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Profundidades musicais

Authors:
  • Conservatório de Música C. Gulbenkian, Braga, Portugal

Abstract

O desejo de conhecer o novo é o que impele o avanço das ideias, e a criatividade é o empenho por encontrar soluções diferentes e originais. É um desejo que nunca se satisfaz porque sempre há algo de novo por descobrir, seja na música erudita mais recente como nas grandes obras do passado, assim como na aparente simplicidade da música tradicional. Se quando ouvimos uma música não descobrimos algo de novo, nesse instante começamos a aborrecê-la; e isso vale tanto para as que escutamos pela primeira vez como para aquelas que já nos acompanharam centos de vezes.
Profundidades musicais
Na última aula deste ano, um aluno
quis saber qual era o meu compositor
favorito, pergunta muito pertinente
no contexto de uma aula de música,
onde se discutem e analisam estilos,
técnicas e recursos compositivos,
mas, fora do debate prossional ou
intelectual, não passa de uma irri-
tante coscuvilhice. Já desde criança,
quando as pessoas descobriam que
eu estudava música, quase que inevi-
tavelmente surgia a mesma e imper-
tinente pergunta retórica, por vezes
sobre o compositor e outras, mais
enfadonhas, sobre a minha música
preferida. Independentemente do que
eu respondesse, o inquiridor sempre
conrmava os seus preconceitos, mas
com o tempo aprendi a dar respostas
personalizadas e adaptadas ao grau
de discernimento do interlocutor, pro-
curando deixá-lo a reetir sobre a uti-
lidade da sua própria pergunta.
Sei que os melómanos têm os seus
compositores favoritos, uma espécie
de Olimpo particular que delimita
as suas crenças musicais, e tudo o
que que de fora dessa peculiar se-
leção resulta-lhes perturbador; daí
que façam ouvidos surdos. É como
visitar o Museu do Louvre e só ver a
Gioconda, fechando os olhos a toda a
imensa riqueza artística que oferece
aquele espaço museológico. De um
modo geral, a música não existe na
formação cultural da imensa maioria
dos que estudam humanidades. Têm
uma cultura literária aprimorada e
até se interessam pela pintura, mes-
mo a mais moderna, mas admitem,
sem qualquer assomo de vergonha,
a sua total ignorância musical ou,
ainda pior, utilizam argumentos ba-
seados no achismo para equiparar o
banal e o sublime. Mesmo os que são
capazes de tocar algum instrumento
não demonstram qualquer curiosi-
dade para além dos limites do seu
repertório, dos problemas práticos
de interpretação ou das letras das
canções. Talvez seja esta a prova de
que a música não é de letras e, por
essa razão, no passado formava parte
do quadrivium – as ciências matemá-
ticas – e não do trivium.
Os músicos prossionais não podem
reger-se por crenças e têm um leque
muito mais vasto de interesses, ani-
dades e simpatias estéticas, ainda que
a extensão do horizonte seja variável
e dependa muito do grau de formação
e do ambiente cultural em que se de-
senvolvem. Também há os que se aco-
modam ou autolimitam o seu leque de
possibilidades em função do público,
gostos, ou constrangimentos técnicos.
“Os teóricos das artes plásticas e os
da arte dos sons vivem em esferas
isoladas”1, arma o cineasta francês
Éric Rohmer, longe das análises mu-
sicológicas, mas com um ângulo de
visão muito mais abrangente, pois o
seu olhar inocente recoloca-nos ques-
tões básicas sobre o signicado da
arte musical. “A rutura da Renascen-
ça não existe na história da música”2,
e tem toda a razão pois enquanto as
outras artes tinham modelos gregos
para imitar, os compositores care-
ciam de exemplos a seguir, e durante
anos discutiram, como foi o caso da
Camerata Fiorentina, sobre como se-
ria a música no teatro grego, a partir
das vagas descrições que encontra-
vam nos textos losócos. Quando
nalmente se fez luz nos seus racio-
cínios, concebendo uma nova forma
de falar cantando, ao que deram o
nome de ‘recitativo’, a Grande Renas-
cença já tinha acabado e essa técnica,
origem da ópera, dá início ao Barroco
musical, uma pérola de superfície ir-
regular e curvas sinuosas.
Dois séculos depois da pintura, expli-
ca Éric Rohmer, é que a música atinge
o seu classicismo, recuperando a sim-
plicidade duma antiguidade que exal-
ta a linha reta. É a rutura que se produz
entre Bach, que morre em 1750, e Mo-
zart, que nasce em 1756. Um abismo
onde a música abandona os palácios
e capelas e ganha a pretensão de se fa-
zer escutar por si mesma em concerto.
A música ganha em interioridade mas
perde em espiritualidade e, num elo-
gio da simplicidade, acrescenta, “não
desdenha a canção mais fácil, sobre-
tudo se não é resultado da facilidade,
isto é, de uma preguiça da invenção;
mas, pelo contrário, o ponto nal de
um esforço extremamente rigoroso de
ascese, de despojamento”3.
As duas esferas que Rohmer justapõe
de forma tão subtil, desprezando o
vazio, são as mesmas que separam
os músicos dos melómanos da per-
gunta retórica. Nesse contexto fui
aperfeiçoando a minha resposta,
que já passou por longas explicações
estéticas, históricas e até técnicas,
mas, despojando-a de todo o vazio,
cheguei a uma síntese que apanha de
surpresa os próprios alunos e cam a
reetir e debater entre eles. A minha
música preferida, e serve também
para os compositores, é aquela que
ainda não ouvi.
O desejo de conhecer o novo é o que
impele o avanço das ideias, e a cria-
tividade é o empenho por encontrar
soluções diferentes e originais. É um
desejo que nunca se satisfaz porque
sempre há algo de novo por descobrir,
seja na música erudita mais recente
como nas grandes obras do passado,
assim como na aparente simplicidade
da música tradicional. Se quando ou-
vimos uma música não descobrimos
algo de novo, nesse instante come-
çamos a aborrecê-la; e isso vale tanto
para as que escutamos pela primei-
ra vez como para aquelas que já nos
acompanharam centos de vezes. “Na
arte dos grandes génios, o idealismo
transcendental pôde encontrar sua
expressão implícita, antes de ter sido
formulada explicitamente, em termos
de teoria losóca”4 e isso é a profun-
didade musical que devemos procu-
rar, portanto, o meu compositor favo-
rito é aquele que ainda não descobri.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em Educação Artística
13JUL’22
1 Rohmer, E.:
Ensaio sobre a Noção de
Profundidade na Música: Mozart em
Beethoven
. Rio de Janeiro, Imago Ed.
1997, p. 30.
2
Ibid
.: p. 31.
3
Ibid
.: p. 41.
4
Ibid
.: p. 24.
Éric Rohmer
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