BookPDF Available

Abstract

A obra é dividida em duas sessões. A primeira é composta por dez capítulos escritos por membros do GEO sobre a metodologia aplicada em suas pesquisas de pós-graduação e as possibilidades de trabalho com narrativas. A segunda contém vinte artigos produzidos e cedidos ao jornal Folha de S. Paulo para publicação durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, realizados em 2021. O livro é fruto do trabalho desenvolvido durante o período mais grave da pandemia de COVID-19, no qual as reuniões do GEO ocorreram de maneira virtual. Marcado pela diversidade, o trabalho, que é realizado em equipe, tem seu ponto de convergência no método: as Narrativas Biográficas. Ouvir relatos e trabalhar sobre eles, com diferentes perspectivas e rigor acadêmico. Narrativas biográficas no esporte: reflexões e aplicação é um livro da editora Laços e pode ser comprado nas principais plataformas de comércio eletrônico (no momento estão disponíveis para download no Research Gate a capa e índice).
1
Narrativas biográficas
no esporte:
reflexões e aplicação
2
3
Conselho Editorial
ALBERTO FILIPE ARAÚJO  Universidade do Minho, Portugal
ANA MAE BARBOSA  Universidade de São Paulo, Brasil
AQUILES YAÑEZ  Universidad del Maule, Chile
CARLOS BERNARDO SKLIAR  FLACSO Buenos Aires, Argentina
CLÁUDIA SPERB  Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil
DANIELLE PERIN ROCHA PITTA  Universidade Federal de Pernambuco
e Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil
EDESMIN WILFRIDO P. PALACIOS  Universidade Politecnica Salesiana, Quito,
Ecuador
IKUNORI SUMIDA  Kyoto University, Japan
IONEL BUSE  Centre of Studies Mircea Eliade, University of Craiova, Romania
JEANJACQUES WUNNENBERGER  Université Jean Moulin de Lyon 3
& Centre de Recherches G. Bachelard sur l’imaginaire et la rationalité de
l’Université de Bourgogne, France
JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO  Universidade Federal do Pará,
Belém, Brasil
JOÃO FRANCISCO DUARTE JUNIOR  Universidade Estadual de Campinas, Brasil
JORGE LAROSSA BONDÍA  Universitat de Barcelona, Spain
KATIA RUBIO  Universidade de São Paulo, Brasil
LUIZ JEAN LAUAND  Universidade de São Paulo, Brasil
MARCOS FERREIRASANTOS  Universidade de São Paulo, Brasil
MARIAN CAO  Universidad Complutense de Madrid, Spain
PATRÍCIA P. MORALES  Universidad San Buenaventura, Cali, Colombia
PILAR PERES CAMARERO  Universidad Autónoma de Madrid, Spain
REGINA MACHADO  Universidade de São Paulo, Brasil
ROGÉRIO DE ALMEIDA  Universidade de São Paulo, Brasil
SORAIA CHUNG SAURA  Universidade de São Paulo, Brasil
4
5
São Paulo, 2022
Katia Rubio e
William Douglas de Almeida
(organizadores)
Narrativas biográfi cas
no esporte:
refl exões e aplicação
6
EDIÇÃO
2022
PUBLISHER: Kendi Sakamoto, Ph.D
ASSISTENTE EDITORIAL: Maria Teresa de Camargo
DIRETORA LITERÁRIA: Cristine Ramires
SECRETÁRIA EXECUTIVA: Renata Mendes
REVISÃO TEXTUAL: D G  N  A
PROJETO GRÁFICO DA CAPA: C B
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Marcos C. Nishida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Elaborado por Maurício Amormino Júnior - CRB6/2422
N234 Narrativas biográcas no esporte: reexões e aplicação /
Organizadores Katia Rubio, William Douglas de Almeida.
- São Paulo, SP: Laços, 2022.
268 p. : 16 x 23 cm
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-89694-60-1
1. Metodologia. 2. Narrativas biográcas. 3. Memória.
4. Esporte. 5. História. I. Título.
CDD 920
Todos os direitos reservados aos autores.
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita
ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações,
assim como traduzida sem a permissão, por escrito, dos autores.
Os infratores serão punidos pela Lei nº- 9.610/98.
Képos é um selo da Editora Laços
Impresso no Brasil
Publicado por Editora Laços Ltda.
Rua Serra de Jurea, 767 - cj. 174 - CEP 03323-020 - Tatuapé - SP
Website: www.editoralacos.com.br
E-mail: kendi.editoralacos@gmail.com
7
Sumário
Apresentação
Katia Rubio e William Douglas de Almeida .................................................................. 11
Memória e narrativa: quando duas paralelas se encontram,
ainda que não seja o innito
Katia Rubio .......................................................................................................................... 15
A “jornada da interpretação”: das narrativas biogcas aos contos biográcos
Rafael Campos Veloso ...................................................................................................... 29
“Nada menos que a alma”: a plenicação das narrativas
Luciane Maria Micheletti Tonon .................................................................................... 57
Narrativas biográcas e epistemologias do Sul: elementos para uma antologia das
resistências negras ao racismo no esporte brasileiro
Neilton Ferreira Júnior ..................................................................................................... 71
O respeito ao não dito nas narrativas de atletas
LGBTQIA+ do esporte olímpico
Waleska Vigo Francisco; Juliana Ferreira dos Santos; Katia Rubio ......................... 97
Estilhas da Narrativa em História Oral - A experiência de escrita
sobre a participação brasileira nos Jogos Olímpicos do México em 1968
Dhênis Rosina .................................................................................................................. 113
A narrativa como reveladora de trajetórias e identidades
William Douglas de Almeida ........................................................................................ 139
Teoria e prática das narrativas biográcas em tatames portugueses
Alexandre Velly Nunes ................................................................................................... 163
Como escrevo sobre aquilo que percebo?: um percurso fenomenológico
para pesquisas descritivo-narrativas em práticas de movimento
Thabata Castelo Branco Telles......................................................................................185
Entrevistado e entrevistador. Experiências de um pós-atleta pesquisador
Fernando Augusto Dias Scavasin .................................................................................201
Segunda parte
Não temos rito para Jogos Fúnebres
Rafael Campos Veloso ....................................................................................................215
Valores olímpicos, não. Valores humanos, em meio à pandemia do coronavírus
Carlos Rey Perez .............................................................................................................. 217
Da escola aos Jogos Olímpicos: mais perto ou mais longe do sonho?
André Almeida Cunha Arantes ..................................................................................... 219
Quando os deuses visitam a Terra
Eder Alexandre Magalhães ............................................................................................221
8
Professores e atletas: o esporte formando pessoas
Maria Alice Zimmermann ..............................................................................................223
Muito mais que disputas e medalhas: é sobre ser
Natália Kohatsu Quintilio ..............................................................................................225
Meu treinador, meu guia do SER, juntos ou distantes...
Edilene Mendonça ...........................................................................................................227
Atletas ativistas: as vozes além dos gestos
Marjorie Enya ...................................................................................................................229
Avanço do debate sobre a prossionalização de atletas adolescentes
amplia o acesso ao esporte
Neilton Ferreira Júnior ....................................................................................................2 31
Frágeis? Para a nossa felicidade, elas não acreditaram nisso!
Andreza Rodrigues Marreiros de Sousa ......................................................................235
Cadê a treinadora que estava aqui?
Julio Cezar Fetter .............................................................................................................2 39
A discriminação dos testes de vericação de gênero no esporte olímpico.
Até quando?
Waleska Vigo Francisco ..................................................................................................2 41
A descoberta do olimpismo além dos Jogos
William Douglas de Almeida .........................................................................................245
O banco de dados dos atletas olímpicos brasileiros
Rovilson de Freitas ..........................................................................................................249
Jogos Olímpicos e esportes ligados à natureza
Tiago Brant .......................................................................................................................251
O karatê nos Jogos Olímpicos
Marcelo Alberto de Oliveira ..........................................................................................253
O que é lutar, anal? Questões de vida, morte e Olimpismo
Thabata Castelo Branco Telles......................................................................................255
Julinho da Adelaide e esports
Luciano Sampaio .............................................................................................................257
Mario Bros e as Olimpíadas Virtuais
Guilherme Sousa Vieira .................................................................................................261
O atleta parampico: do quadro de pinturas ao quadro de medalhas
Luciane Maria Micheletti Tonon ...................................................................................263
Sobre os autores ...............................................................................................................265
9
A Vilson Furtuoso da Silva, nosso Birigui,
que em anos de trabalho com dedicação foi
o guardião do GEO e das memórias
colecionadas na pesquisa Memórias Olímpicas
por Atletas Olímpicos Brasileiros
10
11
Apresentação
Reuniões presenciais, dlogos, orientações, discussões
em grupo, trocas de experiências e cafés da manhã.
A dinâmica de trabalho do Grupo de Estudos Olímpicos da
Universidade de São Paulo (GEO) foi alterada de maneira abrupta
no primeiro semestre de 2020. Enquanto prossionais da área da
Saúde se desdobravam em turnos intermináveis e pesquisadores das
ciências biológicas voltavam todos os seus esforços a seus laboratórios
em busca de respostas sobre o comportamento do coronavírus e das
possibilidades de tratamento para as doenças causadas por ele, nós,
pesquisadores do olimpismo, assim como outros milhões de pessoas,
vivíamos um momento de apreensão e espera.
Como medida de segurança, as reuniões presenciais foram
suspensas, assim como as aulas na Universidade. A virtualidade, que
começava a ganhar espaço e já fazia parte de alguns momentos do
nosso cotidiano, passou de exceção à regra. Encontros virtuais foram
a alternativa encontrada para que os trabalhos fossem mantidos.
Mas, qual trabalho? Anal de contas, uma das marcas das
pesquisas do GEO são as pesquisas realizadas em campo, no contato
com aqueles que construíram a história do esporte brasileiro. E, não
apenas isso: apesar das peculiaridades de cada trabalho desenvolvido –
sejam artigos, pesquisas de iniciação cientíca, mestrados, doutorados
– o GEO sempre teve como característica trabalhar coletivamente.
É preciso recordar que a mudança de rotina não se restringiu
ao fato de trocarmos as idas ao laboratório pelos estudos em casa.
Todas as pessoas tiveram a rotina alterada de maneira dramática,
tendo de conciliar as atividades cotidianas, de trabalho e estudo,
com um bombardeio de informações sobre a velocidade que o vírus
se propagava e causava mortes no Brasil, um desao à saúde mental.
Ainda em busca de compreensão sobre como conciliar a
nova forma de trabalho com um novo conteúdo, surgiu, então,
uma possibilidade: tendo em vista o dinamismo de um grupo de
12
estudos, no qual integrantes chegam e saem com o passar dos anos,
era o momento de olhar para aquilo que já tinha sido feito, reetir
e, quem sabe, apontar alternativas para o futuro das pesquisas que
desenvolvemos.
Os encontros exclusivamente virtuais se estenderam até o nal
de 2021, e o ano de 2022 começou em modelo híbrido, com a
presença de alguns membros na Universidade e outros a distância.
Esta obra é fruto desse período e deixa evidente que, apesar dos
estragos em toda a sociedade, a COVID-19 não paralisou o GEO.
Novos doutores foram titulados, mesmo em período de isolamento
social. Outros, já possuidores do título, retornaram ao grupo para
compartilhar suas experiências e dialogar sobre as possibilidades dos
trabalhos com narrativas. O que o leitor encontrará nas páginas a
seguir é um breve resumo de alguns desses encontros e do método
utilizado nas pesquisas.
A começar pelo texto de Katia Rubio, que retoma duas
décadas de trabalhos e sintetiza um trabalho complexo: a busca
não apenas por objeto de pesquisa, mas por pessoas, que zeram (e
fazem) a história do movimento olímpico brasileiro. Um trabalho
que exige rigor metodológico, mas também sensibilidade para lidar
com questões delicadas, anal, somos humanos.
Rafael Campos Veloso transforma narrativas em contos
biográcos, revelando, deste modo, as imagens ocultas no imaginário
noturno de atletas olímpicos brasileiros. Com forte imersão na
Filosoa, Rafael consegue resumir em algumas linhas um processo
que levou anos para ser construído e aprimorado.
Na sequência, Luciane Tonon desvenda os desaos de
quem faz uma pesquisa em busca de algo imaterial: a alma dos
atletas. Uma imersão na losoa de Bachelard é o guia que leva
a pesquisadora a compreender os instantes signicativos que
tornaram trajetórias olímpicas em parampicas. Uma mostra
muito clara que a sensibilidade é um dos diferenciais da pesquisa
com Narrativas Biogcas.
Com um mergulho profundo nas epistemologias do Sul,
Neilton Ferreira Júnior retorna à superfície com o tema das
resistências negras e o racismo no esporte brasileiro. Muito além das
13
palavras, o autor mostra a importância de se buscar os motivos que
levaram a silenciamentos históricos, e deixa explícito que a escolha
por silenciar algumas vozes é um projeto de poder.
Em uma obra sobre narrativas, a importância de se respeitar
os silêncios é reforçada mais uma vez no texto de Waleska Vigo
Francisco, Juliana Ferreira dos Santos e Katia Rubio, que discorrem
sobre como trabalhar com a narrativa de atletas LGBTQIA+.
Um texto que vem com um alerta sobre a necessidade de não
cometer mais violências com os colaboradores, na ânsia de buscar
“novas” informações.
Em mais de 20 anos de histórias, o número de atletas ouvidos
por membros do GEO é contado em centenas. E como organizar
tantas narrativas? Dhênis Rosina enxerga as narrativas como estilhas
de um mosaico, compreende o papel da transcriação e detalha uma
forma de escrever a história que rompe com um modelo linear. E
não para por aí. Assim como Rafael Campos Veloso, Rosina traz a
literatura como ferramenta na produção do conhecimento cientíco.
A compreensão da identidade, tema complexo que passa por
questões sociais e individuais, também pode ser feita via Narrativa
Biográca. É o que nos traz William Douglas de Almeida em um
trabalho que se debruçou em narrativas de atletas que migraram de
outros países para o Brasil ao longo da história olímpica brasileira.
Alexandre Velly Nunes utilizou-se das Narrativas Biográcas
para montar a genealogia do judô brasileiro em sua tese de
doutorado. Anos depois, em seu pós-doc em Portugal, foi em busca
dos caminhos do judô lusitano. Em cinco itens, aponta os principais
desaos e possibilidades encontrados ao utilizar essa metodologia.
Na sequência, o texto de Thabata Castelo Branco Telles
verticaliza as reexões sobre o pensar fenomenológico e sua conexão
com o trabalho realizado no GEO. Entre suas reexões, encontram-
se a passagem da percepção à construção de memórias e o papel do
corpo, instrumento primordial do atleta nesse processo.
Se o atleta é a razão de ser do esporte, e do Grupo de
Estudos Olímpicos, então é necessário que ele tenha voz. Fernando
Scavasin, esgrimista olímpico que representou o Brasil no Jogos no
Rio de Janeiro, em 2016, relata como foi a experiência de ter sido
Apresentação
14
entrevistado por veículos de mídia, trazendo detalhes sobre o papel
dos treinamentos de mídia e das orientações recebidas pelos atletas.
Na atual condição de pós-atleta, ele conta ainda a experiência que
vivenciou na sequência, ao tornar-se um entrevistador.
A segunda parte deste livro traz textos mais curtos. Publicados
no jornal Folha de S. Paulo durante os Jogos Olímpicos de Tóquio,
no ano de 2021, eles são um bom exemplo de como o conhecimento
produzido dentro da universidade pode ser utilizado de maneira
direta e didática, chegando ao grande público. Analisar e interpretar
questões que envolvem os Estudos Olímpicos no cotidiano,
superando um modelo informativo pautado no resultado de uma
competição, foi a principal característica dos textos produzidos em
uma edição olímpica já marcada por tantas exceções.
Distantes sicamente, mas conectados. E não apenas pela
internet. As páginas seguintes trazem uma pequena mostra do
que foram os últimos anos do GEO e o papel que a Universidade
desempenha no entendimento das questões sociais mais amplas.
Boa leitura!
Katia Rubio e William Douglas de Almeida
15
Memória e narrativa: quando
duas paralelas se encontram,
ainda que não seja o infinito
K R
Introdução
O
verbo perseguir traz em si a marca da busca incessante,
ininterrupta, incansável, quase obsessiva. Um caçador
busca pela presa com base em elementos que incluem pistas, vestígios,
conhecimento de terreno, sons e, claro, um pouco de sorte.
