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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços

Authors:

Abstract

Este estudo foi apresentado para promover uma discussão sobre a participação e a representação das mulheres nos espaços criados para a gestão da água. Reconhecendo que a gestão sustentável de recursos hídricos, e do saneamento, proporciona grandes benefícios para a sociedade e a economia como um todo, faz-se necessária a inclusão de homens e mulheres, em sua diversidade, nas deliberações que devem acontecer nesses fóruns de decisões para a gestão desse recurso imprescindível à vida. Neste estudo, são apresentadas as análises dos dados referentes aos conselhos estaduais de recursos hídricos, buscando ainda identificar quem são os atores, como indivíduos, que participam dos processos de formulação das políticas das águas no âmbito desses conselhos. Diferentes estudos apontam como a falta de acesso à água segura e potável afeta a vida das comunidades e, de modo mais intenso, a das mulheres (seja em “seus” papéis e responsabilidades de trabalho do cuidado, os riscos relacionados à higiene pessoal e à saúde, além da violência e do comprometimento de perspectivas de futuro). Apesar dos diversos compromissos globais (como a Agenda 2030), as desigualdades persistem entre homens e mulheres, principalmente no que diz respeito ao acesso ao trabalho e à igualdade salarial, às tomadas de decisões, ao acesso e ao controle à terra e aos recursos financeiros. As considerações de gênero estão no centro do fornecimento, do gerenciamento e da conservação dos recursos hídricos no mundo, além de salvaguardar a saúde pública e a dignidade humana por meio do fornecimento de saneamento adequado e de serviços de higiene. As perspectivas de gênero devem, portanto, ser integradas no planejamento nacional e global de água e saneamento e nos processos de monitoramento. O problema que persiste, embora haja esforços no sentido de minorá-los, e que há muitas informações inadequadas que não fornecem detalhes da participação da mulher nos diversos processos envolvendo os recursos hídricos. Um dos principais motivos pelos quais o assunto não é tratado de forma adequada é a falta de coleta de dados desagregados por gênero (DDG). É neste contexto que, no presente estudo, foram envidados esforços para integrar uma abordagem de gênero nos conselhos estaduais de recursos hídricos com a preocupação de utilizar dados desagregados por gênero. Além disso, nas questões apresentadas às representantes nos conselhos estaduais, procurou-se obter dados que indicassem a ocorrência de situações que pudessem ser caracterizadas como de violência de gênero.
Perfil dos Representantes
dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das
Mulheres nesses espaços
Fernanda
Matos
Reinaldo
Dias
Alexandre
Carrieri
Fernanda Matos
Reinaldo Dias
Alexandre de Pádua Carrieri
Perfil dos Representantes
dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das
Mulheres nesses espaços
Belo Horizonte
FACE/UFMG
2022
3
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais
de Recursos Hídricos e a voz das Mulheres
// /Fernanda Matos
Pesquisadora em Residência Pós-Doutoral em Administração na UFMG.
// /Reinaldo Dias
Doutor em Ciências Sociais e Mestre em Ciência Política pela Unicamp.
// /Alexandre de Pádua Carrieri
PhD em Administração. Professor Titular, Universidade Federal de Minas Gerais.
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais e Recursos Hídricos e a voz das Mulheres
/// Fernanda Matos
Pesquisadora em Residência Pós-Doutoral em Administração na UFMG
.
/// Reinaldo Dias
Doutor em Ciências Sociais e Mestre em Ciência Política pela Unicamp.
/// Alexan dre de
dua
Carrieri
PhD
em
Administrão.
Professor
Titular,
Universidade Federal de Minas Gerais.
Ficha catalográ fica
M426p
2022
Matos, Fernanda.
Perfil dos representantes dos conselhos estaduais de recursos hídricos e a voz das
mulheres nesses espaços / Fernanda Matos, Reinaldo Dias, Alexan dre de
Pádua
Carrieri. -Belo Horizonte: FACE -UFMG, 2022.
124 p.: il.
ISBN: 978-65-88208-27-4
Inclui bibliografia.
1. Recursos hídricos - Desenvolvimento. 2. Bacia hidrográfica. 3. Governança. 4.
Participação social. 5. Relações de gênero. I. Dias, Reinaldo. II. Carrieri, Alexandre de
Pádua. III. Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração. IV . Título.
CDD: 333.7
Elaborado por Isabella de Brit o Alves CRB6-3045
Biblioteca da FACE/UFMG - IBA /60/2022
*Agradecemos a todos que auxiliaram na realização de contatos com os membros dos
organismos colegiados de gestão das águas; aos membros da diretoria e secretaria
executiva, pela atualizão da relação de membros, e, também, aos representantes, pelo
tempodedicado a responder ao questionário de pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de vel Superior
-Brasil (Capes) - digo de Financiamento 001 (Programa Pró-Recursos dricos -Chamada 16/2017)
* Agradecemos a todos que auxiliaram na realização de contatos com os membros dos
organismos colegiados de gestão das águas; aos membros da diretoria e secretaria execu-
tiva, pela atualização da relação de membros, e, também, aos representantes, pelo tempo
dedicado a responder ao questionário de pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamentode Pessoal de Nível Superior
- Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001 (Programa Pró-Recursos Hídricos - Chamada N° 16/2017)
Sumário
1. Introdução 6
2. A importância da água para
existência da vida 12
3. Necessidade e significado da
segurança hídrica 19
4. A Políticas Nacional de Recursos
Hídricos no Brasil 23
5. O papel dos Conselhos Estaduais
de Recursos Hídricos 29
5.1. Atribuições dos conselheiros representantes dos CERH 32
6. A questão de gênero na gestão
dos recursos hídricos 36
7. Participação e violência de gênero 42
7.1. O machismo e o seu significado na violência de gênero 51
8. Necessidade de dados
desagregados por gênero 55
9. Aspectos Metodológicos 60
10. Apresentação dos dados obtidos 71
10.1. Perfil socioeconômico dos representantes 73
10.2. Composição da representação 89
10.3. Participação da mulher nos Conselhos
Estaduais de Recursos Hídricos 94
Considerações finais 111
Referências 116
1.!
