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Neurodesenvolvimento infantil em
contato com a natureza
Adriana Amaral, Bruna Velasques
Mônica Oliveira (Organizadoras)
Neurodesenvolvimento infantil em
contato com a natureza
1ª Edição
Quipá Editora
2021
Copyright © dos autores e autoras. Todos os direitos reservados.
Esta obra é publicada em acesso aberto. O conteúdo dos capítulos, os dados
apresentados, bem como a revisão ortográfica e gramatical são de responsabilidade de
seus autores, detentores de todos os Direitos Autorais, que permitem o download e o
compartilhamento, com a devida atribuição de crédito, mas sem que seja possível alterar a
obra, de nenhuma forma, ou utilizá-la para fins comerciais.
Capa: Carmem Munhoz
Conselho Editorial
Me. Adriano Monteiro de Oliveira, Quipá Editora / Dra Aida Figueiredo, Universidade de
Aveiro / Dra Anny Kariny Feitosa, Instituto Federal do Ceará / Dra Jane Márcia Mazzarino,
Univates / Dra Maria Iracema Pinho de Souza, Universidade Federal do Cariri / Dra Mônica
Maria Siqueira Damasceno, Instituto Federal do Ceará
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
________________________________________________________________________
N494
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Elaborada por Rosana de Vasconcelos Sousa ― CRB-3/1409
Obra publicada em dezembro de 2021.
www.quipaeditora.com.br / @quipaeditora
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza / Organizado por
Adriana Amaral de Oliveira, Bruna Brandão Velasques e Mônica Maria Souza de
Oliveira. ― Iguatu, CE : Quipá Editora, 2021.
171 p. : il.
ISBN 978-65-89973-77-5
DOI 10.36599/qped-ed1.116
1. Desenvolvimento infantil. 2. Natureza. I. Oliveira, Adriana Amaral de.
II. Velasques, Bruna Brandão. III. Oliveira, Mônica Maria Souza de. IV. Título.
CDD 155.4
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PREFÁCIO
O Brasil possui uma rica produção e trajetória em estudos, práticas e políticas
públicas a respeito da relação entre as crianças e a natureza. Isso contempla tanto nosso
percurso de educação ambiental e educação para a sustentabilidade como o legado de
grandes mestres e mestras da cultura da infância brasileira. Esses esforços incluem
diversos setores da sociedade, como órgãos públicos, ONGs, empresas privadas,
prefeituras, associações, escolas e outras instituições de ensino. Ancoradas em seus
territórios - atentas às especificidades culturais, sociais e ambientais nas quais estão
inseridas -, em nossa história e herança ancestral, essas iniciativas representam um
enorme patrimônio e têm tido um impacto significativo tanto no desenvolvimento das
crianças e adolescentes brasileiros quanto na conservação da natureza.
Recentemente, acompanhamos a aproximação desse tema com o campo da saúde,
e a consequente ampliação dos impactos e articulações importantes, como a publicação
do Manual de Orientação Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e
Adolescentes, pela Sociedade Brasileira de Pediatria e pelo programa Criança e Natureza
do Instituto Alana1.
Este livro vem se unir a esse movimento, trazendo luz a experiências diversas e
múltiplas, incluindo políticas públicas, processos educativos e vivências parentais,
procurando fazer conexões e buscando evidências científicas sobre o desenvolvimento
das crianças quando em contato com a natureza, com base na neurociência. É fascinante
perceber como a essência multissensorial e experiencial da natureza ativa os sentidos e
engaja o cérebro das crianças. Observar formigas e outros insetos em jardins, empilhar
pedras, sentir o aroma das flores e subir em árvores são aventuras sensoriais que as
crianças não conseguem acessar de outra forma.
Apesar dos avanços significativos na sobrevivência, nutrição e educação, nas
últimas décadas, as crianças de hoje enfrentam um futuro incerto: mudanças climáticas,
degradação ecológica, ondas migratórias, conflitos, desigualdades generalizadas e
práticas comerciais predatórias que ameaçam sua saúde e seu futuro em todos os países.
A humanidade tem afetado, progressivamente, os ambientes globais e os sistemas
planetários a tal ponto que nosso próprio bem-estar está agora sob ameaça. Diversos
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relatórios, documentos e chamados da Organização das Nações Unidas alertam para a
tarefa definidora do século 21: fazer as pazes com a natureza.2
Simultaneamente, ainda tentamos estimar os impactos emocionais, físicos e
cognitivos que a pandemia de covid-19 e seus desdobramentos causaram às crianças e
adolescentes. Está claro que será preciso lançar mão de todas as estratégias possíveis
para minimizar os danos e ajudar na recuperação de toda uma geração de meninos e
meninas.
As experiências e achados descritos neste livro apontam claramente que o brincar e
o convívio em família e entre pares na natureza, a céu aberto, é uma dessas estratégias. O
vínculo, o senso de pertencimento ao mundo e o amor pela vida que advêm dessas
experiências é essencial para que possamos honrar a criança, garantindo seu direito ao
pleno desenvolvimento, e, também, para que possamos reverter as crises ambientais que
afetam nossa sobrevivência no planeta e a vida das outras espécies que o compartilham
conosco. Que ele sirva de inspiração para ampliar e fortalecer essa missão tão urgente.
Maria Isabel Amando de Barros
Pesquisadora do programa
Criança e Natureza, Instituto Alana
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APRESENTAÇÃO
“Nesses tempos de céus de cinzas e chumbos, nós
precisamos de árvores desesperadamente verdes”
(Mário Quintana)
Nesta publicação, abordamos um tema audacioso, e ainda pouco estudado, que nos
uniu. Ela congrega textos com relatos de experiências e alguns registros das nossas
pesquisas. Somos mulheres, filhas, mães, irmãs, primas, tias, sobrinhas, afilhadas,
madrinhas, alunas, professoras, pesquisadoras, terapeutas e especialistas das áreas de
educação e saúde.
Em tempos pandêmicos, nos quais nossas rotinas foram impactadas por demandas
jamais imaginadas, essa escrita foi ainda mais desafiadora. Mas foi potente o desejo de
compartilhar com você leitora/leitor um pouco das jornadas aqui descritas que promovem o
neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza.
E por falar em jornada, em 2018, a Conexão Natureza e o Instituto de Neurociências
Aplicadas (INA), em parceria com o Movimento Infância in Natura (MIIN) e o “No Quintal da
Nossa Casa”, uniram-se na realização da “I Jornada Científica sobre
Neurodesenvolvimento Infantil e Contato com a Natureza”, com mais de 1300 pessoas do
Brasil e Portugal interessadas, das quais 110 participaram, no dia do evento (número
limitado de participantes por conta da capacidade do auditório no Parque do Catete, na
cidade do Rio de Janeiro – RJ).
Esse interesse nos inspirou a oferecer um curso virtual com essa temática que
possibilitasse a participação de pessoas de várias cidades brasileiras e de outros países,
surgindo no primeiro semestre de 2021, o curso virtual-vivencial "Neurodesenvolvimento
Infantil em contato com a Natureza", uma parceria da Conexão Natureza
@coletivoconexaonatureza, ExpressivaMente @expressiva_mente e do Instituto de
Neurociências Aplicadas (INA) @neurocienciasaplicadas, idealizado e coordenado por
Adriana Amaral, Bruna Velasques e Mônica Oliveira que se dedicam aos estudos,
pesquisas e práticas relacionadas ao desenvolvimento infantil integral saudável e à
aprendizagem infantil em contato com a natureza - com trabalhos publicados sobre o tema.
Durante o curso, houve momentos de ricas partilhas, o que nos inspirou a lançar o
convite de um registro literário às participantes, que logo se entusiasmaram e se
dedicaram à produção dos capítulos que você lerá nas próximas páginas.
Mas por que o neurodesenvolvimento? O neurodesenvolvimento se refere aos
processos que geram, moldam e remodelam o sistema nervoso, desde os estágios iniciais
do desenvolvimento embrionário até a idade adulta. Em outras palavras, é o
desenvolvimento do sistema nervoso como um todo.
Ele é um processo complexo e que acontece na interação entre aspectos genéticos
e ambientais. O nosso sistema nervoso amadurece a partir de uma construção continua
com o ambiente no qual estamos inseridos. Pensar e refletir como uma infância mais
próxima da natureza pode contribuir para que o processo de desenvolvimento do cérebro
ocorra da melhor forma possível foi o que fizemos nessa trajetória. A saúde mental,
emocional, física, cognitiva e motora passa pelo desenvolvimento do sistema nervoso.
Entender como ambientes naturais contribuem para um processo mais saudável também é
contribuir para que possamos pensar numa sociedade mais saudável.
Aproveitamos para destacar que, com base nas evidências científicas, alguns
médicos e terapeutas já prescrevem o contato com a natureza como mecanismo capaz de
promover o fortalecimento da imunidade e dos vínculos afetivos, o desenvolvimento
sensório-motor, cognitivo e socioemocional das crianças. Essa prescrição da natureza
também tem feito parte do tratamento complementar de crianças diagnosticadas com
Autismo e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), para prevenir os
males do déficit de natureza (falta de vitamina D, miopia, obesidade, depressão,
ansiedade, amnésia ecológica, déficit motores, sensoriais, cognitivos, emocionais, dentre
outros) e restaurar a saúde das crianças acometidas por esses males – a natureza
funcionando como um antídoto.
Então, esse é nosso convite a você, pai, mãe, cuidador(a) de crianças, também, aos
gestores(as) públicos, profissionais das áreas de educação, saúde e área afins. Busque
mais conexão com aquilo que nos constitui - Somos Natureza em nossa essência! Unam-
se para que possamos promover o neurodesenvolvimento integral saudável das nossas
crianças em contato e Conexão com a Natureza, por uma saúde planetária.
As organizadoras
SUMÁRIO
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
CAPÍTULO 1 11
OS BENEFÍCIOS DO CONTATO COM A NATUREZA PARA O PROCESSAMENTO
SENSORIAL DE UMA CRIANÇA AUTISTA
Bruna Ferraz Pereira
Gabriela Estevam
Izabela Lourenço dos Santos
Renata Guizzo Nery
CAPÍTULO 2 25
A POTÊNCIA DO ENCONTRO ENTRE BEBÊS E NATUREZA: NARRATIVAS DO
INSTITUTO DONA CARMINHA
Patrícia Bignardi Torres
Tatiara Alves
CAPÍTULO 3 38
CRIANÇAS EM AMBIENTES NATURAIS NAS ESCOLAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL:
POR CORPOS POTENTES E SAUDÁVEIS!
Mayara Bazilio
Katia Bizzo Schaefer
CAPÍTULO 4 56
REFLETINDO SOBRE A NATUREZA NA EDUCAÇÃO: RELATO DE EXPERIÊNCIA DE
UMA ESCOLA MONTESSORIANA
Luciana Daflon
Suziane de Santana Vasconcellos
CAPÍTULO 5 65
ALÉM DO MURO EXISTE UM MUNDO QUE CONVIDA AO ENCONTRO: O ARROIO
PEÃO E OS PATRULHEIROS MIRINS
Cintia Cristina Zanini
CAPÍTULO 6 82
CRIANÇA, NATUREZA E SAÚDE INTEGRAL: O QUE NOS ENSINAM OS SALVADORES
DA MATA DO PLANALTO?