Começo esta reexão com uma das mais de mil histórias de
atletas olímpicos brasileiros. Era uma pessoa pela qual eu procurava
há anos até que um amigo favoreceu nosso encontro. Ainda que
virtual, no momento em que zemos contato, ele me disse: eu
sabia que você chegaria a mim algum dia. Essa fala chegou aos
meus ouvidos com o sentido de alguém que havia sido acuado, não
por mim, mas pelas contingências de uma vida de atleta que viveu
a pior das experiências possíveis: um resultado positivo de doping
não intencional.
Nas muitas buscas que z sobre ele, tudo o que eu era capaz
de encontrar referia-se ao episódio do doping e quase nada sobre a
pessoa sensível e generosa que habitava aquele corpo habilidoso capaz
de trazer para seu clube e país medalhas, recordes, pódios e tudo o
que há de simbólico relacionado com a vitória. Essa história, com
muitos desdobramentos pessoais, me fez reetir durante anos sobre
o poder que uma pesquisa com narrativas biográcas tem. Para nós,
a pessoa que fala não é objeto da pesquisa; ela é uma colaboradora.
16
Ela não oferece dados; ela compartilha sua vida. E nós, pesquisadores,
não manipulamos a fala, recortando e adequando o recorte ao que
desejamos provar; nós respeitamos o uxo narrativo por onde trafega
o não-dito, o inaudito e a alma cravejada de memórias.
Uso o termo “pessoa” porque há nele uma dimensão humana
e social que muito se perdeu nas construções teóricas que opõem
sujeito e indivíduo, conforme aponta Sá (2007). Segundo o autor, “a
referência à ‘pessoa’ implica reconhecê-la como produto de processos
de socialização, como ocupando posições e desempenhando
papéis sociais, como dotada de uma identidade construída através
da interação social e como reexivamente ciente desta” (p.292).
Essa condição o distingue tanto do sujeito, uma criação moderna
e produto de subjetividade, quanto do indivíduo, ente isolado no
contexto social.
Memória e narrativa são como duas paralelas que se atraem, e
a história com a qual abro esse texto aponta isso.
O atleta em questão buscou se esconder de mim, mas de longe
ele seguia os meus passos e sabia tudo o que eu fazia. Das participações
nos meios de comunicação aos textos acadêmicos publicados, ele
acompanhava a minha trajetória calculando o tempo que levaria
para que eu chegasse até ele. Com uma sinceridade pungente, ele
me disse isso nos momentos iniciais de nossa conversa que começou
escrita, e depois seguiu para o telefone após um pouco de insistência
respeitosa. Em nossa interação, cou claro o quanto ele já conhecia
do trabalho realizado com a memória dos atletas, mas, por outro,
o temor que tinha de voltar a fatos tão humilhantes como ter que
responder por um evento que alterou completamente a sua vida sem
que ele fosse o responsável por isso.
E foi justamente a maneira respeitosa de lidar com a narrativa
de suas memórias que o curso de sua vida mudou. E de forma quase
terapêutica, ele pode relembrar o que ocorreu, ressignicar sua
dor, expor detalhes do que viveu e sentiu para pessoas próximas, e,
literalmente, dar a volta por cima, reconectando o seu passado com
o presente que construiu para si.
A narrativa, segundo Benjamim (2012), durante longo tempo
oresceu em um meio artesão e ela própria é, em certo sentido,
17
uma forma artesanal de comunicação. “Ela não está interessada em
transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma informação ou
um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso” (p.221). Foi possível constatar,
ao longo dessas quase duas décadas de trabalhos com os olímpicos
brasileiros, que o convite à reexão sobre a própria história leva a
pessoa a uma atitude de recolhimento introspectivo que favorece
a criação de imagens e lembranças, permitindo a reconstrução da
memória. As diferenças temporais e geográcas marcam as narrações,
porém o laço que une os narradores das diferentes modalidades em
momentos históricos distintos é a condição de ser atleta que, embora
tenha sofrido profundas transformações ao longo do século XX,
mantém uma unidade relacionada à busca da excelência, ao caráter
competitivo da atividade e à submissão a um sistema marcado pela
hierarquização e força das instituições que viabilizam sua vida. Essas
aproximações e distanciamentos permitem armar que a memória
social do esporte olímpico é constituída pelas relações estabelecidas
com as lembranças geradas por todos os que participaram do processo
de construção da carreira dos atletas, a partir da escola, dos clubes
brasileiros e estrangeiros e dos prossionais que interferiram, direta
ou indiretamente, na trajetória de todos aqueles que participaram de
Jogos Olímpicos.
As paralelas representando memória e narrativa desaam as
leis da geometria, tendendo a se encontrar muito antes do innito,
uma vez que o exercício de ressignicação do passado produz
efeitos imediatos no presente. Isso porque toda memória pessoal é
também social e pública, ainda mais em tempos de conectividade
como é o presente.
Memória social e histórias de vida
Quando iniciei a pesquisa Memórias Olímpicas por atletas olímpicos
brasileiros, eu buscava a relação que havia entre a escolha pela carreira
de atleta e uma atitude heroica que se revelava no tipo de vida que
essas pessoas se determinavam a ter depois de escolher essa carreira.
Katia Rubio
18
A pesquisa teve início com os medalhistas olímpicos. O contato com
esse grupo deu início a um processo denominado cartograa do
imaginário esportivo brasileiro, cujas memórias desvendaram uma
história pouco ou nada contada do esporte brasileiro que envolvia
treinamentos, competições, relações institucionais, sempre pela
perspectiva e compreensão de atletas (Rubio, 2001; 2004; 2006;
2015). Essas narrativas começaram a descortinar mais do que dados
objetivos sobre histórias amplamente divulgadas por instituições.
No decorrer do relato de uma memória, escorriam sentimentos e
sensações carregados de afetividade de toda espécie. Diante de mim
já não estavam apenas heróis e heroínas olímpicas, mas seres falíveis,
incompletos, inacabados e imperfeitos, essencialmente humanos.
Conforme aponta Bosi (1993), muito mais do que qualquer
fonte, o depoimento oral ou escrito necessita esforço de sistematização
e claras coordenadas interpretativas (p.277). Essa referência levou a
uma busca incessante por ouvir atletas de diferentes gerações sobre
como foi a carreira competitiva no momento histórico em que poucas
ou nenhuma política pública havia para proporcionar o acesso às
condições de treinamento capazes de promover um nível próximo ou
semelhante ao dos melhores do mundo. Isso porque a razão de ser do
esporte de nível olímpico é a busca pelo melhor de si, o que pode levar
o atleta ao pódio, independentemente do lugar a ser ocupado.
Diante do resultado de trabalho anterior (Rubio, 2001),
era evidente que o grupo de referência para as novas gerações era
composto por atletas medalhistas olímpicos. Compreender quais
os motivos que levam pessoas habilidosas a disponibilizarem os
melhores anos de vida a desempenhar uma atividade quase alienante,
cuja duração é limitada, parecia uma tarefa pouco condizente com
questionários ou métodos objetivos. O exercício da oralidade me
parecia o mais apropriado e o mais próximo de um contexto da
psicologia clínica, no qual pessoas mobilizadas por lembranças cheias
de afeto são capazes de acessar níveis de memória surpreendentes
até a quem narra. Sobre a duração da carreira de atleta, muitos
armaram, ao longo de suas narrativas, que o atleta é um ser que
morre duas vezes: uma em vida, ao nal da carreira atlética, e outra
quando para de respirar.
19
Esse esforço provou que o exercício da narrativa envolve a
busca de imagens e lembranças do passado, algo que transforma
essas lembranças em verbalização, ou escrita, promovendo, assim,
a recriação de uma história. Ou seja, a narrativa sobre um fato
nunca é o fato em si, mas a recriação no presente de fatos e
ocorrências pretéritas, sujeitas a novas interpretações acrescidas
de outras tantas reexões ocorridas ao longos dos anos do mesmo
fato. Nesse exercício, estão implicados o exercício da memória, a
ação do recordar, a captura do tempo e a transposição para uma
forma de linguagem. Durante muito tempo, a oralidade era o
meio principal das produções narrativas, uma vez que só tinham
acesso à escrita homens, em sua maioria, cuja proximidade com a
educação era viabilizada pelas condições sociais das falias que
pertenciam. E assim, o texto escrito conquistou cada vez mais a
condição de documento, muito embora fosse parcial, datado e
circunscrito à perspectiva de quem o escreveu. Daí a armação
de que a história é escrita pelos vencedores dos conitos, cabendo
aos derrotados a condição do esquecimento, da invisibilidade
(Rubio, 2014).
Isso é um fato inquestionável na história do esporte. Enquanto
os registros sobre os medalhistas são reproduzidos e multiplicados
à exaustão, ainda mais depois dos meios de comunicação digitais,
os feitos daqueles que não subiram ao pódio estão escondidos nos
jornais de época ou em comunicações institucionais que pouco
valorizam o esforço demandado para se chegar a uma edição
olímpica. As implicações do esquecimento são observáveis no
espanto manifestado por muitos atletas aos quais tivemos acesso.
Relegados à invisibilidade pelas instituições, chegaram a acreditar
que suas histórias eram pouco ou nada importantes, tendo alguns,
inclusive, chegado a desconar das intenções de nossa pesquisa.
Por isso a importância de a narrativa ser tomada como
linguagem, indo além do relato ou da transmissão com neutralidade
dos signicados e passando a constituí-los. Essa é a dimensão adotada
pelos Estudos Culturais (Hall, 2000; 2001; Woodward, 2000),
tomada como uma posição privilegiada na construção e circulação
do signicado, conforme Guareschi, Medeiros e Bruschi (2003) e
Katia Rubio
20
Silva (2000). Nessa perspectiva, tudo o que se pensa ou se diz da
realidade é um reexo e uma projeção da experiência vivida como
real, independentemente da armação dessa realidade exterior
ao sujeito e dos sentidos que são dados a ela. Embora a realidade
seja intangível, é sabido que ela existe e que está conectada com a
representação que dela se tem (Veiga-Neto, 2000). Dessa forma, os
considerados fatos naturais são tidos como fenômenos discursivos,
cujos signicados surgem a partir dos jogos de linguagem e
dos sistemas de classicação nos quais estão inseridos. E assim,
o discurso não é entendido no seu aspecto linguístico ou como
um conjunto de palavras, mas como um conjunto de práticas que
produzem efeitos no sujeito.
Se na oralidade a recriação de uma narrativa era uma
constante entre as gerações, a linguagem escrita operou uma
restrição na forma de comunicação do conteúdo narrado, restando
ao leitor a capacidade de multiplicar interpretações sobre o texto.
As representações verbais da memória permitem a recriação da
história do sujeito, favorecendo a elaboração de construções
identitárias. Nesse sentido, essas narrativas biográcas são também
narrativas identitárias e favorecem diferentes perspectivas de análise
(Carvalho, 2007; Fanton, 2011; Oliveira, 2011).
As memórias históricas orais englobam fenômenos da
memória social que, conforme Sá (2007), constituem as fontes não
documentais com que lida a história oral. Daí o entendimento
de que trabalho com narrativas biográcas no esporte permite a
uma aproximação com o que chamamos de uma psicologia social
do esporte. Isso porque a preocupação do psicólogo social se dá
não com a busca de documentos ou relatos ociais, “mas com o
processo e com as circunstâncias segundo os quais tais memórias
são construídas, reconstruídas ou atualizadas por conjuntos sociais
mais ou menos amplos e, por diferentes critérios, sucientemente
circunscritos” (p.294).
As narrativas biográcas são entendidas como discursos
individuais que oferecem uma compreensão do sujeito que narra e
do mundo e das próprias experiências acumuladas na trajetória da
existência.
21
Schutze (2014) entende que essa forma de narrativa, carregada
de experiências pessoais de caráter cotidiano, promove uma
proximidade das situações vivenciadas pelo narrador tanto no que se
refere à intensidade quanto à veracidade dos fatos. Isso é possível por
se entender que o narrador expressa uma história única e singular.
As narrativas biográcas dos atletas olímpicos brasileiros
constituíram-se como reencontro do sujeito-atleta com sua
subjetividade, do indivíduo-atleta com sua identidade, ou
identidades, e da pessoa-atleta com a sociedade quando operava um
ser competitivo e de vida pública e, no caso dos pós-atletas, e no
presente como ator de outros papéis sociais. Essas posições de sujeito
tornaram-se manifestas tanto para alguns atletas quanto para mim
na condição de pesquisadora, a partir do encantamento que ambos
viviam com a elucidação de um fato não signicado anteriormente.
Esses insights1 ajudavam, de um lado, o atleta a elaborar situações
vividas e não esclarecidas até aquele momento, fosse pela
impossibilidade de revivê-las ou pela simples falta de oportunidade
de estimulá-las. Por outro lado, permitiram que eu “conversasse”
com o método e fosse entendendo o que ele não era. Durante um
tempo, acreditei que fosse história de vida; em outro, que fosse
história oral ou quase biograas, até chegar às narrativas biográcas.
Ricoeur (2010) entende que existe entre a atividade de narrar
uma história e o caráter temporal da experiência humana, uma
correlação que não é puramente acidental, e que apresenta uma forma
de necessidade transcultural. O tempo torna-se tempo humano na
medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa
alcança sua signicação plenária quando se torna uma condição da
existência temporal (p.93).
1 Para a Psicologia “insight” é entendido como compreensão interna, compreensão súbita,
apreensão súbita, visão súbita, discernimento, perspicácia (Sandler, Dare e Holder, 1977).
Diante da impossibilidade de tradução literal refere-se a esse conceito o neologismo
intravisão (Abel, 2003). ABEL, M. C. O insight na psicanálise. Psicologia Ciência e
Profissão, Brasília, v.23, n.4, dez. 2003. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932003000400005&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em: 27 jun. 2022.
Katia Rubio
22
Daí a imporncia e a necessidade de compreensão da dimensão
do tempo nas narrativas biográcas.
Por uma outra narrativa sobre o esporte olímpico
O encontro teórico com a Escola dos Annales (BURKE,
2010) ampliou a compreensão da importância e da necessidade
da narrativa biográca. Estávamos ali trabalhando, de fato, com
uma “história das mentalidades”, assim como dene Le Go
(2013), para quem a falta de limites levou os historiadores das
mentalidades a buscar aproximações com outras ciências humanas.
Essas aproximações ganharam contornos claros após o contato
com a narrativa de atletas de diferentes modalidades, períodos
históricos e contextos sociais, distinguindo-os por aquilo que os
singularizava, ou seja, suas histórias pessoais, porém aproximava-
os quando se tratava das questões que marcavam suas histórias,
como as diculdades ou impedimentos em competições, fosse por
questões de ordem política ou institucionais. O entendimento
dessas razões aorava das narrativas mescladas de afetividade, o
que favoreceu o reviver de lembranças quase sempre seguidas de
expressões como “eu nunca tinha falado sobre isso” ou “eu não
imaginei que pudesse me lembrar desses detalhes” ou ainda “eu
nunca tinha contado isso a ninguém”.
No processo de organização das lembranças traduzidas em
narrativas estão implicadas questões caras ao campo da memória
social, isso porque, conforme sugere Halbwalchs (2006), a memória
não é uma reprodução literal de experiências vividas, mas uma
recriação do passado a partir das vivências acumuladas, do atual
momento vivido e das inuências do contexto social e cultural do
sujeito. Para o autor:
“nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história
vivida. Por história, devemos entender não uma sucessão cronológica
de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga
dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam
apenas um quadro muito esquemático e incompleto” (p.41).
23
Ao se referir à própria trajetória, invariavelmente, os atletas
trazem em suas narrativas a lembrança de pessoas e prossionais
que inuenciaram o desejo pelo esporte, pela busca de melhores
condições de vida e de treinamento, e a convivência com outros
atletas que também competiam naquele momento histórico e cujas
carreiras se cruzaram, apontando para a necessidade premente de
contextualizar essas situações para promover o entendimento de
episódios marcantes de suas vidas e de seus resultados. Destaque-
se, nesse processo, que os resultados competitivos obtidos, sejam
eles vitoriosos ou não, estão intimamente associados a conjunções
adversativas que visam estabelecer ideias de oposição, contraste ou
compensação a respeito desses episódios.
Percebida essa multiplicidade de interpretações, e,
consequentemente, de verdades sobre um mesmo fato, passei
a adotar uma postura mais compreensiva e menos analítica da
narrativa, por entender que cada pessoa carrega uma verdade
sobre uma situação ocorrida. Mais do que verdades universais, o
trato com as narrativas sugere verdades parciais, individuais ou
mesmo momentâneas, armadas na intensidade das memórias que
emergem sobre o tema em questão. Lidar com essa imprecisão,
além de gerar desconforto sobre a condução do processo, exigiu
uma busca constante sobre a mediação das entrevistas e da análise
do material que delas emergia. Diferentes histórias individuais
ganhavam um caráter coletivo quando somadas a outras narrativas
já colhidas em outros momentos. Isso representava, para mim, um
trabalho redobrado de busca desses mínimos múltiplos comuns
que permitiram a construção de cenários temporais e pessoais.