Introdução
7
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Esta publicação faz parte da série ‘Retratos de Governanças das
Águas’, que integra o projeto Governança dos Recursos Hídricos.
Com o desenvolvimento da série o objetivo foi o de analisar o perfil
de representantes de comitês de bacias hidrográficas no Brasil e ofere-
cer informações que possam apontar aspectos importantes da capaci-
dade inclusiva na representação, identificando também como são perce-
bidos o seu envolvimento no processo decisório e o funcionamento dos
organismos colegiados.
A proposta de desenvolvimento do projeto parte da perspectiva de que é
possível analisar as organizações de bacia como arranjos de governança
compostos por diferentes atores que têm as atribuições de mediar, arti-
cular, aprovar e acompanhar as ações para o gerenciamento dos recursos
hídricos de sua jurisdição.
Os comitês são órgãos colegiados com poderes normativos, propositivos,
consultivos e deliberativos, cujo objetivo é promover o planejamento e a
tomada de decisão sobre os múltiplos usos dos recursos hídricos dentro
da bacia hidrográfica, região que inclui um território e vários cursos de
água. Essas instâncias diferem de outras formas de participação previs-
tas nas demais políticas públicas, pois têm a atribuição legal de delibe-
rar sobre a gestão da água, fazendo isso de forma compartilhada com
representantes da sociedade civil, dos usuários e do poder público. A
existência de uma diversidade de atores no processo de formulação de
políticas públicas, com diferentes capacidades, com interesses e incen-
tivos distintos, interagindo em várias arenas, exige, para a sua análise,
uma abordagem sistêmica e o entendimento de algumas questões, como
quem são os atores que participam dos processos de formulação das
políticas das águas?
8
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Para tanto, fez-se necessário proceder ao levantamento do quantitativo
de organismos colegiados e do número de membros que os compunham,
identificando-se, no Brasil, a existência de 233 comitês de bacia, sendo
dez interestaduais em funcionamento e 223 estaduais criados. Porém,
após o ato de criação e a instalação pode ocorrer um intervalo até que
entre em funcionamento. Por exemplo, o estado de Goiás é composto por
11 unidades de gestão de recursos hídricos, sendo que a) cinco comitês
de bacia hidrográfica já foram criados e instalados comitês, entretan-
to, b) três foram criados e estão em fase de instalação e c) três foram
criados, mas não instituídos por Decreto (afluentes goianos do Médio
Araguaia, do Médio Tocantins, etc.).
Para a primeira fase da pesquisa, para a composição do universo de pes-
quisa, foram considerados 12.004 representantes, incluindo titulares e
suplentes, em 203 comitês estaduais de bacias hidrográficas criados
e implementados. Foram produzidos 17 e-books com análise de da-
dos por estado.
Para a segunda fase, os dados de pesquisa referente aos comitês inte-
restaduais foram coletados a partir de uma colaboração institucional
entre a Coordenação do Projeto (Núcleo de Estudos Organizacionais e
Sociedade - NEOS, vinculado ao Centro de Pós-graduação e Pesquisa em
Administração - CEPEAD) da Faculdade de Ciências Econômicas – FACE,
da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) e a Superintendência
de Planejamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas e
Saneamento Básico (SPR/ANA), em dezembro de 2019, para a ampliação
dos estudos referente ao processo de formação e o perfil dos membros
do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH).
Conforme levantamento realizado, há 944 espaços para participação em
comitês interestaduais. Foram produzidos nove e-books com dados por
comitê (o Comitê do Rio Parnaíba foi criado em 2018 e no período da rea-
lização da pesquisa estava em fase de processo eleitoral para o primei-
ro mandato de seus membros). Com base nestes dados foram também
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
produzidos e-books (série especial) sobre água e gênero, além de outros
estudos e publicações realizadas em paralelo1.
Neste estudo, são apresentadas as análises dos dados referentes aos
conselhos estaduais de recursos hídricos, buscando ainda identificar
quem são os atores, como indivíduos, que participam dos processos
de formulação das políticas das águas no âmbito desses conselhos. De
forma complementar, este estudo foi apresentado para promover uma
discussão sobre a participação e a representação das mulheres nesses
espaços criados para a gestão da água. Reconhecendo que a gestão sus-
tentável de recursos hídricos, e do saneamento, proporciona grandes be-
nefícios para a sociedade e a economia como um todo, faz-se necessária
a inclusão de homens e mulheres, em sua diversidade, nas deliberações
que devem acontecer nesses fóruns de decisões para a gestão desse
recurso imprescindível à vida.
