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http://dx.doi.org/10.1590/010318138666170v61n22022
Artigos
DISCURSOS SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E DA
TRANSFOBIA NO PORTAL DE NOTÍCIAS O ANTAGONISTA
DISCOURSES ABOUT THE CRIMINALIZATION OF HOMOPHOBIA AND TRANSPHOBIA
IN THE NEWS PORTAL O ANTAGONISTA
Raylton Carlos de Lima Tavares*
Rosângela do Socorro Nogueira de Sousa**
RESUMO
Neste artigo, apresentamos uma amostra dos resultados da pesquisa Facetas discursivas em torno da criminalização da homofobia e da
transfobia (TAVARES, 2019), cujo objetivo foi analisar o modo como a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro em tipificar
como crime a homofobia e a transfobia foi mobilizado em uma cadeia de eventos discursivos publicada pelo portal de notícias O
Antagonista. Com base em pressupostos teóricos dos estudos críticos do discurso, e utilizando a linguagem de descrição do sistema
de transitividade, tomamos três textos do corpus para mostrar como os eventos e atores sociais envolvidos são representados,
quais discursos tais textos atualizam e que efeitos de sentido potenciais têm. Os resultados apontam que a representação
tematiza o possível descontentamento de religiosos e apaga os benefícios à comunidade LGBTQIA+. Tal apagamento é
utilizado ideologicamente para sustentar a LGBTfobia como uma estrutura em que vidas LGBTQIA+ são desimportantes ou
não merecedoras de proteções legais.
Palavras-chave: homofobia; transfobia; estudos críticos do discurso. transitividade
ABSTRACT
In this paper, we present a sample of the results of the research Discursive facets around the criminalization of homophobia and transphobia
(TAVARES, 2019), whose objective was to analyze how the decision of the Brazilian Federal Supreme Court to typify homophobia
and transphobia as a crime was mobilized in a chain of discursive events published by the news portal O Antagonista. Based on
the theoretical assumptions of critical discourse studies and using the language of description of the transitivity system, we
take three texts from the corpus to show how the events and social actors involved are represented, which discourses such texts
update and what potential meaning effects they have. The results indicate that the representation thematizes the possible
discontent of religious people and erases the benefits to the LGBTQIA+ community. Such erasure is used ideologically to
sustain LGBTphobia as a social structure in which LGBTQIA+ lives are unimportant or not worthy of protection.
Keywords: homophobia; transphobia; critical discourse studies.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Se certas vidas são consideradas merecedoras de existência, de proteção e passíveis de
luto e outras não, então, esta maneira de diferenciar as vidas não pode ser entendida
como um problema de identidade nem sequer de sujeito. Trata-se, antes, de uma
questão de como o poder configura o campo em que os sujeitos se tornam possíveis
ou, na verdade, como eles se tornam impossíveis. (BUTLER, 2018, p. 231–232)
Vidas de pessoas LGBTQIA+1 estão constantemente condicionadas à abjeção, lugar ‘inóspito’ e ‘inabitável’
em que são alocados aqueles corpos que não possuem o status de sujeito, cuja existência não é enquadrada como
uma ‘vida’, no sentido de criar e manter condições para sua plena existência (BUTLER, 2018). É o que tem sido
evidenciado na edição recente do Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em
2020, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (BENEVIDES; OLIVEIRA, 2021),
e nas edições recentes do Atlas da Violência (2019, 2020), mapeamento desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada. O estudo de 2019 mostrou que houve 1.720 denúncias de violência registradas no Disque 100
em 2017. A edição de 2020, por sua vez, não mostrou resultados muito diferentes, foram 1.685 denúncias só em
2018.
* Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. rayltoncarlos@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3370-8753
** Faculdade de Ciências da Linguagem da Universidade Federal do Pará, Abaetetuba, PA, Brasil. rsns@ufpa.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0429-9700
1. Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Queer, Intersexual, Assexual e identidades outras.
Artigos Tavares & Sousa
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Foi em 2019 que o Atlas incluiu, pela primeira vez, dados sobre violência dirigida a pessoas LGBTQIA+, o
que é de grande relevância para a criação de políticas públicas efetivas no que se refere à garantia e à manutenção de
direitos, pois quantificar dados torna mais palpável e evidente o tamanho da discriminação de que tal população é
alvo. Segundo o órgão responsável pelo empreendimento, a dificuldade em reunir dados sobre esse tipo de violência
ocorre porque ainda não havia, naquele momento, lei específica para punir casos de LGBTfobia.2
Nessa conjuntura, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro foi pressionado por grupos do movimento
LGBTQIA+ para que medidas urgentes fossem tomadas em resposta aos ataques crescentes de que pessoas
LGBTQIA+ são vítimas. Então, em junho de 2019, o STF decidiu dar à homofobia e à transfobia o mesmo tratamento
penal do racismo. Essa decisão ocorreu em virtude de o STF considerar que o Congresso Nacional (Senado e Câmara
dos Deputados) negligenciou, durante anos, a criação de lei específica à repressão penal de atos LGBTfóbicos.3
A decisão do STF suscitou séries de reações, favoráveis e contrárias, tanto na política quanto em outras esferas
da sociedade. A mídia noticiosa brasileira deu grande destaque ao evento social, trazendo em sua recontextualização
elementos particulares (atores, eventos, textos etc.) para (re)construir discursivamente tanto o acontecimento quanto
seu (possível) desdobramento. É, então, por meio de seus aspectos discursivos que nós analisamos a criminalização
da homofobia e da transfobia no Brasil.
Tomamos um recorte de dados da pesquisa Facetas discursivas em torno da criminalização da homofobia e
da transfobia (TAVARES, 2019), que é parte do projeto mais amplo Relações de poder: identidades, territórios e
resistência, levado a cabo na Faculdade de Ciências da Linguagem da Universidade Federal do Pará (código PRO3407-
2019). Tal recorte é composto por uma cadeia de eventos discursivos publicada pelo portal de notícias O Antagonista
em relação à decisão do STF em criminalizar a homofobia e a transfobia. Por meio de análise discursiva textualmente
orientada, tentamos responder a como se dá a representação de atores e eventos nos textos, quais discursos são materializados nos textos e
quais efeitos causais têm os textos na relação com outros componentes ontológicos do mundo.
Este artigo está organizado em três seções. Na primeira, retomamos os pressupostos teóricos ensejados em
Estudos Críticos de Discurso, notadamente os conceitos de discursos, textos e ideologia. Em seguida, na seção dois,
apresentamos o enquadre metodológico da pesquisa, bem como mostramos os procedimentos adotados na análise
textual. Por fim, na terceira seção, apresentamos a análise dos textos selecionados.
1. PRESSUPOSTOS ONTO-EPISTEMOLÓGICOS SOBRE SOCIEDADE E SEMIOSE
Nesta seção, apresentamos os pressupostos ontológicos e epistemológicos que guiaram nossa investigação.