Desirée Ruas
CAPÍTULO 7 98
CRIANÇA: CIDADÃ POR NATUREZA
Élida Karine Ataíde de Amorim
CAPÍTULO 8 109
BICHINHOS DO MATO – PROJETO FAMILIAR DE EDUCAÇÃO AO AR LIVRE
Tânia Mira
CAPÍTULO 9 123
PARENTALIDADE VERDE: UMA PROPOSTA DE INCLUSÃO DA TEMÁTICA AMBIENTAL
NOS PROGRAMAS DIRIGIDOS À PARENTALIDADE
Adriana Amaral
CAPÍTULO 10 139
NATUREZA EM FAMÍLIA – MEMÓRIAS SENSORIAIS E AFETIVAS POR TODA A VIDA: A
NARRATIVA DE UMA EXPERIÊNCIA SOBRE O BRINCAR NO QUINTAL DA NOSSA
CASA
Carla Barbosa
Flavia Glicerio
Joelma de Carvalho
Mônica Oliveira
CAPÍTULO 11 155
AGENTES BRINCANTES DA NATUREZA - UM JARDIM PARA A INFÂNCIA
Luciana Queiroz Rodrigues Moreira
CARTA GLOBAL DE PAIS QUE EXIGEM AÇÃO PELO CLIMA 167
SOBRE AS ORGANIZADORAS 170
ÍNDICE REMISSIVO 171
CAPÍTULO 1
OS BENEFÍCIOS DO CONTATO COM A NATUREZA PARA O PROCESSAMENTO
SENSORIAL DE UMA CRIANÇA AUTISTA
Bruna Ferraz Pereira
Gabriela Estevam
Izabela Lourenço dos Santos
Renata Guizzo Nery
RESUMO
Este capítulo tem por objetivo apresentar a experiência de Renata Guizzo Nery, uma mãe
que percebeu em seu filho, Rafael, autista, a superação de vários desafios sensoriais a
partir do contato com ambientes naturais. Parte-se de uma explanação sobre
neurodiversidade e uma caracterização simplificada do Transtorno do Espectro Autista
(TEA), destacando-se a alteração sensorial comumente experienciada por pessoas
autistas. Aborda-se, então, a experiência de Renata e Rafael para, em seguida, apresentar
pesquisas que versam sobre o contato de autistas com a natureza, reunidas a partir de
levantamento bibliográfico. Ainda que tenham sido observadas influências positivas dos
ambientes naturais sobre os aspectos sensoriais, emocionais e sociais de pessoas autistas
nos estudos encontrados, verificou-se que estes são ainda muito escassos, além de serem
todos em inglês. Estes fatos reforçam a relevância no desenvolvimento do presente
capítulo, uma vez que difundir em português os benefícios observados no contato de
autistas com a natureza, abre possibilidades para o surgimento de novas indagações e
pesquisas que podem vir a contribuir para a qualidade de vida dessa população.
Palavras-chave: Ambientes naturais. Autismo. Experiências sensoriais.
INTRODUÇÃO
Os benefícios do contato com a natureza durante a infância têm sido apontados por
diversas pesquisas. De acordo com Barros (2019), no Manual elaborado pelo Grupo de
Trabalho em Saúde e Natureza, da Sociedade Brasileira de Pediatria, o brincar na
natureza contribui para o desenvolvimento dos aspectos “cognitivo, emocional, social e
educacional das crianças" (p. 21), bem como para a redução do estresse e melhoria da
percepção corporal. Além disso, estar em contato com ambientes naturais e seus
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componentes faz com que seja maturado o sistema nervoso, contribuindo para o
aperfeiçoamento das funções executivas e da integração sensorial (OLIVEIRA e
VELASQUES, 2020; BARROS, 2019).
Apesar de serem destacados os aspectos positivos decorrentes da interação entre
criança e natureza, estes são analisados, normalmente, considerando-se o
desenvolvimento neurotípico, o “socialmente aceitável” (KAPP, 2020, p. 2, tradução nossa),
sendo pouco pesquisados os benefícios desse contato para as crianças neurodivergentes,
ou seja, aquelas “com uma condição que torna seu funcionamento neurocognitivo
significativamente diferente” (KAPP, 2020, p. 2, tradução nossa).
O termo “neurodiversidade”, cunhado pela socióloga Judy Singer, nos anos 90,
surgiu com o entendimento de que não existe apenas um tipo específico de funcionamento
neurocerebral, sendo todas as pessoas, portanto, consideradas neurodiversas. Com o
passar do tempo, porém, essa concepção foi adquirindo um caráter mais político, na
medida em que pessoas que possuem alguma condição neurocognitiva considerada fora
dos padrões típicos passaram a compor o movimento pela neurodiversidade, que luta
pelos direitos das pessoas com deficiência (KAPP, 2020).
Pessoas autistas são neurodivergentes, isto é, neurologicamente atípicas. De modo
geral, isso significa que as informações e os estímulos são captados e interpretados de
formas atípicas pelo cérebro (SINGER, 2016), o que leva os autistas a perceberem e se
relacionarem com o mundo de formas distintas.
Isso representa um grande desafio na vida dessa população, pois as sociedades
foram organizadas por e para pessoas neurotípicas. Sendo assim, autistas podem
experienciar situações e sensações desconfortáveis com frequência, o que torna a
indicação de terapias algo muito comum. Tais terapias, porém, não são acessíveis a todos
os indivíduos, seja por conta do alto custo ou da ausência de profissionais especializados
em cidades pequenas e áreas afastadas.
Neste contexto, o presente capítulo busca apresentar um relato de experiência e
algumas pesquisas sobre os benefícios do contato com a natureza para pessoas autistas,
não com o intuito de induzir qualquer substituição de acompanhamento profissional caso
este venha a ser necessário, mas, sim, de difundir e inspirar observações a respeito da
influência positiva de ambientes naturais (possivelmente mais acessíveis à população)
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sobre aspectos desafiadores experienciados por autistas, especialmente os relacionados
às alterações sensoriais.
TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o
Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido como um transtorno do
neurodesenvolvimento, sendo caracterizado pela presença de dificuldades em relação à
comunicação e interação social, bem como, de padrões comportamentais e interesses
repetitivos e restritos (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Tendo como
característica a multiplicidade em relação às dificuldades que se apresentam, o TEA é
descrito como sendo de nível 1, 2 e 3 de acordo com os suportes necessários à pessoa
autista (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
Outra característica comum em pessoas do espectro autista é o processamento
sensorial atípico, que pode ocasionar a presença de hiper ou hipo sensibilidade aos
estímulos externos e/ou o interesse incomum em aspectos sensoriais do ambiente
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Tais disfunções estão “provavelmente
[relacionadas] a uma modulação prejudicada que ocorre no sistema nervoso central, que
regula as mensagens neurais com relação a estímulos sensoriais” (MILLER et al., 2017
apud POSAR e VISCONTI, 2018, p. 343).
Crianças e adultos autistas podem ter vários tipos de alterações sensoriais ao
mesmo tempo, o que pode afetar seu comportamento em diversas atividades cotidianas,
como, por exemplo, não comer determinados alimentos por conta de sua cor, textura e/ou
odor; ter aversão ao toque; não conseguir utilizar certos tecidos e/ou tocar em algumas
superfícies; aparentar indiferença à dor e/ou à temperatura; apresentar fascínio visual por
luzes e/ou movimento; ter reações adversas a sons específicos; cheirar e/ou tocar objetos
de forma excessiva; andar nas pontas dos pés; apresentar equilíbrio inadequado; entre
outros (POSAR e VISCONTI, 2018).
Esses indivíduos podem sentir diferentes níveis de incômodo e/ou desorganização
quando expostos a situações que extrapolam seus limites sensoriais, o que pode levar a
crises intensas como o shutdown e o meltdown (BELEK, 2018). Essas situações são
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frequentemente mal interpretadas e rotuladas como “frescura”, “preguiça”, “birras” e
“explosões de raiva”, mas, na verdade, estão relacionadas a sensações significativamente
desagradáveis para pessoas autistas.
O shutdown acontece quando o indivíduo se sente sobrecarregado depois de uma
alta exposição a estímulos sensoriais. Nesse caso, é comum que autistas tenham grandes
dificuldades para processar o que está acontecendo ao redor, pois é como se o corpo
realmente “desligasse”. Já o meltdown se refere a crises desencadeadas por situações
relacionadas aos estímulos sensoriais e/ou outros acontecimentos que impactam
negativamente a vida de uma pessoa autista, como, por exemplo, quebra de rotinas
(BELEK, 2018).
Tais crises são muito desafiadoras, especialmente para crianças e suas famílias,
que, sem o acesso à informação e ao acompanhamento profissional necessário, podem
sofrer prejuízos importantes em sua qualidade de vida.
RENATA, RAFAEL E NATUREZA
Renata Guizzo Nery tem 37 anos, mora em Sananduva, no Rio Grande do Sul, é
professora, psicopedagoga, estudante de Terapia Ocupacional e mãe de dois filhos. Seu
filho mais novo, Rafael, começou a andar e a experimentar a fala com um ano, mas, com
um ano e dois meses, parou de falar e passou a chorar muito, apresentando “birras
incessantes”, recusas alimentares e comportamentos repetidos. Ela procurou uma
fonoaudióloga e uma neurologista, e, aos dois anos de idade, Rafael foi diagnosticado
dentro do espectro autista.
Destacaram-se, então, a importância da intervenção precoce para o
desenvolvimento e bem estar da criança, e a dificuldade em atender a todas as suas
necessidades, dentre as quais, as mais significativas eram as relacionadas às questões
sensoriais, pois Rafael se recusava a se alimentar; cheirava os alimentos de forma
excessiva; apresentava resistência para evacuar; se agredia; evitava o contato visual;
apresentava indiferença ao frio, bem como à presença de pessoas próximas; e sentia
muito incômodo ao ter de lavar o cabelo e usar determinados tipos de roupas e calçados.
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Terapias custam caro e o processo não é rápido. Renata, que morava e ainda mora
em uma cidade pequena, estava em busca de maneiras acessíveis para contribuir com o
desenvolvimento de seu filho e, lembrando da própria infância, “infância de trepar em
árvores, de brincar de casinha, de fazer comidinhas de barro, de brincar no riacho próximo
de casa e de explorar a floresta”, decidiu promover experiências em ambientes naturais
para ele.
Foi em 2017, geralmente nas tardes de domingo e em localidades próximas à sua
residência, em Sananduva, que ela começou a realizar trilhas em família: “O primeiro
contato [de Rafael com a natureza] não foi fácil, nada fácil, era choro, birras incessantes,
gritos, e até autoagressão, pois as sensações eram muito diversificadas”. A escolha das
trilhas logo passou a privilegiar os lugares que contavam com a presença de rios e
cachoeiras, pois observou-se que a água se configurava como “um calmante natural” para
o menino.
Renata afirma que, nas trilhas, não propunha nenhuma atividade dirigida ao filho,
pois o intuito era de que ele “despertasse para o meio que estava sendo inserido”. Com o
passar do tempo, a família também passou a acampar nos finais de semana, e, além
disso, de segunda à sexta-feira, Rafael passava cerca de duas horas diárias brincando ao
ar livre com a mãe e a irmã.