Diferentes estudos apontam como a falta de acesso à água segura e potá-
vel afeta a vida das comunidades e, de modo mais intenso, a das mulhe-
res (seja em “seus” papéis e responsabilidades de trabalho do cuidado,
os riscos relacionados à higiene pessoal e à saúde, além da violência e do
comprometimento de perspectivas de futuro). Apesar dos diversos com-
promissos globais (como a Agenda 2030), as desigualdades persistem
entre homens e mulheres, principalmente no que diz respeito ao acesso
ao trabalho e à igualdade salarial, às tomadas de decisões, ao acesso e ao
controle à terra e aos recursos financeiros. As considerações de gênero
estão no centro do fornecimento, do gerenciamento e da conservação
dos recursos hídricos no mundo, além de salvaguardar a saúde pública e
a dignidade humana por meio do fornecimento de saneamento adequado
e de serviços de higiene. As perspectivas de gênero devem, portanto, ser
integradas no planejamento nacional e global de água e saneamento e
nos processos de monitoramento.
1Todos os estudos “Retratos de Governanças das Águas” e as publicações sobre Água e
Gênero (quem compõem a série) estão disponíveis em algumas plataformas de comparti-
lhamento, dentre elas o ResearchGate:
https://www.researchgate.net/profile/Fernanda-Matos/research
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
O problema que persiste, embora haja esforços no sentido de minorar
o problema da desigualdade de gênero, é que há muitas informações
inadequadas que não fornecem detalhes da participação da mulher nos
diversos processos envolvendo os recursos hídricos. O que ocorre é que
os problemas e as necessidades específicas das mulheres não são ade-
quadamente abordados. Um dos principais motivos pelos quais o assunto
não é tratado de forma adequada é a falta de coleta de dados desagre-
gados por gênero (DDG).
É neste contexto que, no presente estudo, foram envidados esfoos para
integrar uma abordagem de gênero nos conselhos estaduais de recursos
hídricos (CERH) com a preocupação de utilizar dados desagregados por
gênero. Além disso, nas questões apresentadas às representantes nos
conselhos estaduais, procurou-se obter dados que indicassem a ocor-
rência de situações que pudessem ser caracterizadas como de violên-
cia de gênero.
Uma questão importante abordada neste estudo, e no projeto menciona-
do, foi a lacuna observada entre o reconhecimento formal das questões
de gênero nas políticas e nos projetos relativos à água e ao saneamento
e a falta de esforços reais para abordar efetivamente as diferenças de
gênero e as desigualdades no setor de água e saneamento.
Nas profissões envolvidas na gestão dos recursos hídricos, as questões
de gênero continuam sendo tratadas como tema secundário ou uma re-
flexão tardia, não sendo consideradas como pertencentes ao núcleo pro-
fissional quer sejam das áreas tecnológicas, como as engenhais ou das
ciências sociais aplicadas, como administração.
Uma parte importante do estudo, portanto, consistiu em fundamentar e
explicar ainda mais essa lacuna, em um esforço para identificar formas
de melhorar a integração de gênero na gestão da água no futuro.
Este estudo começa destacando a importância da água e como ela vai se
tornando cada vez mais um recurso estratégico (seções 2 e 3). Em segui-
da, é feito um detalhamento da Política Nacional de Recursos Hídricos
com o objetivo de situar os conselhos estaduais e seu papel no Sistema
11
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Nacional de Recursos Hídricos (seções 4 e 5). As seções seguintes (6, 7 e
8) constituem o núcleo central do estudo, que serve para subsidiar a aná-
lise de dados obtidos durante a pesquisa. Nas seções 9 e 10 abordam-se
os aspectos metodológicos, sendo que na penúltima (seção 10) pode ser
encontrada uma lista dos dados desagregados por gênero obtidos que
são analisados, e cuja conclusão é exposta na seção final (11), que trata
dos resultados.
2.!
A importância
da água para
existência da vida
13
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
A
importância da água para a manutenção da vida é indiscutível,
uma vez que ela é fundamental para a saúde humana e o bem-es-
tar social, afetando todos os aspectos da sociedade, desde as
famílias até a agricultura, a indústria e o meio ambiente, sendo um dos
determinantes na construção de um desenvolvimento sustentável (Kholif
& Elfarouk, 2014). A água é necessária em todos os setores da sociedade
para produzir alimentos, energia, bens e serviços. Relacionada aos bene-
fícios e às utilidades que oferece a água, há uma constatação primordial,
qual seja, o fato de que sem água o há vida. E, para a manuteão da
vida e usufruto de todos os seus benefícios, é necessário buscar a con-
servação e a preservação ambiental e da água em particular.
São inúmeras as utilidades da água, que é utilizada para o consumo,
para o cultivo e a produção de alimentos e de energia, para transporte e
como símbolo político e cultural, além de oferecer espaços para entre-
tenimento, para recreação ou para o turismo, dentre outras aplicações.
Para que tais benefícios sejam atingidos, são necessárias intervenções
de diversos tipos, pois os recursos hídricos nem sempre obedecem aos
limites impostos pelas estruturas políticas criadas pelo homem. Quando
isso não é feito, a natureza se impõe e a água se mostra em toda a sua
enormidade, rompendo os limites naturais, se espalhando, modificando
a paisagem e causando perdas e danos (sociais e econômicos) manifes-
tados nas inundações, nas enxurradas e no transbordamento de rios,
causando destruição no seu caminho, especialmente nas áreas ocupadas
por comunidades de baixa renda.
A água, em seu ciclo natural, alternando os estados líquidos e vapor, ao
retornar ao solo presta um importante serviço ambiental na forma de
água doce, que se torna mais pura ao passar por estes processos natu-
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
rais de vaporização e liquefação, que funcionam como filtros naturais.