Ariés (1990) aponta que no tempo presente, vivido pelo
historiador, está a origem do interesse pelas mentalidades, que
busca a ruptura entre o tempo do historiador e o tempo da história
propriamente dita, o passado. “A análise dessas transferências de
ideias e de sensibilidade permite subtrair do presente fatias do
passado e adelgaçar o presente a ponto de torná-lo transparente”
(p.173). A observação dessas rupturas permite, inclusive, o
entendimento das transformações nas instituições e a inuência
destas no desenrolar da carreira dos atletas.
Katia Rubio
24
Quando se iniciou a busca pelos atletas medalhistas, encontrei
vários deles na condição de “pós-atletas2” com a ruptura entre presente
e passado materializada. Diante de mim, estavam pessoas com parte
de suas trajetórias marcadas pela vida competitiva, pela glória e
visibilidade que sua atividade lhes conferia, e após o afastamento
dessa etapa desenvolveram outras identidades, vinculadas ou não ao
esporte. Alguns desses atletas tiveram sua imagem indelevelmente
associada ao longo de anos ou décadas à modalidade que praticaram
e aos títulos que conquistaram, mas a maioria deles tem essas imagens
de realizações guardadas em álbuns, tas de vídeo e lembranças
pessoais registradas na própria memória. A depender de como se
deu esse processo de construção da nova identidade, ou mesmo do
sucesso alcançado após a mudança, a narrativa construída como
sujeito “do presente” carrega com cores mais acentuadas ou tênues
as glórias ou dissabores do passado. Em alguns casos, esse processo
não ocorreu, ainda que muitos anos tenham se passado, e a narrativa,
então, venha carregada de uma mescla confusa do passado com o
presente, com referências recorrentes a um sujeito que já não mais
existe, mas que permanece maior e mais forte do que a pessoa que
narra a própria trajetória no presente.
Pollack (1992) aponta que tantos os acontecimentos vividos
pessoalmente quanto aqueles compartilhados, seja pelas lembranças
de outros, seja pela oralidade, constituem as memórias individual
e coletiva. “Podem ser acontecimentos dos quais a pessoa nem
participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo
que, no m das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não” (p.2).
Há que se destacar o fato de que a memória pessoal está situada
no cruzamento das redes nas quais nos encontramos no presente e
das múltiplas interferências determinadas pela vida em sociedade.
2 Termo utilizado para se referir aos atletas que já viveram a transição de carreira, deixaram
de ser atletas competitivos de nível olímpico e no presente desempenham novos papéis
sociais (Rubio, 2012). Isso porque entendemos que o atleta não perde esse vínculo com o
seu passado, daí a impossibilidade de ser designado como um ex-atleta.
25
Halbwachs (2006) arma que somos levados a lembrar de algo
porque assim nos fazem agir aqueles que vivem e compartilham
conosco, sem que para isso seja necessário estarmos juntos de forma
presencial:
“No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as
lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à
maioria de seus membros e que resultam de sua própria vida ou de
suas relações com os grupos mais próximos, os que estiveram mais
frequentemente em contato com ele.” (p.50)
Da inevitável relação entre o indivíduo com o grupo ao qual
pertence, faz-se a percepção do eu e do outro e, também, se registram
as marcas que pontuam as histórias de vida, tanto em uma perspectiva
cronológica e linear quanto na recursividade da memória que trafega
de forma cíclica, movida pelas redes de signicados criadas com a
nalidade de responder aos acontecimentos de uma existência.
Considerações finais
Os Jogos Olímpicos da Era Moderna transformaram-se em um
dos maiores fenômenos socioculturais do planeta. Ao longo de um
século de existência, provocaram mudança de hábitos, introduzindo
o esporte na agenda da educação e da saúde, mediante o uso da
gura do atleta como o agente multiplicador de grandes feitos e de
ideal identitário. O atleta passou, então, a ser utilizado de forma
institucional como porta-voz de um estilo de vida e de um devir
prossional que o aproxima da gura espetacular do herói. Retirado
dessa condição mítica e reumanizado, seja durante o exercício da
carreira competitiva, seja na condição de pós-atleta, pode o atleta
ressignicar sua trajetória a partir do ato reexivo que envolve a
organização e verbalização de suas memórias.
Esse gesto envolve não apenas uma imersão nos fatos que
marcam sua trajetória de forma objetiva e linear, mas também remete
à emergência de conteúdos afetivos, muitas vezes reprimidos para a
sobrevivência ao momento em que a situação ocorreu. O instante da
verbalização dessa narrativa a torna inequivocamente solidária, pois
arma um compartilhar, ao mesmo tempo em que expõe a pessoa e
Katia Rubio
26
seus conteúdos mais íntimos e permite ao pesquisador a transcriação
dessa biograa, ampliando seu conteúdo para o entendimento de uma
esfera maior como o grupo social de pertencimento, a modalidade
praticada, os resultados obtidos naquele momento histórico e o
esporte olímpico brasileiro de forma mais ampla.
Entendo que a principal, senão a maior, contribuição
das narrativas biográcas dos atletas olímpicos brasileiros é a
possibilidade de conhecimento desse ser publicizado como divino
em essencialmente humano. Com isso, é possível se escrever uma
outra história dos Jogos Olímpicos a partir da perspectiva dos
protagonistas do espetáculo que se transformou ao longo do último
século, perdendo seu caráter ritualístico para se transformar em um
dos produtos mais rentáveis da indústria cultual contemporânea
(Rubio, 2019; 2020). As narrativas biográcas ressignicam o atleta,
deixando de considerá-lo um dado estatístico para humanizá-lo.
Referências
Ariés, Philippe; Duby, Georges (Orgs.) (1990). História da vida
privada - Vol 2: Da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Cia.
das Letras.
Benjamin, W. (2012). Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense.
Bosi, E. (1993). A pesquisa em memória social. Psicologia USP,
S. Paulo, 4 (1/2), p.277-284.
Burke, P. (2010). A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução
francesa da historiograa. São Paulo: Editora da Unesp.
Carvalho, I. C. M. (2007). Biograa e identidade: aportes para uma
análise narrativa. ambientalMENTEsustentable. (I), 3.
Fanton, M. (2011). Sujeito, sociedade e linguagem. Uma reexão
sobre as bases teóricas da pesquisa com narrativas biográcas. Civitas,
Porto Alegre, (11), n.3, 529-543.
Guareschi, N.M.F.; Medeiros, P.F.; Bruschi, M.E. (2003). Psicologia
Social e Estudos Culturais: rompendo fronteiras na produção do
27
conhecimento. In.: N. M. F. Guareschi e M. E. Bruschi (Orgs.).
Psicologia Social nos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.
Halbwachs, M. (2006). A memória coletiva. São Paulo: Centauro.
Hall, S. (2001). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A.
Hall, S. (2000). Quem precisa de identidade? In.: Identidade e
diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.
Le Go, J. (2013). História e memória. Campinas: Editora da
Unicamp.
Oliveira, P. (2011). Narrativas identitárias e construções subjetivas.
Considerações teóricas e análise empírica de identicações entre
jovens de classes populares. Civitas, Porto Alegre, (11), 1, 156-171,
jan-abr.
Pollack, M. (1992). Memória e identidade social. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, (5), n.10, 200-212.
Ricoeur, P. (2010). Tempo e narrativa. São Paulo: WMF Martins
Fontes.
Rubio, K. (2001). O atleta e o mito do herói. São Paulo: Casa do
Psicólogo.
Rubio, K. (2004). Heróis olímpicos brasileiros. São Paulo: Zook.
Rubio, K. (2006). Medalhistas olímpicos brasileiros: histórias,
memórias e imaginário. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Rubio, K. (2015). Atleta olímpicos brasileiros. São Paulo: Sesi
Editora.
Rubio, K. (2012). Destreinamento e transição de carreira no esporte.
São Paulo: Casa do Psicólogo.
Rubio, K. (2014). Memórias e narrativas biográcas de atletas
olímpicos brasileiros. In.: Rubio, K. (Org.). Preservação da memória:
a responsabilidade social dos Jogos Olímpicos. São Paulo: Laços.
Rubio, K. (2020). Os Jogos Olímpicos como hierofania: rito e
ritual, uma tradição, mais que um campeonato. Olimpianos Journal
of Olympic Studies (4), 1-15.
Katia Rubio
28
Rubio, K. (2014). Olimpização: notas sobre o desejo de inclusão no
modelo olímpico. In.: Rubio, K. (Org.). Do pós ao neo olimpismo:
esporte e Movimento Olímpicos no século XXI. São Paulo: Laços.
Sá, C. P. (2007). Sobre o campo de estudo da memória social: uma
perspectiva psicossocial. Psicologia: Reexão e Crítica, 20 (2), 290-295.
Schütze, F. (2008). Biography Analysis on the Empirical Base of
Autobiographical Narratives: How to Analyse Autobiographical
Narrative Interviews. Parte I. Disponível em: http://www.prot.uni.
lodz.pl/pub/dok/6ca34cbaf07ece58cbd1b4f24371c8c8/European_
Studies_2008_vol_1.pdf#page=152. Acesso em: 30 ago. 2014.
Silva, T. T. (2000). A produção social da identidade e a diferença.
In.: T. Silva, (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis: Vozes.
Veiga-Neto, A. (2000). As idades do corpo: (material)idades, (divers)
idades, (corporal)idades, (ident)idades... In.: J. C. Azevedo (Org.).
Educação e utopia na educação cidadã. Porto Alegre: Ed. Da
Universidade UFRGS.
Woodward, K. (2000). Identidade e diferença: uma introdução
teórica e conceitual. In.: Identidade e diferença. A perspectiva dos
Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.
29
A “jornada da interpretação”:
das narrativas biográficas aos
contos biográficos
R C V
Nos meados do século XX, o campo da produção
do conhecimento até então calcicado no discurso
do positivismo empiricista encontrou forte crise intelectual,
principalmente quando o ponto consistia em sistematizar certos
conhecimentos da sociedade e seus produtos culturais em modelos
de inferência de entendimentos de realidades. O desenvolvimento
das teorias sociais passou ao longo desses anos formando visões
macroestruturais dos fenômenos sociais, que, porém, contribuíam
com cada vez menor atenção ao conhecimento dos fenômenos
concretos. Esse foi um momento em que, principalmente no campo
das ciências humanas, houve a necessidade de encontrar um elo entre
os processos estruturais mapeados e as práticas sociais concretas,
busca que lançou uma lente de aumento sobre os fenômenos sociais,
com o foco nos comportamentos ordinários do ser humano, campo
considerado menor pelo espírito cientíco, sobre o conjunto de
coisas que setores da historiograa inclinados sobre a investigação
de oralidade nomearam de história de vida (Cardoso, 1988).
Bosi (2003, p.50) sugere que quando se questiona a busca de
um método de trabalho cientíco, uma das camadas de observação
deve ser referente à “orientação geral da pesquisa” ou “tendência
teórica” que guiou os primeiros passos da pesquisa. As bases
teóricas perseguidas por essa investigação, calcadas nos estudos
do imaginário, na tradição mitohermenêutica dos autores do
“Círculo de Eranos”, e verticalizada nas estruturas antropológicas
do imaginário, de Gilbert Durand, que estruturam e permitem
30
as investidas de interpretação aqui apresentadas, alcançam apoio
epistêmico e paradigmático na proposição bachelardiana de um
novo espírito cientíco (Bachelard, 2008). Para esse autor, a
observação cientíca de um fenômeno é sempre um campo de
muita polêmica, pois “conrma ou inrma uma tese anterior, um
esquema prévio, um plano de observação; mostra demonstrando;
hierarquiza as aparências; transcende o imediato; reconstrói o real
depois de ter reconstruído seus esquemas” (Idem, p.16), observação
esta que para a sua realização necessita de atenta empresa de
reexão prévia, e quando parte para o campo da experimentação,
tal polêmica ganha ainda mais força. Diante dessa condição, o
conhecimento cientíco, geralmente, exige que o fenômeno
estudado seja manuseável analiticamente por meio dos moldes dos
instrumentos, que são, nada mais, que a materialização das teorias
que geram fenômenos que levam as marcas dessas mesmas teorias.
A busca por essas marcas teóricas que nos guiaram até a ideia
da proposição de uma postura teórico-metodológica que viabilizasse
este estudo iniciou-se na esteira de Rubio (2004, 2014a, 2014b),
por meio de suas investigações das histórias de vida de um grupo
de brasileiros muito peculiar, os quais a conuência de habilidades
extraordinárias lhes confere o alcance raro de uma medalha olímpica
e, consequentemente, a relação dos imaginários arquetípicos e sociais
de conteúdos dinamizados, sobretudo pelo arquétipo do herói.
Nesses momentos incipientes, tais marcas se faziam presentes no
contato com a obra da pesquisadora quando, ao adotar a postura da
parcialidade e envolvimento com o fenômeno, o investigador inuía
continuamente sobre campo de observação na proporção e intensidade
de sua interação.1 Assim, com a publicação de O Atleta e o Mito do
Herói, no início do século XXI, ela lançou mão das concepções e
procedimentos metodológicos do que compreendia por história de
vida, referenciada no campo de investigação da história oral, com o
1 Rubio (2004) baseia-se em obras de Stuart Hall e Ferrarotti para reforçar a ideia e
possibilidade, principalmente em ciências humanas, da parcialidade e interação do
pesquisador com o fenômeno de participarem e alterarem o campo de observação.
31
intuito não apenas do entendimento do esporte enquanto fenômeno
sociocultural do mundo contemporâneo, mas de interpretar e
humanizar o atleta, devolvendo-o à concepção de protagonista desse
campo, que sob a delimitação das linhas de força da prossionalização
e, consequentemente, estruturado sobre a mercantilização de seus
produtos, congurou-se como espetáculo globalizado.
O percurso de quase duas décadas de investigações sobre o
substrato das memórias dos atletas olímpicos brasileiros, sempre
realizadas por meio da apreensão das histórias de vida, resultou
no desenvolvimento e delimitação dos conceitos operacionais das
narrativas biográcas (Rubio, 2014, 2016b). As narrativas biográcas
mantêm o corpus estruturante das histórias de vida na estética
conferida pela oralidade e simultaneamente avançam sobre estas
instâncias ao imprimir à alma do narrador a forma do instante dos
movimentos da dimensão de sua subjetividade junto aos produtos de
signicação autobiográca. Ou seja, é a tentativa de apreensão dessa
alma no exato instante de criação do roteiro sobre si mesmo.
Operacionalmente, partimos deste ponto ao encontro de
nossos heróis noturnos: compreender os atletas por meio das
imagens providas pela apreensão da narrativa de sua história de vida
(narrativa autobiográca), sob o espectro dos estudos da memória e
sua inserção nas concepções do tempo, principalmente por meio da
posição conceitual que Durand (2012, p.401) chamou de “tempo
reencontrado”, ao sugerir a dimensão de relacionamento entre o
imaginário e a memória – posicionamento crítico a alguns pontos
das ideias de Bergson sobre tal campo. A partir desses estudos e
de tal posicionamento, acreditamos representar um caminho
minimamente honesto, até mesmo em relação aos desaos éticos
desta proposta, por considerar o olhar em direção aos movimentos
sensíveis do trajeto dos sujeitos nas relações com o mundo e os
elementos do fenômeno do esporte. Se as pedras do caminho
moldam a carne do viajante e este, por sua vez, molda o caminho
imbuído por suas pulsões, neste estudo nos atrevemos a abordar
o viajante e a estrada, no intuito, talvez aventureiro, de enfrentar
questionamentos como: Quem é o atleta? Quem é este atleta?
Quem são estes heróis feitos das matérias noturnas?
Rafael Campos Veloso
32
O caminho mais coerente para seguir as trilhas desses
questionamentos foi perseguir ao encontro dos atletas e realizar o
registro da narração de suas histórias de vida na tentativa de pactuar
de alguma forma com suas almas no movimento do instante da
criação do uxo narrativo biográco, com o potencial de recriar e
ressignicar sua própria trajetória por meio da emersão de elementos
da alta reverberação dos produtos do substrato memorativo. Assim,
nos lançamos na busca e ao encontro de cada uma dessas almas,
vislumbrando em imagens as noções do que foi a sua vida, na
tentativa de interpretação (mitohermenêutica) da jornada do herói-
atleta, o ethos constituinte de valores e protagonista da dimensão
social microestrutural entendida como esporte.