É importante destacar que, além do contato com a natureza, Rafael manteve
consultas com uma fonoaudióloga, o que também contribuiu para o seu desenvolvimento,
especialmente no que se refere à fala. Renata ressalta, entretanto, que a superação dos
desafios sensoriais de seu filho se deu (e dá) devido ao contato com a natureza, tendo
sido possível observar, desde 2017: o cessar das autoagressões e da resistência para
evacuar; a disposição de Rafael para se alimentar, fazer contato visual, interagir mais,
realizar a rotina de banhos e uso de roupas e calçados; o desenvolvimento da percepção
ao frio e da presença de familiares; e a ampliação das habilidades motoras e da
autonomia.
Rafael continua tendo contato frequente com ambientes naturais e, hoje, com seis
anos, “tem uma convivência muito bacana com outras crianças, com colegas de escola, é
um menino carinhoso, amoroso consigo e com o meio em que vive”. Segundo Renata,
“não tem como olhar para sua trajetória e não perceber que tudo isso só aconteceu pelos
inúmeros estímulos sensoriais que a natureza fornece a uma criança”.
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Figura 1: Rafael em uma trilha com a irmã
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2018)
Figura 2: Rafael, em cima de uma pedra,
observando um trecho de água rasa
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2019)
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Figura 1: Rafael em uma trilha com a irmã
Figura 2: Rafael, em cima de uma pedra, observando
um trecho de água rasa
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2018)
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2019).
Figura 3: Rafael caminhando dentro d’água com o apoio das pedras
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2019)
Figura 4: Renata e Rafael em uma trilha
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2020)
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Figura 3: Rafael caminhando dentro d'água com o
apoio das pedras
Figura 4: Renata e Rafael em uma trilha
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2019).
Fonte: Acervo pessoal de Renata G. Nery (2020).
A partir dos evidentes benefícios do contato com ambientes naturais para o
desenvolvimento de Rafael, buscou-se pesquisar outras possíveis experiências e estudos
que ampliassem a reflexão sobre a influência positiva da natureza na vida de pessoas
autistas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Partimos da revisão bibliográfica, pois, com base em Vosgerau e Romanowski
(2014), compreendemos que este tipo de método é importante “para pesquisadores
iniciantes em uma determinada área do conhecimento” (p. 168). O caminho escolhido
“permite ao pesquisador a elaboração de ensaios que favorecem a contextualização,
problematização e uma primeira validação do quadro teórico a ser utilizado na investigação
empreendida” (VOSGERAU e ROMANOWSKI, 2014, p. 170).
Entendemos, ainda, que a identificação do que tem sido produzido sobre o tema e a
análise das pesquisas contribuem para a difusão e construção de novas ideias, projetos e
estudos (VOSGERAU e ROMANOWSKI, 2014), pois esse levantamento amplia e
enriquece o conhecimento sobre o assunto.
Considerando como temática a relação entre autismo e natureza, fizemos um
levantamento bibliográfico utilizando as seguintes bases de dados: Children and Nature
Network; Scientific Electronic Library Online (SCIELO); Portal de Periódicos CAPES;
Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PEPSIC).
Para a pesquisa, as palavras-chave utilizadas foram: autismo, natureza, autism,
nature, natural environment, processamento sensorial, e transtorno do espectro autista. O
critério de seleção dos trabalhos foi que abordassem especificamente a relação de autistas
com a natureza.
Na tabela a seguir, apresentamos os trabalhos selecionados a partir do critério
utilizado, bem como as duas categorias escolhidas para classificá-los: 1) artigos que
abordam os aspectos sensoriais de autistas em contato com ambientes naturais e 2)
artigos que fazem referência à relação de pessoas autistas com ambientes naturais sem
abordar diretamente os aspectos sensoriais.
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Tabela 1: Relação dos estudos selecionados
Estudos Autores - Ano de publicação Categoria
“I just want to stay out there all day”: A Case Study of
Two Special Educators and Five Autistic Children
Learning Outside at School.
FRIEDMAN, S.; MORRISON, S. A.
(2021)
1
Children with Autism in Wild Nature: Exploring
Australian Parent Perceptions Using Photovoice.
GALBRAITH, C.; LANCASTER, J.
(2020)
1
Exposure to nature for children with autism spectrum
disorder: Benefits, caveats, and barriers.
LI, D. et al. (2019) 1
Caring local biodiversity in a healing garden:
therapeutic benefits in young subjects with autism.
SCARTAZZA, A. et al. (2019) 2
Designing an Impactful Sensory Garden for Children
and Youth with Autism Spectrum Disorder.
WAGENFELD, A.; SOTELO, M.;
KAMP, D. (2019)
2
Fonte: Autoras (2021)
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram encontrados nove artigos, dos quais selecionamos apenas cinco, pois eram
os que abordavam diretamente o contato de pessoas autistas com ambientes naturais. Os
outros trabalhos, ainda que tratassem da relação de autistas com a natureza, se referiam
ao contato específico com animais e a observações referentes à comunicação, não
abordando nossa temática de interesse.
Dentre os cinco trabalhos escolhidos, três deles versam sobre a percepção
sensorial de crianças autistas em ambientes naturais, enquanto que os outros dois, ainda
que não tenham por objetivo tecer observações diretas sobre o processamento sensorial
de autistas em contato com a natureza, podem contribuir para a ampliação das
considerações sobre esta interação.
A pesquisa de Li et al. (2019) se baseou na realização de entrevistas
semiestruturadas com 22 pais, mães e cuidadores de autistas entre quatro e 18 anos de
20
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idade, buscando verificar suas percepções sobre “benefícios, ressalvas e barreiras” do e
para o contato de crianças e jovens autistas com a natureza.
A partir das experiências relatadas, identificou-se que o contato com áreas verdes é
considerado benéfico de diversas formas, sendo destacado que “na natureza, as crianças
aprenderam a tolerar e processar informações de várias modalidades sensoriais, como
estímulos visuais, auditivos e táteis” (LI et al., 2019, p. 3, tradução nossa), além de ter sido
pontuada notória influência nos aspectos “sensório-motor, emocional e social” (p. 3,
tradução nossa). Destacou-se, porém, que autistas podem enfrentar dificuldades nos
primeiros contatos com ambientes naturais e que isso se deve ao fato de serem
“especialmente vulneráveis a estímulos sensoriais e encontros sociais” (LI et al., 2019, p.
2, tradução nossa), fatores presentes em grande parte dos lugares onde é possível se ter
acesso à natureza.
A pesquisa de Galbraith e Lancaster (2020) também fez referência a essa
dificuldade, todavia, as mães de crianças autistas entrevistadas pelas autoras relataram
que os desafios relacionados aos aspectos sensoriais não foram limitantes para as
experiências na natureza, pelo contrário: foram vistos como oportunidades para ampliar o
repertório sensorial, bem como para desenvolver os comportamentos adaptativos e
flexíveis das crianças.
Compondo o trio de pesquisas que focam nos aspectos sensoriais do contato de
autistas com ambientes naturais, há, por fim, o estudo de Friedman e Morrison (2021)
envolvendo as experiências de dois professores e cinco crianças autistas em ambientes
com natureza fora das salas de aula. Com base na stress recovery theory, que sugere que
“após um surto de estresse, os indivíduos expostos a ambientes naturais são capazes de
reduzir esse estresse mais rapidamente do que aqueles que não foram expostos a
ambientes naturais” (FRIEDMAN; MORRISON, 2021, p. 3, tradução nossa), observou-se
que, de fato, o contato com tais ambientes proporcionou, dentre outros efeitos, a redução
de estresse nas crianças autistas ao amenizar sua hiper-reatividade sensorial.
Essas três pesquisas corroboram as observações feitas por Renata sobre as
vivências de seu filho em e com ambientes naturais. Assim como ela, as autoras e os
autores dos estudos apresentados identificaram benefícios do contato com a natureza para
os aspectos motor, emocional, social e, sobretudo, sensorial de pessoas autistas, obtendo
destaque a simultaneidade das características multissensorial e calmante de tais
21
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ambientes (LI et al., 2019; FRIEDMAN; MORRISON, 2021). Da mesma forma, reforçou-se
a possibilidade de o início do contato com ambientes naturais ser difícil, ainda que tal
desafio não tenha se configurado como um impeditivo para outras tentativas (LI et al.,
2019; GALBRAITH; LANCASTER, 2020).
O trabalho de Scartazza et al. (2019), que compõe o outro grupo de estudos
selecionados no levantamento bibliográfico, relata uma pesquisa feita em um jardim na
região da Úmbria, na Itália, e que teve por objetivo a realização, com pessoas autistas, de
atividades voltadas ao desenvolvimento de habilidades relativas ao convívio social.
A partir da análise das vivências propostas, verificou-se que o contato com a
natureza proporcionou o desenvolvimento das “interações interpessoais, independência,
comportamento flexível e iniciativa para manifestar vontades” (SCARTAZZA et al., 2019, p.
12, tradução nossa) e que a interação com as plantas e com as pessoas que realizaram as
atividades oportunizou um ambiente multissensorial onde foi possível ampliar as
habilidades sociais. Esta observação também dialoga com o que foi percebido por Renata,
isto é, de que há influência dos aspectos sensoriais em outras áreas da vida da criança,
como a social.
Por fim, o outro trabalho que estabelece relações entre autismo e ambientes
naturais é o de autoria de Wagenfeld, Sotelo e Kamp (2019), que trata da construção de
um jardim em um local voltado ao atendimento de pessoas autistas em Júpiter, na Flórida.
O ambiente foi desenvolvido a partir das demandas do grupo e de muito estudo sobre as
melhores formas de planejar um lugar seguro e confortável, considerando-se também a
importância de promover estímulos sensoriais agradáveis e diversos.
Com o intuito de possibilitar a autonomia das pessoas, os espaços foram
organizados de modo prático e bem definido, buscando-se propiciar “experiências
sensoriais destinadas a aliviar o estresse e a ansiedade, e elevar suavemente os sentidos
- visão, olfato, tato, paladar, audição, bem como o sentido de equilíbrio (vestibular) e a
posição e movimento no espaço (propriocepção)” (WAGENFELD; SOTELO; KAMP, 2019,
p. 142, tradução nossa).
Apesar de ainda não terem sido desenvolvidos estudos para analisar os impactos
das experiências no jardim na vida de quem o frequenta, acreditamos ser interessante
pontuar essa pesquisa para expor uma possibilidade de espaço pensado a partir do
22
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
22
entendimento de características compartilhadas por pessoas autistas, demonstrando que o
contato com a natureza pode acontecer de diversas formas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que sejam escassas as pesquisas sobre o tema norteador do presente
capítulo, os trabalhos encontrados a partir do levantamento bibliográfico fortaleceram
nossas considerações iniciais. Através da análise realizada, foi possível reforçar a
compreensão de que o contato com ambientes naturais pode ser um aliado às práticas
desenvolvidas durante as terapias focadas no processamento sensorial de crianças
autistas, visto que, na natureza, é possível encontrar formas, cores e texturas que auxiliam
no processo de enriquecimento do repertório sensorial. Por fim, destaca-se a oportunidade
para a realização de mais estudos que contribuam para a investigação e aprofundamento
sobre a relação de autistas com a natureza, tendo em vista os expressivos benefícios
observados até aqui.