Acontece que processos de poluição criados pelos seres humanos com-
prometem a qualidade e reduzem a qualidade da água doce renovada. A
contaminação pelas chuvas ácidas, pelo excesso ou pelo tipo de carga
poluente despejada nos cursos d’água – como hormônios e defensivos
agrícolas -, muitas vezes exige tratamentos complexos e caros que nem
sempre estão disponíveis, seja pelo seu custo excessivo ou por envolver
tecnologias sofisticadas que demandam mão de obra altamente espe-
cializada e equipamentos cada vez mais complexos. Ocorre que essa
poluição coloca em risco a saúde e a vida dos usuários dessas águas
(Senra, 2021).
Em relação aos benefícios que o precioso líquido traz, o problema é que
nem todos têm amplo acesso a esse recurso fundamental. Estima-se
que quatro bilhões de pessoas em todo o mundo vivem em regiões com
escassez de água pelo menos uma vez por mês a cada ano (Mekonnen
e Hoekstra, 2016). Esse número, que já é significativo, pois a população
mundial atingiu a estimativa de 7,9 bilhões de pessoas em 2021, ten-
de a ser mais expressivo num futuro próximo, se nada for feito, pois,
para 2030, projeta-se um crescimento para 8,5 bilhões de pessoas, o
mesmo ano em que se pretende atingir a realização dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável-ODS (UNDESA, 2021)
A gravidade da situação hídrica no planeta pode ser expressa em -
meros que revelam a beira do desastre em que a humanidade se encon-
tra. Bilhões de pessoas em todo o mundo ainda vivem sem serviços de
água potável, de saneamento e de higiene gerenciados com segurança.
Mantendo-se os atuais padrões de consumo e gestão insustentáveis da
água em muitas regiões, em 2050, pelo menos uma em cada quatro pes-
soas (2,8 bilhões) provavelmente viverá em um país afetado por grave
escassez de água (OECD, 2021). Atualmente, metade das maiores cidades
do mundo já enfrenta escassez de água (WEF, 2017) e mais de 2 bilhões
de pessoas vivem com acesso restrito aos recursos hídricos.
O Brasil abriga cerca de 12% da água doce do mundo (ANA, 2019b).
Considerando que, no país, vivem 3% da população global, era de se espe-
rar que a situação hídrica não fosse problema grave. Ocorre que essa dis-
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
ponibilidade varia, tanto em termos geográficos quanto de sazonalidade.
Como destacou Cardoso (2008), há problemas na gestão dos recursos
hídricos em todo o território nacional, variando em grau de gravidade,
em função de diversos fatores que não são adequadamente equacio-
nados por gestões dos recursos hídricos com baixa eficiência. Entre os
problemas mais significativos estão a dificuldade de ampliação do abas-
tecimento em regiões com baixa disponibilidade de bacias hidrográficas
e a melhoria da qualidade por meio da redução da poluição doméstica
e industrial, podendo ainda ser acrescida a poluição oriunda do escoa-
mento superficial proveniente da agricultura (pesticidas, herbicidas e
nutrientes).
Quanto à disponibilidade, em termos globais, o Brasil apresenta grande
oferta de água, segundo a ANA, observando-se que passam no território
brasileiro, “em média, cerca de 260.000 m3/s”, sendo possível afirmar
que o país tem a maior reserva mundial de água potável, cerca de 12% do
montante total, o que não exclui a possibilidade de sofrer a falta desse
recurso, tendo em vista a crescente demanda e a poluição. Desse total
de água disponível, “205.000 estão na bacia do rio Amazonas, sobrando
para o restante do território 55.000 de vazão média” (ANA, 2015, p. 25).
Segundo a ANA (2017), estiagens, secas, enxurradas e inundações re-
presentam cerca de 84% dos desastres naturais ocorridos no Brasil, de
1991 a 2012. Nesse período, quase 39 mil desastres naturais registrados
afetaram cerca de 127 milhões de pessoas. Um total de 47,5% (2.641)
dos municípios brasileiros decretou situação de emergência ou estado
de calamidade pública devido a cheias pelo menos uma vez, de 2003 a
2016. Cerca de 55% (1.435) desses municípios localizam-se nas regiões
sul e sudeste. Quanto à seca ou à estiagem, cerca de 50% (2.783) dos
municípios brasileiros decretaram situação de emergência ou estado de
calamidade pública no mesmo período.
Essas disparidades que afetam a gestão sustentável dos recursos -
dricos poderão ser exacerbadas por aumentos dos eventos climáticos
extremos e mudanças nos padrões de chuva causados pelas mudanças
climáticas e agravadas pelos comportamentos inadequados de uso in-
tensivo da água, como a retirada excessiva de água doce, o aumento
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
das taxas de urbanização e o desenvolvimento econômico (Mekonnen &
Hoekstra, 2016; Rockstrom et al, 2014).
As mudanças climáticas, decorrentes do aumento do aquecimento global,
já estão sendo um fator complicador para a gestão dos recursos hídricos
e tenderão a se agravar nos próximos anos. Nos relatórios publicados
pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática, fica eviden-
ciado que o ciclo da água está diretamente ligado ao clima. De acordo
com vários estudos (IPCC, 2013, 2014, UNESCO, 2020), as mudanças cli-
máticas provocam alterações no comportamento histórico das chuvas,
além da redução da quantidade e da qualidade das águas, o que pode
ameaçar o suprimento deste recurso e contribuir para a ampliação dos
conflitos pelo seu uso.