Primeiro, começamos dizendo do caráter comprometido e engajado dos estudos críticos do discurso, que se coaduna
com os propósitos sociais que motivaram a pesquisa. Em seguida, na subseção 1.2, mostramos como discursos
constroem, ao mesmo tempo, conhecimentos subjetivos e coletivos. Depois, na última subseção, discutimos o papel
da semiose, em especial dos textos, na sustentação do abuso de poder.
1.1 Estudos críticos do discurso como prática comprometida e engajada
A principal característica que diferencia os estudos críticos do discurso (ECD) de outras abordagens é sua
concentração no modo como a semiose atua em problemas sociais, seja para perpetuá-los ou resistir a eles. Isso é
possível porque compreendemos que a semiose é parte irredutível da sociedade, ambas se constituem mutuamente,
de modo que a existência de uma implica, necessariamente, a existência da outra (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH,
1999). Essa indissociabilidade entre questões sociais e questões discursivas desestabiliza a noção de língua/linguagem
como um objeto autônomo. Então, com essa visão ontológica do mundo, podemos compreender a relação entre
mudanças sociais contemporâneas, problemas sociais e práticas emancipatórias, por meio da crítica explanatória com
base na semiose.
Os problemas sociais se mantêm historicamente porque se sustentam em estruturas sociais, que são condições
de longo prazo para a vida em sociedade, reiterando-se em práticas e eventos. Segundo Resende (2019a, p. 34),
as estruturas sociais são altamente abstratas e penetram todas as práticas e eventos sociais em diferentes graus e
2. Nomenclatura aprovada pela Plenária Final da 3ª Conferência Nacional LGBT, ocorrida em abril de 2016 em Brasília/DF, para expressar as
violências perpetradas contra a população LGBT (PEREIRA, 2017).
3. A tese aprovada encontra-se em anexo.
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movimentos específicos, ou seja, “as condições de possibilidade de atuação de pessoas em eventos, realizando
diferentes práticas, sofrem o impacto estruturante de raça, etnia, classe, gênero, sexualidade”. No entanto, sua
permanência não é trans-histórica, pois as pressões por mudança alteram, mesmo que a longo prazo, o caráter das
estruturas – as manifestações de ativismos LGBTQIA+ pelo Brasil fizeram com que o STF tipificasse a homofobia
e a transfobia como crime, decisão que tem alterado gradativamente eventos, que, por sua vez, alteram práticas
(relações, posições etc.), e essas alteram as estruturas (de gênero e de sexualidade, por exemplo).
O foco na melhoria das condições de vida para todos os seres, dado o ímpeto crítico, implica tomarmos
uma posição holística sobre a organização social. Não nos concentramos exclusivamente nas estruturas sociais, cujo
resultado seria a crença na permanência do estado de coisas, nem na agência social, como se a ação fosse livre das
pressões estruturais. Nossa atenção está nas práticas sociais, maneiras habituais de ação que medeiam constrangimentos
e possibilidades informados pelas estruturas, em combinação com a criatividade da ação humana em eventos
(FAIRCLOUGH; FAIRCLOUGH, 2012). Para Resende (2017a), as práticas sociais são compostas por espaços e
tempos, relações e posições sociais, materiais e ordens de discurso. Os momentos das práticas são elementos em
potência, uma organização esperada dada a sua repetição no tempo, mas nem por isso fechada à alteração.
Assim como práticas sociais não acontecem sem corpos (GOMES, 2020), também não acontecem sem
linguagem, pois boa parte de nossa ação no mundo se dá pelas vias discursivas (RESENDE, 2017a). No entanto, o
agir pela linguagem não é completamente livre, existe uma pré-determinação de componentes semióticos em cada
prática social. A esse elemento chamamos de ordens de discurso, um entre os momentos das práticas sociais, ou seja, não
podemos olhá-las como elementos isolados, mas sim como ‘parte de’ um todo. Ordens de discurso pertencem a um
ecossistema em que todo momento depende dos outros para seu funcionamento. Elas internalizam traços de seus
pares, ao mesmo tempo em que suas características são internalizadas por eles (VIEIRA; RESENDE, 2016). É dizer,
então, que podemos analisar a internalização das relações sociais nas ordens de discurso, mas tendo em mente que as
primeiras não se limitam às últimas, da mesma forma que analisar a internalização das ordens de discurso nas posições
sociais não esgota o potencial semiótico subjacente.
Temos entendido que ordens de discurso arranjam a variação semiótica por meio de gêneros-suportes e
discursos-estilos, seus momentos internos (ACOSTA; RESENDE, 2014; RESENDE, 2017a; TAVARES; RESENDE,
2021). Tais momentos efetivam os modos como as ordens de discurso trabalham nas práticas, portanto, gêneros-
suportes e discursos-estilos são os modos discursivos de ação e representação/ identificação. Segundo Fairclough
(2003, p. 24), ordens de discurso são “categorias não puramente linguísticas, mas que fazem o corte através da
divisão entre linguagem e ‘não-linguagem’. Nesse sentido, ordens de discurso e seus momentos (gêneros-suportes,
discursos-estilos) não podem ser confundidos com verbos, nomes, orações, embora se realizem por meio deles, pois
a sobredeterminação por muitos processos sociais, em razão da relação dialética com eles, torna o limite demasiado
tênue.
1.2 Discursos e a construção de conhecimentos e crenças
Conforme Fairclough, Jessop e Sayer (2010, p. 213), discursos são maneiras posicionadas de representar
aspectos da realidade, de “representar outras práticas sociais bem como o mundo material, e representar reflexivamente
essa prática social, a partir de posições específicas nas práticas sociais”. O mundo social tem uma existência que
independe de nosso conhecimento sobre ela, por exemplo, homofobia e transfobia existem mesmo que alguém
não as perceba ou as negue. Contudo, ele não é um elemento dado e acabado. Nós experienciamos o mundo social
subjetivamente a partir das posições que nele ocupamos, ou seja, a partir das relações que estabelecemos com as
pessoas, de nossa participação em eventos e do que as pessoas nos contam sobre como é o mundo etc. Então, ele
pode ser alterado a partir do conhecimento e das experiências que temos (TAVARES; RESENDE, 2021).
Discursos não devem ser tomados como simples reflexos da realidade, eles são representações constitutivas,
ajudam a construir relações sociais e a realidade social (FAIRCLOUGH, 2016; VAN DIJK, 2014). Eles contribuem
para a construção de conhecimento e crença, pois a maneira como falamos sobre as coisas tem a ver com a nossa
compreensão sobre elas. O mesmo é verdade quando ouvimos outras pessoas, já que os discursos que elas mobilizam
podem influenciar a maneira como nós percebemos e compreendemos o mundo, bem como agimos nele. Essa é a
importante dimensão cognitiva dos discursos de que nos fala van Dijk, por meio do conceito de modelos mentais:
Artigos Tavares & Sousa
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[...] modelos mentais estão envolvidos na geração de inferências derivadas do conhecimento geral, por exemplo, como base para as
coerências local e global do discurso. Em outras palavras, os modelos mentais, por um lado, precisam de conhecimento geral para sua
construção, e o conhecimento geral pode, por sua vez, ser produzido pela generalização de modelos de situação. Na verdade, a maior
parte do conhecimento geral que temos sobre o mundo, além de nossas experiências diárias, como sobre catástrofes naturais, guerras,
conflitos sociais, países e pessoas famosas, é derivado da generalização e abstração de modelos mentais de instâncias específicas de
discurso público (principalmente da mídia) (VAN DIJK, 2014, p. 128).