REFERÊNCIAS
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Transtornos Mentais DSM-5. Trad. Porto Alegre: Artmed, v. 1, 2014. Disponível em:
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Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
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[Cincinatti], v. 29, n. 1, p. 137-152, 2019. Disponível em:
<https://doi.org/10.7721/chilyoutenvi.29.1.0137>. Acesso em: 19 set. 2021.
SOBRE AS AUTORAS
Bruna Ferraz Pereira - Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná.
Autista.
Gabriela Estevam - Graduada em Gestão Ambiental pela Universidade Federal do Paraná
e graduanda em Pedagogia pela mesma instituição. Autista.
Izabela Lourenço dos Santos - Graduada em Fonoaudiologia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro e pós-graduada em Neurociências aplicada à Aprendizagem pela
mesma instituição. Trabalha com crianças autistas.
Renata Guizzo Nery - Graduada em Física pela Universidade de Passo Fundo do Rio
Grande do Sul, especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade Dom
Bosco e graduanda em Terapia Ocupacional pelo Centro Universitário Ingá - Uningá. Mãe
de uma criança autista.
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
25
CAPÍTULO 2
A POTÊNCIA DO ENCONTRO ENTRE BEBÊS E NATUREZA: NARRATIVAS DO
INSTITUTO DONA CARMINHA
Patrícia Bignardi Torres
Tatiara Alves
“Cada criança que vem ao mundo é a natureza se manifestando, outra vez, e outra
vez e outra vez. E como é que essas crianças vão ser tratadas? Essa é a questão”
(Lea Tiriba)
RESUMO
Este capítulo relata a experiência vivenciada no Instituto Educacional Dona Carminha,
localizado na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, que atende 105 bebês de 7 meses a
18 meses. Neste contexto coletivo institucionalizado, foi possível observar um impacto
significativo no desenvolvimento integral dos bebês, provocado pelas suas experiências
nos espaços externos da Instituição, repletos de área verde. Acreditamos que uma
Instituição que acolhe pedagogias participativas e investe nas relações socioafetivas com
os bebês, precisa pensar e planejar momentos em seu cotidiano no qual os bebês estejam
com e na natureza. Os estudos e pesquisas sobre a importância da interação infância-
natureza corroboraram com as nossas iniciativas, pois as crianças que experimentam
brincar ao ar livre são mais criativas, tornam-se capazes de conviver com os outros de
forma mais saudável e felizes, são mais autônomas, apresentam melhores competências e
habilidades de exploração e investigação e têm uma sensação maior de pertencimento ao
espaço. Para tanto, o planejamento intencional do uso desse espaço foi fundamental às
conquistas dos bebês.
Palavras chaves: Aprendizagem. Bebês. Desenvolvimento infantil. Natureza.
INTRODUÇÃO
O Instituto Educacional Professora Maria do Carmo Arruda Toledo, mais conhecido
como Instituto Dona Carminha, nome que usaremos de referência ao longo do texto,
localizado na cidade de Campinas-SP/Brasil, é uma instituição sem fins lucrativos, fundada
26
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
26
em 1976, reconhecida oficialmente como escola, no ano de 1982, pelos órgãos
educacionais competentes.
No ano de 2011, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, fundou sua
creche e pré-escola que atualmente atende 570 bebês e crianças,sendo 105 bebês de 7
meses a 36 meses. Tendo como premissa oferecer educação pública, gratuita e de
qualidade, a instituição sempre se dedicou a estudar pedagogias participativas que
colocam a criança no centro do processo de aprendizagem, então, deu-se início a uma
busca interna em nossas formações por estudos sobre estar na natureza e quais os
benefícios que essas práticas trariam para nossos bebês e crianças.
Diante disso percebemos uma transformação no nosso cotidiano em que a sala
passa a ser uma referência de acolhida e bem-estar. Porém, o dia a dia passa a ser
pensado, planejado e refletido de maneira intencional para estar ao ar livre, com os bebês
e as crianças do lado de fora do Instituto Dona Carminha, que tem muito verde, com
árvores e plantas,onde todos têm acesso livremente.
Antigamente nosso foco era proporcionar espaços acolhedores e seguros dentro da
sala referência, evitando que os bebês estivessem do lado de fora, por considerar isso
inseguro e,assim,era comum que alguns reagissem de forma impaciente, chorosa, outros
demonstravam-se “apáticos”, com sono irregular ou, até mesmo, dificuldade para dormir e
descansar. Começamos então a perceber um excesso de mordidas, de agressividade e,
com isso, surgiu a necessidade de se aprofundar e pesquisar novos caminhos para uma
prática que reconhecesse os bebês como sujeito de direitos.
Esse olhar em relação ao bebê e o contato com os espaços externos e a natureza
surgiu através da pesquisa, observação e escuta, buscando entender como poderíamos
transformar o viver coletivo dos bebês dentro da Instituição.
Em 2016, demos início aos nossos estudos sobre a Abordagem Pikler,
fundamentada pela médica húngara Emmi Pikler, conhecida como a pedagogia dos
detalhes e que se sustenta em quatro princípios: relação privilegiada com o adulto,
movimento livre, autonomia e boa saúde.
Ao nos aprofundarmos nos estudos de Emmi Pikler, percebemos, também, a
importância de se estar do lado de fora e de entender o quanto Pikler defendia o contato
com a natureza. Nesse sentido, fomos em busca de como organizar esse processo de vida
27
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
27
do lado de fora da sala e de como oportunizar experiências significativas para os bebês.
Muitos foram os benefícios percebidos nessa mudança da Instituição. O cotidiano passou a
fluir mais livremente e de maneira mais rítmica com bebês mais autônomos, ativos e que
se locomoviam com maior segurança no espaço.
Neste texto, vamos apresentar algumas situações que vivenciamos, no período de
2018 a 2021, sobre como se deram as práticas e vivências dentro da nossa Instituição,
tendo como objetivo descrever como os bebês experienciaram a natureza no espaço
coletivo institucional.
REFERENCIAL TEÓRICO
As pesquisas apontam a importância da primeira infância na vida dos indivíduos.
Com base nesse conhecimento, sempre pensamos e refletimos a nossa prática,
observando o cotidiano e documentando as vivências de bebês e crianças em uma
instituição coletiva que tem um olhar para a singularidade de cada um, apresentando como
eixo as brincadeiras e as interações na área externa da escola, buscando trazer
experiências únicas e do corpo todo, promovendo, assim, desenvolvimento, autonomia e
movimento livre. Isso tem sido algo que nos acompanha, motiva e encanta o olhar.
O período da vida compreendido do nascimento até os seis anos de idade,
chamado de primeira infância, constitui um período sensível para o
desenvolvimento de diversas habilidades. Nesta fase da vida, há elevada
plasticidade cerebral, o que significa uma maior capacidade de transformação do
cérebro devido aos estímulos e experiências vivenciados. As habilidades
desenvolvidas neste início serão fundamentais para o desenvolvimento de
habilidades mais complexas em fases posteriores da vida. Desperdiçar as
possibilidades da primeira infância significa limitar o potencial individual, uma vez
que nem sempre é possível recuperá-lo plenamente com investimentos posteriores
(COSTA, et.al, 2016, p.4 ).
Sabemos, no entanto, que,
Em relação à educação, enfrentamos inúmeros desafios no sentido de oferecer
uma experiência significativa e valiosa para o aluno. Um deles é a necessidade de
refletirmos e requalificarmos as práticas, a organização, as rotinas e o tempo
escolar, reconhecendo o brincar e o aprender com a - e na - natureza como um dos
elementos centrais de uma educação vinculada com a própria vida (BARROS, 2019
p.3).
28
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
28
(BARROS, 2019,
p. 3).
(COSTA, et al., 2016, p. 4).
De acordo com a legislação vigente no país,
os ambientes físicos da instituição de educação infantil devem refletir uma
concepção de educação e cuidado respeitosa das necessidades de
desenvolvimento das crianças, em todos os seus aspectos: físico, afetivo, cognitivo,
criativo (BRASIL, 2009b, p. 48).
Assim, reconhecemos a “escola como um local de encontro com a natureza para
todas as crianças” (BARROS, 2018), compreendendo que o espaço físico da sala de
referência deve acolhere ser ponto de referência. Contudo, é preciso ter em mente o
desemparedamento da infância, entendendo os espaços externos como recurso de
aprendizagem, como aliado do educador na elaboração de propostas. Nessa direção,
fomos caminhando para estar a cada dia mais do lado de fora, promovendo vivências e
contextos que favorecessem o desenvolvimento integral e integrado dos bebês.
Segundo Tiriba (2018, p. 11), “as crianças têm verdadeiro fascínio pelos espaços
externos porque eles são o lugar da liberdade”, possibilitando compreender o que está
dentro de si com o que está do lado de fora. Tendo em vista que somos natureza, o bebê
vai consolidando seu vínculo com a vida. Dentro de um espaço cheio de possibilidades,
estar ao ar livre pode proporcionar experiências, vivências e memórias afetivas ricas, tanto
para o seu conhecimento de mundo como para sua formação pessoal e social.
As atividades ao ar livre proporcionam aprendizagens que se relacionam ao estado
de espírito, porque colocam as pessoas em sintonia com sentimentos de bem-estar, em
que há, portanto, equilíbrio entre o que se faz e o que se deseja fazer. Um dos efeitos do
manuseio de barro, da areia, da argila é o de proporcionar esse equilíbrio. Por isso, o
contato diário com esses elementos é tão importante (TIRIBA, 2010).
São experiências para as quais os educadores não direcionam. Logo, faz-se
necessário ouvir os bebês por outras linguagens: a corporal, a gestual, entre outras,
observando aonde vão, o que coletam,com quem interagem, quais elementos chamam
mais atenção e, assim, realizar um planejamento com maior intencionalidade, colocando o
bebê como protagonista.
Sabemos que o bebê sente e percebe tudo a sua volta. Portanto, precisamos
organizar espaços, priorizando aspectos como: toque, audição, visão, cheiros e aromas, os
quais fazem parte de estímulos sensoriais que estão na natureza. Não precisamos criá-los,
basta levar os bebês para brincar, explorar e vivenciar essas experiências em ambientes
naturais. Estar com os bebês do “lado de fora”, explorando e vivenciando a natureza, na
29
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
29
coletam, com quem interagem,
escola, desempenha um papel importante para o desenvolvimento integral, sendo um
aliado para caminhos de aprendizagens a serem aprofundados, possibilitando
compreender o entrelaçamento que existe nesse espaço, que perpassa o educar e que
ressalta os benefícios para saúde do bebê.
No Instituto Dona Carminha há um espaço com diversas árvores, terra, plantas que
foi nomeado de Floresta por nossas crianças. Em nossa Floresta, proporcionamos
momentos em que o contato com a natureza é experienciado com o sentir os aromas das
flores, com o ouvir os cantos dos pássaros, com o encanto das folhas que caem das
árvores, o colocar dos pés descalços na terra e com outras possibilidades. Percebemos
que, quando os bebês brincam em diferentes espaços naturais, eles se tornam mais ativos
fisicamente e mais conscientes sobre os limites do seu corpo.
Figura 1: Crianças brincando na terra
Fonte: acervo da escola.