Em função da perspectiva de aumento da crise hídrica, a disponibilidade
de recursos hídricos em quantidade e qualidade suficiente se tornou, nos
últimos anos, objeto de preocupação da sociedade. Em decorrência, au-
mentou a necessidade de gerenciar o recurso água, para que os usuários
a tenham em quantidade certa, com boa qualidade e disponibilidade no
momento apropriado (Huitema e Meijerink (2007).
Há muitos fatores que dificultam o acesso à água potável, relacionados
a aspectos geográficos, econômicos e sociais (Mehta e Movik, 2014) e
que interferem na gestão sustentável dos recursos hídricos, entre os
quais estão o crescimento populacional, o uso ineficiente, as mudanças
climáticas, a degradação de bacias hidrográficas e de cursos de água,
abordagens insustentáveis voltadas para lidar com a escassez de abas-
tecimento de água, o aumento da urbanização, os períodos de estia-
gem e as inadequações institucionais e organizacionais, entre outros.
Consequentemente, esses fatores levam a uma diminuição potencial na
disponibilidade de água doce e a sua eminente escassez como fonte de
manutenção da vida.
A gestão dos recursos hídricos passa, necessariamente, por dar atenção
especial para o uso da água no meio rural, pois é aí que se concentra a
captação mais intensiva, com 72% de todas as captações, seguida por
17
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
16% nos municípios para residência e serviços e 12% pelas indústrias.
(UN-Water, 2021).
O crescimento populacional e a melhoria da qualidade de vida de parte
da população global com o aumento das camadas médias exercem alta
pressão nas áreas naturais. O fato é que essa pressão vem acelerando
a perda de áreas úmidas que, em muitos casos, são consideradas um
estorvo para a expansão urbana e sofrem aterramentos para ampliar o
espaço físico terrestre para ocupação imobiliária e, ao mesmo tempo,
aumenta o nível de contaminação das áreas líquidas restantes. Esse é
um fenômeno antigo, pois se estima que mais de 85% das áreas úmidas
foram perdidas desde a era pré-industrial (IPBES, 2019). Há relação es-
treita entre aumento populacional, urbanização e perda de áreas úmidas.
A população mundial continuará a crescer e a necessidade e a demanda
por água aumentarão, tornando-a cada vez mais um recurso estratégico,
sendo seu controle uma fonte de poder, chave para o desenvolvimento
econômico e um fator que desencadeará inúmeros problemas sociais
e políticos.
A água é um recurso finito, de livre acesso, de múltiplos usos e que tem
se tornado escasso. Como consequência, conflitos em todos os níveis
(locais, regionais, nacionais, internacionais) estão se formando sobre o
uso e a preservação dos suprimentos cada vez mais escassos de água
no mundo. Ao mesmo tempo, aumenta o reconhecimento de que é cada
vez mais imperativa uma melhor gestão da água para o desenvolvimento
sustentável, o alívio da pobreza e a preservação da biodiversidade.
A escassez de água surge em situações em que não água suficiente
para suportar simultaneamente tanto as necessidades hídricas huma-
nas quanto as do ecossistema (White, 2014). Na maioria das vezes, isso
surge como resultado de uma falta básica de água, mas também pode
resultar da falta de infraestrutura adequada para fornecer acesso ao
que, de outra forma, poderia ser considerado como amplos recursos hí-
dricos disponíveis. O conceito de escassez também abrange a qualidade
da água porque os recursos hídricos degradados estão indisponíveis ou,
18
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
na melhor das hipóteses, apenas marginalmente disponíveis para uso em
sistemas humanos e naturais.
O aumento da escassez de água é um dos maiores desafios do globo.
À medida que a demanda local por água aumenta acima da oferta em
muitas regiões, a governança efetiva dos recursos hídricos disponíveis
será a chave para alcançar a segurança hídrica, alocar de forma justa
os recursos hídricos e resolver disputas relacionadas (UNDP-SIWI, 2016).
3.!
Necessidade e
significado da
segurança hídrica
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
De acordo com o Global Water Partnership - GWP (2012), seguran-
ça hídrica pode ser entendida como a disponibilidade de quan-
tidade e de qualidade aceitáveis de água para a saúde, os meios
de vida, os ecossistemas e a produção, associada a um nível aceitável
de riscos relacionados com a água para as pessoas, as economias e o
meio ambiente.
No conceito de segurança hídrica, a expressão nível aceitável de riscos
implica em três aspectos a serem considerados. O primeiro aspecto é que
a água em excesso também causa mortes, por exemplo, com a ocorrência
de enchentes, deslizamentos de terra, contaminação e doenças. O segun-
do ponto é que há uma variação de consumo por cidadão em diferentes
países, dentro do mesmo país e nas classes sociais. O terceiro aspecto
a ser considerado é que a percepção do “nível” depende de quem está
decidindo e de quem é impactado pelo resultado da decisão (GWP,2012).
Assim, o mínimo para quem precisa depende de vários fatores sociais,
econômicos e culturais.
Foi a partir dos anos 1980, nos países em desenvolvimento, que houve a
proposição de arranjos de governança para a gestão de bacias hidrográfi-
cas, visando, dentre outros aspectos, garantir o acesso à água e instituir
normas para a proteção da qualidade das águas territoriais, buscando a
segurança hídrica.
Neste aspecto, segurança hídrica é resultado de uma boa governança da
água, podendo permitir melhor acesso à água, ao saneamento e à preser-
vação das condições de quantidade e de qualidade dos recursos hídricos.
Em geral, visa à redução de pobreza absoluta e ao aprimoramento da
saúde da população, além de manter e conservar os recursos naturais.