Ao construírem sistemas de conhecimento e crença, discursos ajudam regular práticas, tendo em vista que
as representações dizem respeito ao conhecimento, e por meio dele, o controle sobre as coisas (FAIRCLOUGH,
2003). Isso aponta que discursos podem ser usados para fins ligados à dominação; atores sociais podem mobilizar
discursos para colonizar valores, atitudes, relações sociais, atividades econômicas, instituições etc. É claro que esse
movimento não é pacífico, pois atores sociais e discursos diferentes estão sempre em disputa. Na pesquisa em tela,
por exemplo, de um lado, há ativismos LGBTQIA+ mobilizando discursos contra a LGBTfobia, argumentando de
sua existência, ao passo que, de outro lado, há discursos que camuflam ou negam tal violência, como se ela não fosse
importante ou não existisse.
1.3 Textos como armas em lutas de/ pelo poder
Entendemos os textos como a instanciação do potencial de significação da semiose e de ordens de discurso,
em combinação com a agência humana dos atores sociais que os produzem. É a linguagem desempenhando funções
em eventos sociais, a realização de tal potência que podemos acessar empiricamente. Noutras palavras, enquanto
sistemas semióticos e ordens de discurso (discursos-estilos e gêneros-suportes) são potenciais abstratos, os textos
são a sua materialização, o material que pode ser captado por nossa experiência (que é sempre parcial e subjetiva,
vale destacar). Theo van Leeuwen (2008, p. 6) explica que discursos são cognições sociais que servem como recursos
para representar práticas sociais em textos, essa característica mostra a possibilidade de “reconstruir discursos dos
textos que os realizam”.
Se é válido pensar que discursos são modos posicionados de representar o mundo e que eles se materializam
em textos, então podemos inferir que as escolhas lexicais e gramaticais refletirão os discursos aos quais as pessoas
se filiam quando produzem um texto. Sentidos e formas de textos têm um porquê, eles são escolhas individual e
socialmente motivadas, embora nem sempre essas escolhas sejam tomadas conscientemente. Também a articulação
interna entre forma e sentido não é fruto do acaso, escolhemos, simultaneamente, os sentidos que queremos colocar
em funcionamento e as formas que achamos adequadas. Em termos propriamente linguísticos, acreditamos que
semântica e gramática são inseparáveis, pois embora haja mais de uma opção na léxico-gramática (estrato do fraseado)
para realizar a semântica (estrato do significado), “uma distinção no sistema léxico-gramatical efetivamente expressa
uma distinção no sistema semântico” (HALLIDAY, 2001, p. 62).
As escolhas que mobilizamos em textos podem fazê-los operar como armas em lutas de/ pelo poder. Uma
dimensão importante dos (sentidos de) textos é o seu potencial para reiterar ideologias. Tomamos aqui o conceito
de ideologia proposto por Thompson (2011, p. 76), para quem a análise da ideologia está interessada nas “maneiras
como o sentido é mobilizado, no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que ocupam posições
de poder”, ou melhor, nas “maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”.
Quando sentidos ideológicos são exaustivamente repetidos, em diversas instituições e práticas hegemônicas, ao
longo de tempos e espaços, eles passam a ser cristalizados, ganhando, assim, um caráter de naturalidade, que ajuda a
sustentar grupos particulares, geralmente homens cis ricos brancos e heterossexuais.
Assim, é possível afirmar que textos têm investimento ideológico como facetas em dinâmicas de poder,
pois estas sempre envolvem disputas sobre qual/ quais serão os modos particulares de representação (discursos)
universalmente válidos, aqueles que são não uma versão de realidade, mas a realidade. A força agentiva e constitutiva
está nos efeitos causais que os textos possuem, eles podem causar mudanças no mundo, seja em seus aspectos internos
– nós podemos mudar nossos comportamentos por meio da experiência com textos – ou externos – textos podem
modificar a organização material do mundo (FAIRCLOUGH, 2003). Dessa feita, é sobre esses efeitos causais dos
textos que nossas análises repousam, efeitos e sentidos que ajudam a manter os problemas sociais que investigamos.
Como diz Resende (2017b, p. 63), a análise em estudos críticos do discurso é eficaz somente se “possibilita ao/ à
analista explorar a materialização discursiva de problemas sociais, em termos dos efeitos dos aspectos discursivos em
práticas sociais contextualizadas e vice-versa, e, assim, realizar a crítica social com base no discurso”.
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2. DESENHO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO
Este trabalho é recorte da pesquisa Facetas discursivas em torno da criminalização da homofobia e da
transfobia (TAVARES, 2019), que partiu de nosso interesse pessoal em saber como a mídia jornalística representou a
criminalização da homofobia e da transfobia. Em 2019, ano em que a criminalização foi aprovada pelo STF, realizamos
uma investigação qualitativa interpretativista que utilizou a coleta documental como método de coleta de dados,
textos verbais no modo escrito publicados pelo portal O Antagonista.4 A coleta foi realizada em dois momentos: i)
no Google,5 utilizamos o descritor “criminalização da homofobia”. Como esperado, o resultado da busca contou com
milhares de conteúdos. Um deles chamou nossa atenção, a matéria “Pode falar que é pecado”, veiculada no site O
Antagonista. Ao lermos o texto, notamos escolhas lexicais que avaliavam negativamente a ação do Supremo, o que
levou ao segundo passo da coleta. ii) Utilizamos o mesmo descritor (criminalização da homofobia), só que dessa vez
no campo de busca do próprio sítio O Antagonista. O resultado foi a existência de dez conteúdos, publicados entre os
dias 13 e 16 de junho de 2019.
Dentre eles, verificamos que três traziam, ou em seus títulos ou no próprio corpo, o tema religião como eixo
norteador. Os três textos selecionados articulam juntos a decisão de criminalizar a homofobia e o provável incômodo
que isto desperta/despertaria no âmbito da religião, sobretudo de matriz judaico-cristã. Consideramos, nos termos
de Margarete Jäger (2017, p. 121), que os dois campos semânticos (criminalização e religião) são feixes discursivos, ou
seja, “desenvolvimentos de discurso tematicamente homogêneos”. Esse foi um ponto demasiado importante para a
seleção do corpus principal da pesquisa, uma vez que um dos motivos para que o Congresso Nacional brasileiro não
vote um projeto de lei que criminalize a homofobia e a transfobia é justamente o discurso da homossexualidade e
transexualidade como pecado, sustentado pela Igreja e por seus seguidores, os quais têm cada vez mais assumido
lugares políticos estratégicos para barrar o avanço das pautas de diversidade sexual e de gênero.