Dessa forma, a intenção ao acessar as narrativas biográcas
de atletas olímpicos brasileiros é a apreensão da verbalização das
recordações signicativas, oriundas de onde o pensamento poético
costuma dar o nome de alma; reverberações da vida interior,
reconstruídas pelo sujeito que se situa em uma perspectiva linear
ou cíclica para narrar. Desse esforço de reconstrução, é possível
extrair os pontos de observação para este estudo, observando no
uxo dessas narrativas os “enxames” e constelações de imagens do
imaginário deste sujeito na condição de atleta olímpico, suas relações
com a modalidade, com o grupo ao qual pertence e os elementos
signicativos formadores de sua trajetória.
As narrativas biográficas e a experiência de narrar
A história oral compreende o universo composto pela
multiplicidade de formas de narrar algo. A história de vida é
considerada uma modalidade de história oral e opera com elementos
registrados na memória, como apontam Bosi (2003) e Meihy e
Holanda (2013). Eclea Bosi, ao referir-se ao conceito e procedimento
metodológico que busca as histórias de vida, constrói a analogia de
que coletar o relato de história de vida é como puxar uma rede de um
oceano profundo, na qual encontramos representações ideológicas,
imaginárias e de mundo.
Já Rubio (2014a) lança mão das histórias de vida de atletas
olímpicos ao entender, por meio desta abordagem, que esses atletas-
33
sujeitos poderiam organizar os elementos de sua memória de maneira
que possibilitassem emergir na forma de narrativa não apenas os
componentes objetivos de sua trajetória como conquistas, seleções,
olimpíadas e companheiros de time, mas também elementos que
constroem e compõem sua subjetividade e identidade.
Por meio do registro da história oral de vida dos atletas, a autora
buscou compreender quem é esse indivíduo protagonista dos Jogos
Olímpicos, no intuito de também ser capaz de interpretar esse que é um
dos maiores fenômenos culturais do século XX e do contemporâneo.
O relato de história de vida estabelece conexões com muitos campos
e dimensões da vida do narrador, portanto, é necessário ao processo
de sua interpretação a atribuição de signicados também por parte
do pesquisador. Trata-se de uma espécie de coautoria de um produto
narrativo nal, literário ou analítico que recebeu a denominação de
narrativas biográcas – conceito operacional inspirado e lastreado na
história oral de vida, que assumiu características próprias aos anseios
do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO), da Universidade de São
Paulo, para a apreensão e estudos das narrativas dos atletas olímpicos
brasileiros. O campo da narração de sua história de vida marca o
encontro do atleta, sujeito que já desempenhou um papel de gura
pública, com sua identidade e sociedade.
O caminho até a conguração das narrativas biográcas
enquanto conceito operatório transcorreu por transformações
operadas no decorrer de quase duas décadas de práxis do GEO no
campo da pesquisa com os atletas olímpicos brasileiros, em que
o objetivo primário sempre consistiu em dar voz aos indivíduos
que desempenham papéis que guram o imaginário social mas,
majoritariamente, são retratados por meios dominantes de circulação
de conteúdo, como documentos ociais e mídias prossionais. Com
a ancoragem inicial nos conceitos e procedimentos da história oral de
vida, o contato com as nar rativas dos atleta s apresentou grande número
de situações em que entrevistado e pesquisador experimentavam a
elucidação de momentos da vida do sujeito, até então não signicados.
Essas situações engendravam novas congurações para o método
que ora tomava característica de história oral, ora de biograas, até
tomar a forma das narrativas biográcas (Rubio, 2014, 2015, 2016b).
Rafael Campos Veloso
34
Nossos encontros junto aos atletas olímpicos estabeleciam
como marco inicial um convite: “Por favor, nos conte sua história de
vida?”. No esteio de Walter Benjamin (2012), entendemos o narrador
como uma espécie de artesão: seu trabalho e dom é mergulhar no
acervo de uma vida inteira para contar a própria vida; ele é uma
gura que pode se aproximar dos mestres e sábios, pois sabe dar
conselhos, e traz na palavra não apenas a força de sua experiência,
mas também a experiência alheia. Nessa perspectiva, o sujeito que
narra instaura uma “forma artesanal de comunicação” que não está
interessada nas “verdades” ociais dos fatos, formas que constam
em documentos ou relatórios, mas o artesão que diante de sua obra
“imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro
na argila do vaso” (p.205).
O corpo que se lança ao trabalho “artesanal” de imprimir ao
tempo presente a forma narrativa pelo substrato da memória, o faz
por meio de vigorosos movimentos dos afetos. Sob o primado dos
afetos, o uxo narrativo é afastado dos aspectos da cronologia e dos
imperativos de certa historiograa ortodoxa. É aberto o campo da
apresentação e da representação de caráter parcial e individual, da
matéria memorativa altamente volátil.
A forma de expressão e organização das representações e
elementos signicativos dentro de um uxo temporal afetivo pode
ser apreendida, principalmente, na linguagem. Rubio (2014b,
2016a) entende a linguagem como estrutura que vai além da
transmissão com neutralidade, sendo também elemento privilegiado
na construção e circulação do signicado e acesso ao imaginário das
instituições, capaz de edicar uma nova realidade dos fatos naturais.
Dessa forma, assume a história de vida oral, na forma de narrativa
biográca, um viés pelo qual um ator social constrói a narrativa de
sua existência alocada ao longo do tempo, verbalizando e revivendo
por meio da fala, fatos e memórias ressignicadas de forma descritiva
e afetiva, formando novos fenômenos signicativos, associando-os a
acontecimentos históricos e à sua trajetória dentro do esporte e do
que representa ser atleta. O discurso, ou novo fenômeno discursivo,
não seria entendido como mero conjunto de palavras, mas como
práticas materializadas que reverberam da vida interior do sujeito.
35
Conforme menciona Rossi (2010), aquele que narra sob as forças
afetivas do que foi vivido se afasta da clareza e da crítica supercial, e
confere à linguagem o caráter da ambiguidade e do enigmático. São
essas fendas narrativas, abertas entre os fatos e as verdades, que exibem
o movimento d’alma e nos interessam ao exercício da hermenêutica.
O instante da ação narrativa não é, de modo algum, território
exclusivo da voz. O corpo que se põe ao movimento da narração
encena e dança em gestos que regem a orquestração do uxo narrativo.
As mãos conduzem, de diversas formas, a intensidade dos elementos
afetivos, erguem-se abruptamente nos episódios mais graves, balançam
para todos os lados, conferindo certo ritmo discursivo, e ancoram-se
ao corpo para o silêncio de uma memória que é imprecisa, falha,
distorce e desvia junto a direção do olhar, que procura o tempo para
a invenção. Até mesmo objetos presentes no espaço da ação narrativa
podem servir de faróis que orientam o uxo narrativo e a organização
das memórias errantes entre os espaços acidentais conferidos pelo
tempo. Não qualquer objeto, porém: falamos daqueles objetos
biográcos, desgastados pelo tempo daquele que narra (Benjamin,
2012; Bosi, 2003; Veloso & Rubio, 2016a).
Considerando as experiências de apreensão das narrativas dos
atletas olímpicos em nosso estudo, os elementos fundamentais para
a noção do que foi a história da vida do narrador e seu desenrolar
temporal apresentam características da organização de sua memória,
que emergem como relato da reconstrução da sua história edicada
em ressignicações, bem como, na exposição de elementos
constituintes do imaginário esportivo. Para Halbwalchs (2006), a
narrativa tem a memória como substrato. Ela não emerge como uma
reprodução literal dos fatos e experiências vividas, mas como uma
recriação do passado sob a luz das vivências alocadas no tempo e
inseridas em contextos sociais e culturais especícos.
Assumindo este teor de ação criativa de reconstrução,
consideramos que personagens que experimentaram a vivência
de um mesmo lapso temporal, ou acontecimento marcante,
constroem interpretações e “verdades” distintas para um mesmo
fato. A atribuição de signicados e a intensidade de reverberação
interior podem gerar relatos completamente díspares nos mais
Rafael Campos Veloso
36
diversos elementos da narrativa de uma mesma situação vivida.
Ao deparar-se com a diversidade de caminhos enveredados pelas
histórias, deve o pesquisador assumir uma postura menos analítica
e de maior compreensão, conforme recomenda Rubio (2014b)
ao relatar sua experiência de mergulho nas narrativas dos atletas
olímpicos brasileiros, bem como a busca empreendida por uma
delimitação metodológica para conguração, organização e
interpretação desses relatos.
O uxo narrativo está relacionado com as formas de
experiências de vivência do tempo ao longo da vida e de lapsos
temporais especícos, como o período enquanto atleta em atividade,
a convivência em certos grupos ou seleções, a participação em
Jogos Olímpicos, a vivência na Vila Olímpica etc. A ação de
narrar acessando o substrato da memória, conferindo-lhe novos
signicados, compreende a manipulação ou encadeamento das
formas de experimentações e organizações desses tempos registrados,
assim como as inúmeras possibilidades de arranjos de jogos das cartas
de um Tarô sobre a mesa.
A respeito da experiência do tempo, Bachelard (2010)
concebe dimensões entre o que chamou de duração e instante em
suas postulações sobre uma dialética da duração. A vida é possível
somente em uma dimensão temporal, a que costumeiramente damos
o nome de presente. Para o autor, a ideia de duração é constituída
pelo arranjo rítmico de instantes. Estes não possuem delimitação,
pois, antes de se tornarem duração, são sucedidos por outro instante.
Dessa forma, o que conhecemos como presente não pode passar,
pois é a sucessão dos instantes. As ações, o movimento, podem
ocorrer apenas na dimensão do instante. O passado é instante que
desapareceu e o futuro o instante que espera o vir a ser; movimento
em potência. Toda a carga de experiência temporal em relação a
poiésis é presente, portanto, no instante. Por essa compreensão, as
experimentações do tempo passado e futuro são vazias.
Ao arranjo rítmico formado pela sucessão de unidades de
instantes é dado a designação de duração; tal qual as delgadas e
ariscas agulhas do tatuador que sucessivamente penetram a pele
com instantes de tinta para a duração da imagem marcada.
37
Para Bachelard (2010), o instante é o campo do ato criador, da
poética. É nele, somente, que o carimbo eleva e se lança contra
a superfície alva do papel, deixando a marca, ou duração, que
reverbera a lembrança do beijo umedecido de tinta. A duração
é a macroestrutura edicada pelos instantes, está na sintaxe das
linguagens, na gramática, nos teoremas e, principalmente, na
memória. Dessa forma, a aventura de narrar viajando aos domínios
da memória é possível apenas no ritmo dos instantes. Na ação de
narrar, o sujeito traz para o instante a duração presente em sua
memória. O acesso à duração da memória é congurado como
um novo instante da ação criadora em que o narrador exerce o
poder de reconstruir a própria história e duração. É o instante da
poética, o momento em que novos signicados serão atribuídos e
externados na forma de linguagem, podendo ser verbal ou não.
Ao movimento de narrar pertence a metáfora do jogo de
dispor as cartas de um baralho de Tarô sobre a mesa da taverna do
O Castelo dos Destinos Cruzados de Ítalo Calvino, em que todos
os presentes perderam a condição da fala depois de atravessar um
bosque misterioso. Sob a luz interna de suas memórias, e a externa
vinda do candeeiro, os narradores ressignicam o imaginário
concentrado em cada carta no instante criador de uma linguagem
que vai narrar sua história, formando sobre a mesa, a linha que
é uma duração de sucessão de cartas. A limitação do número de
cartas faz com que os narradores seguintes reutilizem as unidades
já dispostas, conferindo-lhes outros signicantes e cruzando
suas histórias, dando ao desenho da mesa novas interpretações.2
Pesquisador e entrevistado também cruzam seus destinos na
sucessão de instantes do encontro para a audiência e narração, onde
vão partilhar a linguagem que vai ecoar o relato.
2 A ficção O castelo dos destinos cruzados, de Ítalo Calvino, retrata um castelo e uma taverna
onde todos os presentes perderam a capacidade da fala. Para narrar suas histórias, os
personagens lançam mão de um baralho de Tar ô, ressignificando-o a serviço de cada
narração. Quando as cartas são esgotadas do maço, os narradores se veem obrigados a
reutilizar as cartas dispostas na mesa, tecendo, assim, interpretações em novos desenhos de
direções (Calvino, 1991).
Rafael Campos Veloso
38
Nos relatos de histórias de vida, a sensibilidade de percepção
da linguagem não verbal é essencial. As hesitações, silêncios,
lapsos e incertezas também são registrados como elementos de
suma importância. Para Bosi (2003), as rupturas do discurso não
são vazias, mas “trabalhos da memória”, nos quais a fala emotiva
e fragmentada é portadora de signicações que nos aproximam da
“verdade” do personagem; ressaltando que a busca pela delimitação
de uma heurística de interpretação tende para a verdade relativa ao
indivíduo, um relato dedigno de suas experiências e representações
– perspectiva diametralmente oposta ao relato documental (aquele
imbuído de ocialidade) dos fatos.
Rubio (2014b) entende que os relatos de história de vida não
sofrem a obrigatoriedade e imposição de um ritmo cronológico dos
acontecimentos, mas ao uxo de elementos signicativos e afetivos
próprios da trajetória do sujeito, permitindo-o narrar por meio de
uma dimensão circular de tempo em idas e vindas, obedecendo
o instante de seu desejo no desenrolar da narração. Dessa forma,
o narrador relata o que considera importante em sua trajetória,
dando uma noção do que foi sua vida e da constituição do que é
na atualidade. Neste ponto, a autora estabelece a proximidade da
realização desse tipo de abordagem frente aos relatos das memórias
dos atletas olímpicos, com a História das Mentalidades, de Jacques Le
Go, que atribuía como um dos principais atrativos das mentalidades
seu teor de imprecisão.
A imprecisão é natural à experiência humana do tempo
no instante do ato de narrar, pois aquele que narra imprime sua
experiência temporal, deslocando a narrativa do simples momento
do discurso para uma outra temporalidade, mais humana, que é a
da lembrança (Sarlo, 2007). Assim, a experiência de uma narrativa
autobiográca confere ao narrador, perante a ação de signicação de
suas lembranças, a noção de sua existência no tempo.
Sob essas perspectivas, a memória assume o caráter relacional
sobre a noção e a experiência da temporalidade. Vivência do tempo
presente, livre (se assim desejar) dos imperativos-força da ideia do
evolucionismo e cronologia das lembranças, em que a dimensão do
devir – enquanto fatos do vir a ser – também se mostra constituinte
39
da memória. Esse é o motivo pelo qual não encaramos as narrativas
autobiográcas primordialmente por uma cronologia da memória
subordinada ao uxo de um passado que correu como um rio em
direção ao presente, mas de uma memória (ou dimensão) poética
que expõe e justica o passado a partir do devir que apresentou.
Itinerários da interpretação:
dos conceitos operacionais aos contos biográficos
A produção da pesquisa de doutoramento que intitulamos
como Trajetos entre alvoradas e crepúsculos: atleta e as muitas faces do
mito do herói (Veloso, 2020), encontrou como ponto de partida
os desdobramentos da hermenêutica simbólica investida sobre
a função do gregário no ciclismo de estrada, que se trata de uma
modalidade enraizada e originária do continente europeu. A
m de garantir o estudo das questões pretendidas naquele ponto
incipiente da investigação, relacionado aos ciclistas olímpicos
brasileiros, decidimos por conformar a primeira delimitação do
grupo entrevistado, considerando apenas aqueles que, em algum
momento de sua trajetória na modalidade, tivessem participado de
competições internacionais de ciclismo em estrada, principalmente
as realizadas no continente europeu. O intuito dessa delimitação foi
garantir que o sujeito tivesse vivenciado dinâmicas da modalidade
em competições de nível prossional.
Para uma esquematização e formalização dos limites do grupo
investigado, foi utilizado inicialmente o sistema de conguração
proposto por Meihy & Holanda (2013), no qual os autores propõe
a delimitação do grupo investigado em “comunidade de destino”,
colônia” e “redes. Estes representam níveis de redução sequencial
conforme as relações entre seus sujeitos, e encontrados no decorrer
da pesquisa. As reduções de delimitações de grupo propostos pelos
autores não se concretizaram em decorrência da destituição posterior
dessa comunidade de destino, condição assumida no momento
de ampliação de nosso grupo para atletas de outras modalidades
olímpicas, a m de seguir o rastro e apresentar a jornada dos heróis
noturnos do esporte olímpico brasileiro.
