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Compositor ou Produtor? - uma ambiguidade no âmbito da tecnologia
Lino Guerreiro
linoguerreiro@me.com
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Resumo
A criação musical tem evoluído ao longo dos últimos anos, apontando cada vez mais para
uma perspetiva de multiplicidade, que, em si se encontra em constante desenvolvimento,
fazendo com que a esta, seja em grande parte resultado das inúmeras relações e interações entre
os diferentes agentes envolvidos num processo desta natureza. Estes agentes poderão passar
pelo compositor da obra, pelo intérprete para aquela performance, pelo produtor daquele disco,
entre muitos outros que poderão surgir noutras perspetivas. Por isso, em pleno séc. XXI,
podemos afirmar que a criação musical resulta da soma de uma série de contribuições. Neste
âmbito, e inerente a esta pluralidade, têm também surgido novas práticas e ferramentas
principalmente ligadas ao desenvolvimento tecnológico, que cada vez mais se vão enraizando
nos diferentes processos da criação musical, diversificando assim os contributos dos possíveis
agentes envolvidos. Atualmente, talvez seja importante, ou até obrigatório, refletir na forma
como toda a tecnologia disponível é utilizada, e até que ponto existe ou não, alguma ponderação
por parte de quem utiliza estas ferramentas. Talvez esta reflexão se torne necessária, para que
se possa garantir que o processo de criação musical continue a depender do(s) indivíduo(s) que
dele fazem parte, e não apenas da tecnologia em si.
Palavras chave: Tecnologia; Composição; Performance; Produção
Introdução
A figura do compositor foi em tempos, a de alguém que com a sua “pena” e um
pentagrama, registava em papel uma ideia musical que tinha origem no seu génio inventivo, e
que este levava ou acompanhava, desde o momento em que esta surgia na sua mente, até à sua
verdadeira realização, a performance, única, efémera, e que nesse “breve” instante, se poderia
chamar de música. A criação musical, a obra musical, não existia doutra forma, só assim,
através de uma performance, lhe era possível “dar vida”. Embora alguns destes paradigmas se
mantenham nos dias de hoje, há outros que se alteraram. O fenómeno da gravação enquanto
possibilidade de registar uma performance, talvez tenha sido a maior revolução tecnológica
intrinsecamente ligada à criação musical. Fazer com que esta possa voltar a ser ouvida, ainda
que numa mesma performance, é também fazê-la “renascer”, e naquele “breve” instante, voltar
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a chamá-la de música. A possibilidade de gravação é já do século passado, no entanto, ao longo
dos últimos anos e ainda com maior incidência nas últimas décadas, não só a gravação, mas
muita tecnologia no âmbito musical, e até a tecnologia no seu todo (pois esta tem evoluído ao
longo dos últimos anos a uma velocidade vertiginosa), tem transformado todo o processo da
criação musical.
Este artigo aborda as multidireccionalidades intrínsecas às relações/interações entre os
agentes envolvidos (compositor, produtor, intérprete), e entre algumas das diversas ferramentas
que estes têm disponíveis no âmbito da tecnologia atual. Por não ser o propósito deste abordar
a influência da tecnologia em todo o meio musical e.g., composição, performance, comercial,
ou ainda outras; mas sim exclusivamente no processo de criação musical, voltemos, para já, à
figura do compositor e à forma como a tecnologia o poderá influenciar.
Tecnologia
A notação musical, i.e., partitura; é muitas vezes a ferramenta principal do compositor, e
a forma como este último se relaciona com a notação musical transforma-a em algo muito
pessoal, que muitas vezes torna possível identificar o compositor apenas pela forma como a
música é escrita. É possível que isto aconteça, porque a notação musical tenta traduzir algo que
tem origem no subconsciente, cit. “between many influences which takes place in the
subconscious mind.” (Taylor, 2020, p. 1).