Assim, a seleção dos textos que compõem o corpus principal da pesquisa se baseou em dois recortes, um
temporal e um temático. Decidimos partir do dia 13 de junho de 2019, data em que o STF decidiu por criminalizar
a homofobia e transfobia no Brasil, até 16 de junho de 2019, data em que o jornal publicou a última matéria sobre o
evento (verificado na época em que a coleta foi realizada, novembro de 2019). Nesse intervalo temporal, ocorreu o
ápice do assunto, período em que a imprensa mais repercutiu o evento supramencionado, recontextualizando-o de
diversas formas. Por meio da figura abaixo, apresentamos os três eixos onto-epistemológicos centrais na pesquisa e
sua realização em cadeias de eventos e textos:
Figura. Cadeias de eventos e textos
Fonte: Tavares (2019, p. 13)
4. O Antagonista é um jornal online, elaborado por um ex-redator-chefe e um ex-colunista da Veja. Mais detalhes em seu sítio oantagonista.com.
5. Ferramenta de buscas na internet. Os endereços eletrônicos de acesso às suas plataformas digitais brasileira e estadunidense são,
respectivamente, google.com.br e google.com.
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Primeiramente, há o tempo cronológico como eixo abstrato superior. Em seguida, no nível das realizações,
há o eixo dos eventos sociais realizados. No recorte, ocorrem temporalmente primeiro a decisão do STF de criminalizar
a homofobia e a transfobia, seguido de um café com jornalistas do qual o presidente Jair Bolsonaro participou. Finalmente, também no
nível do realizado, existem três instâncias discursivas, diferentemente localizadas no tempo. Duas delas ocorreram
em 14 de junho de 2019, um dia após o evento de decisão do STF. A primeira, cujo título é Bolsonaro: Ministro
evangélico no STF sentaria em cima da ação contra homofobia, é resultado do café com os jornalistas, portanto, é produto e
recontextualização do evento social realizado. A segunda, intitulada Pode falar que é pecado, retoma o evento iniciado
pelo STF no dia 13 de junho de 2019, figurando não como parte de seu desenvolvimento, mas como reflexão sobre
ele. Por fim, o texto Criminalização da homofobia põe em alerta pastores e padres que recusam casar gays, cuja data de publicação é
16 de junho de 2019, retoma o texto anterior, relacionando-se intertextualmente com ele. Portanto, nosso material
empírico de análise são os textos supramencionados.
2.1 Procedimentos analíticos
Como já dissemos em outro lugar, os ECD não constituem um método específico de análise, portanto, cada
pesquisadora/pesquisador precisa se engajar na reflexão sobre as maneiras de coletar/gerar e analisar seus dados
(TAVARES; RESENDE, 2021). Seguimos o que propõe Fairclough (2010): a análise de discurso crítica6 não reduz
à análise de textos, sendo necessário abordar o objeto de pesquisa de modo transdisciplinar, operacionalizando
conceitos e categorias de outras disciplinas e áreas do conhecimento. Também não é apenas comentário sobre os
textos, a análise textual sistemática é imprescindível. Nossa análise, então, combina os conceitos sociais de abjeção
(BUTLER, 2018), articulação (LACLAU; MOUFFE, 1987) e ideologia (THOMPSON, 2011), com a linguagem de
descrição do sistema de transitividade, desenvolvida em Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 2014).
Segundo Halliday e Matthiessen (1999), nossa experiência pode ser representada em graus de complexidade
na linguagem: prototipicamente, sequências de eventos se realizam em complexos oracionais, figuras se realizam
em orações, e elementos se realizam em grupos. O sistema de transitividade é o responsável pela organização da
representação de nossa experiência do mundo no nível da oração, ele organiza lexicogramaticalmente as figuras do
acontecer, do fazer, do sentir, do dizer, do ser e do ter. Cada um desses tipos de figuras consiste de um processo, que
se “desdobra através do tempo”, de participantes, “sendo diretamente envolvidos nos processos de alguma maneira” e,
em alguns casos, podem haver circunstâncias, que indicam “tempo, espaço, causa, maneira” etc. (HALLIDAY, 2014, p.
220). Semanticamente, os processos correspondem a acontecimentos, os participantes dizem respeito a entidades,
e as circunstâncias se referem a condicionamentos e restrições, por isso são realizados lexicalmente pelos grupos
verbais, grupos nominais, e grupos adverbiais e preposicionais, respectivamente.
No sistema de transitividade, os processos são o ponto de partida das descrições, pois “são os elementos
responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, exprimir ideias e sentimentos, construir o dizer
e o existir” (CUNHA; SOUZA, 2011, p. 68). Eles podem ser de seis tipos: materiais, relacionais, mentais,
comportamentais, existenciais e verbais. Os participantes, por sua vez, dependem da natureza dos processos, porque
cada processo fornece diferentes papéis a serem desempenhados. Nos Processos materiais, por exemplo, existem
Ator e Meta, que podem se comparar com o que, na gramática tradicional, chamamos de Sujeito e Objeto direto.
Por ser extensa a lista de participantes e circunstâncias, iremos apresentá-los na medida em que aparecem na análise
textual.
3. “MUITAS VEZES UM HOMOSSEXUAL JÁ PARTE DE UMA POSIÇÃO DE VÍTIMA”: AS RECONTEXTUALIZAÇÕES
DOS EVENTOS
Nesta seção, apresentamos a análise do corpus com base na linguagem de descrição léxico-gramatical do sistema
de transitividade. A análise segue a ordem cronológica dos textos, a saber: “Pode falar que é pecado”, “Bolsonaro:
Ministro evangélico no STF sentaria em cima da ação contra homofobia”, e “Criminalização da homofobia põe em
alerta pastores e padres que recusam casar gays”. Os excertos são apresentados segundo sua posição nos textos.
6. Em uma fala na Universidade de Brasília, Resende (2019b) propôs que o termo análise de discurso crítica seja usado para se referir ao
aspecto metodológico do campo, enquanto o termo estudos críticos do discurso diz respeito ao escopo mais amplo da perspectiva.
Discursos sobre a criminalização da homofobia e da transfobia ... Artigos
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3.1 Pode falar que é pecado7
O texto em foco desdobra-se a partir da decisão do STF em dar o mesmo tratamento penal do racismo à
homofobia e à transfobia. Apesar de não ser resultado direto do evento, uma vez que não foi produzido no evento, o
texto emerge de processo reflexivo sobre ele. Aí evidencia-se a relevância social do julgamento, fazendo com que O
Antagonista produzisse recontextualizações do que foi o evento, quais seus motivos, suas consequências etc.