Parafraseando Manoel de Barros, podemos dizer que nossa Floresta é maior que o
mundo. Para nossos bebês e crianças, é um espaço cheio de encantamentos inéditos,
com diversas árvores e, entre elas, as frutíferas, como o pé de jabuticaba, pé de amora, pé
de acerola e romã nas quais há muitas flores, folhas que caem, enfeitando e embelezando
o chão, formando tapetes coloridos. Também há espaços com grama e arbustos, chão com
pedras grandes, pequenas, coloridas, cascalhos, cristais, bem como tanques de areia e
barro para brincar, balanços, escalador, casinha, escorregador, bancos, tocos de árvore.
Espaços externos como esses, ao ar livre, convidam a brincar e acolhem de maneira
afetiva.
Os bebês e crianças, ao estarem nesses espaços, exploram livremente, ampliando
seus limites, suas percepções. Ao sentir essa liberdade, adquirem conhecimento,
30
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
30
Fonte: acervo da escola.
Figura 1: Crianças brincando na terra
desenvolvem aprendizagem de si e do mundo que os cerca. É importante sentir a vida em
seu próprio tempo, acalentando e percebendo seus desejos, experienciando pesquisas
que nascem do viver e do tocar em ambientes naturais.
Através das experiências e vivências nos espaços externos e, em contato com a
natureza, pudemos observar em nossos bebês o desenvolvimento de mais prontidão,
equilíbrio, força e coordenação motora. Nas palavras de Cosenza e Guerra (2011),
{…} o desenvolvimento motor da criança é enorme nos primeiros meses de vida e
irá se fazer por meio das interações com o meio ambiente. Essa interação
estimulará a formação de novas sinapses no interior do cérebro e no restante do
sistema nervoso, ao mesmo tempo em que as vias vão se tornando mielinizadas e,
portanto, mais eficientes {…} (COSENZA, GUERRA, 2011, p.32).
Dessa forma, percebemos também que nossos bebês apresentam-se mais
tranquilos, refletindo, nessa melhora, a qualidade do sono, além de uma boa relação e
interação entre pares. A respeito da organização do espaço externo, sempre planejamos
que os momentos na natureza sejam de muitas aprendizagens e que os bebês possam
aproveitar esse recurso rico em possibilidades.
Existem algumas experiências que os bebês se encantam e se envolvem bastante.
Por exemplo, com as folhas, sons, diferentes elementos da Floresta. Nessa direção,
apresentamos para os bebês diferentes tipos de folhas (pequenas, grandes, largas,
estreitas, compridas), pois, com essa vivência, eles podem conhecer, explorar e identificar
semelhanças e diferenças. Incentivamos, também, o reconhecimento de sons da natureza,
como: do vento, dos pássaros. Levamos os bebês a observarem elementos naturais, como
formas, cores, luz, sombras, plantas, flores, entre outros, ou seja, buscamos proporcionar
experiências que aproximam o bebê, cada vez mais, da natureza.
Somente os bons encontros são geradores de potência, de alegria! Os bons
encontros são aqueles que aumentam nossa própria capacidade de afetar e ser afetado
pelos demais seres com os quais interagimos, pois
[...] não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a
queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos
esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la que a julgamos boa
(TIRIBA,PROFICE, 2014).
Ou seja, bebês e natureza fizeram a potência do encontro, da força de vida
necessária para o acolhimento e o sentimento de pertencimento, assim, nós, enquanto
31
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
31
(TIRIBA, PROFICE, 2014).
[...] (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 32).
[...]
escola, ressignificamos uma prática que,para acolher, era preciso estar entre paredes,
estar dentro de uma sala. Passamos a perceber que estar ali, no tanque de areia, ou
coletando folhas no chão, facilita o processo de ingresso do bebê e da criança pequena na
creche, porque o convida a explorar, a pertencer àquele espaço, enquanto o conecta ao
ser natureza.
Dialogando com Mello,(2006)
A relação sendo positiva, possibilita uma vivência agradável entendida como um
convite a ampliação da relação com o mundo de pessoas e objetos ao redor. Sendo
negativa, inibe a iniciativa da criança. Em lugar de abrir-se ao mundo que se
descortina frente a ela, a criança se fecha (MELO, 2006, p.199).
Dessa relação que se constitui ao ar livre, junto à natureza, podemos perceber o
bem-estar e a sensação de pertencimento e estabelecimento de vínculo com a educadora
e o espaço, ampliando relações, explorando com mais autonomia a natureza e seus
elementos.
MATERIAIS E MÉTODOS
A Instituição Dona Carminha trabalha, desde 2016, seguindo os princípios da
abordagem de Emmi Pikler, médica pediatra húngara (1902-1984) que entende os bebês
como sujeitos competentes e que necessitam vivenciar a liberdade de movimentos e
vínculo afetivo.
Para que pudéssemos observar atentamente o desenvolvimento dos bebês e como
reagiram ao fato de estar mais em contato com a natureza, criamos uma pauta de
observação do olhar para que conseguíssemos ter “pistas” dos bebês que têm pouco
contato com a natureza e que também incluía observar como estes se comportavam em
situações diversas ao fato de estar na área externa.
Dialogamos, também, com as educadoras nas formações, sobre a importância de
estar ao ar livre, em contato com a natureza e o impacto na saúde que isso proporciona,
baseado em estudos da neurociência.
32
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
(2006):
32
(MELO, 2006, p. 199).
Nossa pauta de observação seguia alguns critérios, tais como:
Desenvolvimento Motor;
Atitudes e comportamentos durante os cuidados: sono e alimentação;
Relação e interação;
Desenvolvimento intelectual;
O material que utilizamos para registro foi a documentação pedagógica da escola
que consiste na utilização dos instrumentos metodológicos que se iniciam no planejamento
da professora, na pauta do olhar - instrumento em que norteamos o olhar para
compreender o desenvolvimento de cada bebê, no qual é feito um registro fiel (através de
imagens, vídeos e narrativas) e o acompanhamento do portfólio individual de cada bebê.
Com esses dados, foi possível observar suas conquistas e o seu desenvolvimento
individual.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Observamos que, durante o período de acolhida (comumente chamado de
adaptação), ao levar os bebês para a área externa em contato com a natureza, seja no
tanque de área ou apenas a caminhar ou estar no colo da educadora, em casos de choro,
este era minimizado e o bebê passava a querer explorar seu entorno.
Ao se apropriar do lado externo, foi possível perceber nos bebês maior autonomia
para explorar esse espaço e como isso lhe proporcionou maior desenvoltura e segurança
no caminhar, o que lhe gerou um sentimento de confiança e de competência para explorar
mais e brincar livremente.
Em outras palavras, o brincar, nessa perspectiva, teria a função vital e adaptativa
de fomentar o pleno desenvolvimento da criança em seus múltiplos e variados
aspectos, sobretudo do ponto de vista social e cognitivo, e o faria estimulando a
aprendizagem por meio das experiências que propicia (COSTA, 2013, p. 04).
Entendemos que estar na natureza propiciou bem-estar físico e emocional nos
bebês, minimizando choros, estresse, nos trazendo à luz os estudos de Consenza e
Guerra:
33
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
33
Muitas pesquisas têm mostrado que a estimulação ambiental é extremamente
importante para o desenvolvimento do sistema nervoso{…}{...} a interação com o
ambiente é importante porque é ela que confirmará ou induzirá a formação de
conexões nervosas e, portanto, a aprendizagem ou o aparecimento de novos
comportamentos que delas decorrem. Em sua imensa maioria, nossos
comportamentos são aprendidos e não programados pela natureza (CONSENZA,
GUERRA, 2011, p34).
Portanto, estar do lado de fora, “desemparedados”, os bebês reagem com novos
comportamentos usufruem dos benefícios já destacados pelos estudiosos da neurociência,
nesse sentido, faz-se necessário ampliar este olhar de como transformar o cotidiano de
bebês e crianças, oferecendo-lhes mais oportunidades de estarem em conexão com a
natureza.
Brincar ao ar livre, em contato com a natureza, apresenta diversos benefícios
cognitivos, motores e emocionais, diversos deles relatados em artigos
científicos,Velasques (2020) cita três deles:
•Construção da autonomia: ao brincar na natureza de forma livre, a criança pode
fazer experimentações, escolhendo e gerenciando os riscos e consequências. Essa
ação contribui para o desenvolvimento de alguns processos associados com a
função executiva, como a capacidade de controle inibitório e de solução de
problema;
•Diminuição dos níveis de estresse e ansiedade: o contato com a natureza e sua
diversidade permite que a criança viva o aqui e agora, explorando o ambiente de
forma direta. A diminuição do cortisol (o conhecido hormônio do estresse) na
circulação sanguínea é vista em indivíduos que tem contato constante com a
natureza;
•Melhores níveis de atenção: Os ambientes fechados, artificiais e eletrônicos,
apresentam um excesso de estimulação considerada passiva enegativa. Isso
sobrecarrega o sistema nervoso, levando a alterações no processamento da
informação. O contato com a natureza tem um fator calmante e relaxante
comparada a esses outros ambientes.
É importante ressaltar que as crianças que brincam ao ar livre com regularidade de
forma não dirigida e estruturada são mais capazes de conviver com os outros, mais
saudáveis e mais felizes.
34
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
34
GUERRA, 2011, p. 34).
. Velasques (2020) cita três deles:
os
(CONSENZA;
Figura 2: Crianças brincando ao ar livre
Foto: acervo da escola.
Em março de 2020, devido à pandemia de Covid-19, as aulas presenciais foram
interrompidas e nossas observações não puderam ser realizadas.
Em maio de 2021, retornamos ao atendimento presencial e com os bebês e
crianças longe da escola, por mais de um ano, novamente, colocamos nossos
conhecimentos prévios em ação e, ao recebê-los, pensamos e planejamos estar, a maior
parte do tempo, ao ar livre, até como prevenção na disseminação do vírus. Mais uma vez,
comprovamos a importância do acolhimento da escola se dar na área externa em contato
com a natureza.
Infelizmente, o impacto da pandemia se tornou visível no cotidiano da escola,
porém, ao experienciarem a sensação de estar na natureza, aos poucos, vamos
observando o despertar de corpos, outrora “emparedados”, “confinados” e “ limitados”, o
desejo de correr, de sentir o vento no rosto, a busca por mundos invisíveis que se avistam
somente entre as copas das árvores, a liberdade de criação do tanque de areia, a música
e a sonoridade da floresta vão despertando novos sentimentos nos bebês e nas crianças.
Os benefícios que a natureza proporciona foram vivenciados pelos educadores e
bebês ao ingressarem na escola e serem “abraçados” não apenas pelo verde das árvores,
pela brisa suave dos ambientes naturais mas também pelo afeto proporcionado pelo colo
da educadora.
35
Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
Fonte: acervo da escola.
35
Fonte: acervo da escola.
Figura 2: Crianças brincando ao ar livre
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos que nossa premissa pedagógica, inspiradas na abordagem Pikler, nos
levou a estudar formas e possibilidades de contribuir para o desenvolvimento integral da
criança de forma respeitosa e acolhedora.
Consequentemente, sabedores da importância da interação com a natureza para o
desenvolvimento dos sentidos e de habilidades, o espaço externo foi o caminho que
encontramos para promover vivências e experiências significativas a bebês, que sentindo-
se acolhidos, se desenvolvem, movimentando-se livremente, com conforto e bem-estar. Foi
possível comprovar, ali, no cotidiano da escola todos os benefícios que inúmeras
pesquisas já corroboram.