Rafael Campos Veloso
40
A apreensão das narrativas biográcas dos ciclistas olímpicos
brasileiros serviria de material investigativo em duas frentes: (I)
ao extenso projeto Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos
Brasileiros (Rubio, 2015), que nos dias atuais pode ser acessado sob
a conguração de um banco de dados, conforme apontou Rosina
(2018), contendo narrativas biográcas e dados demográcos
de atletas olímpicos brasileiros em todas as edições dos Jogos
Olímpicos; e, simultaneamente, (II) de nosso estudo particular,
desdobrado daquele tronco principal, acerca da investigação do
imaginário da função de gregário no ciclismo sob o mote semântico
do sacrifício e de certa confrontação aos elementos do mito do
herói relacionado ao atleta.
Navegando pelos contornos sinuosos das aventuras da viagem
em busca das narrativas biográcas por frentes simultâneas de
investigação, temos, nesse ponto, lançada a pequena nau, de casco
talhado em madeira fresca, no delta em que se encontram as águas
entre a trajetória da pesquisa sobre os atletas olímpicos e do olimpismo
brasileiro como colaboração ao GEO. São águas turbulentas, da busca
por legitimação de uma postura teórico-metodológica que suportasse
as histórias de vida na forma das narrativas biográcas sobre os
desaos impostos por formas tradicionais do pensamento cientíco.
Buscando nos localizar nas proximidades do ponto da nascente, da
hermenêutica das “sombras” e da “noite” do imaginário esportivo,
margeadas pelo mitema do sacrifício voluntarioso – leitmotiv da
narrativa mítica de Igênia. A lapidação das narrativas biográcas de
ciclistas olímpicos brasileiros, que favoreceu a expressão de imagens
literárias referenciadas nessas narrativas, aproximou o entendimento
e interpretação da trajetividade de atletas que se lançam à jornada da
carreira esportiva ou metavida (metanarrativas), de duração limitada,
pautada em práticas competitivas que demandam o sacrifício de suas
chances de vitória em atos de doação de seu elã competitivo para a
coroação de outro atleta.
Em frente investigativa até então maior, e simultânea, no
intuito de mergulhar no que Rubio (2009, 2016a) dene como o
maior legado dos Jogos Olímpicos, ou seja, o atleta, lançamo-nos em
busca das narrativas biográcas de todos os atletas brasileiros que em
41
algum momento da vida participaram de alguma edição dos Jogos
Olímpicos, o que resultou até o momento, na construção de um
acervo (banco de dados) com centenas de entrevistas3 realizadas pelo
GEO e registradas em quase duas mil horas de gravação em vídeo
(Rosina, 2018); registros que nos possibilitaram a problematização e o
estudo de temáticas como a construção da subjetividade e identidade
desses atletas, a maioria deles já na condição de pós-atleta4; assim
como a possibilidade de uma noção dos desenhos que conguram o
imaginário esportivo contemporâneo.
A indicação e a possibilidade de interpretação de constelações
de imagens noturnas em uma “qualidade” pouco comum à gura
do atleta-herói – o gregário –, nos impulsionou aos principais
questionamentos que representaram o ponto de virada do estudo.
Partindo do pressuposto de que para se tornar olímpico o sujeito deve
percorrer um trajeto de excelência, haveria outros heróis noturnos
no solo olímpico? Ou seja, seria possível a interpretação da jornada
heroica de alguns atletas olímpicos valorizando a predominância de
constelações noturnas de imagens? Nesse momento, ampliamos a
busca por narrativas de vida que indicassem unidades semânticas
(símbolos, arquétipos, mitemas e mitologemas) aderentes aos marcos
das estruturas do regime noturno de imagens de Gilbert Durand.
Instante da foz do estudo com o que considero se tratar de um
complexo de imagens de Igênia, e as narrativas biográcas dos atletas
olímpicos brasileiros de todos os tempos.
O caminho de rmação, conformação e consolidação do
conceito teórico-metodológico (operacional) das histórias de vida na
forma de narrativas biográcas no percurso do GEO possibilitou a
3 Com relação aos atletas falecidos, buscamos junto a familiares e amigos o registro também
de suas narrativas que pudessem nos dar elementos biográf icos sobre sua trajetória como
atleta.
4 No artigo Novas identidades e novas carreiras: a transição entre atletas olímpicos brasileiros, Rubio
(2011) faz a proposição do termo “pós-atleta” para designar aqueles atletas profissionais
que realizaram a transição de carreira, saindo da esfera do esporte competitivo de alto
rendimento e assumindo novos papeis na sociedade. “Pós-atleta” atende à ideia de que após
a transição de carreira, o atleta não perde o vínculo com o seu passado, assim, os autores
consideram o termo “ex-atleta” inapropriado.
Rafael Campos Veloso
42
utilização de entrevistas realizadas por outros membros pesquisadores
do grupo, pois a sistematização, o padrão de abordagem e a ativação
da narrativa na entrevista foram mantidos.
Em todo o processo de formulação metodológica realizada pelo
GEO, a questão relacionada à forma ideal de condução das entrevistas
ocupou grande parte de nossos encontros. O procedimento mais
comum adotado, depois de realizada a abordagem e ter a entrevista
agendada, foi proceder uma espécie de estudo biográco prévio
a respeito do personagem, pelo qual foi possível elencar questões
exploratórias a serem conduzidas ou que poderiam surgir no ato da
narração, conforme orienta Bosi (2003). Para a autora, em termos
de técnica de pesquisa, os procedimentos de histórias de vida e
perguntas exploratórias combinam perfeitamente, desde que se
deixe ao entrevistado a liberdade do encadeamento temporal de
sua memória; atribui a narrativa como uma “escavação” original
do indivíduo em constante tensão contra o tempo organizado
pelo sistema. Seria uma empreitada do indivíduo em busca de um
precioso tempo original e interior ou ao tempo reencontrado ao
qual comentou Durand (2012) ao versar sobre a “qualidade” do
tempo presente na função fantástica do imaginário.
O narrador, ao empreender o trabalho e o esforço de puxar
essa rede das profundezas e abismos da memória, traz à superfície
os elementos simbólicos na forma de linguagem. Assim, opera a
ressignicação de fatos da sua história. Ao compartilhar sua história
de vida, na forma de uma narrativa autobiográca, o narrador expõe
seus quinhões mais íntimos, possibilitando na feitura desse trabalho a
recriação, ou interpretação, de uma memória que é também poética,
quando da criação na ação de ressignicação e acareação entre sua
trajetividade e as narrações dos mitos do mundo.
Ferreira Santos (2004) nos provoca a pensar a cultura em
aspectos processuais – destacando os processos de criação, transmissão,
apropriação e interpretação – e das relações que os sucedem, que
direcionam e privilegiam os movimentos da cultura enquanto
dimensão simbólica, assumimos os registros de narrativas biográcas
dos atletas como produtos expressivos dos atores protagonistas
desse fenômeno cultural especíco e amplamente disseminado
43
no mundo, quando se trata do esporte. Esses atores reservam ao
momento do encontro (entrevista) a fruição do conteúdo (imaterial)
da criação, transmissão e apropriação, ao buscar sentido para a
própria vida (interpretação) ao narrar a ‘qualidade’ do trajeto que
percorreram até ali. Por sua vez, o interlocutor é igualmente ator
do instante criativo da narração e, posteriormente, do exercício
de buscar sentido na própria alma, como processo simbólico, para
o que ouviu, viu e sentiu. Explorar as narrativas de trajeto de
vida também se aproxima da arqueolia situada pelo autor como
referência ao fazer arqueológico e ao trabalho junguiano de análise,
mas diante da concepção de que não são mais zonas demarcadas ou
sítios arqueológicos a serem escavados, mas sim a paisagem cultural5,
e ainda mais especíco, os vestígios da paisagem arquetípica (Ferreira
Santos, 2006, p.51-52).
O exercício de interpretação de manifestações míticas nos
elementos da cultura, como o esporte e toda sua constituição
simbólica e produção de uma cultura corporal de movimento especícas,
é potencialmente revelador de suas estruturas axiológicas. As
postulações básicas do trabalho mitohermenêutico, de Andrés Ortiz-
Osés são acompanhadas ao assumir que as narrativas míticas, patentes
ou manifestas, interpretadas no seio de uma narrativa autobiográca,
articulam, pela via do “consenso” ou “condensação”, arquétipos e
símbolos sempre “prenhes de sentido” – famosa expressão de Ernst
Cassirer –, a experiência humana vivida e sua produção cultural
e as especicidades da subjetividade deste indivíduo. Tal forma,
tende a se afastar da postura de abstração analítica e valorizar o
calor dos afetos presentes nas ambiguidades que representam as
vivências humanas.
5 Ideia lastreada na concepção do campo de intercâmbio intenso entre pessoas em pleno
movimento “cultural” de criação, transmissão, apropriação e interpretação, e o entorno
concreto. Nesse sentido, a ação interpretativa pode alcançar a reconstituição de traços da
paisagem arquetípica (delimitada enquanto ambiência amica) e do “ecossistema arquetípico
(delimitado pelas relações dialéticas entre a ambiência [Umwelt – Edmund Husserl – de
complexidade e recursividade das relações intercambiais das partes em um determinado
espaço] e a corporeidade humana.
Rafael Campos Veloso
44
Entendo, por mitohermenêutica, a interpretação antropológica dos
mitos, considerados como lugares relevantes e reveladores de uma
cultura ou linguagem como uma forma de articulação da realidade
vivida e conhecida. O mito, de fato, poderia considerar-se como
âmbito de consenso, consentimento e condensação intersubjetiva
da experiência humana, coagulada e projetada em uma tal tessitura
simbólico-arquetípica. É óbvio que uma tal condensação de nossa
energética psíquica nos mitos pode ser valorada positivamente,
quando o mito em questão é benéco, ou negativamente, quando a
mitopoiética em questão é maléca. Trata-se do poder, positivo ou
negativo, do mundo mitológico e simbólico, o qual, precisamente por
seu caráter de intermediário axiológico ou valorativo, oferece uma
excelente objetivação ou entrecruzamento de nossas subjetividades
e sentimentos. Enquanto os conceitos abstratos reprimem nossa
afetividade, a especicidade dos mitos e símbolos está em ser
coagulante de nossas ambíguas vivências (Ortiz-Osés, 2004, p.8).
O acesso ao campo exploratório amplo do banco de dados
possibilitou o processo de seleção da matéria-prima por meio da
imersão em diversas narrativas autobiográcas, em que nos propomos
a ouvir o canto, os ecos e reverberações dos roteiros desses heróis
olímpicos, os quais anunciavam rastros de concentrações de imagens
de semântica noturna. A aventura de buscar os “sentidos” do outro
e de seu tempo nas criações narrativas autobiográcas nos posiciona
na direção e no empenho dos ensinamentos de Ferreira Santos
(2006), que postula para a jornada interpretativa o afastamento do
perigo da redução a uma técnica de interpretação sem nenhum
comprometimento ontológico, mas “um percurso formativo de busca
de sentido, centramento e plenitude existencial a realizar-se seja no
processo de individuação (Jung), seja no processo de personalização
(antropologia personalista) que me permite uma determinada
leitura provisória do mundo” (p.54). Essa postura encara, além dos
movimentos da alma, compósitos da cultura imaterial que possuem
relacionamento com dados da sensibilidade e suas lógicas internas.
Aconselhamento de que nos promove o autor no sentido de ssurar
o império da racionalidade instrumental no itinerário interpretativo,
para o mergulho na paisagem cultural e, principalmente, no tempo
do outro, frequentando seu mundo por meio de outras maneiras que
45
não somente a reexiva, mas acessando suas memórias, ouvindo os
seus cantos e lembrando seus cheiros (p.56).
Em suma, a nossa disposição diante o mergulho nas narrativas
biográcas dos atletas olímpicos brasileiros, bem como a viagem ao
seu encontro e a imersão aos elementos das paisagens (da mediância
ecológica – da qual postulou Augustin Berque; da cultural; e da
arquetípica), acompanha principalmente Ferreira Santos (2004,
2006), ao assumir estâncias mitohermenêuticas na ação da jornada
interpretativa, em que “nos detemos um momento a mais em alguma
estância, enquanto observamos ou nos deixamos levar por um
aspecto em particular, como ‘miradores privilegiados, belvederes,
mirantes’” (idem, 2006, p.57).
Para o exercício reexivo e interpretativo das narrativas
biográcas, não foram buscados o conjunto de práxis técnicas que
denotam alguma sequência metodológica linear, mas, em plano
inicial, buscamos nos posicionar no mirante dos núcleos mitêmicos
e arquetipais, algo inspirado e equivalente aos conceitos operacionais
da mitodologia, propostos por Gilbert Durand em seu processo
de investigação e comparação dos mitos em diversas culturas.
Especialmente na perspectiva da mitodologia durandiana, os
conceitos operatórios dos contributos metodológicos são destinados
a perseguir vestígios de manifestações dos mitos, seus temas e
guras latentes em textos literários e poéticos (mitocrítica); bem
como buscar mitos diretores que animam sociedades em condições
espaciotemporais especícas (mitalise).
Dedicados a percorrer a maior parte possível do acervo
das memórias olímpicas brasileiras, era o momento de escutar
as almas de muitas narrativas biográcas – espécie de escuta do
tempo mítico servindo à busca de “provas hermenêuticas”, pelo
rastreamento de núcleos mitêmicos e arquetipais no que “se refere
ao tratamento sincrônico das redundâncias e recorrências captadas
nas narrativas” de manifestações de mitos diretores ou de seus traços
latentes, sincronizados às ressonâncias profundas de símbolos e
imagens em nossa estrutura de sensibilidade. As relações da escuta
e do encontro dinamizam a percepção de elementos estruturantes
desses imaginários biográcos que, além dos núcleos mitêmicos
Rafael Campos Veloso
46
e ressonâncias, favorecem a ação hermenêutica ao apresentar
arranjos estético-narrativos das imagens e símbolos (estesia),
conferindo movimento e certa materialidade; bem como aspectos
diacrônicos das narrativas, relacionados à acareação de sua lógica
interna e sequência temporal da constituição causal e cronológica
(o condutor), condições fatoriais previamente esquematizadas por
Ferreira Santos (2006, p.57) ao exercício mitohermenêutico.
Outro fator dinamizador da proposta do exercício hermenêutico
foi conferido pelos elementos das paisagens que sediaram os
encontros que realizamos para o trabalho de pesquisa e constituição
do grande acervo dos heróis olímpicos, bem como os caminhos e
horizontes que estas descortinavam, além do aspecto imagético caro
à ocularidade, movimentos da imaginação dinamizados pela noção
de topos e ethos constitutivos da alma heroica e sua jornada – espécie
de referência material para a condução da dimensão metafísica
da narrativa biográca. Em aspecto interpretativo de similar
constituição de elementos narrativos atuantes além da linguagem e
da palavra, apontamos em estudo anterior em investigação sobre a
importância dos objetos biográcos para o uxo de algumas narrativas
autobiográcas – Veloso e Rubio (2016b) – peças de pertença do
íntimo, nas quais pudemos observar em determinados encontros sua
potência expressa nos sinais do desgaste, nas cores esvaídas ou partes
faltantes, organizadora do uxo narrativo na função de localização
temporal dos fatos e das memórias.
Desse ponto, mostraram-se os maiores desaos enfrentados
na empreitada aqui proposta. Em posse do registro de centenas
de narrativas biográcas que expressavam em alguma valência
as ressonâncias simbólicas, intuídas ou captadas de acordo com a
postura hermenêutica adotada, quais heróis deveriam ter suas
jornadas aqui cantadas? Em sequência, o mais sério desao ético:
qual seria o modelo de apresentação (texto) capaz de fazer justiça
às jornadas desses heróis e, simultaneamente, contemplar nossos
objetivos de expressão e exploração das constelações de imagens
noturnas que gravitam a história de vida desses atletas habilidosos?
Ao mínimo, se impõe o desejo de realizar uma acareação entre as
concentrações de imaginários noturnos relacionados às histórias
47
de vida de atletas, e temas de um imaginário coletivo viciado nas
jornadas espetacularizadas dos heróis solares (aqueles amplamente
conhecidos e explorados pela indústria cultural), imersos ao brilho
dos pódios.