Ainda que alguns compositores continuem a preferir utilizar a sua “pena”, é certo que são
cada vez mais aqueles que se rendem às “magias” da tecnologia. Hoje em dia existem uma série
de softwares de notação musical, que têm vindo a ser desenvolvidos sensivelmente desde a
década de cinquenta do século passado, aos quais ao longo dos anos têm sido acrescentadas,
quer melhorias, quer novas funcionalidades. Uma das possibilidades destes programas é a de
reproduzir som a partir de informação que é introduzida com base na notação musical. Estes
começaram por reproduzir sons criados artificialmente, mas com o avanço da tecnologia
rapidamente passaram a fazer essa reprodução, com base em sons pré-gravados de instrumentos
reais, samplers. Ainda que em ambos os casos o som produzido seja digital, i.e., som produzido
eletricamente; a precisão atual dos samplers não deixa transparecer praticamente nenhuma
distinção entre o som digital e o real. Tendo em conta a vasta diversidade de samplers que são
disponibilizados no âmbito dos softwares de notação musical, tanto é possível ter uma orquestra
Compositor ou Produtor? - uma ambiguidade no âmbito da tecnologia
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sinfónica, como um ensemble de gamelão da ilha de Java, a ser reproduzido pelo nosso
computador através de um destes softwares de notação musical.
Este é sem dúvida um dos paradigmas que se alterou na figura do compositor, na prática
da composição, pois se aquele tinha de recorrer à sua imaginação para ouvir mentalmente como
soava uma trompa em pianíssimo a dobrar um oboé, ao mesmo tempo que as violas tocavam
em pizzicato, onde à sua imaginação só poderia acrescentar um conhecimento empírico baseado
em memórias, cada vez mais estas e outras faculdades e/ou práticas, são substituídas ou
modificadas pelo avanço tecnológico. Por outro lado, a notação mesmo sendo digital, nunca irá
deixar de tentar traduzir algo que teve origem no subconsciente, e talvez seja na forma como se
utilizam estes softwares, onde reside o busílis desta questão. Existem compositores que ao
usarem estes softwares de notação musical simplesmente desligam o som, e mais tarde, na
performance, ouvirão o que imaginaram, outros há que conseguem chamar obra musical a algo
que nunca saiu do seu computador, e não o é, pelo menos ainda.
Outra das tecnologias no meio musical que tem sido alvo de constantes desenvolvimentos
ao longo dos anos, são os softwares conhecidos como Digital Audio Workstation (DAW). Como
conceito geral os indivíduos que operam dentro das DAW são chamados de produtores, na
medida em que o seu trabalho aponta para um resultado final, que consiste na produção de uma
faixa áudio. Numa primeira análise as DAW foram concebidas para desempenhar três funções
principais: gravar, editar, e reproduzir áudio digital; mas outras funcionalidades têm vindo a ser
incorporadas à maioria destes softwares. É exemplo disso, a possibilidade de visualização e
edição de uma partitura musical
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, o que desde logo estabelece um link entre um qualquer
individuo com conhecimentos musicais e esse software. Esta ferramenta torna-se muito útil,
quando se querem realizar pequenas alterações recorrendo à notação musical.
Talvez uma das funcionalidades das DAW atualmente disponível e mais significativa,
seja a possibilidade quer de gravação quer de edição, através da tecnologia MIDI
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. Com esta
tecnologia torna-se possível gravar e editar a informação de forma faseada ou em tempo real,
permitindo uma interação muito mais rápida e eficaz do que com qualquer outra solução. Toda
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Sendo estas funcionalidades mais rudimentares do que nos softwares de notação musical.
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(Musical Instrument Digital Interface) consiste num interface baseado num protocolo de comunicação padrão,
que permite a ligação em tempo real, entre instrumentos musicais eletrónicos, computadores e todo o tipo de
dispositivos relacionados. Informação detalhada em (Bader, 2018, pp. 238–239).
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a informação MIDI pode ser introduzida manualmente, pode ser importada de um qualquer
software de notação musical
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, e pode ainda ser introduzida através de uma performance com
um instrumento
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, e deste modo, compositor, intérprete, e produtor, podem operar dentro deste
software, e contribuir desta forma para o processo de criação musical. Devido ao fato de esta
tecnologia responder a uma série de comandos que por sua vez geram som, estes podem ser
facilmente editados de forma a alterar o resultado, muita para além do que seria possível por
exemplo, numa gravação de áudio. Através do MIDI, basta introduzir alguns comandos para
alterar uma série de parâmetros tais como, tonalidade, tempo, os sons reais utilizados
(samplers), ou outros, o que acaba por permitir a “composição” de diferentes ideias musicais,
que rapidamente podem ser ouvidas, abrindo assim a possibilidade de experimentar inúmeras e
diferentes soluções, que com outra tecnologia seriam bastante mais morosas, ou até
impossíveis.