A natureza faz parte de nós e, se somos natureza, a escola deve e pode incluir no
seu currículo vivo formas de, na organização da vida diária, privilegiar o estar na natureza,
as experiências e os momentos de exploração. Para isso, é preciso ressignificar o
cotidiano, entendendo que o desenvolvimento integral da criança é nosso compromisso
com a educação e que, se a natureza promove tantos benefícios cientificamente
comprovados, estar lá fora é a maior aprendizagem e melhor escola possível.
Compartilhar nossas experiências, práticas e vivências do Instituto Dona Carminha
pode servir de inspiração para outras escolas, espaços e famílias, para que também
proporcionem vivências carregadas de afetos e aprendizagens ao lado de fora e em
contato com a natureza.
É possível que, com este relato, possamos dialogar sobre a forma como as escolas
enxergam suas propostas e compreendam o potencial que a natureza carrega enquanto
parceira na aprendizagem e no acolhimento das crianças. O presente capítulo é um relato
das experiências vividas em um cotidiano vivo, repleto de bebês, folhas, flores, ventos e
brisas que pode servir de base para um diálogo e uma nova realidade nas creches
brasileiras.
Um diálogo sobre estar ao ar livre, pode ser a base de um projeto político
pedagógico onde se impera o respeito às infâncias, se compreende a singularidade de
cada sujeito e se entende os benefícios da natureza no desenvolvimento integral e
integrado de bebês e crianças.
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Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
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Figura 3: Bebês no descanso
Foto: acervo da escola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA et al. Funções executivas e desenvolvimento infantil: Habilidades necessárias para
autonomia: estudo III/Organização Comitê científico do núcleo Ciência pela infância 1ª
Edição São Paulo - Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal 2016.
COSTA, Vera R. da Por que brincar é importante? Instituto Ciência Hoje. Disponível em:
Acesso em 13 de setembro de 2021
MELLO, S. A. (2006). Contribuições de Vigotski para a educação infantil. Em: S.G.L.
Mendonça & S. Miller (Orgs.) Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações
pedagógicas (pp.193-202). Araraquara: Junqueira & Marin
TIRIBA, Léa. Crianças, natureza e educação infantil. Tese de Doutorado, Departamento de
Educação, PUC-RIO, 2005.
TIRIBA, L. PROFICE, C.C. Currículo em movimento Anais do I Seminário Nacional:
Perspectivas Atuais Belo Horizonte, novembro de 2010.
VELASQUES, B. INSTAGRAM DRA. BRUNA VELASQUES,
@drabrunavelasques.Disponível em:https://www.instagram.com/drabrunavelasques/.
Acesso em: 18 de setembro de 2021.
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Fonte: acervo da escola.
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. Anais do I Seminário Nacional:
Figura 3: Bebês no descanso
Fonte: acervo da escola.
SOBRE AS AUTORAS
Patrícia Bignardi Torres - Pedagoga formada pela Unicamp, MBA em Gestão escolar
USP, pós graduada em Neuropsicologia com Enfoque em Neurologia Infantil (FCM-
Unicamp), participante do grupo de estudos de Apego com Sylvia Nabinger, em formação
na Abordagem Pikler com Instituto Pikler- Loczy France coordenado pela Dra. Isabelle
Deligne. Membra da Rede Pikler Brasil diretora do Instituto Dona Carminha, fundadora da
Vivencias Pedagógicas, professora convidada
Tatiara Goulart. H. Alves - Pedagoga, Especialista em Gestão Escolar, Especialista em
Educação infantil, Especialista em Pedagogia Inovadoras pela PUC, Pós Graduanda na
Abordagem Reggio Emilia, Pós Graduanda na Abordagem Pikler e Pesquisadora da
Primeira Infância e Abordagem Pikler. Membra da Rede Pikler Brasil e Vice Diretora do
Instituto Dona Carminha e Co-Fundadora da Empresa Vivências Pedagógicas.
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Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
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CAPÍTULO 3
CRIANÇAS EM AMBIENTES NATURAIS NAS ESCOLAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL:
POR CORPOS POTENTES E SAUDÁVEIS!
Mayara Bazilio
Katia Bizzo Schaefer
RESUMO
O presente trabalho é fruto de estudos relacionados ao desenvolvimento infantil por meio
do contato com a natureza e seus elementos e fenômenos, buscando a reflexão sobre
estruturas educacionais que promovem práticas na Educação Infantil distantes das
conexões com o meio natural, priorizando espaços fechados e recursos industrializados.
Com o objetivo de trazer novas perspectivas de trabalho junto às crianças de 0 a 6 anos,
são apresentadas reflexões que convidam a buscar caminhos possíveis no contato com o
meio natural, pontuando as oportunidades de diálogo com documentos como DCNEI
(BRASIL, 2009) e BNCC (BRASIL, 2018), a partir, também, da contribuição de teses de
autores, como Spinoza (2011), Morin (2004, 2012) e Guattari (2012). O texto se baseia em
estudo bibliográfico de ordem filosófica e documental, dialogando com questões sobre a
importância da natureza em práticas educacionais com crianças. O trabalho revela a
urgência de os profissionais compreenderem o quanto a vida moderna distancia a criança
de sua natureza, buscando, assim, caminhos que vão na contramão dessa lógica, com o
intuito de reconexão que potencialize a prática e recupere nos corpos infantis o sentimento
de pertencimento à natureza e de reconhecimento de si como parte desse ambiente.
Desse modo, ainda que profissionais se vejam impossibilitados por estruturas que possam
restringi-los, o texto convida o leitor a rever os caminhos traçados no ambiente educacional
para (re)estabelecer esse contato, no desejo de promover potencialização e saúde nos
corpos no cotidiano da Educação Infantil.
Palavras-chave: Cotidiano escolar. Infâncias. Natureza.
INTRODUÇÃO
Pensar o contato com ambientes naturais no contexto escolar é desafiador e pode
até parecer impossível em alguns casos, mas, apesar de concordarmos com o fato desse
contato ser desafiador, ele não é impossível, pois não há ambiente que não tenha ar, luz e
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animais vivos em relação, mesmo que os únicos animais sejamos nós, seres humanos.
Sim! Somos animais, seres naturais. Respiramos oxigênio, liberamos gás carbônico,
precisamos de um solo para nos firmarmos, nos fortalecemos com a luz do sol e nos
hidratamos com a água. Não sobreviveríamos no planeta sem essa condição.
Somos, na origem de humano, húmus! Somos sobreviventes da nutrição em um
meio líquido no ventre de nossas mães e, após sairmos do meio líquido, necessitamos que
a água nos habite, nos constitua, junto com o ar, junto com os minérios da terra, junto com
a energia do sol. Essa é a única condição de sermos humanos! Portanto, pensar em
escolas sem ambientes naturais, é negar nossa condição vital de pertencer a tais
ambientes.
Por sua vez, podemos afirmar que há instituições educacionais que realmente
ignoram essa condição. Produzem salas fechadas, com janelas distantes do alcance dos
olhos, que não permitem a entrada da luz solar ou do ar natural. Organizam seus horários
com a maior parte do tempo (quando não é a totalidade do tempo) entre quatro paredes,
na tentativa de que esqueçamos nossa origem, nossa identidade terrena (MORIN, 2004).
Isso acontece porque as escolas são fruto da cultura da qual fazemos parte em nossos
fazeres diários. Ao destacar os sete saberes necessários para a educação do presente,
Morin (2012, p. 34) nos alerta: “Todos os componentes do nosso corpo são físicos e
químicos. Somos a síntese de toda a história do universo”. Essa afirmação nos leva a
refletir sobre o distanciamento que os corpos ocupam nas suas relações com os saberes,
sejam esses disponibilizados no ambiente escolar ou em qualquer outro ambiente que nos
religue com nossa própria condição humana, com a nossa constituição cósmica, natural.
A culpa não é da escola, do professor ou de um determinado grupo social, político
ou econômico pelo distanciamento que fazemos de nossa própria condição. Não é questão
de encontrar culpados, mas de olhar para as causas desses efeitos a fim de poder
percebê-los, questioná-los e transformá-los.
Com isso, neste texto, buscamos apresentar bases teóricas que nos convidam a
nos percebermos como corpos naturais, de forma a buscar caminhos para um reencontro
com nossa essência ambiental para que possamos ser o que somos. Em seguida,
trazemos reflexões sobre o currículo da Educação Infantil em contexto urbano para pensar
em possibilidades de atuação em ambientes naturais, no intuito de quebrar paradigmas
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nas práticas educacionais e potencializar corpos em contextos de aprendizagem e
desenvolvimento infantil saudável e diverso.
Este texto é fruto de estudos teóricos, mas também vivenciados na rotina do chão
da escola, seja de cimento, terra ou lama, entre paredes, mas também longe delas, na
diversidade de ambientes afirmados como urbanos, mas também nos quais resistimos
para que sejam percebidos no que têm de mais natural, simples, seja minúsculo como uma
formiga ou grandioso como uma tempestade.
POR UMA ÉTICA CÓSMICA E POTENTE!
Vivemos em uma sociedade que prima pela cultura patriarcal, na qual a
desconfiança, a competição e o desejo de controle das ações e do mundo natural, de
outros seres e de nós mesmos predominam (MATURANA, 2004, p. 37). Prevalece a lógica
eurocêntrica, do colonizador de terras, povos e culturas originárias de nosso país, que se
baseia em um entendimento antropocêntrico do universo e, consequentemente, dominador
das riquezas naturais a ponto de buscar produção em massa de bens que aprendemos a
perceber como necessários. Aprendemos a dicotomizar homem e natureza, corpo e mente,
produção e prazer (TIRIBA, 2018). Nessa separação de nós mesmos, deixamos de nos
perceber naturais e passamos a nos considerar superior aos outros seres, elementos e
fenômenos naturais. Usamos a condição racional com supervalorização em detrimento da
nossa condição emocional. Com isso, nosso emocionar se torna precário e imperceptível
até para nós mesmos.
Nesse processo de distanciamento de si (pois o que mais seria uma mente
separada de um corpo se não o distanciamento de si próprio?), os corpos se tornam
neuróticos, adoecidos, distantes de sua própria capacidade de sentir e de, assim, se
perceber e se relacionar com o ambiente em que vivem como também com todos os seres
bióticos a abióticos que os constituem.
Distante do que se é, chegamos a acreditar que o contato com ambientes naturais
pode nos prejudicar, já que cultivamos a ideia de que espaços naturais podem ser nocivos
à nossa integridade física. Assim, vamos à escola e construímos currículos educacionais
que são fiéis a uma linha de pensamento que ignora o corpo e supervaloriza a mente,
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como se ela não fosse algo que só existe porque faz parte de algum corpo (NIETZSCHE,
2011). O corpo, por sua vez, é visto como elemento de disciplinarização dos movimentos,
docilização dos desejos e mediocrização dos sentidos, enquanto, paralelamente, a mente
ganha status de conhecimento, produção e poder, seja esse social, político ou econômico.
Com esse processo, a vida passa a ser percebida apenas pela mente, ignorando a
subjetividade e o valor da potência que há no corpo nas relações que estabelece durante
sua jornada em busca de sucesso profissional e financeiro. Como se não bastasse, as
instituições educacionais se tornaram o local para lograr tal êxito, reproduzindo a lógica
produtivista e mercantilista que alimenta tal ideia de ser humano realizado no universo
(BRASIL, 2009, 2013, 2018). Não distante dessa forma de pensar e agir, entendemos a
natureza como algo à parte de nós ao invés de nos percebermos como parte dela.