21
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Porém, é necessário adotar políticas e estratégias que promovam o me-
lhor manejo e uso dos recursos hídricos, por meio da participação e das
inter-relações entre os diferentes atores e setores usuários, inclusive o
próprio meio ambiente.
Deve-se ressaltar que a participação de todos os atores envolvidos, de
todos os setores da sociedade, constitui um elemento importante e que
pode promover a equidade na gestão da água. Outro ponto a ser con-
siderado é que a transparência e o desenvolvimento institucional são
fundamentais para permitir e facilitar que a participação possa desen-
volver uma governança efetiva e melhores possibilidades de ação frente
à variabilidade climática e todos os impactos a ela associadas.
Isto é um elemento de pugna e os problemas de governança e gestão dos
recursos hídricos poderão resultar em fortes impasses relacionados à
disponibilidade de água, de alimento e de possíveis conflitos sociais e
políticos decorrentes dessa situação. Por isso, é importante olhar para
o problema da segurança hídrica na perspectiva de governança, ou seja,
considerar a urgência do tema da água e tudo relacionado a ela, como
alimentação, energia, direto à água, gênero e participação social. Essa
perspectiva vai ao encontro do que é preconizado pela Agenda 2030 das
Nações Unidas e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), so-
bretudo no que se refere aos recursos hídricos (ODS 6), que objetivam
assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e de sanea-
mento para todas e todos, e implementar, até 2030, a gestão integra-
da dos recursos hídricos em todos os níveis, inclusive via cooperação
transfronteiriça, conforme apropriado. A abordagem para governança,
neste estudo, é voltada para o papel da sociedade nos arranjos de bacia
hidrográfica.
No Brasil, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), até o ano de
2030, a demanda por água tende a aumentar cerca de 200%. Como uma
forma de evitar crises hídricas e enchentes, a ANA, em conjunto como
Ministério de Desenvolvimento Regional, estabeleceu o Plano Nacional de
Segurança Hídrica (PNSH), em 2019. O plano tem como objetivo manter o
sistema de água equilibrado em todo país, evitando secas e cheias, com
a adoção de medidas a serem cumpridas até o ano de 2035. As medidas
22
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
foram divididas em três categorias: estudos e projetos, obras e institu-
cional. Cada região do Brasil tem projetos específicos, de acordo com as
suas necessidades e características. Um exemplo é a maior fiscalização
para a construção de barragens, como uma forma de evitar acidentes
socioambientais (ANA, 2019).
Em 2021, a ANA publicou a segunda edição do Atlas Águas - Segurança
Hídrica do Abastecimento Urbano, um extenso estudo incorporando con-
ceitos e ferramentas do PNSH, aprimorando o conceito de segurança hí-
drica especificamente para o abastecimento de água nas cidades brasi-
leiras. O Atlas faz uma avaliação de todos os mananciais e sistemas de
abastecimento urbano de água e indica soluções para as demandas atuais
e futuras dos 5.570 municípios brasileiros até 2035. Além disso, indica
quais serão os investimentos necessários – cerca de R$110 bilhões até
2035 - para que 100% da população urbana desses municípios seja atendi-
da em termos de segurança hídrica – do manancial à torneira (ANA, 2021)
Segundo o estudo da ANA (2021), o país está em plena crise hídrica, com
seus principais reservarios para abastecimento e prodão de energia
operando de forma crítica. Nesse contexto, a União e os governos dos
estados e dos municípios precisam se unir e investir para tornar o país
seguro em todo o ciclo do abastecimento, o que também inclui a preser-
vação dos mananciais. Os R$ 7,3 bilhões em investimentos necessários,
por ano, até 2035, serão necessários para tirar o país de ciclos de escas-
sez de água que estão cada vez mais graves e recorrentes.
O estudo mostra a alta vulnerabilidade dos mananciais das cidades bra-
sileiras; cerca de 44% delas podem secar ou serem afetadas por enchen-
tes e mudanças climáticas. Cerca de 5,8 milhões de brasileiros têm a
vida dificultada devido a essa alta vulnerabilidade dos recursos hídricos.
Outro problema apontado pelo estudo está no desperdício. O Atlas mostra
que 22% das cidades brasileiras utilizam os recursos hídricos de modo
ineficiente; 13% necessitam reduzir vazamentos; 19% têm potencial para
melhorias significativas e 46% precisam realizar avaliações para con-
firmar a efetividade das melhorias. O problema da governança da água
aparece pela constatação de que nenhum município do país apresenta
grau máximo de eficiência na gestão dos recursos hídricos (ANA, 2021).
4.!
A Políticas Nacional
de Recursos
Hídricos no Brasil
24
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
A
Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) foi criada pela Lei
nº 9.433/97, sancionada em 8 de janeiro de 1997. Também conhe-
cida como Lei das Águas, foi instituída tendo como objetivo prin-
cipal assegurar a disponibilidade de água em padrões de qualidade ade-
quados aos respectivos usos, buscando a prevenção e o desenvolvimento
sustentável pela utilização racional e integrada dos recursos hídricos.
Alguns de seus princípios são: i) o reconhecimento da água como um
bem de domínio público, objetivando, assim, assegurar à atual e às futu-
ras gerações a sua necessária disponibilidade, em padrões de qualidade
adequados aos respectivos usos; ii) considerar a água como um recurso
finito e vulnerável, dotado de valor econômico, o que requer uma utiliza-
ção racional e integrada dos recursos hídricos com vistas ao desenvol-
vimento sustentável; iii) a adoção da bacia hidrográfica como unidade
de planejamento, visando à adequão da gestão de recursos dricos
às diversidades físicas, bticas, demográficas, ecomicas, sociais e
culturais de cada região e iv) a adoção da gestão descentralizada e par-
ticipativa, para a articulação do planejamento de recursos hídricos com
o dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e na-
cional (BRASIL, 1997).
