Available via license: CC BY-SA 4.0
Content may be subject to copyright.
ASPECTOS MORFOLÓGICOS DA LÍNGUA UMUTÍNA: A COMPOSIÇÃO
MORPHOLOGICAL
ASPECTS
OF
LANGUAGE
UMUTINA:
COMPOSITION
Mônica
Cruz
1
RESUMO: Este artigo trata de alguns aspectos morfológicos da língua indígena Umutína
referentes ao processo de formação de palavras denominado composição. O estudo faz parte
da pesquisa de doutorado intitulada: “Povo Umutína: a busca da identidade linguística e
cultural”, concluída em 2012, na Unicamp (Programa de Pós Graduação em Linguística /
Instituto de Estudos da Linguagem). O corpus de análise é composto por palavras
pertencentes ao vocabulário de Schmidt (1941), Schultz (1952) e também por palavras
coletadas na aldeia Umutína, em Barra do Bugres-MT, durante a pesquisa de campo. No
trabalho em questão, encontramos possíveis casos de composição por justaposição,
aglutinação e incorporação nominal. Os dados foram analisados com base nos estudos Lieber
e Štekauer (2005) e Aikhenvald (2007), entre outros.
Palavras-chave: língua Umutína, composição, morfologia, incorporação nominal
ABSTRACT: This article deals with some morphological aspects of the indigenous Umutina
language referring to the process of word formation called composition. The study is part of a
PhD research entitled: Umutína people: the search of linguistic and cultural identity,
completed in 2012, at Unicamp (Post Graduation Linguistics Program / Language Study
Institute). The corpus of analysis consists of words belonging to the vocabulary of Schmidt
(1941), Schultz (1952) and also by words Umutina collected in the village, in Barra do
Bugres-MT, during field research. In the referred work, we find cases of possible composition
by juxtaposition, assemblage and nominal incorporation. Data were analyzed based on studies
Štekauer and Lieber (2005) and Aikhenvald (2007), among others.
Keywords: Umutina language, composition, morphology, nominal incorporation
INTRODUÇÃO
Neste trabalho tratamos brevemente do processo de formação de palavras
denominado composição, por se observar bastante produtivo na língua Umutína. Esta língua é
da família Boróro e pertence ao tronco Macro-Jê. Ela já se encontra praticamente extinta e
1Professora de Língua Portuguesa do departamento de Letras da Unemat-Campus Universitário de Tangará da
Serra-MT. Doutora em Linguística pela Unicamp. E-mail
: monicacruz@ibest.com.br
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
103
conta com poucos ‘lembrantes’ que ainda guardam em suas memórias parte do léxico da
língua. São palavras referentes à fauna, à flora e a elementos do mundo cultural dos Umutína.
Para a descrição e análise do corpus,
recorremos aos estudos de Lieber e Štekauer
(2005) e Aikhenvald (2007), entre outros em busca de compreendermos melhor como se dá
esse processo de formação de palavras nas línguas naturais.
De acordo com a literatura especializada, o processo de composição caracteriza-se
como a criação de um novo item lexical, a partir da junção de duas ou mais raízes lexicais,
que pode ser classificado em dois tipos: a justaposição e a aglutinação. A justaposição
caracteriza-se por manter a autonomia fonética e fonológica na combinação de bases. Já no
processo de aglutinação, ocorrem alterações fonéticas nos elementos de suas bases. Os nomes
compostos por justaposição resultam da combinação de dois ou mais morfemas provindos da
mesma classe gramatical ou de classes diferentes, nem sempre relacionados semanticamente,
para construir um nome.
Entretanto, não basta apenas juntar bases lexicais para formar um novo composto,
é preciso observar alguns critérios linguísticos para distinguir os compostos dos sintagmas
comuns. Aikhenvald (op.cit.) aponta quatro: o critério fonológico, o morfológico, o
morfossintático e o critério semântico.
O critério fonológico basea-se na acentuação e em regras fonológicas; o critério
morfológico leva em conta se a palavra pode ou não receber flexão dentro da frase; o critério
sintático considera a função ou distribuição da palavra dentro de unidades linguísticas maiores
e, por último, o critério semântico que se relaciona à significação das palavras.
Como só ocorre nas línguas naturais, encontramos, nas listas de palavras de
Schmidt (1941) e Schultz (1952), os dois processos básicos de formação de palavras na língua
Umutína: a derivação e a composição, sendo esta última o foco de estudo deste trabalho.
Devido ao corpus de análise deste estudo ser formado apenas por palavras
isoladas, não é possível aplicar todos os critérios descritos por Aikhenvald (op.cit) para
analisar o processo de composição da língua Umutína. O ideal seria promover a análise desses
compostos dentro de um contexto de produção, levando-se em conta o uso da língua, mas
infelizmente, tudo isso já se perdeu. Diante disso, lançaremos mão somente do critério
semântico para a identificação dos possíveis compostos existentes na língua.