Em contrapartida, o filósofo Spinoza (2011) defende uma teoria monista, na qual ele
afirma que todos nós fazemos parte de uma essência única na vida na Terra, que é a
natureza. Para ele, essa natureza é Deus, causa e efeito em si própria. Nós, humanos,
como outros seres vivos, somos modos de expressão dessa natureza e perseveramos
quando vivemos bons encontros com o que é natural. Bons encontros, para o filósofo, são
as experiências de afetos alegres, ou seja, viver experiências que nos emocionam e nos
transformam, potencializando os corpos. São experiências boas de viver que nos alegram.
Há também as experiências que não são boas e que geram afetos tristes. Essas são frutos
de maus encontros e refreiam a nossa capacidade de agir no mundo.
Spinoza (2011) vai além ao afirmar que os seres vivos têm uma condição nata de
buscar perseverar em si, o que ele chama de conatus, ou seja, há um desejo nato de viver
bons encontros para potencializar o corpo e as ações na vida e esse desejo vai ao
encontro de se sentir parte dessa essência única que é a natureza. Ora, se nos
potencializamos com bons encontros, se somos parte da natureza, essa percepção e
relação com o que é natural gera alegria e sentimento de pertencimento a algo maior do
que cada corpo. É uma mola propulsora natural e única da qual todos nós fazemos parte.
Há uma integração do corpo com todos os corpos vivos, fenômenos naturais e elementos
que compõem forças nessa trama cósmica que nos constitui e que constituímos. Como
afirma Morin (2004), precisamos conhecer a nossa condição planetária, pois o universo
nos habita e nós o habitamos ao mesmo tempo. Não há separação. Em outra obra, o autor
complementa:
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As simbioses existentes na natureza são processos muito importantes para se
perceber que os princípios de evolução da vida são também muito complexos.
Existe cooperação mútua, integração, seleção e, sobretudo, criação. Criação [...]
significa o poder criativo inerente à natureza, como disse muito bem Spinoza. Para
ele, a natureza tem um poder de criação que podemos perceber por meio da
evolução biológica (MORIN, 2012, p. 39).
A percepção dessa rede de relações entremeada em uma única essência gera
também a noção de agir no coletivo, com responsabilidade socioambiental, como nos diz
Guattari (2012), ao se referir aos três registros ecológicos no corpo – meio ambiente,
relações sociais e subjetividade humana.
Trata-se de uma ética que vem do e no corpo, a partir dos afetos, sejam estes
alegres ou tristes e que põe em questão a maneira de viver no planeta. Para Guattari
(2012, p. 9), “não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala
planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e
cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais”. O filósofo
acrescenta que essa revolução também se refere à dimensão sensível do ser humano, de
inteligência e de desejo. Para melhor entender o que isso representa, cabe resgatar alguns
conceitos de Spinoza.
É pelos afetos que podemos nos emocionar e, com isso, pensar de forma
adequada, com ideias verdadeiras, como diria Spinoza (2011). Para este filósofo, a ética
está no fato de agir e pensar a partir dos afetos. Para tanto, seria preciso saber perceber
tais afetos para poder escolher quais encontros queremos em nossas vidas.
Apesar dessa noção de corpo cósmico, entrelaçado, natural, a sociedade ocidental
eurocêntrica segue o caminho de negação do que é natural, considerando o ser humano
não apenas separado da natureza como superior a ela, colonizador da mesma. Com o
argumento de sermos seres racionais e, por nós mesmos, considerados os únicos seres
nessa condição, aprendemos que somos superiores a tudo e a todos, inclusive a outros
seres humanos que, por motivos raciais, históricos ou socioeconômicos se diferem da
casta dominadora.
Paradoxalmente, usamos da condição de conhecer para desconhecer, pois
passamos a não reconhecer o nosso lugar na natureza. Na tentativa de sermos superiores
a todas as espécies, matamos, colonizamos, destruímos, competimos. Cultivamos a
ganância, a propriedade, o acúmulo de capital e o poder econômico e social. Assim, nos
distanciamos cada vez mais da simplicidade de sermos apenas o que somos. Abrimos mão
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de sentir, de nos emocionar, de escutar, de ter tempo para estar inteiro no sol, na água, na
terra, na lama, sentindo o ar na pele, escutando os diferentes sons, cheirando os
diferentes aromas, contemplando a visão de tantas formas de vida e de organização
ambiental e experimentando as diferentes texturas que os ambientes naturais
proporcionam.
Essa sensorialidade rejeitada nos afasta do corpo que somos e, portanto, sem ser o
que somos, como nos considerar conhecedores da vida e do planeta? Que seres
superiores e detentores do saber temos a pretensão de sermos quando não sabemos
sequer quem somos?
Spinoza (2011) já denunciava esse falso saber na sociedade ocidental ao
apresentar os três gêneros do conhecimento. No primeiro gênero, há os indivíduos que
não entendem seus afetos, não os percebem. Eles agem pelo o que ouvem dizer que é
certo ou errado. Não há autonomia de escolha, de decisão. São levados ao acaso dos
encontros. Assim, culpam terceiros pelo que vivem, não assumindo a responsabilidade de
suas próprias escolhas. No segundo gênero, o indivíduo já percebe quais encontros ele
deve escolher, mas ainda não sabe como garantir tais escolhas. Há um nível de percepção
dos afetos, mas ainda se sente preso aos acasos na maior parte das vezes. Nesse gênero
de conhecimento, há a razão, pois há o desejo e a percepção do que se quer viver, mesmo
que não saiba como. Há a busca pela causa que leva aos efeitos da escolha, mas não
necessariamente é sabido como garantir as escolhas adequadas. Essa garantia está no
terceiro gênero do conhecimento, no qual os indivíduos, para o filósofo, são gênios. Eles
agem intuitivamente, a partir dos afetos. Não há necessidade de muita explicação, pois o
conhecimento de si é tão intenso que o caminho na direção de perseverar em si torna-se
perceptível e, portanto, pode ser escolhido com autonomia. O indivíduo, nesse terceiro
gênero do conhecimento, parte dos seus afetos, da percepção do corpo que é, que age e
pensa a partir de suas verdadeiras emoções e, com isso, chega às ideias verdadeiras, ao
verdadeiro conhecimento.
Nesse processo, podemos também pensar com Nietzsche (2011) que o corpo é o
fio condutor da relação com o mundo, portanto, com as aprendizagens. Somos fluxos de
forças em movimento e em tensão e, nesse fluxo, as emoções questionam nossos
pensamentos e a razão se dá exatamente a partir de um pensar originado no sentir, por
isso, nos afetamos pelas experiências.
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Por outro lado, diante da cultura que fazemos parte como coautores, aprendemos a
nos relacionar com o mundo apenas no nível da consciência, entendendo o corpo a partir
de um esquema corporal que nos aponta suas estruturas psicomotoras, como equilíbrio,
lateralidade, coordenação motora ampla e fina, ritmo e outros aspectos funcionais que nos
sinalizam a forma de se movimentar no meio em que vivemos. Contudo, para além do
esquema corporal e de outras estruturas funcionais mais evidentes, há a imagem corporal
que é constituída de aspectos subjetivos, a nível inconsciente, que faz com que nos
percebamos atuantes no ambiente e com valores que nem sempre conseguimos entender,
verbalizar ou, até mesmo, perceber. Na relação do esquema corporal com a imagem
corporal, nos tornamos corpos que podem caminhar mais no sentido da saúde ou da
neurose.
Ao buscar a aproximação do ser humano com ambientes naturais, busca-se inverter
a direção do caminho da doença para seguir uma suposta nova rota. Dizemos “suposta
nova rota”, pois ela não é nova, já que está na nossa origem, no corpo que somos, na
essência da qual fazemos parte, apesar de esquecida na mente, no consciente.
Na perspectiva de uma vida não divorciada do que é natural, podemos seguir um
curso mais potente, pois somos seres biofílicos, ou seja, temos naturalmente o desejo de
nos afiliar com outras formas de vida, por termos “uma afinidade inata com o mundo
natural, provavelmente uma necessidade de origem biológica” (LOUV, 2016, p. 65) que nos
leva ao desenvolvimento saudável de nossa espécie.
Quando estamos em contato com ambientes naturais, nos percebemos parte desse
ambiente e, portanto, nos conectamos com nossa própria essência, o que nos possibilita
revisitar nossa imagem corporal de forma a potencializá-la diante da intimidade do corpo
com o que o compõe.
O ambiente natural também nos desafia a reelaborar as estruturas psicomotoras ao
apresentar um contexto interativo, orgânico, sem uniformidade. O ambiente nos torna
atentos ao presente, ao aqui e agora, à relação entre corpos, pois ele é dinâmico,
sensorial, imprevisto, vivo e diverso. Como exemplo, podemos apresentar o ato de subir
em árvores. Nessa ação, a falta de uniformidade dos troncos nos torna atentos, nos faz
perceber suas raízes, rachaduras, caminhos, curvas, a partir de nossa sensorialidade.
Escutamos a árvore em toda sua expressão e nós, como também seres expressivos dessa
natureza única, nos conectamos, nos ambientamos, somos! Somos de tal forma, que
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podemos nos sentir árvores com seus troncos, intimamente ligadas ao corpo vegetal para
o qual nos entregamos. Tudo isso pode acontecer no instante em que se sobe na árvore,
mas essa relação com a potencialização do corpo pode ser percebida ou ignorada, já que,
desde crianças, em contextos urbanos e ocidentais, vivemos experiências de
decomposição de corpos em prol de um conhecimento superficial que garanta a
sobrevivência em uma sociedade patriarcal, mesmo que isso custe a saúde de todos nós.
A NATUREZA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: EM BUSCA DE CORPOS
POTENTES E SAUDÁVEIS
A criança já está inserida na natureza, no entanto, sua relação pode estar
comprometida por muitos fatores que vão desde à violência ao uso de eletrônicos,
prejudicando interações. Por isso, a escola pode e precisa estar atenta a esse movimento,
problematizando as consequências para criar caminhos. Segundo o Manual de Orientação
sobre Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes (SBP,
2019, p. 2),
Os impactos do confinamento e da falta de contato com natureza e ambientes
saudáveis são mais agudos e presentes nas cidades e bairros densamente
habitados e de alta vulnerabilidade social, onde as condições para uma vida
saudável e plena estão ameaçadas. Esse cenário vem se agravando nos últimos
anos e é particularmente crítico quando se trata da infância e da adolescência, com
indicadores que se destacam em diversos setores.
Considerando esses impactos, é preciso articular a prática ao currículo de maneira
que a rotina das crianças que frequentam o espaço escolar não seja desvinculada de
experiências que recuperem ou mantenham a relação com o meio ambiente e seus
elementos naturais. As infâncias são múltiplas e, consequentemente, o contato de
crianças de um mesmo espaço escolar com a natureza pode ser bem diferente. A
diversidade atravessa a Educação em muitos aspectos e, por essa razão, promover a
conexão com espaços naturais afeta as crianças de diferentes formas.