Os princípios sobre os quais se fundamentaram a Lei das Águas foram es-
tabelecidos com base nos consensos construídos e o debate internacio-
nal, especialmente a Conferência Internacional de Água e Meio Ambiente,
realizada em Dublin, em 1992 e na declaração dos princípios publicado
no relatório do evento – ver princípios de Dublin, 1992.
Ao reconhecer a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e
gestão, a legislação estabeleceu uma política participativa, com um pro-
25
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
cesso de tomada de decisão que envolve diferentes agentes econômicos
e sociais ligados ao uso da água, em um contexto que inclui uma nova
visão dos poderes do Estado e os usuários (Cardoso, 2008). Pode-se ain-
da dizer que a adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão
está apoiada no conceito de sistemas de Bertalanffy2, ao reconhecer
a área como partes interagentes e interdependentes, ou seja, que as
alterações provocadas em uma região da bacia podem afetar as outras
regiões, tendo em vista a interconexão dos fluxos de água, formando um
todo complexo ou unitário.
Também alinhado ao Princípio n° 2 da Declaração de Dublin, a adão da
gestão descentralizada e participativa na legislação incorporava a visão
da nova Administração Pública (New Public Management - NPM), do mo-
vimento de redução e reestruturação do aparelho do Estado, associado
também com o movimento da governança pública. Cabe ainda salientar
que o princípio número 3 da declaração de Dublin, sobre o protagonismo
da mulher na gestão e proteção da água, não foi incluído na legislação
e na política brasileiras.
A PNRH foi criada com base em sistemas nos quais os poderes públicos,
seja o federal ou os estaduais, compartilham com entes não governamen-
tais (usuários e associações civis) parte de sua competência com órgãos
colegiados - comitês de bacias hidrográficas e conselhos de recursos hí-
dricos. Tais competências se referem às decisões relativas, sobretudo ao
planejamento dos usos dos recursos hídricos das bacias hidrográficas.
A PNRH, em seu artigo 4, determina que a União e os estados devem
se articular para implementar o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos (SINGREH). Isto significa que a União, por meio da ANA,
e as autoridades estaduais devem atuar de forma harmônica e comple-
mentar, por meio de um sistema unificado, específico para cada bacia
hidrográfica, para outorga, fiscalização e cobrança pelo uso dos recursos
hídricos. Os estados, assim como o Distrito Federal, são responsáveis
pela gestão das águas sob seu domínio, devendo elaborar legislação es-
2Karl Ludwig von Bertalanffy criador da teoria geral de sistemas (também conhecida
pela sigla, T.G.S.).
26
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
pecífica para a área, organizar o Conselho Estadual de Recursos dricos
(criado para atender à necessidade de integração dos órgãos públicos,
do setor produtivo e da sociedade civil, visando assegurar o controle da
água e sua utilização em quantidade e qualidade, necessários aos seus
múltiplos usos) e garantir o funcionamento dos comitês de bacia em sua
região, ou seja, os fóruns em que um grupo de pessoas se reúne para
discutir sobre um interesse comum – o uso d’água na bacia. Cabe aos
poderes executivos do Distrito Federal e dos municípios promover a in-
tegração das políticas locais de saneamento básico, de uso, de ocupação
e de conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federais
e estaduais de recursos hídricos (BRASIL, 1997).
A Lei das Águas não atribuiu competências específicas para os municí-
pios; apenas afirmou seu papel de integrar as políticas locais. Entretanto,
os municípios têm papel fundamental na gestão dos recursos hídricos,
ao implementarem e regularem as políticas de saneamento básico, de
uso, de ocupação e de conservação do solo e de meio ambiente. Portanto,
apesar de os cursos de água serem de domínio federal ou estadual, os
municípios são peças-chave para a preservação dos recursos hídricos
dentro de seus limites. Lembrando que os municípios são responsáveis,
conforme competência administrativa comum que lhe é reservada junto
à União, aos estados e ao Distrito Federal, estabelecida no artigo 23 da
Constituição Federal de 1988, pelo exercício de polícia das águas, por
“proteger o meio ambiente e combater a poluão em qualquer de suas
formas” (inciso VI) e “registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões
de direitos de pesquisa e de exploração de recursos hídricos e minerais
em seu território” (inciso XI).
Analisando-se a gestão dos recursos hídricos, percebe-se que a
Constituição Federal reconhece a água como um bem público e divide
entre União e estados as responsabilidades sobre tal recurso. Entretanto,
diferentemente de outras políticas, em que o papel do município é pre-
ponderante, na gestão das águas as prefeituras veem sua força reduzida,
considerando que não existem águas de domínio municipal e, portanto,
elas não têm atribuições na gestão hídrica, cabendo-lhes participar dos
comitês de bacia hidrográfica, bem como integrar as políticas locais de
27
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
meio ambiente. Assim, na área de gestão de recursos hídricos, pode-se
considerar a existência de um quarto nível de descentralização da admi-
nistração, tendo em vista que a divisão territorial da bacia hidrográfica
não coincide com as divisões administrativas municipais e ou estaduais.
Há, quase sempre, mais de um domínio das águas a ser considerado na
gestão, o que impõe a necessidade da negociação e da articulação ins-
titucional para ultrapassar os entraves impostos pelas normas legais
incidentes sobre os cursos d’água da bacia hidrográfica (ANA, 2007).