Outro dos recursos presente nas DAW consiste num banco de sons de diferentes
instrumentos, sendo que estes podem ser desde riffs (pequenas frases musicais), a secções
inteiras de um ou vários instrumentos em simultâneo; são ainda disponibilizados inúmeros
efeitos sonoros. Para além do fato de este banco de sons poder ser personalizado, onde se podem
colecionar bibliotecas de diferentes estilos, fabricantes, marcas, estes sons não só permitem a
manipulação de diferentes parâmetros, como também funcionam fora do âmbito MIDI, i.e.,
podem ser utilizados diretamente sem ser necessário introduzir qualquer outro tipo de
informação. Torna-se assim possível a criação musical, sem necessariamente ter uma formação
específica na área da música, seja esta tocar um instrumento, seja escrever através da notação
musical convencional.
Mais recentemente as DAW oferecem também, um vasto e heterogéneo número de ritmos
de bateria e percussão pré-gravados por diferentes intérpretes, e dentro dos mais variados
estilos. Através desta funcionalidade também é possível controlar, a constituição do set de
bateira/percussão, a quantidade de informação contida no ritmo, i.e., se este é mais ou menos
preenchido; entre uma série de outros parâmetros que possibilitam efetivamente criar ritmos
totalmente originais. Das diferentes possibilidades de manipulação dos ritmos pré-gravados,
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Estes também funcionam através de um protocolo de comunicação padrão no âmbito MIDI.
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Embora o tipo de instrumentos MIDI mais comuns sejam os teclados (pianos), atualmente existem praticamente
todos os tipos (famílias) de instrumentos, seja, sopros, percussão, cordas, etc.
Compositor ou Produtor? - uma ambiguidade no âmbito da tecnologia
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destaca-se a possibilidade de controlar a sua regularidade/irregularidade no âmbito do conceito
de microrhythmic. Tal como este é apresentado em (Kvifte, 2010, p. 213), entende-se que do
ponto de vista humano, um intérprete nunca toca um ritmo exatamente como este é escrito em
notação musical. Os tipos de variações existentes são por sua vez divididos em duas categorias,
random variations, as quais resultam de imperfeições, ou do equipamento, ou do intérprete, e
systematic variations, que se relacionam com aspetos estilísticos, quer da música quer da
interpretação. Algumas das atuais DAW permitem controlar o ritmo no âmbito das systematic
variations, conferindo-lhe mais ou menos, digamos “feeling”, em contraste a um ritmo
matematicamente correto, como representado numa partitura.
O conceito de human playback style, está associado à tecnologia MIDI, e consiste em
introduzir variáveis através de algoritmos, que tentam ir de encontro a diferentes formas de
tocar, culturas, estilos, etc. Este, dentro desta tecnologia, resume-se a uma simulação; mas
quando falamos do controlo sobre systematic variations, aplicado a sons pré-gravados dentro
de uma DAW, estamos a falar de algo com a mesma filosofia do human playback style, mas
com um resultado muito mais real do que uma mera simulação.
É certo que enquanto os softwares de notação musical, necessitam de ser operados por
um indivíduo que conheça a linguagem musical, e.g., um compositor, um intérprete; o mesmo
já não acontece com as DAW. Ainda que se considere o produtor como principal utilizador,
grosso modo, qualquer indivíduo pode operar nestes softwares sem que seja obrigado a aprender
a uma nova linguagem. Para além das funcionalidades descritas anteriormente, existe uma
quantidade enorme de outras, todas elas desenvolvidas e disponibilizadas de forma a serem o
mais intuitivas possível, abrindo assim o caminho para que qualquer um consiga atingir
resultados que podem ser classificados como criação musical. E se esse qualquer indivíduo
fosse um compositor?