É possível aproximar uma justicativa ao primeiro
questionamento, por meio da seleção de narrativas pelo intuito, a
priori, da busca pela intensidade de ressonância de imagens e símbolos
de semântica noturna percebidos em movimentos de arranjos
estético-narrativos, certa representação de um imaginário diante da
jornada e do devir; principalmente evidenciando a maior condição
dinamizadora da imaginação segundo as perspectivas durandianas;
a representação desse imaginário frente às faces do tempo, capaz
de roteirizar criativamente caminhos para a transcendência da
mortalidade (Durand, 2012; Pitta, 2017; Wunenburger, 2007).
Apoiados na sistematização do conhecimento sobre o
imaginário, proposta por Gilbert Durand, ou seja, na esquematização
com a nalidade de apontar o dinamismo dos movimentos da
faculdade da imaginação, a preocupação inicial que orientou a busca
pela resposta do segundo questionamento, de fato, por uma forma de
apresentação das interpretações dessas histórias de vida, perseguiu os
constantes alertas do autor em diversos momentos de “As estruturas
antropológicas do imaginário” em relação aos vícios de categorização
e taxonomia oriundos das ditas ciências das coisas naturais.
Tal decisão nos afastou de atitudes exclusivamente
analíticas, provenientes dos aspectos, efeitos da fragmentação e da
compartimentação conferidos ao poder do tipo de racionalismo ao
qual nossa tradição se habituou. Michel Maesolli, em seu Elogio
da razão sensível, realiza a crítica do que denominou razão funcional
ou instrumental, comentando aspectos caros a essa investigação,
no exercício de norteamento paradigmático e de valorização da
dimensão ‘sensível’ no processo de delineação metodológica e,
principalmente, de seu desdobramento operacional.
O saber ligado à “razão instrumental” é um saber ligado ao poder. Ao
homem de conhecimento só convém um tipo de “inação vigilante”
(Raymond Abellio) que era, em seu momento fundador, o próprio da
“scholé”, a saber, o lazer estudioso. Assim fazendo, o conhecimento,
Rafael Campos Veloso
48
deixando de lado o poder de sua libido dominandi, pode car atento à
potência popular, ao seu lento crescimento e à sua irredutível postura.
É estando desapegado em relação aos diversos ideais impositivos e
universais, é estando enraizado no ordinário, que o conhecimento
responde melhor à sua vocação: a libido sciendi. Por que não dizer: um
saber erótico que ama o mundo que descreve. Assim, pela purgação do
geral, da Verdade, daquilo que é tido como correto, pode encarar-se o
plausível e os possíveis das situações humanas [...] Assim, aquilo que o
romancista se empenha em fazer para seus personagens, nós certamente
temos que fazer no âmbito de nossas análises sociais: procurar o
fundamento, e não a simples causa, de todo ato, de toda representação,
de todo fenômeno, a m de perceber-lhe a razão interna, ainda que
esta deva contrapor-se à razão funcional ou instrumental à qual nos
habituamos. [...] Na trilha de Gilbert Durand, mostrei, repetidas
vezes, em que e como o iconoclasmo ocidental havia minorado esse
instrumento de análise. Sendo a imagem suspeita, sendo sedutora por
natureza, ou sendo da ordem do lazer, estava fora de questão integrá-
la à régia marcha que a razão instrumental empreendia para conquistar
e dominar o mundo. Seja isso motivo de alegria ou não, ocorre que a
imagem está aí, onipresente no corpo social, e que seus esforços estão
longe de ser desprezíveis. Portanto, assim como a intuição é um bom
meio de apreender o retorno da experiência cotidiana, é possível que
a metáfora seja a mais capacitada para perceber o aspecto matizado de
um mundo marginal cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis.
(Maesolli, 2001, p.14-86-224)
Além de perseguir essa virada paradigmática da razão,
operacionalmente tentamos evitar o impulso de garimpar expressões
simbólicas, posicionando-as em categorias estruturais ou até mesmo
congurando constelações articiais de imagens, sob o risco de
afastamento do sujeito e desconguração de sua lógica estético-
narrativa, resultando, obviamente, numa interpretação vazia, fugidia
ou pouco aderente.
O espírito da abrangência foi considerado, mais especicamente
sob a essência da exibição amplicadora na forma aproximada de
contos literários que revelam os produtos imaginários e aspectos
fenomênicos explorados neste estudo, com o caráter biogco como
a maior linha de força constitutiva. O processo de confecção do
49
que passei a denominar de contos biográcos, que narram as jornadas
dos atletas olímpicos brasileiros aqui mencionados, procurou
a aproximação da constituição de uma heurística que partisse da
experiência realizada anteriormente com a ideia de cartograas do
imaginário6, avançando para formas de olhar processuais que levam
em conta as complexidades oriundas de posições epistemológicas
diversas. Os pequenos textos que cantam as jornadas dos heróis
olímpicos em trajetos crepusculares, como uma proposta aberta
e repleta de riscos de desvios, encontram inspiração operacional
em algum ponto de seu corpo em conceitos operacionais como a
identidade narrativa, de Ricoeur (1988)7; hermenêutica amplicadora,
em Wunenburger (2007, p.32); a característica mitohermenêutica de
Ferreira Santos (2006), bem como a base de autores que dedicaram
trabalhos à hermenêutica simbólica e mitohermenêutica, como
Garagalza (2015) e Ortiz-Osés (2003, 2005).
Algo próximo a uma hermenêutica instaurativa, que é instruída
pelas formas e guras simbólicas em todas as suas valências e,
especialmente por um de seus maiores instrumentos de manifestação;
“pelo mito enquanto <forma simbólica> (Cassirer) e como um
capital enriquecedor da cultura humana” (Araújo & Silva, 2003,
p.339), trabalho em que se coloca a dialética entre a arque e o telos,
considerando o mito também na valência do sagrado <história do
sagrado - Eliade (1979)>, que incessantemente interpela o homem de
sempre se projetando, por extensão, em sua existência e seus desejos.
Em resumo, os contos biográcos realizam a literalização
da trajetória dos atletas olímpicos brasileiros, reanimando e
reescrevendo as muitas faces do mito do herói. Os contos biográcos
foram aqui delimitados e apresentados, a m de cumprir a
necessidade de um instrumento expressivo que se vale da produção
6 Cf.: “Between solar and lunar hero: a cartographic study of Brazilian Olympic athletes in the social
imaginary” (Katia Rubio, Veloso, & Leão, 2018).
7 Cf.: “A Identidade Narrativa e o Problema da Identidade Pessoal. Tradução comentada de «L’identité
narrative» de Paul Ricoeur” (Correia, 2000).
Rafael Campos Veloso
50
de imagens literárias e poéticas sobre bases selecionadas de narrativas
biográcas, destinadas aos esforços da hermenêutica simbólica e da
tradição mitohermenêutica dos pensadores do círculo de eranos.
Espécie de coautoria e reconstituição do tempo mítico vivenciado
pelo narrador, os contos biográcos têm a forma de uma pequena
narrativa capaz de oferecer uma noção parcial (no sentido afetivo)
da trajetividade do atleta-herói que percorreu as etapas da unidade
nuclear do monomito para vir a ser (devir) o que se tornou, e o que
narrou sobre si mesmo.
Buscamos a “solução” e recursos na predileção e potência que
Gaston Bachelard declaradamente nutria pelas imagens literárias,
ou seja, especícas da literatura. O fenomenólogo das imagens
acreditava que a expressividade da imaginação encontra uma de suas
vias mais desenvolvidas nas imagens literárias, levando até mesmo o
julgamento do autor a preterir outras formas de expressividade como
as artes plásticas. Bachelard (2003), que em diversos momentos induz
ao entendimento de não ser o maior fundamento da imaginação a
criação de imagens, mas justamente sua capacidade de deformação
das imagens presentes no inventário do imaginário, cultiva as
imagens literárias como expressões de imagens “mais ricas e mais
sinceras, porque o criador terá sabido dar às imagens naturais uma
novidade universal” (Wunenburger, 2015, p.19).
Por m, o trabalho hermenêutico que procuramos realizar
poder-se-ia muito bem ser resumido nas palavras do hermeneuta
personalista Paul Ricoeur, muito bem recordadas por Ferreira
Santos (2006), que nos lança a encarar todos e quaisquer elementos
que se apresentem diretamente e ao entorno, por meio do “olho do
geógrafo, do espírito do viajante e da criação do romancista” (p.52).
As narrativas biográcas em que estávamos de corpo presente
para o registro, aquelas que envolveram a viagem e a imersão à
paisagem da morada do sujeito – tratadas aqui não apenas como
local de residência, mas da imagem ancestral da casa – suscitaram
elementos promovidos por uma espécie de etnograa do imaginário,
mais ainda, uma linha de força basilar no conteúdo narrativo
do texto ao nos posicionarmos diante da compreensão de que o
instante do encontro é fenomenológico no sentido da imagem
51
de fusão de horizontes. Nesse sentido, o espírito do viajante que se
aventura no tempo e espaço do outro mergulha na “topograa” de
sua alma guiado pelo olhar atento do geógrafo. Nutre e municia o
criador (poiesis), que, por sua vez, reconstitui e recria sua experiência
ao narrar esse outro, “arejando” palavras para que todos tenham
a possibilidade de vivenciar no tempo presente as memórias do
encontro, da paisagem e do trajeto percorrido pelo sujeito.
Das jornadas apresentadas na tese, três se sucederam ao
encontro, e uma delas pelo acesso ao acervo de narrativas das
Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros. Essa condição
certamente inuencia o produto interpretativo em decorrência dos
movimentos dialéticos promovidos pelo encontro e das relações e a
topograa poética. Entretanto, no acesso à narrativa autobiográca
apenas pelos registros do banco de dados, ainda é possível rastrear e
delimitar a paisagem arquetípica.8 A condição de ação interpretativa
exclusivamente oriunda da narrativa autobiogca registrada e
acessada ao acervo não se mostra impedida de depuração pelos
caminhos até aqui explanados, pois o registro do instante do relato
de história de vida encerra em si elementos imagéticos (pois foram
registrados em vídeo), simbólicos, lingsticos, silêncios, dentre
outros. Ou seja, toda a carga da concentração de imaginários e
elementos estético-narrativos, mesmo que limitada aos minutos de
registro, pode afetar o direcionamento afetivo e poiético, entretanto,
não impede a exploração das estâncias profundas acessadas pelo
sujeito que narra. O objetivo maior dos contos biográcos é
a amplicação dos símbolos e imagens ambicionados por este
estudo, ecoados entre a narrativa e o hermeneuta, principalmente,
8 A mencionada tese de doutoramento Trajetos entre alvoradas e crepúsculos: atleta e as muitas
faces do mito do herói (Veloso, 2020), traz quatro contos biográficos: O ciclista e o sacrifício de
Ifigênia, sobre o ciclista César Daneliczen; As paisagens de Ítaca anunciam, o Mestre voltou!,
tendo como personagem o jogador de polo aquático Mário Eduardo Souto (Duda); O
menino que correu contra a sombra, conto sobre Nelson Rocha dos Santos (Nelsinho); e O
quimono negro, que versa poeticamente sobre a trajetória da judoca Soraia André. Os três
primeiros personagens foram entrevistados pelo autor deste capítulo. Já a entrevista de
Soraia André pertencia ao banco de dados do GEO, tendo sido realizada pelo pesquisador
Carlos Rey Perez.
Rafael Campos Veloso
52
roteirizados em coautoria, desejando a maior aderência possível à
alma e à jornada do herói.
Por m, é possível armar que apesar dos contos biográcos
se municiarem de dados demogcos da vida e da carreira dos
atletas, nos afastamos do âmbito puramente analítico e tendencioso
ao racionalismo instrumental. Trata-se da tentativa de uma forma
de interpretação que se eleve à complexidade e supere as formas
mais comuns de biograas que se valem do encadeamento linear
de dados mortos; da busca por uma forma de expressão que verse,
em prioridade, sobre o conhecimento da intimidade do outro; e da
localização de seus espaços na nossa própria intimidade; forma que
faz revelar no texto todo o esforço da tarefa do hermeneuta, não
escondendo sua interpretação e compreensão do mundo, assumindo
a parcialidade e aumentando a proliferação do testemunho das
experiências, tornando a leitura do fenômeno potencialmente
mais complexa, portanto, mais rica. Sendo assim, se necessário
consideraria até mesmo a possibilidade de propor uma pequena
correção da nomenclatura desse instrumento expressivo, na
direção de valorizar e se tratar, na verdade, de contos que versam
imagirios biogcos.
Referências
Araújo, A. F., & Silva, A. M. (2003). Mitanálise: uma mitodologia
do imaginário? In Alberto Filipe Araújo & Fernando Paulo Baptista
(Eds.), Variações Sobre o Imaginário: domínios, teorizações, práticas
hermenêuticas Sobre o Imaginário (pp.339-364). Lisboa: Instituto
Piaget.
Bachelard, G. (2003). A terra e os devaneios da vontade – Ensaios
sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes.
Bachelard, G. (2008). O Novo Espírito Cientíco. São Paulo: Edições 70.
Bachelard, G. (2010). A intuição do instante (2a). Campinas: Verus
Editora.
Benjamin, W. (2012). Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
53
Bosi, E. (2003). O Tempo Vivo da Memória. São Paulo: Ateliê
Editorial.
Calvino, I. (1991). O castelo dos destinos cruzados. São Paulo:
Companhia das Letras.
Cardoso, R. C. L. (1988). Aventuras de antropólogos em campo
ou como escapar das armadilhas do método. In Ruth Correia Leite
Cardoso (Ed.), A Aventura Antropológica – Teoria e Pesquisa (2a,
pp. 95-105). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Correia, C. J. (2000). A Identidade Narrativa e o Problema da
Identidade Pessoal. Tradução comentada de «L’identité narrative» de
Paul Ricoeur. Arquipélago 7, 177-194.
Durand, G. (2012). As estruturas antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia geral (4a). São Paulo: WMF Martins
Fontes.
Eliade, M. (1979). História das crenças e das ideias religiosas – Tomo
II: De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo – Volume 2: Das
provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses. Rio de Janeiro:
Zahar.
Ferreira Santos, M. (2004). Crepusculário: conferências sobre
mitohermenêutica e educação em Euskadi (1a). São Paulo: Zouk.
Ferreira Santos, M. (2006). Oikós: Topolia, ancestralidade e
ecossistema arquetípico. In Anais do XIV Ciclo de Estudos sobre o
Imaginário – Congresso Internacional: As dimensões imaginárias
da natureza. (pp.41-79). Recife: UFPE/Associação Ylê Setí.
Garagalza, L. (2015). O sentido da hermenêutica: hermenêutica
da linguagem e simbolismo. In Sandra Maria Patrício Ribeiro &
Alberto Filipe Araújo (Eds.), Paisagem, Imaginário e Narratividade
(1a, pp. 54-67). São Paulo: Zagodoni.
Halbwachs, M. (2006). A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro.
Maesolli, M. (2001). Elogio da Razão Sensível (2a). Petrópolis:
Editora Vozes.
Meihy, J. C. S. B., & Holanda, F. (2013). História oral: como fazer,
como pensar. São Paulo: Editora Contexto.
Rafael Campos Veloso
54
Ortiz-Osés, A. (2003). Hermenêutica, sentido e simbolismo. In
Alberto Filipe Araújo & Fernando Paulo Baptista (Eds.), Variações
Sobre o Imaginário: domínios, teorizações, práticas hermenêuticas
(pp.93-138). Lisboa: Instituto Piaget.
Ortiz-Osés, A. (2004). Cognitio matutina e razão afetiva. In
Marcos Ferreira Santos (Ed.), Crepuscurio: conferências sobre
mitohermenêutica e educação (pp.7-16). São Paulo: Zouk.
Pitta, D. P. R. (2017). Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert
Durand (2a). Curitiba: Editora CVR.
Ricoeur, P. (1988). L’Identité Naarative. Revue Sprit, (JUIL./
AOÛT), 295-304.
Rosina, D. (2018). Entre nar rativas, fragmentos e estilhas: construções
de atletas brasileiros sobre os Jogos Olímpicos do México de 1968.
Universidade de São Paulo.
Rossi, P. (2010). O Passado, a memória, o esquecimento: Ensaios da
história das ideias. São Paulo: Editora Unesp.
Rubio, K. (2014). A experiência da pesquisa “memórias olímpicas
por atletas olímpicos brasileiros.” Acervo, 27(2), 93-105.
Rubio, K. (2004). Memória e imaginário de atletas medalhistas
olímpicos brasileiros. Universidade de São Paulo.
Rubio, K. (2009). O legado educativo dos megaeventos esportivos.
Motrivivência, 21(32/33), 71-88. Disponível em: http://journal.
ufsc.br/index.php/motrivivencia/article/view/15575. Acesso em:
10 jun. 2020.