É o que se verifica no exemplo 1, a seguir, em que a publicação do jornal retoma o evento realizado e sobre ele
constrói um provável ponto positivo para bancada evangélica, no que diz respeito à criminalização da homofobia e
transfobia, uma saída que pode acalmar aqueles religiosos que se sentiram incomodados com a resolução:
(1) O julgamento de ontem do Supremo que criminalizou a homofobia fez uma ressalva que pode tranquilizar a
bancada evangélica
O julgamento [...] fez uma ressalva
Ator Processo material criativo Meta
[que] pode tranquilizar a bancada evangélica
Processo mental emotivo Experienciador
No excerto, a atribuição de responsabilidade não é conferida aos atores sociais diretamente envolvidos no
evento (as ministras e os ministros do STF), mas sim ao próprio evento social, o ‘O julgamento de ontem do Supremo
que criminalizou a homofobia’. Ao exercer o papel de Ator, o ‘julgamento’ passa a ser uma “fonte de energia”
(HALLIDAY, 2014), tem o poder agentivo de ‘fazer um ressalva’, entidade que recebe essa energia (Meta).
Há, também, uma oração introduzida pelo ‘que’, que delimita o sentido de ‘ressalva’. Ela sofre modalização
pelo verbo modal ‘pode’, um recurso interpessoal que confere um grau de probabilidade ao Processo mental emotivo
experienciado por ‘a bancada evangélica’. Os processos mentais, segundo Fuzer e Cabral (2014, p. 57), representam
nossa experiência interna, e os processos mentais emotivos, especificamente, “expressam graus de sentimento e
afeição”. Então, a escolha do item ‘tranquilizar’ faz despontar um significado que põe em destaque o sentimento
interno da bancada evangélica, como se esta estivesse em estado de aflição com o resultado geral do julgamento e a
observação da corte a pusesse em alívio.
O âmago é a preocupação da bancada evangélica em virtude das dificuldades que ela eventualmente pode
enfrentar a partir da resposta do STF. Um possível efeito operado por essas escolhas léxico-gramaticais é o
encobrimento dos benefícios que a atribuição penal da homofobia e da transfobia pode trazer às pessoas LGBTQIA+.
Isso implica o apagamento das violências físicas e simbólicas sofridas por lésbicas, gays, travestis, transexuais, queer e
outras pessoas que não se encaixam nas identidades sexuais e de gênero hegemônicas. Nessa lógica, então, essas vidas
(e as violências de que elas são vítimas) são enquadradas como desimportantes, em relação ao facultativo desconforto
que outros grupos alegariam sentir.
Em (2), há uma explicação de como religiosos poderiam agir frente à decisão do STF e um condicionamento
quanto a sua relação com a comunidade LGBTQIA+:
(2) Trocando em miúdos, eles poderão pregar, no templo ou na rua, que a homossexualidade é pecado. Só não
poderão tornar um inferno a vida de um gay, lésbica ou transexual
7. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/pode-falar-que-e-pecado. Acesso em: 4 nov. 2019.
Artigos Tavares & Sousa
426 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022
eles poderão pregar no templo ou na rua que a homossexualidade é
pecado
Dizente Processo verbal Circunstância de localização
(lugar)
Relato
não poderão
tornar
um inferno a vida de um gay, lésbica ou
transsexual
Processo material
transformativo
Atributo Meta
A primeira oração do fragmento acima tem fiéis e/ou sacerdotes retomados anaforicamente pelo grupo nominal
‘eles’, que desempenha o papel de Dizente do Processo verbal ‘pregar’. O processo é antecedido pelo verbo modal
‘poderão’, que tanto modaliza a oração quanto estabelece uma estrutura hipotética, a partir do tempo verbal no
futuro do presente do indicativo. A Circunstância de localização dá conta de que a ação poderá (e normalmente
é) ser realizada em todos os locais públicos e privados (desde que haja permissão para este último). Representa
positivamente os efeitos da ação, pois os padres, pastores e religiosos em geral, poderão continuar a repetir o discurso
da homossexualidade como pecado.
Embora pareça haver uma separação entre a prática religiosa e as demais práticas sociais, nós entendemos
a organização do mundo se dá entre redes de práticas sociais relacionadas. O discurso da homossexualidade
como pecado, ligado à ordem de discurso e à prática social religiosas, penetrou (e continua a penetrar) diversos
outros modos de organização das sociedades moderno-coloniais. Sua reiteração é tão eficaz que mantém o eixo
da cisheteronormatividade, em que homossexuais e transexuais são considerados menos humanos, por isso devem
ter menos direitos. O discurso religioso sobre a homossexualidade é um dos que sustenta a homofobia como eixo
estruturante. É o que verificamos, por exemplo, em comentários sobre mortes de homossexuais em portais de notícias
(TAVARES, 2020). Para condenar a homossexualidade, recorre-se ao âmbito religioso, tomando-o como o regulador
de pessoas e relações. É dizer que a violência que sofrem homossexuais é licenciada porque os sujeitos que a praticam
estão infringindo as leis de deus (que se mesclam com as leis naturais). Dessa forma, pregar ‘que a homossexualidade
é pecado’ perpetua a ação material das violências homofóbicas e vice-versa.
Entre os dois períodos existe uma relação adversativa que impõe, semanticamente, restrições às atitudes
verbais dos fiéis e/ou sacerdotes. Segundo o texto, não lhes é permitido ‘fazer um inferno da vida de um gay, lésbica
ou transsexual’. Dessa feita, no nível lexicogramatical, essa é uma oração material, em que fiéis e/ou sacerdotes são o
Ator do Processo material ‘fazer’. O verbo modal ‘poderão’ tem polaridade negativa, marcada pelo ‘não’, bem como
modaliza a oração e opera construção hipotética. A Meta, entidade impactada pela ação do Ator (sacerdotes e/ou
religiosos), é a vida de pessoas LGBTQIA+, qualificada pelo Atributo ‘inferno’.
3.2 Bolsonaro: Ministro evangélico no STF sentaria em cima da ação contra homofobia8
O texto “Bolsonaro: Ministro evangélico no STF sentaria em cima da ação contra homofobia” é uma
recontextualização do evento em que o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, se reuniu com jornalistas em um
café da manhã, na data 14/06/2019. Entre os assuntos que foram desenvolvidos, a matéria concede total atenção à fala
do presidente em relação ao STF tornar crime a homofobia e a transfobia. Nesse sentido, o café da manhã é apenas
o pano de fundo da notícia e o centro é a resposta do presidente ao julgamento, como vemos no excerto a seguir:
(3) No café da manhã com jornalistas, Jair Bolsonaro citou a decisão de ontem do STF, que criminalizou a
homofobia, para justificar, novamente, a nomeação de um ministro evangélico.
8. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/bolsonaro-ministro-evangelico-no-stf-sentaria-em-cima-da-acao-contra-homofobia.
Acesso em: 4 nov. 2019.
Discursos sobre a criminalização da homofobia e da transfobia ... Artigos
Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022 427
No café da manhã com
jornalistas
Jair Bolsonaro citou a decisão de ontem
do STF
para justificar [...]
Circunstância de localização Dizente Processo
verbal
Verbiagem Circunstância de
causa (finalidade)
A Circunstância de localização realizada pelo grupo preposicional ‘No café da manhã com jornalistas’ faz
referência ao tempo-espaço em que a ação se desenrola. Ela recontextualiza o evento em nível intermediário de
especificação, pois nos informa apenas a presença de jornalistas, representados genericamente, e do presidente,
quando sabemos que eventos oficiais ocorrem, na maioria das vezes, com a presença de vários atores sociais do
Governo.