O Band in a Box (BIAB) é um software da empresa PG Music
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, que foi lançado para o
mercado em 1990. Este teve como primeiro objetivo constituir-se como uma ferramenta de
estudo direcionada para o intérprete, mas desde muito cedo que os seus objetivos foram
expandidos noutros sentidos, nomeadamente na produção e na criação musical. Grosso modo o
software cria um acompanhamento musical ou uma produção mais elaborada, a partir de uma
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Peter Gannon foi o criador do software, https://www.pgmusic.com
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qualquer progressão de acordes, sendo que esta pode ser inserida quer manualmente através da
plataforma do software, quer através de um instrumento MIDI, i.e., através de uma
performance. A partir desta progressão de acordes, torna-se possível estabelecer uma série de
parâmetros à luz de inúmeros estilos musicais. O BIAB começou por utilizar exclusivamente a
tecnologia MIDI, mas a partir de 1999 foi introduzida a possibilidade de usar simultaneamente
sons de instrumentos reais. Em 2006 foi introduzida a funcionalidade Real Drums, abrindo
caminho para que em 2007, surgisse no mesmo âmbito Real Tracks, consistindo ambas numa
vasta coleção de faixas áudio gravadas por músicos de renome internacional dos mais diversos
estilos e nos mais variados instrumentos
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, podendo estas ainda ser manipuladas de múltiplas
formas. Com o desenvolvimento tecnológico tornou-se possível manipular faixas áudio pré-
gravadas, no âmbito do tempo, i.e., mais rápido, mais lento, bpms (beats per minute); e no
âmbito das alturas, i.e., possibilitando qualquer transposição, e tudo isto mantendo a maior parte
das caraterísticas sonoras, originais dos instrumentos. Do vasto leque de possibilidades
destacam-se, a criação de melodias ou solos através de algoritmos com base na progressão
harmónica inserida e de acordo com um determinado estilo; programar ritmos de bateria na sua
íntegra; exportar ficheiros áudio para trabalhar numa DAW; exportar informação MIDI para
trabalhar num software de notação musical, e/ou numa DAW
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; entre muitas outras. Ainda que
na sua essência o BIAB seja direcionado ao intérprete, tanto o produtor como o compositor,
podem e conseguem potenciar ou adequar este software às suas necessidades. E, aparentemente
neste sentido, a tecnologia continua a “servir”, ou a acompanhar, as necessidades que o meio
musical tem vindo a reclamar ao longo dos últimos anos.
A Virtual Studio Technology (VST) foi lançada em 1996 pela empresa Steinberg GmbH,
e consiste grosso modo, numa interface que emula hardwares de um estúdio de gravação, onde
são integrados sintetizadores e efeitos de áudio que podem ser operados através de softwares
que suportem esta tecnologia. Praticamente todas as DAW usam VST’s como suporte padrão.
No início do ano de 2020, a PG Music anunciou o lançamento do VST DAW Plug-in,
possibilitando desta forma, o uso do BIAB dentro de uma DAW. Destes dois softwares em
simbiose, resulta um acréscimo exponencial de muitas das possibilidades dentro do processo
de criação musical. A performance produzida passa a fazer parte da produção.
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Em 2017 o BIAB contava com mais de 100 faixas áudio disponíveis nas suas bibliotecas.
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Qualquer uma destas possibilidades pode ser usada noutros softwares que usem uma ou ambas as tecnologias
Compositor ou Produtor? - uma ambiguidade no âmbito da tecnologia
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O Logic Pro da empresa Apple Inc. é talvez uma das DAW mais populares do mercado,
tendo sido lançada em 1993 ainda com o nome Notator Logic, na qual ao longo dos anos têm
sido acrescentadas, quer melhorias, quer novas funcionalidades, sendo a sua última atualização
de 12 de novembro de 2020. São inúmeras as funcionalidades que esta DAW oferece, e nesta
última atualização podemos encontrar de forma massiva, melhorias e algumas novas
funcionalidades. Destacam-se
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, Live Loops, permite alinhar e tocar em tempo real pequenas
frases musicais pré-gravadas; Remix FX, para controlar inúmeros parâmetros como efeitos,
volumes, panorâmicas, também em tempo real; Step Sequencer, que possibilita criar padrões
repetitivos através de uma grelha; Drag-and-Drop Workflows, um novo sistema, que acrescenta
a possibilidade de utilizar uma série de funcionalidades do programa em tempo real, que antes
só eram possíveis parando o palyback; Sampler, no formato de plug-in, que torna possível
controlar samplers numa janela à parte do software; e ainda, Quick Sampler, para criar novos
samplers a partir de uma qualquer faixa áudio; Drum Synth, também no formato de plug-in,
permite criar sons de bateria sintetizados; Drum Machine Designer Enhancements, mais um
plug-in que disponibiliza uma série de melhorias na forma de criar, organizar e interagir com
faixas de bateria eletrónica. Para além disso todas apresentam plataformas exclusivas e muito
intuitivas, fazendo com que o Logic Pro seja uma ferramenta extremamente potente sem deixar
de estar ao alcance de qualquer operador.
Ambiguidade
A “simples” possibilidade de experimentar inúmeras e diferentes soluções assinalada
anteriormente, há muito que é um dado adquirido. Agora as possibilidades experimentais serão
outras e muito mais abrangentes. Atualmente talvez seja importante considerar que, devido ao
vasto leque de ferramentas, a sua moderação, i.e., de que forma e em que quantidade estas são
utilizadas; deverá ser alvo de muita ponderação por parte de quem as utiliza, isto para que a
criação musical possa continuar a depender do(s) indivíduo(s) e não apenas da tecnologia em
si.
