nós não queremos uma ideologia, no sentido aqui expresso, para viver. E você?
REFERÊNCIAS
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Escovedo. Ensino de ciências e biologia e o cenário de restauração conservadora no Brasil:
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Ensino Médio. 2017. Disponível em: https://theintercept.com/2017/10/20/sob-aplausos-do-mercado-
financeiro-empresarios-ja-lucram-com-reforma-do-ensino-medio/. Acesso em: 4 dez. 2021.
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FERNANDES, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, [1968]
1981.
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
A MÍDIA E A PRODUÇÃO DO CONSENSO EM TORNO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: o caso do Novo Ensino
Médio
60
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GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
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IASI, M. Política, Estado e ideologia na trama conjuntural. São Paulo: ICP, 2017.
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– série histórica. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/9180-
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Novo Ensino Médio. Revista Histedbr on-line, v. 20, p. e020005-26, 2020b.
ZIZEK, Slajov (org). Um Mapa da Ideologia. Contraponto,1998.
Notas
1
Sobre o tema, ver Iasi (2017).
2
Aspas no original.
3
Vale lembrar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil
(Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)” (GRAMSCI, 2007, p. 244).
4
De nossa ótica, para o autor italiano, direcionar a sociedade em geral significa precisamente dirigir tanto os aliados quanto
os subalternos, abarcando a conquista e a organização do consenso, de ambos, em torno de ações, valores, ideias,
direções, etc. Nesse sentido, é um erro de implicações teóricas e práticas pressupor, por exemplo, que a classe detentora
dos meios de produção busca entrar em consenso com ambas as duas classes fundamentais exatamente da mesma forma.
Ainda que no âmbito da sociedade civil o exercício da hegemonia sobre as classes subalternas privilegie os elementos do
consenso, sem abandonar os elementos coercitivos, decerto não são os mesmos elementos manejados que para com as
classes aliadas – e nem poderiam ser. Afinal, vale lembrar, o consenso das classes aliadas é em torno das condições de
seu próprio desenvolvimento e expansão, conquanto o consenso a ser obtido das classes subalternas, em torno dessas
mesmas condições, reverbera necessariamente em maior ou menor escala, na degradação de no mínimo uma parcela
desta classe. Isso porque, como já havia afirmado Marx (1867, p. 877), “a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo
tempo, “a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a
escravidão, a ignorância, a brutalizarão e a degradação moral no polo oposto” e, nesse sentido, deve haver um trabalho que
Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta
61
induza uma determinada forma de receber, pensar e sentir a ininterrupta expropriação econômica, política, social, cultural e
moral. No escopo desse texto, haja vista que nos interessa especialmente a conquista do consenso das classes dominadas
em torno do projeto pedagógico do empresariado educacional, focamos na conquista de consenso por parte dos
dominantes em relação aos dominados.
5
Os vídeos das propagandas estão disponíveis em: https://youtu.be/rffon63gGBY;
https://www.youtube.com/user/ministeriodaeducacao;https://www.youtube.com/user/ministeriodaeducacao;
https://www.youtube.com/watch?v=Fbz-cpct1W4; Acesso em: 16dez. 2021
6
A reportagem está disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/ensino-medio-no-pais-avancou-apenas-03-
ponto-em-dez-anos-de-ideb-20076273. Acesso em: 16 de dez de 2021.
Article
Full-text available
The objective of this study is to analyze how discourses about education for consumption are constituted in Textbooks (LD) of Portuguese Language (LP) of the New Middle School (NEM). To do so, we resort to the theoretical subsidies of Michel Foucault, about discourse and power, as well as authors who reflect on education for consumption, such as Gomes (2006) and Medina and Santos (1999). The corpus of analysis comprises two textbooks of LP, approved by the National Book and Teaching Material Program (PNLD), of 2021, namely: Languages in Interaction, by Juliana Vegas Chinaglia, published by Editora IBEP and Ser Protagonista - A voz das youths, a collective work, conceived, developed, produced and published by Edições SM. Although the two collections of books analyzed address the theme in a different way, that is, each one deals with consumerism from another angle, it is noticeable that the materials included consumption practices that young people are used to, especially in relation to digital technologies.
Ensino de ciências e biologia e o cenário de restauração conservadora no Brasil: inquietações e reflexões. Revista Interinstitucional Artes de Educar
  • Sandra Selles
  • Escovedo
SELLES, Sandra Escovedo. Ensino de ciências e biologia e o cenário de restauração conservadora no Brasil: inquietações e reflexões. Revista Interinstitucional Artes de Educar, v. 5, p. 144-162, 2019.
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Mensal do Emprego -série histórica. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/9180-pesquisa-mensalde-emprego.html?=&t=series-historicas. Acesso em: 2 jan. 2019.
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  • Cardoso Da
MOTTA, Vânia Cardoso da. Ideologia do capital social: atribuindo uma face mais humana ao capital. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.
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