Estrutura dos possíveis compostos em Umutína
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
104
Substantivo + substantivo
1. [bɔj ˈ na o ˈ talo] – faísca
[bɔj ˈ na] + [o ˈ talo]
chuva + relâmpago
DM + DT
2. [baɾu ˈ paɾu oɾɛka ˈ tu] – ‘agulha’
[baɾu ˈ paɾu] + [oɾɛka ˈ tu]
limoeiro + ?
DM +?
3. [bao ˈ za] – ‘gema de ovo’
[ ˈ ba] + [o ˈ za]
ovo + buraco
DM + DT
4. [bio ˈ za] – “canal do ouvido”
[bi] +[o ˈ za]
orelha + buraco
DM + DT
5. [ manetɔkɔ ˈ pɔ aʒikuj ˈ ta] – ‘colar de dentes de onça’
[ ˈ mane] + [ɔkɔ ˈ pɔ] + [aʒikuj ˈ ta]
colar + dente + onça
DM + DT
6. [ ˈ palo tɔ ˈ ɾi] – ‘machado de pedra’
[ˈ palo] + [tɔ ˈ ɾi]
machado + pedra
DM + DT
7. [zo ˈ ɾu ku ˈ pi] – ‘lamparina’
[zo ˈ ɾu] + [ku ˈ pi]
fogo + lenha
DT + DM
8. [lakɔ ˈza] – ‘tutano’
[la ˈ ka] + [ɔ ˈ za]
osso + buraco
DM + DT
9. [buro ˈza] – ‘rastro’
[bu ˈ rɛ] + [o ˈ za]
pé + buraco
DM + DT
10. [bɔj ˈ kana] – ‘carrapato’
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
105
[ ˈ bɔj] + [iki ˈkana]
bexiga + boi
DT + DM
11. [otobiɾi ˈ ka] – ‘lábios’
[o ˈ to] + [biɾi ˈ ka]
bico + couro
DM + DT
Em (1), (2), (7) e (11) observa-se a junção de substantivo + substantivo em que
cada elemento base mantém a sua autonomia fonética, dos quais o primeiro é o determinado e
o segundo o determinante, formando um novo substantivo. Já em (3), (4), (5), (6) a
justaposição resultou em locuções sendo (3) e (4) possessivas e (5) e (6) adjetivas, com a
seguinte estrutura: núcleo (determinado) + elemento possuído (determinante).
Os elementos dos exemplos (8), (9) e (10) sofreram alteração fonética, portanto,
acreditamos que sejam possíveis casos de composição por aglutinação.
No exemplo (12), tem-se a união de um substantivo + verbo que resulta num novo
substantivo, dos quais o primeiro é o determinado e o segundo é o determinante.
Substantivo + verbo
12. [boj ˈ na amata ˈ ɾɛ] = ‘trovão’
[boj ˈ na] + [amata ' ɾɛ]
chuva + conversar, falar
DM + DT
As ocorrências (13), (14) e (15), cuja junção é de um substantivo + adjetivo,
resultam novos compostos, tais como:
Substantivo + adjetivo
13. [iki ˈkano kuɾi ˈ ka] – ‘bezerro’
[iki ˈ kano] + [ kuɾi ˈ ka]
boi + pequeno
DM + DT
14. [ odo’bo koʃipo’ɾɛ] - tempestade
[odo’bo] + [koʃipo’ɾɛ]
vento + grande
DM + DT
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
106
15. [jo ˈ ko mi ˈ ʃina] – ‘velho’
[jo ˈ ko] + [mi ˈ ʃina]
pai + velho
DM + DT
Em (16), a partir da junção de adjetivo + advérbio, formou-se um novo adjetivo,
cujos elementos ocupam, respectivamente, a posição de determinado e determinante. Em (17)
temos a junção de um substantivo + advérbio que resultou num adjetivo. O exemplo (18) traz
a junção de dois substantivos + um possível sufixo, resultando numa locução possessiva. Por
último, no exemplo (19) ocorre a junção de substantivo + advérbio + sufixo intensificador que
resultam em um novo substantivo.
Adjetivo + Advérbio
16. [hama kuʃipo ˈ ɾɛ] – ‘grávida’
[ha ˈ ma] + [kuʃipo ˈ ɾɛ]
gordo + muito
DM + DT
Substantivo + Advérbio
17. [u ˈ ki koʃipo ˈɾɛ] – ‘barrigudo’
[u ˈ ki] + [koʃipo ˈɾɛ]
barriga + muito
DM + DT
Substantivo + Substantivo + ? (sufixo)
18. [ibuɾɛno ˈ kwa] – ‘dedo do pé’
[ibu ˈ ɾɛ] + [ ˈ no] + [ ˈkwa]
pé + dedo + ? (sufixo)
DT + DM
Substantivo + advérbio + intensificador
19. [puɾu ˈ kwa bolotoʃi ˈ ʃi] – ‘café’
[puɾu ˈ kwa] + [boloto[ʃi ˈ ʃi]
água + escuro (preto) + intensificador
DM + DT
POSSÍVEIS CASOS DE INCORPORAÇÃO NOMINAL
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
107
Além dos possíveis casos de composição por justaposição e aglutinação
encontrados na língua Umutína, levantamos, também, alguns supostos casos de composição
denominados Incorporação Nominal.