Da mesma forma que um compositor pode “dar vida” à sua criação, e.g., uma obra para
piano interpretada pelo próprio; um produtor também pode criar uma obra musical sem ter de
recorrer a terceiros, usando simplesmente a tecnologia disponível, e.g., MIDI, samplers ou
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Informação detalhada acerca destas em https://support.apple.com/pt-pt/guide/logicpro/lgcp9759a2a6/mac
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outras. Da mesma forma que um compositor escreve para um determinado grupo de músicos,
onde irá necessitar que estes interpretem o que ele escreveu, também o produtor poderá recorrer
a intérpretes para gravar as suas ideias musicais, e desta forma ambos estão aptos a criar música.
Para além destas possibilidades, não nos podemos esquecer que; um compositor pode ser
intérprete, um produtor também pode ser intérprete, um compositor pode ser produtor, ou ainda
produtor e intérprete, e é no âmbito destas multidireccionalidades, em grande parte originadas
no seio da tecnologia, que as fronteiras entre estes agentes, começam a desvanecer-se,
transformando inequivocamente todo o processo de criação musical.
Se na frase, cit. “The examples I’ve found of composers sharing detailed compositional
work involved electronic composition, in which sharing the ideas imagined, and the evaluation
of the developing music, could be discussed verbally”, (Taylor, 2020, p. 5), percebemos grosso
modo, que a eletrónica permite a partilha de algo que teve origem no subconsciente, (ao
contrário da partitura), não poderemos especular que de certa forma toda a tecnologia musical
o faz? E de que forma? Não poderá, por exemplo, abrir caminho a que os diferentes agentes
atuem sobre o processo de criação musical, transformando-o em qualquer que seja o seu
estágio?
Se em 2010 podíamos ler que estas transformações ainda não estavam totalmente
reveladas, cit. “The ultimate consequences of DAW technology for musical practice and sound
remain to be seen, but it seems fair to expect changes of the same magnitude as those
surrounding the introduction of notation to music’s digital aspects”, (Kvifte, 2010, p. 228), é
quase certo que passados estes dez anos, parte destas continuam a não estar, nem no âmbito das
DAW, nem considerando outras tecnologias que “cada vez mais se vão enraizando nos
diferentes processos da criação musical”. Admite-se que algumas dessas consequências possam
ter sido reveladas, mas o desenvolvimento tecnológico continua “vertiginoso”, e novas
consequências têm emergido, e continuarão a emergir, devido à multiplicidade intrínseca ao
processo de criação musical no âmbito da tecnologia atual.
Se desta multiplicidade tecnológica resulta uma certa ambiguidade, esta não deve ser vista
como algo negativo, nem em 2010, cit. “the fact that DAW practices can blur the distinctions
between the previously specific roles of composer, performer, producer and listener is less an
issue than an opportunity”, (Kvifte, 2010, p. 229), nem na atualidade; pois se a tecnologia
continua a oferecer novas possibilidades, são precisamente essas que permitem aos agentes
Compositor ou Produtor? - uma ambiguidade no âmbito da tecnologia
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envolvidos procurar novos contributos para o processo. A multiplicidade é algo intrínseco ao
processo de criação musical, mesmo fora do âmbito tecnológico, e quando recorremos à
tecnologia estamos a exponenciar essa multiplicidade. É importante considerar que todos os
agentes referidos neste artigo acabam por ser criadores musicais, e será na forma como cada
um destes utiliza a atual tecnologia disponível, onde na minha opinião reside o principal foco
de reflexão. Da moderação entre o uso da tecnologia e das faculdades/práticas humanas, creio,
é que poderá resultar um processo de criação musical equilibrado, verdadeiro, e atual.
Bibliografia
Bader, R. (2018). Springer Handbook of Systematic Musicology (R. Bader, Ed.). Springer, Berlin,
Heidelberg.
Kvifte, T. (2010). Composing a performance: The analogue experience in the age of digital
(Re)production. In A. Danielsen (Ed.), Musical Rhythm in the Age of Digital Reproduction (pp.
213–229). Ashgate Publishing Ltd.
Taylor, A. (2020). Composers-composer collaboration: ways in which composers are able to produce
music together. ResearchGate. https://doi.org/10.13140/RG.2.2.35122.35528