Rubio, K. (2011). Novas identidades e novas carreiras: a transição
entre atletas olímpicos brasileiros. In Destreinamento e transição de
carreira no esporte (pp.47-64). São Paulo: Casa do Psicólogo.
Rubio, K. (2014). Memórias e Narrativas Biográcas de Atletas
Olímpicos Brasileiros. In Katia; Rubio (Ed.), Preservação da
Memória: A responsabilidade Social dos Jogos Olímpicos (p.236).
São Paulo: Képos, Editora Laços.
Rubio, K. (2015). Atletas olímpicos brasileiros. São Paulo: SESI-SP
Editora.
55
Rubio, K. (2016a). Agenda 20+20 e o m de um ciclo para o
Movimento Olímpico Internacional. Revista USP, 108 (janeiro/
fevereiro/março), 21-28.
Rubio, K. (2016b). Narrativas biográcas: da busca à construção de
um método (1a; Katia Rubio, Ed.). São Paulo: Laços.
Rubio, K., Veloso, R. C., & Leão, L. (2018). Between solar and
lunar hero: a cartographic study of Brazilian Olympic athletes in
the social imaginary. Imago: A Journal of Social Imaginary, (11),
147-162. Disponível em: http://cab.unime.it/journals/index.php/
IMAGO/article/view/1923. Acesso em: 10 fev. 2020.
Sarlo, B. (2007). Tempo Passado: Cultura da memória e guinada
subjetiva. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras; Editora
UFMG.
Veloso, R. C. (2020). Trajetos entre alvoradas e crepúsculos: o atleta
e as muitas faces do mito do herói. Universidade de São Paulo.
Veloso, R. C., & Rubio, K. (2016a). Objetos biográcos: tempos
vivos para narrativas. In Katia Rubio (Ed.), Narrativas biográcas:
da busca à construção de um método (1a, pp.229-242). São Paulo:
Laços.
Veloso, R. C., & Rubio, K. (2016b). Objetos Biográcos: tempos vivos
para narrativas. In Katia Rubio (Ed.), Narrativas biográcas: Da busca à
construção de um método. (1a, pp.229-242). São Paulo: Képos.
Wunenburger, J. J. (2007). O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola.
Wunenburger, J. J. (2015). Da imaginação material à geopoética
em Gaston Bachelard. In Sandra Maria Patrício Ribeiro & Alberto
Filipe Araújo (Eds.), Paisagem, Imaginário e Narratividade (1a,
pp.17-30). São Paulo: Zagodoni.
Rafael Campos Veloso
56
57
“Nada menos que a alma”:
A plenificação das narrativas
L M M T
Um cartaz nos corredores da Escola de Educação Física
e Esporte da Universidade de São Paulo – EEFE/USP
anunciava o IV Seminário de Estudos Olímpicos. Nada de mais para
uma corriqueira quinta-feira de manhã, mas a palavra “Narrativas”
estampada no cartaz chamou a atenção do professor Dr. Edvaldo
Pereira Lima, que, apesar de ser da Escola de Comunicação e
Artes - ECA, transitava por ali para fazer sua ginástica matinal.
Imediatamente, foi procurar saber do que se tratava e obteve o
contato da professora organizadora, professora Dr.ª Katia Rubio.
O professor sabia que era do meu interesse estudar narrativas de
atletas, desde que concluí a pós-graduação em Jornalismo Literário
na instituição em que ele era coordenador.
Era o dia 16 de outubro de 2014. Eu estava entre um voo e
outro, exercendo minha função de aeromoça, e quando cheguei ao
Hotel recebi o seguinte e-mail dele:
“Oi Lu, está acontecendo na USP, até sexta-feira o IV Seminário de
Estudos Olímpicos. Tem narrativa no pedaço. Fiquei sabendo hoje.
Lembrei de você. Se tiver de folga em Sampa, talvez dê para você participar
ainda amanhã e depois. Dê uma olhada. Bj. Ed.
Respondi:
“Oi professor, que pena estou em voo. Mas, valeu a dica”.
E ele insistiu:
“Pena. Talvez você possa comprar o livro da professora da USP que
organizou o evento. Ela é jornalista, psicóloga e trabalha com narrativas
de memórias no esporte na Escola de Educação Física da USP. Acho
que vale a pena conhecer o livro, pode lhe inspirar alguma coisa pra seus
58
projetos. Publicado pela Editora Laços, de S. Paulo. Livro: “Preservação
da Memória: A Responsabilidade Social dos Jogos Olímpicos”, de Katia
Rubio (a professora), organizadora”.
Dias depois, ele me passou o e-mail da professora com a
seguinte recomendação:
“Oi, Lu: Aqui vai. Sugiro que antes de contatá-la informe-se bastante
sobre o trabalho dela. Procure dados sobre ela na página da USP e da
EEFE, curriculum Lattes etc. Ela dirige um programa de memórias de
atletas olímpicos e lançou um livro pela Casa do Psicólogo em que sugere
a Jornada do Herói para narrativas assim.
E, então, eu, mesmo sem ler tudo o que ele pediu, escrevi para
a professora Katia, no dia 28 de outubro:
Boa noite, professora Kátia, sou Luciane Tonon e quem me passou seu
contato foi o professor Edvaldo Pereira Lima, com quem eu z pós-
graduação em Jornalismo Literário. Como sou formada em Jornalismo e
em Educação Física, tenho paixão em escrever sobre a área. O fato é que
estou escrevendo a biograa de duas atletas, Susana Schnarndorf, que é
nadadora paralímpica e Carla Moreno, octacampeã do Troféu Brasil de
Triatlo. Além disso, o que me chamou a atenção para seu material de
memórias olímpicas é que também estou escrevendo um livro infantil sobre
a história das paralimpíadas. Apesar de ainda não a conhecer pessoalmente
pela sua biograa, vi que teríamos muito a compartilhar.
Seria possível conhecê-la? E quem sabe, ser sua aluna para um mestrado?
Um grande abraço e aguardo sua resposta.
Qual foi minha alegria, ao abrir a caixa de e-mail no outro dia
pela manhã:
Olá, Luciane
Que ótimo saber sobre seu trabalho. Podemos sim nos encontrar e falar
sobre projetos. No momento estou bastante atarefada com fechamento de
seminários e eventos, mas na semana que vem, dia 05, as 10h00, receberei
aqui na EEFE um Professor da Universidade de Birmingham, que fará
uma palestra sobre Jogos Olímpicos e megaeventos que transformam a
imagem dos países.
Se você puder vir já seria uma possibilidade de nos encontrar.
Um abraço Katia Rubio.
59
Por sorte, eu estava de folga naquele dia. Não conhecia a
EEFE. Então, olhei tudo antes de encontrar a sala do Seminário.
Fiquei horas tentando entender tudo o que estava acontecendo: a
palestra do professor britânico e a correria dos membros do Grupo
de Estudos Olímpicos (GEO) em levá-lo para conhecer o laboratório
de Estudos Socioculturais e Comportamentais da Educação Física,
que cava no 4º- andar do bloco anexo. Não consegui falar com
a professora, mas agendamos uma nova conversa para o dia 18
de outubro. Na data marcada, fui novamente ao laboratório.
Quando entrei, quei estarrecida com o tamanho da mandala da
pesquisa “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros”.
A princípio, eu não entendi o que eram todos aqueles círculos
grandes e pequenos, cheios de bolinhas em volta. Mas, era algo que
jamais tinha visto antes, simbolizando a existência e conquistas de
todos os atletas olímpicos brasileiros. Fui muito bem recebida e
convidada a frequentar as reuniões, que tinham estudos preciosos
nas manhãs de quarta-feira. Leituras que baseavam a metodologia
Narrativas Biográcas (Rubio, 2014). Eu cava atenta absorvendo
cada palavra exposta.
As minhas inquietações iniciais foram: como alunos da
Educação Física estavam tratando de histórias de vida, história oral,
narrativas biográcas? Até então, eu achava que eram atributos
para escritores, jornalistas, historiadores etc. Mas, aos poucos, fui
compreendendo a pluralidade de um método abraçado por todos ali.
E mais: eu entendi por que a professora Katia sempre dava a ordem
a quem fosse em busca de entrevistas: “Não voltem com nada menos
do que a alma do atleta. Como assim a alma? Algo muito profundo.
Normalmente, as pesquisas que ocupam as mais renomadas páginas
de revistas nacionais e internacionais sobre esportes pedem tudo do
atleta: medidas, força, velocidade, nutrição, estado emocional etc.
Mas, “a alma”? É quase um olhar sistêmico ou sobrenatural, o que
requer muita sensibilidade do pesquisador.
No entanto, o que a professora queria propor era que, ao
encontrarmos com os atletas estudados, precisávamos nos esvaziar de
teorias, de pré-conceitos e até mesmo de expectativas para ouvirmos
muito além das palavras. Para captarmos os sentimentos, as expressões,
Luciane Maria Micheletti Tonon
60
os silêncios, os sorrisos e os choros. No artigo intitulado: “Between
solar and lunar hero: a cartographic study of Brazilian Olympic athletes
in the social imaginary” a autora ressalta: “Nossa intenção é capturar
suas almas no momento da criação do uxo biográco narrativo
que recria e ressignica sua própria história através dos elementos
de alta reverberação pessoal proveniente do substrato memorial
(Rubio, Veloso & Leão 2018, p.147). Reforçando esse sentido, em
sua tese Veloso (2021) explica que as narrativas biográcas mantêm o
corpus estruturante das histórias de vida na estética conferida pela
oralidade, e, simultaneamente, avançam sobre estas instâncias ao
imprimir à alma do narrador a forma do instante dos movimentos
autobiográcos de signicação. Ou seja, “é a tentativa de apreensão
desta alma no exato instante de criação do roteiro autobiográco”
(Veloso, 2021, p.37).
Ao aprofundar-me sobre o assunto, encontrei Cassirrer (2011,
p.12) explicando sobre o “télos” do espírito humano:
“Se conseguirmos nos libertar das interpretações, se conseguirmos
sobretudo remover o véu das palavras, que esconde de nós a essência
verdadeira das coisas, então estaremos nalmente frente a frente
com as percepções originais que contêm as últimas certezas do
conhecimento”.
Uma esfera em que, conforme o lósofo, não há lugar para
a oposição entre verdade e engano, entre realidade e ilusão, pois
a simples existência das impressões sensoriais permanece livre de
toda possibilidade de engano. Quando estamos diante do narrador,
perguntas podem limitar as percepções, portanto, as evitamos.
Prática difícil diante de padrões de pesquisas estimulados por coleta
de dados, questionários, estatísticas e comparações. O método
nos deixa claro que a experiência vivida também é ciência, sendo
possível por meio de uma necessária combinação de percepções. “O
mundo da intuição e da percepção sensorial é o germe a partir do
qual a estrutura teórica da ciência deve se desenvolver” (Cassirrer,
2011, p.30). Segundo o autor, essa visão é fundamental para vir à
tona um mundo submerso e obscuro de problemas formais que não
são menos importantes do que aqueles suscitados pela estrutura do
conhecimento cientíco. Ele arma que quando vislumbramos a
61
totalidade, focamos nosso olhar dentro daquela dinâmica imanente
do espírito humano, que vai além de todas as fronteiras xas que
costumamos colocar entre suas faculdades individuais.
“Não podemos e não devemos deixar que a teoria que restrita ao
conhecimento cientíco do mundo, muito menos a um único ponto
culminante dele, caracterizado pela lógica, mas temos de procurá-
la em toda parte em que alguma forma haja um modo especíco
de formação, de elevação a uma determinada unidade de sentido”.
(Cassirrer, 2011, p.34)
No mesmo sentido, Von Goethe (1982), no prefácio de
sua obra Teoria das Cores, diz que todo olhar logo se converte
em contemplação; toda contemplação em especulação e toda
especulação em combinação, de forma que já em todo olhar atento
estamos teorizando o mundo. Ainda nessa trilha, Lima (2009)
diz que, ao colher uma narrativa, é preciso lançar um olhar de
identicação e projeção da própria condição humana do pesquisador
nos semelhantes, sejam eles celebridades, sejam pessoas do cotidiano.
Tal olhar de identicação gera o que Eclea Bosi (2001) chama de
compromisso afetivo, um trabalho ombro-a-ombro entre o sujeito e
o pesquisador. “A pesquisa será tanto mais válida se o observador não
zer excursões saltuárias na situação do observado, mas participar
da sua vida” (Bosi, 2001, p.38). A autora arma que a narrativa é
sempre uma escavação original do indivíduo em tensão constante
contra o tempo organizado pelo sistema.
Isso posto, entende-se a importância de estarmos desnudos
enquanto observadores, com o olhar atento, para absorver cada
manifestação do narrador, providos apenas de contemplações e
percepções. Assim é possível levar, na bagagem de volta, a alma do
atleta. Tal proeza acontece porque, primeiramente, o método parte
da experiência cada atleta provou. Não é uma questão só de expressar
sentimentos vividos, mas de testicar a própria história. Segundo,
porque os narradores têm um reencontro com a própria trajetória ao
resgatarem a memória de instantes que lhes foram tão caros; tocam
em assuntos muitas vezes empoeirados pelo tempo ou até nunca
ditos antes; e terceiro, a voluntariedade de externar verbalmente suas
experiências. Quando estamos dispostos a ouvir a alma, signica,
Luciane Maria Micheletti Tonon
62
inclusive, dar ouvidos aos silêncios, às lágrimas, ao brilho do olhar.
Detalhes que não são ditos nas palavras, mas enriquecedores para a
pesquisa. Nada de perguntas diretivas, mas, sim, somente estímulos
que reforcem o que já foi manifestado pelo atleta. Para ler o que a
alma quer dizer, então sim, é preciso um processo de compreensão
pura, sem análises ou julgamentos. Uma boa ferramenta para isso é a
hermenêutica, que possibilita o surgimento de novos sentidos e uma
abertura a elementos da subjetividade. A partir do século XVIII,
alguns estudiosos se debruçaram para tornar a hermenêutica uma
verdadeira losoa.
De acordo com Paul Ricoeur (1990), a hermenêutica é a teoria
das operações de compreensão em sua relação com a interpretação.
É, para ele, um exercício de autocompreensão mediada por signos,
símbolos e textos. “Tornando-se centrais as questões das referências
metafóricas e seu poder de redescrever e regurar o mundo do leitor
por meio dos enredos narrativos, próprios da narração” (Ricouer,
1990, p.22). Entende-se aqui a utilidade e potencialidade da
ferramenta para se trabalhar com as histórias narradas e, por que não
dizer, o que foi exposto pela alma do narrador, que é o que o autor
vai chamar de “leitor de si próprio” (Idem, p.125), uma vez que quem
narra aponta para fora de si mesmo, em direção a uma reelaboração do
campo prático de quem recebe. Ao estudar a hermenêutica, Dilthey
(1947) já a chamava de um processo de entendimento para recriar
em si o sentimento vivido pelo autor. Mais tarde, Heidegger (2009)
vai dizer que a hermenêutica incide sobre a própria existência. Já
Bachelard considerava a hermenêutica como uma teoria que buscava
esclarecer o signicado da vida humana por meio do exame crítico
da evolução histórica das ciências e da constituição de uma poética e
de uma ética (César, 2011). E, Wunenburguer (2007, p.23) diz que:
“a hermenêutica valoriza, pois, um tipo de representação que escapa
à imediaticidade e à transparência, e exige um engajamento ativo do
sujeito na exploração dos planos mediatos”
Teorias que iluminam todo o processo compreensivo para um
momento após o encontro entre narrador e pesquisador, porque o
evento em si deve ser plenamente vazio, abstraído de tudo para dar
vazão à alma. Precisamos somente ouvir e gravar o que foi dito.
63
Assim, iniciei a busca pelos atletas com quem iria trabalhar1.
A princípio, escolhi cinco atletas de acordo com o tema da minha
tese, que trata de atletas que estavam em plena trajetória olímpica,
quando sofreram um acidente ou uma doença degenerativa e se
recriaram como atletas paralímpicos. São eles: a nadadora Susana
Schnarndorf, o cavaleiro Rodolpho Riskala, o velocista Gustavo
Henrique Araújo, a arremessadora Elisabeth Gomes e o remador Jairo
Klug. Mais do que marcar um único encontro, eu tive a necessidade
de acompanhar um pouco do dia a dia de cada um deles, seja nos
locais de competições, treinos ou mesmo em momentos em que não
estavam na condição de atletas, mas de pessoas comuns. Até aí, eu
ainda não tinha me dado conta de que a “alma” pode ser absorvida
fora das câmeras, fora da formalidade da entrevista. Pode ser captada
no conjunto de todo o cenário que o entrevistado está inserido. A
imagem fala pela alma, e a alma traduz a plenitude do ser. Então, vi
sorrisos descontraídos; vi choros frustrados; vi erros e acertos, tudo
compondo o enredo da ação humana e, por que não dizer, alimento
para a alma, como dene Ricouer (1997, p.116):
A aporia do tempo da alma ‘distendida’ entre o passado da memória,
a expectativa e o presente da intuição, corresponde o enredar de
peripécia da ação externa”.