A voz do presidente é introduzida no texto por meio de citação indireta, recurso intertextual muito recorrente
em textos que alçam o gênero notícia, pois permite às/aos jornalistas atribuírem responsabilidade às suas fontes e
trazer suas vozes em uma cadeia dialógica (FAIRCLOUGH, 1995). O presidente é o Dizente do Processo verbal
‘citou’, cuja verbiagem é ‘a decisão de ontem do STF’. O conteúdo do que foi dito por ele é a recontextualização do
evento social aqui em foco, seu dizer nasce como resposta à atitude das/os ministras/os do Supremo.
Ademais, o grupo preposicional ‘para justificar, novamente, a nomeação de um ministro evangélico’ funciona
como Circunstância de causa, especificamente de finalidade, pois indica o propósito por trás da citação que o
presidente realiza. Como nos lembra Martin (2009), nós sempre usamos a linguagem para alcançar objetivos sociais,
por isso, quando recontextualiza a decisão do STF, o presidente o faz com a intenção de justificar a presença de um
evangélico no rol de ministras e ministros da Suprema Corte.
Como em (3), no exemplo (4), abaixo, temos que o objetivo de inserir o ator desejado por Bolsonaro seria
claramente impedir o avanço nas empreitadas em direção ao direito à liberdade de pessoas LGBTQIA+:
(4) Segundo o relato de Delis Ortiz, na TV Globo, o presidente disse que ele pediria vista e sentaria em
cima do processo para impedir a decisão, que considerou equivocada.
Segundo o relato de
Delis Ortiz
na TV Globo o presidente disse que ele pediria
vista [...]
Circunstância de ângulo
(fonte)
Circunstância de
localização (lugar)
Dizente Processo
verbal
Relato
No exemplo acima, a Circunstância de ângulo (fonte), geralmente relacionada ao Dizente dos processos
verbais ou ao Experienciador dos processos mentais (HALLIDAY, 2014), mostra-nos que a fala do presidente é
trazida ao texto por meio da descrição da jornalista Delis Ortiz, ela é a fonte da informação. Na citação indireta de
Ortiz, o grupo nominal ‘o presidente’ exerce a função de Dizente do Processo verbal ‘disse’. O Relato, conteúdo do
que foi dito, é realizado pela oração ‘que ele pediria vista e sentaria em cima do processo para impedir a decisão, que
considerou equivocada’.
Ao dizer que esse ministro ‘pediria vista’, o presidente manifesta seu interesse na não aprovação da criminalização
da homofobia e da transfobia. Isso porque, no vocabulário jurídico, ‘pedir vista’ é um mecanismo que possibilita às
ministras e aos ministros retirar processos em julgamento na Suprema Corte. Muitas vezes, esse recurso é utilizado
não só para que as interessadas e interessados disponham de mais tempo para analisar os casos, mas, também, para
que o desenrolar do julgamento seja mais lento, isto é, para que ele atrase ou seja impedido propositalmente. 9
As ações materiais contidas no Relato, ‘pediria vista’ e ‘sentaria em cima do processo’, não são aleatórias,
pelo contrário, são ações estrategicamente pensadas, com a finalidade específica de não dar prosseguimento ao
julgamento. É o que nos mostra a Circunstância de causa (finalidade) realizada pelo grupo preposicional ‘para impedir
a decisão’. Dessa forma, o Relato do presidente marca qual é o seu verdadeiro interesse em indicar um ministro
evangélico ao STF: impedir que casos de LGBTfobia sejam considerados crime.
No fim do Relato, fica ainda mais explícita a posição do presidente em relação à decisão do Supremo. Ele marca
sua posição em relação a decisão por meio do Epíteto ‘equivocada’, avaliando-a negativamente. É interessante notar
9. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/12/19/Como-funciona-um-pedido-de-vista-em-processos-do-Supremo.
Acesso em: 2 dez. 2019.
Artigos Tavares & Sousa
428 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022
que, como forma identificacional, o epíteto utilizado pelo presidente (pelo menos é o que nos relata a jornalista)
deixa entrever os valores com que ele se relaciona e como ele os projeta nos eventos e práticas (com pessoas, formas
de atividade, objetos etc.). Ao considerar ‘equivocada’ a decisão do STF que vem em resposta a séries de violências
que LGBTQIA+ são vítimas há anos, Bolsonaro texturiza sua identidade social, ele se diz narrando-se, como afirma
Orlandi (citado por RESENDE, 2017a, p. 32).
É importante destacar que a indicação do presidente seria por um homem e não por uma mulher, uma vez que
as referências estão no masculino, ‘ministro evangélico’ e sua retomada anafórica ‘ele’. A preferência de pôr homens
em cargos de poder não é algo novo para o presidente, uma vez que eles ocupam 20 dos 23 ministérios.10 É claro
que essa é a manutenção das estruturas sociais em que homens brancos de classe alta cis e heterossexuais gozam de
todo o privilégio que podem. Ao mesmo tempo em que relegam ao Outro – mulheres, negros/as, indígenas, pessoas
LGBTQIA+, pessoas em situação de extrema pobreza e em situação de rua, entre outros grupos (em um número
diverso de encruzilhadas11 possíveis) – o lugar da invisibilidade, da inexistência (AKOTIRENE, 2018).
Entendemos que, nas narrativas em (3) e (4), desenrola-se a tentativa de articular duas práticas sociais
particulares: a prática social cristã-evangélica e a prática social legal. Toda articulação, cujo conceito tomamos de
Laclau e Mouffe (1987), acarreta alteração na natureza dos elementos articulados. Dessa forma, articular a prática
social cristã-evangélica com a prática social legal causa extrema mudança, principalmente nesta última, haja vista que
ela se sustenta sobre a laicidade, item que perde sentido quando práticas religiosas são tomadas como universais que
devem ser seguidos por todos os indivíduos.
3.3 Criminalização da homofobia põe em alerta pastores e padres que recusam casar gays12
O texto intitulado “Criminalização da homofobia põe em alerta pastores e padres que recusam casar gays”
foi publicado em 16/06/2019, dois dias após a decisão do STF sobre a criminalização da homofobia e da transfobia.
Ele relaciona-se intertextualmente com o texto “Pode falar que é pecado” por meio de hiperlink. Como continuidade
da cadeia dialógica estabelecida pelos textos, este amplia a interseção entre os feixes discursivos religião e campo
jurídico, cujo centro é a decisão de punir ou não os casos de homofobia e de transfobia.
No excerto a seguir, é trazida à baila, novamente, a preocupação que alguns religiosos sentem por conta da
criminalização da homofobia e da transfobia:
(5) Apesar de isentar religiosos que pregam contra a prática homossexual, a decisão do Supremo de aplicar lei
antirracismo para penalizar a homofobia ainda preocupa pastores e padres que se recusam a celebrar casamentos
gays.
Apesar de isentar religiosos
[...]
a decisão do Supremo
[...]
preocupa pastores e padres [...]