Pensando que a Educação Infantil é uma etapa que valoriza e promove
brincadeiras, a associação destas com as vivências na natureza é uma fórmula de sucesso
para o desenvolvimento das crianças, quando elas são espontâneas, livres, ou seja, sem
haver a intervenção direta de um adulto, direcionando o ato de brincar para suas próprias
intenções. Com espaço e liberdade, há o brincar e, portanto, a criatividade, as sensações e
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as demais respostas que correr, rolar, tocar e sentir em espaços naturais oferecem trazem
benefícios à saúde.
A natureza pode funcionar tanto como recurso quanto como cenário das
brincadeiras, oferecendo descanso e/ou lazer às crianças ao passo que promove,
naturalmente, conexões sadias de afeto por meio do sentimento de pertencimento. O
relaxamento que a natureza gera é um elemento basilar na rotina das crianças dessa faixa
etária.
Brincar na areia, subir em árvores, construir cabanas e encontrar os amigos ao ar
livre são experiências importantes que permitem estabelecer conexões positivas
com a vida e com o outro. Portanto, se esses momentos não tiverem lugar na
escola ou em outros territórios educativos, talvez não aconteçam na vida de muitas
crianças e adolescentes que hoje passam a maior parte do seu tempo em
instituições escolares. É preciso agir para evitar o empobrecimento do repertório de
experiências que elas podem (e devem) vivenciar (SBP, 2019, p. 3).
O ato de brincar é direito da criança e as experiências com a brincadeira precisam
ser possibilitadas em diferentes formatos e contextos. A proposta de tornar a natureza uma
aliada da brincadeira registra nos corpos infantis experiências positivas, nos quais a
aprendizagem acontece naturalmente, sem imposições que pressionem a criança a
adquirir conhecimentos de maneira compulsória. Krenak (2020, p. 101-102) apresenta
contribuições importantes para esta reflexão:
Acho gravíssimo as escolas continuarem ensinando a reproduzir esse sistema
desigual e injusto. O que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à
liberdade de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui,
chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo. Para mim, isso não é educação,
mas uma fábrica de loucura que as pessoas insistem em manter.
Enquanto documento que norteia práticas e auxilia os trajetos da Educação Infantil,
o currículo é instrumento potente quando considerado no processo de pensar a
cotidianidade de crianças de 0 a 6 anos. A importância do currículo também se apresenta
enquanto ato político, no qual as escolhas se manifestam por meio dos direcionamentos e
propostas desenvolvidas.
Para além do que se faz, o modo como se realiza é também componente de um
currículo e, enquanto orientador de fazeres, ele precisa ser pensado e debatido frente às
peculiaridades de cada unidade escolar, pois ainda que esteja voltado para as crianças, é
elaborado com vistas a atender todo o território nacional, contemplando, portanto, todo o
país. O Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996)
ratifica:
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Os currículos da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio devem ter
uma base nacional comum, a ser complementada em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar por uma parte diversificada, exigida pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.
Considerando a existência de uma base nacional comum que é complementada por
elementos diversificados, pode-se perceber onde cabe a sensibilidade às especificidades
de, por exemplo, uma rede de ensino local que, além de suas próprias características,
precisa considerar a individualidade de unidades de ensino. A parte diversificada desse
currículo é um processo que oferece autonomia e confere responsabilidade a quem vive
em diferentes contextos educacionais.
E, para pensar nessa Educação Infantil a nível federal, temos dois principais
documentos (BRASIL, 2009, 2018): as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Infantil (DCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A partir deles, nossa
problematização, ao contrário do que se possa esperar de documentos tão importantes,
não cessa, inicia; afinal, o currículo, ainda que compulsório, traz ideias metodológicas, mas
o desenrolar desses processos tão complexos e basilares se dá na transposição de
discussões e ideias para uma experiência infantil. Ou seja, a atenção ao currículo é
apenas a primeira etapa de um longo processo.
A partir da análise das DCNEI (BRASIL, 2009) e da BNCC (BRASIL, 2018), como
podemos trazer a natureza para as aprendizagens construídas na Educação Infantil? É
possível percebê-las nesses documentos, trazendo-as para a realidade das estruturas de
nossas escolas, creches e demais espaços de desenvolvimento infantil? Quais são as
concepções trazidas nessas orientações que consideram a relevância do contato das
crianças com a natureza?
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (BRASIL, 2009), em seu
Artigo 4, definem a criança como:
Sujeito histórico e de direitos, que, nas interações, relações e práticas cotidianas
que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia,
deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a
natureza e a sociedade, produzindo cultura.
A palavra “natureza” pode ser o ponto de partida para entendermos a relevância que
processos de contato com os ambientes naturais têm ou podem ter conforme o
conhecimento e compreensão não só de documentos mas também no que trata os
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reflexos de uma Educação Infantil que não se limite a brinquedos comercializados e
espaços fechados.
Experimentar, questionar e construir são processos que, em meio à natureza, são
plenamente possíveis, por meio do toque, da observação, das indagações que surgem ao
longo das interações com elementos naturais e das experimentações que a criança, no
seu desbravar curioso, realiza porque o mundo ainda está se apresentando para ela
(Figura 1). Assim, vemos, inicialmente, portas que se abrem para essas práticas em
documentos oficiais, embora ainda percebamos uma abordagem colonizadora,
eurocêntrica, produtivista e antropocêntrica nos documentos citados.
Figura 1: Pegando o arco-íris com as mãos
Fonte: as autoras, 2019.
A natureza nos oferece recursos gratuitos e vivos, porque nela residem seres com
os quais nós e as crianças podemos criar relações de cuidado, afeto e responsabilidade e,
por isso, o mundo natural nos ajuda a construir sentidos e produzir cultura de forma mais
autêntica. Junto a essas aquisições, está a valorização dos bens naturais com a
preservação, a manutenção da vida, em que a criança, com o tempo, percebe que cuidar
da natureza é parte do cuidado consigo enquanto elemento de um ecossistema (Figura 2).
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Figura 1: Pegando o arco-íris com as mãos
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Figura 1: Pegando o arco-íris com as mãos
Fonte: as autoras, 2019.
Figura 2: Percebendo o caminho das formigas
Fonte: as autoras, 2018.
Dando continuidade ao que o documento DCNEI propõe, observa-se que, nos
princípios por ele adotados, temos a ética que contempla o respeito ao meio ambiente
redigida de maneira explícita. Já os princípios políticos e estéticos, ainda que
indiretamente, atendem às habilidades presentes em experiências em meio à natureza
como direitos de cidadania e sensibilidade. Desse modo, faz-se necessária a interpretação
do documento para além de palavras-chave que nos remetam às práticas com o ambiente
natural, compreendendo-o como disparador de possibilidades de construção de novos
paradigmas educacionais.
Cabe sinalizar que, ao tratar conjuntamente os três princípios – éticos, estéticos e
políticos –, podemos entender que eles são indissociáveis no processo de uma verdadeira
educação que considera as três ecologias citadas pelo filósofo Guattari (2012), pois não há
processo verdadeiramente ético que não seja estético e político, como não há processo
político voltado para o bem de todos os seres e do meio ambiente que não seja por si só
ético e estético; e não há processo estético que não atue de forma ética e política, já que o
estado de estesia proporciona um saber pelos afetos que nos reconecta com nossa
condição planetária e com a potencialização dos nossos corpos.
Já a BNCC (BRASIL, 2018), ao longo de suas pontuações, traz os objetivos de
aprendizagem para cada campo de experiência. Tais objetivos, assim como as DCNEI
(BRASIL, 2009), como já sinalizado, apresentam uma abordagem colonizadora,
eurocêntrica, produtivista e antropocêntrica, mas podemos perceber alguns pontos de
abertura para dialogar de diferentes maneiras com a prática em meio à natureza e seus
efeitos na aprendizagem. Dentre eles, estão:
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Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
Figura 2: Percebendo o caminho das formigas
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Figura 2: Percebendo o caminho das formigas
Fonte: as autoras, 2018.
Interagir com crianças da mesma faixa etária e adultos ao explorar espaços,
materiais, objetos (BNCC, 2018, p. 45).
Experimentar as possibilidades corporais nas brincadeiras e interações em
ambientes acolhedores e desafiantes (BNCC, 2018, p. 47).
Expressar ideias, desejos e sentimentos sobre suas vivências, por meio da
linguagem oral e escrita (escrita espontânea), de fotos, desenhos e outras formas
de expressão (BNCC, 2018, p. 49).
Observar, relatar e descrever incidentes do cotidiano e fenômenos naturais (luz
solar, vento, chuva etc.) (BNCC, 2018, p. 51).
Compartilhar, com outras crianças, situações de cuidado de plantas e animais
nos espaços da instituição e fora dela (BNCC, 2018, p. 51).
Explorar o ambiente pela ação e observação, manipulando, experimentando e
fazendo descobertas (BNCC, 2018, p. 51).
As conexões propostas com a vivência da criança em ambientes naturais podem
ser vistas com maior facilidade no campo “Espaço, tempo, quantidades, relações e
transformações”, que traz fenômenos naturais, plantas e exploração do ambiente.
Entretanto, todos os demais objetivos expostos manifestam relação com um percurso que
converse, na prática, com a natureza, buscando experiências nas quais as emoções, o
corpo e as sensações possam assumir suas expressões.
Ainda que essa relação seja minimamente apresentada, a natureza ainda aparece
por uma visão de estar a serviço do homem (que ignora sua condição natural, se
percebendo superior ao ambiente e seus elementos). Tal perspectiva vai ao encontro da
cultura ocidental que fazemos parte e na qual também investimos em sua transformação.
Contudo, os documentos já apresentam pequenos sinais de mudança que abrem
caminhos para novas práticas, afetos e reelaborações corporais.
Sendo assim, os exemplos de alguns objetivos presentes no documento compõem
todos os cinco campos de experiência, evidenciando que há abertura para a realização de
ricas ações em espaços onde a terra, as árvores, as plantas, folhas, flores, animais e
processos naturais sejam valorizados como grandiosos componentes curriculares. Assim,
percebemos que o conceito de currículo das DCNEI (BRASIL, 2009) é considerado pelos
campos de experiência da BNCC (BRASIL, 2018) quando diz:
Conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das
crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico,
ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral
de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2009, p. 12).
A articulação de vivências infantis e conhecimentos ambientais evidencia a
oportunidade de criar pontes que ampliem os recursos. Ainda que as estruturas
arquitetônicas de espaços para a Educação Infantil desfavoreçam processos, a natureza
se impõe, começando com o céu para o qual podemos olhar com maior facilidade e
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Neurodesenvolvimento infantil em contato com a natureza
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adentrando a nossa alimentação que pode vir da terra. É necessário enxergar as ligações
que a realidade nos oportuniza estabelecer.
Os demais conhecimentos que falam a respeito do patrimônio cultural, artístico,
científico e tecnológico também podem instituir problematizações e práticas na natureza. A
cultura e a Arte estão intimamente ligadas à expressão de ideias e desejos citadas na
BNCC (BRASIL, 2018) no campo de experiência “Fala, pensamento e imaginação” e, a
partir do contato com a natureza e suas descobertas, a criança externa o que sente, seja
pela fala, seja pelo movimento, contemplando também o campo “Corpo, gestos e
movimentos”.
O patrimônio científico e tecnológico não deixa de compor ações que podem ser
iniciadas nas vivências na natureza, propostas