Onde estaria essa “alma distendida”, segundo o autor, senão
no caminho percorrido pela memória entre a ordem da narrativa e a
ordem da ação e da vida? Caminho este que Heidegger (1969, p.69)
vai ilustrar: “O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno
dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu”. Claro,
que o autor está se referindo aos caminhos físicos (ruas, vias, vielas
e estradas) que nos levam de um destino a outro, mas certeiramente
a alma também percorre o caminho das lembranças, recolhendo
aquilo que é intimamente seu. Cabe a nós, enquanto absorvedores
dessa linguagem subjetiva, desvendá-lo.
1 A autora do capítulo utilizou a metodologia das Narrativas Biográficas na produção da tese
de doutorado intitulada “Olímpicos e Paralímpicos: separados por um instante”,
defendida em 2022 na Escola de Educação Física da Universidade de São Paulo (TONON,
2022).
Luciane Maria Micheletti Tonon
64
Minha função, portanto, era absorver o que via, o que
ouvia e o que sentia, sem atribuir signicados; caso contrário,
eu iria tolher dentro das minhas referências a completude da
mensagem externada pela alma. Eu não poderia entender, por
exemplo, por que o cavaleiro Rodolpho Riskala e seu cavalo
Warene entraram na arena da prova de adestramento nos Jogos
Paralímpicos Rio 2016 embalados com a música de Jorge Ben
Jor “mais que nada, sai da minha frente que eu quero passar”, se eu
não tivesse captado de sua alma o sentimento de vitória, que ele
carregava por simplesmente estar ali, após tudo o que passou.
Desde a inncia, ele foi atleta do adestramento olímpico, mas
em julho de 2015 foi acometido de uma meningite bacteriana
e teve, como sequelas, as mãos e os pés amputados. Faltava
exatamente um ano para os Jogos Olímpicos Rio 2016, em que
estava se empenhando para conseguir uma vaga. A doença foi
uma forte adversária, mas não conseguiu tirá-lo do páreo. Ele
decidiu continuar a carreira no hipismo parampico e mal teve
tempo de adaptar às próteses, conseguiu uma vaga para os Jogos
Paralímpicos do Rio. A música expressava exatamente o que sua
alma estava dizendo: ‘saiam dores, sai maratona hospitalar, sai
cirurgia, sai preconceito, sai trauma, sai tudo da minha frente
porque eu quero passar. E eu vou chegar diante dos árbitros e
apresentar a minha série’. Foi o que ele fez. Uma apresentação
impecável dentro de suas possibilidades.
De igual modo, eu não poderia compreender a paciência da
atleta de arremesso de peso Elizabeth Gomes com o adiamento dos
Jogos de Tóquio de 2020 para 2021, devido à pandemia causada pelo
coronavírus, se eu não tivesse obtido da sua alma a frustração de
car fora de duas edições dos Jogos Paralímpicos, as de Londres 2012
e do Rio 2016, quando também já tinha índice e vaga garantida
para as disputas. Sua maior adversária, na ocasião, foi a classicação
funcional – sistema de avaliação que comprova os comprometimentos
físicos para colocar o atleta em condições de igualdade a outros que
tenham as mesmas debilitações. Atletas de alta performance com
esclerose múltipla são uma raridade e, portanto, não há muita prática
dos classicadores em conhecerem a etiologia da doença. No caso
65
de Elizabeth, desconsideraram a espasticidade da sua musculatura2,
ou seja, um movimento involuntário e não funcional como eles
concluíram a elevando da classe F54 para F553, como ela explica:
“Disseram que eu tinha tônus na musculatura do braço, mas tal
tonicidade é reexo da contratura da doença e não da força aplicada
no braço. O mesmo acontece com meu abdômen, que é enrijecido,
mas não é funcional. A decisão nal foi que me mudaram para a classe
F55. Aí, nessa classe não tem atletas. E no lançamento de disco, minhas
marcas não foram sucientes para uma condição de igualdade com
competidores que têm mais mobilidade do que eu. Eles conseguiram
acabar com um dos meus sonhos de estar nos Jogos Paralímpicos.
Esporte é isso. É difícil. (Informação verbal)4
Passaria por mim despercebida a luta do velocista Gustavo
Henrique a favor do pouco de vista que lhe resta, caso eu não
entendesse a angústia da sua alma em querer provar para si mesmo
que a escuridão da insignicância de sua negritude, de sua deciência
e de todos os preconceitos vividos não vai vencê-lo. E, por esse
motivo, sua alma corre. Corre atrás dos seus sonhos, corre atrás do
pódio, corre atrás de sua carreira. “Eu era o único negro da minha escola,
mas eu era o mais veloz. Então, sempre me escolhiam. Passei por isso, mas ir
treinar com pessoas com deciência não entrava na minha cabeça. Foi muito
difícil de aceitar” (Informação verbal)5.
Se eu fosse depender apenas de palavras, eu não entenderia
o silêncio do atleta Jairo Klug ao contar sua história buscando, na
2 Entende-se por espasticidade um aumento do tônus muscular, envolvendo hipertonia e
hiperref lexia, no momento da contração muscular, causado por uma condição neurológica
anormal. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Espasticidade. Acesso em:
06 dez. 2016.
3 F55 – F – Field provas de campo do atletismo. Os com numeração de 51 a 57 competem
em cadeiras de rodas. Quanto menor o número, maior o nível de comprometimento.
Disponível em: http://www.cpb.org.br/modalidades-visualizacao/-/asset_publisher/
4O6JOgZOhDhG/content/id/22633 Acesso em: 06 dez. 2016.
4 Entrevista concedida por Elizabeth Gomes. [Junho 2016]. Entrevistadora: Luciane Maria
Micheletti Tonon.
5 Entrevista concedida por Gustavo Henrique Araújo. [Maio 2017]. Entrevistadora: Luciane
Maria Micheletti Tonon.
Luciane Maria Micheletti Tonon
66
calmaria nas águas da raia da USP, a resposta para tudo o que passara.
Um fundo respirar e ele contou que foram dez dias de internação
na UTI e alguns dias na enfermaria. Depois, cirurgias e mais vinte
e cinco dias hospitalizado. Foi acordado no hospital por uma das
companheiras de equipe do remo, que era médica. Ela se incumbiu
de contar a ele o que tinha acontecido.
“Só sei que tinha um caminhão envolvido no acidente e que fui resgatado
de helicóptero e levado diretamente para o Hospital das Clínicas, porque
estava escrito no Boletim de Ocorrência e o que minha amiga me contou,
mas eu mesmo não lembro de nada” (informação verbal)6.
A alma de Jairo estava em silêncio. “O silêncio na pesquisa
não é uma técnica, é como que o sacrifício do eu na entrevista
que pode trazer como recompensa uma iluminação para as ciências
como um todo” (Bosi, 2003, p.65). Pollak (1989) diz que o silêncio
tem razões bastante complexas. Já Le Go (1990, p.426) ressalta que
os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva.
E, por m, não fosse eu ouvir a alma nadadora de Susana
Schnarndorf, não seria possível entender por que a piscina é o
seu melhor remédio. “Nado pelos meus lhos, para que meus dias se
prolonguem na terra” (informação verbal)7. A nadadora tem Atroa
Múltipla do Sistema (SMA), uma doença degenerativa causada por
uma forte depressão, da qual foi acometida em 2005, após o parto
da sua terceira lha. Até então, ela era atleta prossional do Triatlo,
chegando representar o Brasil nos Jogos Pan-americanos de Mar del
Plata, Argentina, em 1995. A doença fez com que ela tentasse algumas
vezes antecipar o m de seus dias, pela interrupção da sua carreira.
Porém, cinco anos depois, descobriu a natação paralímpica, que a fez
ser a melhor do mundo em 2013 dentro da classe S6 (Swimm – 6 –
comprometimento dos membros inferiores e parte dos superiores).
6 Entrevista concedida por Jairo Klug. [Outubro 2018]. Entrevistadora: Luciane Maria
Micheletti Tonon.
7 Entrevista concedida por Susana Schanrndorf. [Outubro 2015]. Entrevistadora: Luciane
Maria Micheletti Tonon.
67
No caminho de suas lembranças, sua alma capturou que ao subir
no bloco de largada na sua primeira competição internacional
paralímpica, no Canadá, em 2010, deu um impulso como se estivesse
deixando o passado e mergulhando na esperança de simplesmente
continuar viva. E, assim, sua alma continua a nadar, mesmo que o
corpo não responda mais seus anseios.
Considerações Finais
A alma nos traz detalhes inexpressíveis capazes de serem
interpretados diante de outra alma que esteja aberta à compreensão.
Detalhes estes, inerentes às expressões idiomáticas ou decifrações
de linguagens. A alma guarda em seu átrio as dimensões mais
altas do homem e permite-o expressá-las até mesmo sem palavras.
Nesse sentido, Bachelard (1990) propõe a noção de um inconsciente
cósmico, que vincula estreitamente a alma do homem à alma do
mundo (César,1989). A alma é aberta ao devaneio, sendo a forma de
expressar a compreensão poética do homem e o permite magnicar
a vida nos fulgores do sonho. (Bachelard,1990).
Ao digerir todo esse processo, chega-se à conclusão de que ouvir
a alma não é algo transcendental nem mergulhos sobrenaturais; é
simplesmente estar aberto ao todo. Trata-se de entender o atleta como
ser humano, deixando-o exprimir seu caminho interior, constituído
de saídas e chegadas. Lá está sua alma, como diz Wunemburger
(2007, p.25): “A alma poderá estar na presença de representações
de realidades imateriais, mas sensíveis (tempos e espaços), que lhes
permitirão, por meio de um ato espiritual hermenêutico, remontar
os arquétipos”.
Sendo assim, a alma do atleta corre, nada, salta. Ela traz do
caminho da memória aquilo que vai compor a imagem de seu
narrador.
“Da porta de entrada, quando acionamos a câmera e convidamos
a uma viagem por suas histórias de vida, até o centro do labirinto
onde residem as mais profundas emoções de um passado de glórias
ou frustrações, há um longo caminho a ser percorrido” (Rubio,
2016, p.43).
Luciane Maria Micheletti Tonon
68
Este longo caminho em que a autora se refere é o mesmo que
leva a uma dimensão do humano anterior àquela que é acessível pela
linguagem lógica, proposta por Bachelard (1990) em que a alma é
um lugar de habitação, de permanência. E as vias de acesso só são
encontradas pelo pesquisador desprovido de mapas, bússolas ou GPS.
Referências
Bachelard, G. (1990). La Poétique de la Rêverie, Paris, 1950.
Bachelard, G. (1963) La dialectique de la durée Paris : Les Presses
universitaires de France, Deuxième tirage de la nouvelle édition.
Collection : Bibliothèque de philosophie contemporaine, 151 pages
p.10.
Bachelard, G. (1990) Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo
Brasiliense, 1990.
Bosi, E. (2001) Memória e Sociedade, São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
Cassi rer, E. (2011) A losoa d as formas s imbólicas: III Fenomenologia
do Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p.818
Cesar, C. M. (1989). Bachelard: ciência e poesia. São Paulo: Paulinas.
Comitê Parampico Brasileiro. (sem data) Esportes>Jogos
Paraolímpicos. Disponível em:<http://www.cpb.org.br/esportes/
jogos-paraolimpicos>. Acesso em: 22 jan. 2018.
Dilthey, W. (1947) Origenes e developpement de l’hermeneutique.
Paris: Aubier.
Heidegger, M. (2009) Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2009.
Heidbergger, M. (1969). O caminho do Campo: sobre o problema
do ser. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969.
Lima, E. P. (2009) Páginas Ampliadas 4th ed., São Paulo: Manole.
Pollak, M. (1989) Memórias, esquecimento, silêncio. São Paulo:
Revista Estudos Históricos.
69
Ricoeur, P. (2007) A memória, a história, o esquecimento. Campinas:
Editora da UNICAMP.
Rubio, K. (2014) Preservação da Memória: a responsabilidade social
dos Jogos Olímpicos, São Paulo, Laços.
Rubio, K. (2016) Narrativas Biográcas: da busca à construção de
um método, São Paulo, Laços.
Rubio, K.; Veloso, R.; Leão, L. (2018) Between solar and lunar
hero: a cartographic study of Brazilian Olympic athletes in the social
imaginary. Im@go. Rivista di Studi Sociali Sull’immaginario,
[s.l.], n.11, p.147-162, jul. 2018. Bianual. Mimesis Edizioni. http://
dx.doi.org/10.7413/22818138118. Disponível em: http://cab.unime.
it/journals/index.php/IMAGO/article/view/1923. Acesso em:
20 mar. 2020.
Tonon, L. M. M. (2022) Olímpicos e Parampicos: separados por
um instante. Tese (Doutorado em Ciências) – Escola de Educação
Física e Esporte, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Von Goethe, J. W. (1982). Theory of Colours. Cambridge,
Massachusetts: The M.I.T. Press. Trans. Charles Lock Eastlake.
Veloso, R. C. (2021) Trajetos entre Alvoradas e Crepúsculos: o atleta
e as muitas faces do mito do herói. São Paulo: Laços.
Wunenburger, J. J. (2007) O imaginário. São Paulo: Edições Loyola.
Luciane Maria Micheletti Tonon
70
71
Narrativas biográficas e
epistemologias do Sul:
elementos para uma antologia
das resistências negras ao racismo
no esporte brasileiro
N F J
Ao longo da história, o poder de homens negros
lampejou aqui e ali como estrelas cadentes, e morreu,
às vezes, antes que o mundo tivesse com precisão
medido sua luminosidade.
– W. E. B. Du Bois
Antologia. Refere-se originalmente a um campo de
pesquisa da Botânica, ao estudo das ores. Emprestado
à Literatura, seu signicado se amplia para designar a coleção de
textos, poemas, crônicas, contos e biograas dispersos. Exemplares
do gênero podem ser encontrados em obras tais como Carlos
Drummond de Andrade: antologia Poética, apresentada pelo autor
brasileiro (1902-1987) como uma coleção de poesias, que não teve
por princípio “selecionar poemas pela qualidade, nem pelas fases que
acaso se observem em sua carreira poética”, mas localizar “certas
características, preocupações e tendências que a condicionam ou
denem, em conjunto”. Nesse caso, a antologia que melhor traduz a
proposta de Drummond distingue-se pela heterogeneidade, por não
seguir uma ordem cronológica rigorosa, uma vez que não se trata de
um trabalho de História. Ainda assim, a obra traz consigo uma lógica
própria, observada na divisão das nove seções, cada qual contendo
poesias extraídas de diferentes obras do mesmo autor, formando,
72
assim, uma nova. Conforme Drummond especica, “algumas
poesias caberiam talvez em outra seção que não a escolhida ou em
mais de uma. A razão da escolha está na tônica da composição ou no
engano do autor. De qualquer modo, é uma arrumação ou pretende
ser” (Andrade, 2015).
Seguindo caminho semelhante, a antologia do protagonismo
negro no esporte, proposta do presente capítulo, reúne textos
biográcos de atletas brasileiros, pertencentes a diferentes períodos
históricos e modalidades, mas que partilham de uma tarefa comum:
o enfrentamento ao racismo. A forma como enfrentam e resistem
às violências raciais, que abundantemente e tolerantemente vicejam
no esporte, serve à apreensão e redimensionamento do próprio
fenômeno do racismo: sistema de opressão que opera no esporte
de forma distinta, mas cuja distinção precisa ser melhor explicada.
Nesse sentido, a heterogeneidade das experiências biográcas negras
parece melhor servir aos propósitos de mapeamento, caracterização,
conceituação e representação da sua dinamicidade.
Na obra de Abraham Chapman, intitulada Black voices: an
anthology of Afro-American literature (Chapman, 1968), encontramos
outra importante referência à construção do nosso método. Nas mais
de setecentas páginas do livro, estão reunidos nomes da literatura
afro-americana, cujas obras e biograas foram inevitavelmente
atravessadas não só pelos efeitos, mas pela necessidade de luta
e resistência cotidianas contra o racismo. Luta e resistência que
se traduziam na participação direta ou indireta em