Circunstância de contingência
(concessão)
Fenômeno Processo mental
cognitivo
Experienciador
O exemplo (5) é parte introdutória do texto, mais especificamente, seu primeiro parágrafo. Ele inicia com uma
Circunstância de contingência (concessão), lexicalizada pelo grupo adverbial ‘Apesar de isentar religiosos que pregam
contra a prática homossexual’, construindo uma “oração negada”, na medida em que expressa uma característica que
poderia ter levado a um resultado específico, mas não o fez (THOMPSON, 2014, p. 116).
O tipo de figura que ocorre aqui é do pensar, relaciona-se ao mundo interior dos sujeitos, à sua consciência. O
Processo mental cognitivo ‘preocupa’ é precedido pelo grupo adverbial ‘ainda’, que intensifica seu sentido. Podemos
considerar que, além de modificar processo, a utilização do grupo adverbial funciona textualmente como ligação
entre um evento discursivo passado e o evento discursivo atual. Nesse caso, ele conecta o presente texto com o texto
anterior ‘Pode falar que é pecado’, pois, assim como naquele, o cerne é a preocupação de religiosos com o julgamento
10. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/orgaos-do-governo. Acesso em: 15 jun. 2021.
11. Conceito proveniente da experiência epistemológica, política e religiosa, ligada à matriz afro-brasileira, que indica os entrecruzamentos de
eixos de opressão e privilégio (BUENO; ANJOS, 2021).
12. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/criminalizacao-da-homofobia-poe-em-alerta-pastores-e-padres-que-recusam-celebrar-
casamento-gay/. Acesso em: 4 nov. 2019.
Discursos sobre a criminalização da homofobia e da transfobia ... Artigos
Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022 429
da criminalização da homofobia e da transfobia. Daí o ‘ainda’ estar funcionando como uma conexão temporal entre
os eventos sociodiscursivos.
Por último, o Experienciador do processo, a entidade humana que sente o desdobrar da atividade cognitiva,
é operado pelo complexo nominal ‘pastores e padres que se recusam a celebrar casamentos gays’. Notemos que
o objeto da preocupação desses atores sociais é justamente a resposta do STF, lexicalizada pelo grupo nominal ‘a
decisão do Supremo de aplicar lei antirracismo para penalizar a homofobia’.
Em suma, mais uma vez é tematizado o descontentamento de religiosos no tocante à criminalização da
homofobia e da transfobia. Ao dizer que a decisão do STF preocupa padres e pastores, os sentidos do texto nos
direcionam a uma compreensão particular de realidade, em que o julgamento causa prejuízo a atores sociais que estão
apenas seguindo preceitos religiosos, a vontade de Deus. Assim sendo, não obstante o STF ter ressalvado que está
garantida a liberdade religiosa de qualquer denominação, seja em espaço público ou privado, alguns líderes religiosos
ainda se sentem ameaçados com a garantida de direitos à população LGBTQIA+.
Os exemplos (6), (7) e (8) abaixo são fragmentos das falas de um advogado em referência ao parecer do STF,
em entrevista ao O Antagonista:
(6) O advogado Thiago Rafael Vieira, especializado na defesa de igrejas e presidente do Instituto Brasileiro de Direito
e Religião, considera que o resultado do julgamento deixa os pastores e padres numa situação de insegurança
jurídica.
O advogado Thiago Rafael
Vieira
considera que o resultado do julgamento [...]
Experienciador Processo mental cognitivo Fenômeno
No excerto supracitado, o Experienciador do Processo mental cognitivo ‘considera’ é realizado pelo grupo
nominal ‘O advogado Thiago Rafael Vieira, especializado na defesa de igrejas e presidente do Instituto Brasileiro
de Direito e Religião’. O Fenômeno, por sua vez, realiza-se por meio da oração projetada. Nela, nota-se que Vieira
acredita que padres e pastores estão em situação insegurança jurídica por causa da decisão do STF. Nessa esteira, a
decisão jurídica tem agência, o poder de colocar em posição desconfortável esses religiosos.
É importante acentuar que, além da voz do jornalista que assina a matéria, opta-se pela voz de Thiago Vieira,
por meio de discurso indireto, no excerto acima, e discurso direto, nos seguintes. A voz de Vieira é articulada
particularmente em direção à construção de uma narrativa que intenta invalidar a ação do STF, serve como argumento
que reforça essa retórica. Isso se deve, em grande medida, à própria maneira como Thiago é representado no texto, a
relevância que é dada a ele funciona para ratificar que a decisão do Supremo é ruim. A representação desse ator se dá
de três modos: (i) funcionalização: por meio do nome ‘advogado’; (ii) nomeação: por meio do grupo nominal ‘Thiago
Rafael Vieira’; (iii) titulação: por meio do grupo nominal ‘presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião’.13
A despeito de religiosos terem a liberdade de manifestação de crença garantida pela tese aprovada no Supremo,
Vieira emprega uma retórica para justificar sua posição (de que a decisão deixa padres e pastores em situação de
insegurança jurídica) baseada em identificações discursivas para homossexuais, como vê-se a seguir:
(7) Muitas vezes, um homossexual já parte de uma posição de vítima, ele já se sente pré-ofendido diante do dogma
do casamento entre homem e mulher.
Muitas vezes um homossexual já parte uma posição de vítima
Circunstância de exten-
são (frequência)
Portador Processo relacional
identificativo
Atributo
O excerto (7) inicia com o grupo adverbial ‘Muitas vezes’, materializando uma Circunstância de extensão
que denota a frequência do processo no tempo. O Processo que se estabelece é relacional, um tipo de oração em
13. Estamos baseando-nos no inventário sociossemântico da Representação de Atores Sociais (VAN LEEUWEN, 2008).
Artigos Tavares & Sousa
430 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022
que uma entidade é relacionada a outra, dando àquela uma identidade ou característica particulares (HALLIDAY,
2014). Então, o Portador é realizado pelo grupo nominal ‘um homossexual’, e ele recebe a identidade conferida pelo
Atributo ‘uma posição de vítima’. É interessante notar que, o centro do grupo nominal ‘uma posição de vítima’ é o
nome ‘posição’ e não ‘vítima’, e isso tem uma implicação significativa, pois a inserção do item ‘posição’ desvalida o
nome ‘vítima’. É dizer que o homossexual não é uma vítima, ele está em uma posição de vítima, lugar esse em que ele
mesmo se coloca, é uma situação ilusória criada por ele mesmo.