Mithun (1984) define a incorporação nominal como um processo gramatical em
que um núcleo de um sintagma junta-se ou incorpora-se ao núcleo de outro sintagma, com
características bem próximas à sintaxe.
Abaixo apontamos alguns exemplos de incorporação nominal, em que se dá a
possível união de um substantivo e um verbo, resultando num composto verbal. Estes
substantivos incorporados não denotam objetos específicos, eles são não referenciais.
Nos exemplos (1), (3), (4), (7), (8), (9) e (10) os verbos resultantes dos compostos
são transitivos diretos. Já nos exemplos (2), (5) e (6), os verbos resultantes são intransitivos.
1. [ ɔkɔ’pɔ bo’haj] –‘morder’
okopó + bohai
(dente + morder)
Nome + Verbo
2. [aɾi’ti paki’ʃi] = ‘fugir’
ariti + pakixi
(correr + medo)
Verbo + Nome
3. [biɾi’ka ku’ɾi] = ‘coçar’
biriká + kuri
(pele + coçar)
Nome + Verbo
4. [iku ' pu otoka ' lɔ] = ‘rachar
ikupu + otokaló
(pau + rachar)
Nome + Verbo
5. [ena ' podo obolo ' tɔ] = rastejar
(enapodo + obolotó)
(seguir + rastro)
Verbo + Nome
6. [napolo ' ʃi] = respirar
napolo + aʃi
(nariz + espirrar)
Nome + Verbo
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
108
7. [aʃɔ ˈ bu] – ‘abraçar’
[a ˈ ʃɔ] + [ˈ bu]
braço + abraçar
Nome + Verbo
8. [biɾika ˈ ta] – ‘esfolar’
[biɾi ˈ ka] + [ ˈ ta]
pele + tirar
Nome + verbo
9. [botaka ˈ ta] – ‘escamar’
[bota ˈ ka] + [ ˈ ta]
escama + tirar
Nome + verbo
10. [otoɾu ˈ ta] – ‘cuspir’
[oto ˈ ɾu] + [ ˈ ta]
saliva + tirar
Nome + Verbo
As características das ocorrências acima apontam para supostos processos de
incorporação nominal, pois como atesta Mithun (1984), combinações desse tipo, ou seja, de
uma base nominal + uma base verbal dá origem a um novo verbo, fenômeno linguístico que,
possivelmente, ocorra na língua Umutína.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a finalização deste breve estudo pudemos apontar, em relação ao processo de
formação de palavras, possíveis casos de composição por justaposição, aglutinação e
Incorporação nominal, bastante produtivos na língua Umutína. A análise permitiu-nos
identificar vários compostos com a seguinte estrutura: substantivo + substantivo, substantivo
+ verbo, substantivo + advérbio, substantivo + adjetivo, entre outros. Na junção desses
elementos, dos quais o primeiro é o determinado e o segundo o determinante, obtivemos
como resultado novos substantivos, adjetivos e algumas locuções possessivas e adjetivas.
Também encontramos, no corpus,
outro suposto processo de composição
denominado Incorporação Nominal, cuja junção de seus elementos resulta em novos verbos
transitivos e intransitivos.
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
109
Vale ressaltar, mais uma vez, que embora não tenha sido possível utilizar todos
os critérios linguísticos para a análise dos compostos, devido ao estágio atual da língua,
ainda sim, acreditamos que esse estudo possa contribuir para pesquisas da área de línguas
indígenas e, especialmente, para o processo de revitalização da língua Umutína.
REFERÊNCIAS
AIKHENVALD, A. Y. Typological distinctions in word-formation. In: T. Shopen (ed.).
Language Typology and Syntactic Description. Volume III: Grammatical Categories and the
Lexicon. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
LADEFOGED, Peter. Ian, MADDIESON. The Sounds of the World’s Languages. Oxford:
Blackwell, 1996.
MAIA, M. Vocabulário Umutina.Boletim do Museu nacional do Índio. Documentação nº
10, Abril, 2003.
MITHUN, Marianne. The evolution of noun incorporation. Language
, 60: p.847-894,
1984.
__________. On the nature of noun incorporation. Language
, 62: p.32-37, 1986.
SCHMIDT, Max. 1941. Los Barbados os Umutinas em Mato Grosso. Revista de la
Sociedad Científica Del Paraguay, n.5, p. 1-51.
SCHULTZ, Harald. 1952. Vocabulário dos índios Umutina. Journal de la Société dês
Américanistes de Paris. Paris, v.41, p. 81- 137.
STEKAUER, Pavol. LIEBER, Rochelle.(eds).Handbook of Word-Formation. Dordrecht:
Springer, 2005.
Revista Moinhos, Tangará da Serra, v.1, n.1, 2012.
110