No próximo fragmento, o autor constrói um exemplo do que possivelmente ocorre quando um homossexual
se dirige à igreja. Segundo Thiago, um homossexual se sente tão ofendido com o dogma do casamento entre homem
e mulher, que vai à igreja consciente de que o padre/ pastor/ sacerdote se recusará a realizar seu casamento, para, em
seguida, denunciá-lo por crime de homofobia:
(8) Então, quando ele procura uma igreja, já vai com pedra na mão, esperando uma recusa.
quando ele procura
uma igreja
já vai com pedra na mão esperando uma recusa
Circunstância de
contingência (condição)
Processo relacional
circunstancial
atributivo
Atributo circunstancial
(acompanhamento)
Processo
mental
desiderati-vo
Fenômeno
No excerto (8), observamos uma Circunstância de contingência realizada pelo grupo adverbial ‘quando ele
procura uma igreja’, que delimita uma conjuntura específica, uma condição temporal e local para que o processo
ocorra. O grupo verbal ‘já vai’ realiza um Processo relacional circunstancial atributivo, porque fornece uma
característica a uma entidade por meio de um atributo circunstancial de acompanhamento. O Portador do Atributo
‘com pedra na mão’ é ‘um homossexual’, retomado anaforicamente do período anterior pelo pronome ‘ele’, presente
na circunstância da figura.
Outrossim, ‘um homossexual’, retomado pelo pronome ‘ele’, também é o Experienciador do processo mental
desiderativo ‘esperando’, completado pelo fenômeno ‘uma recusa’. Conforme Fuzer e Cabral (2014), Processos
mentais desiderativos são orações que exprimem desejo, vontade, interesse em algo. Nessa perspectiva, apesar de não
ser uma representação de evento real, mas sim um exemplo de algo provável, é trazido para o texto um sentimento
interno do participante, como se este desejasse ou almejasse que seu casamento fosse recusado pelo padre/ pastor.
Retomando a primeira oração (‘quando ele procura uma igreja, já vai com pedra na mão’), podemos notar que
há uma construção metafórica operada pelo atributo circunstancial ‘com pedra na mão’. Esse atributo representa uma
metáfora ontológica, em que o modo de (inter)agir do participante principal é reduzido a uma pessoa com uma pedra
na mão. A escolha por esse tipo de representação/identificação imputa ao homossexual uma identidade agressiva, ele
é visto como uma pessoa violenta que está pronta para atacar.
Em (6), (7) e (8), é possível observar que Thiago faz um alerta, quando considera que a decisão do STF
deixa os líderes em situação de insegurança jurídica, e uma previsão, quando afirma que gays irão acusar tais líderes
falsamente. Essas são duas maneiras como vemos os discursos e abusos de poder se relacionando, pois “as ações
futuras também podem ser influenciadas por descrições dos acontecimentos, ações ou situações futuras ou eventuais;
por exemplo, em previsões, planos, cenários, programas ou alertas, algumas vezes combinados com diferentes formas
de conselhos” (VAN DIJK, 2015, p. 52). Por isso não é à toa que Thiago é representado com um expert em Direito e
Religião, a base de poder que sustenta tal posição sociodiscursiva é o conhecimento especializado.
Podemos dizer, com base Thompson (2011), que essa representação pode servir a um modo de operação
da ideologia chamado de fragmentação (relações de dominação que são sustentadas por meio da segmentação dos
indivíduos que podem ser um desafio aos grupos dominantes), cuja estratégia pode ser o expurgo do outro. Conforme
o autor (2011, p. 87), “essa estratégia envolve a construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é
representado como mau, perigoso ou ameaçador e contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente
ou expurgá-lo”. Assim, o homossexual é aquele indivíduo que não aceita os preceitos religiosos do casamento entre
homem e mulher e age com violência. Agressivamente, ele carrega uma pedra na mão para atacar a qualquer um que
não concorde com ele.
Discursos sobre a criminalização da homofobia e da transfobia ... Artigos
Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022 431
CONCLUSÕES
A análise da cadeia de eventos discursivos publicada pelo jornal O Antagonista acerca da criminalização da
homofobia e da transfobia pelo STF demonstra que a decisão da instituição é representada como negativa. Sustentamos
essa afirmação com base na descrição dos padrões lexicogramaticais dos textos, que nos mostra como a construção
da experiência é instanciada pelos atores. A recorrência de Processos mentais tem particular importância aqui,
pois os atores sociais expressam sentimentos e pensamentos sobre a decisão do STF. Padres, pastores e sacerdotes
são afetados pela decisão do STF (os processos usados são tranquiliza, preocupa); o presidente Bolsonaro ‘considera’
equivocada a decisão; o advogado Thiago também ‘considera’ que o julgamento pode causar prejuízos aos líderes
religiosos. Por sua vez, pessoas LGBTQIA+, notadamente gays, têm agência gramatical apenas quando a figura é
negativa, quando, de forma hipotética, eles desejassem que seu pedido de casamento fosse rejeitado para, então,
acusar o líder religioso de cometer homofobia.
O discurso atualizado aqui é o do apagamento da LGBTfobia, pois, mesmo quando são as mais beneficiadas
pela decisão, as pessoas LGBTQIA+ – com suas vidas, seus interesses e as violências que sofrem – são apagadas.
O foco são sempre os possíveis descontentamentos que líderes religiosos sentem/sentiriam com o tratamento penal
dado à homofobia e à transfobia. O excerto de Butler (2018), utilizado como epígrafe deste trabalho, nos proporciona
meditar que os textos analisados refletem e materializam os enquadramentos pelos quais conseguimos perceber uma
vida como uma ‘vida’, que precisa de cuidado e proteção. É como se pessoas LGBTQIA+ não merecessem ter uma
vida plena, com seus direitos assegurados, pois não lhes cabe o papel de sujeitos. A violência se estende desde o
âmbito material até o campo simbólico: assim como são assassinadas e excluídas socialmente, vidas LGBTQIA+
também são ora excluídas ora relegadas a segundo plano no nível discursivo.
A partir disso é possível dizer que os textos têm sentidos ideológicos potenciais no modo como a compreensão
dos eventos é direcionada Ideológicos porque sustentam relações assimétricas de poder, reiteram a estrutura
LGBTfóbica que subjaz à nossa sociedade. Se acreditamos que os textos (e as representações e discursos particulares
que eles instanciam) têm efeitos nas maneiras como as pessoas percebem e constroem o mundo social, então, quando
as pessoas são expostas a sentidos que apagam a LGBTfobia, ou relegam-na a segundo plano, sem que haja o filtro da
leitura crítica, esses sentidos podem ser internalizados e naturalizados.
Muitas outras pesquisas já mostraram a maneira cruel como setores da mídia representam pessoas LGBTQIA+
em textos, como as de Lima (2019), Picchiai, Martinez e Azoubel (2020), sobre a representação de travestis em
jornais, e as pesquisas de Melo e Oliveira (2020) e Santos e Resende (2012), sobre homossexuais e imprensa brasileira
hegemônica. A essas vozes nos somamos para dizer da importância da leitura crítica dos textos midiáticos, em virtude
da grande circulação que têm. Também da necessidade de denunciar os portais e entidades que investem tempo e
dinheiro em violentar discursivamente a pessoas LGBTQIA+, como se não compreendessem que essa violência tem
potencial para se espalhar ao domínio físico-corporal-emocional.
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Artigos Tavares & Sousa
434 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.2): 419-434, mai./ago. 2022
ANEXO
Recebido: 25/6/2021
Aceito: 22/6/2022
Publicado: 14/7/2022