O SINGREH é o conjunto de órgãos e colegiados que concebe e implemen-
ta a Política Nacional das Águas. Dele fazem parte, para a formulação e
a deliberação sobre políticas de recursos hídricos, o Conselho Nacional
de Recursos Hídricos, os conselhos estaduais de recursos hídricos e os
comitês de bacias hidrográficas. Também o integram os órgãos dos po-
deres públicos federal, estaduais e municipais cujas competências se
relacionam com a gestão de recursos hídricos, e as agências de água,
que exercem o papel de secretarias executivas, e as organizações.
A instância máxima do SINGREH é o Conselho Nacional de Recursos
Hídricos (CNRH), que é estruturado como um organismo colegiado, con-
sultivo, deliberativo (toma decisões) e normativo (estabelece normas),
integrante da Estrutura Regimental do Ministério do Desenvolvimento
Regional. O CNRH é o órgão que define a Política Nacional de Recursos
Hídricos e as regras gerais para a gestão das águas. As competências
do CNRH incluem analisar propostas de alteração da legislação perti-
nente a recursos hídricos, estabelecer diretrizes complementares para
a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e promover a
articulação do planejamento de recursos hídricos com os planejamentos
nacional, regionais, estaduais e dos setores usuários. Ele deve, ainda,
arbitrar conflitos sobre recursos hídricos, deliberar sobre os projetos de
aproveitamento desses recursos cujas repercussões extrapolem o âmbito
dos estados em que serão implantados, aprovar propostas de instituição
de comitês de bacia hidrográfica e, também, estabelecer critérios gerais
para a outorga de direito de uso de recursos hídricos e para a cobrança
por seu uso, além de aprovar o Plano Nacional de Recursos Hídricos e
acompanhar sua execução.
28
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Além disso, o CNRH serve como um fórum de diálogo, ao atuar como espa-
ço de explicitação de conflitos, negociação e de pactuação social, atuan-
do como mediador entre os diversos usuários das águas no país. O seu
funcionamento foi estabelecido pelo Decreto Federal n. 10.000, de 3 de
setembro de 2019 que dispõe sobre a sua composição, institui seis no-
vas câmaras técnicas e delibera sobre competências, estrutura e demais
mecanismos do Conselho (PCJ, 2019)
5.!
O papel dos
Conselhos Estaduais
de Recursos Hídricos
30
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Os conselhos de políticas públicas são espaços públicos vincu-
lados aos órgãos do Poder Executivo. Os conselhos inserem-se,
fundamentalmente, na área da governança democrática. São ca-
nais institucionalizados de participação, com a característica de mar-
carem uma “reconfiguração das relações entre Estado e sociedade”,
instituindo “nova modalidade de controle público sobre a ação governa-
mental e, idealmente, de corresponsabilização quanto ao desenho, mo-
nitoramento e avaliação de políticas”. Os conselhos constituem “espaços
públicos (não-estatais) que sinalizam a possibilidade de representação
de interesses coletivos na cena política e na definição da agenda públi-
ca”, compondo um espaço de articulação intermediário, pois, ao mesmo
tempo, são parte do Estado e da sociedade (Carneiro, 2006, p.149, 151).
Os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos (CERH) também são órgãos
deliberativos, consultivos e propositivos centrais dos sistemas estaduais,
tendo como competências estabelecer os princípios e as diretrizes da
política estadual de recursos hídricos de seu respectivo estado, a serem
observados pelo plano estadual e pelos planos diretores de bacias hidro-
gráficas; aprovar proposta do plano estadual; decidir os conflitos entre
comitês e atuar como instância de recurso nas decisões dos comitês de
bacia hidrográfica.
De modo semelhante ao estabelecido no nível federal, compete aos CERH,
na condição de órgão deliberativo e normativo central do sistema esta-
dual de recursos hídricos, implementar a Política Estadual de Recursos
Hídricos e planejar, regular e controlar o uso, a preservação e a recupe-
ração dos recursos hídricos e dos ecossistemas aquáticos do estado,
dentre outras atribuições. Assim sendo, definem prioridades na agenda
política dos estados, no que se refere aos usos das águas para os diver-
31
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
sos fins a que se destina. Nesse contexto, cada conselho tem autonomia
em seu estado para definir suas prioridades. De modo geral, as atribui-
ções de cada conselho estadual, embora se assemelhem no geral, estão
muito vinculadas às características específicas de cada região.
De modo geral, aos conselhos estaduais compete3
a. estabelecer os princípios e as diretrizes da Política Estadual de
Recursos Hídricos a serem observados pelo Plano Estadual de
Recursos Hídricos e acompanhar a elaboração e aprovar o Plano
Estadual de Recursos Hídricos, bem como sua execução e determi-
nar as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;
b. aprovar o planejamento dos programas projetos anuais e plurianuais
de aplicação de recursos públicos nas atividades relacionadas com
os recursos hídricos do estado;
c. decidir quaisquer conflitos entre os órgãos componentes do SIGRH
e entre usuários, em última instância;
d. aprovar o plano de aplicação dos recursos do Fundo Estadual de
Recursos Hídricos e suas prestações de contas;
e. estabelecer normas e homologar a criação dos comitês de bacias
hidrográficas e conselhos gestores de reservatórios;
f. habilitar, para participação na gestão de recursos hídricos do Estado,
as organizações civis previstas em Lei;
g. criar câmaras técnicas e grupos de trabalho, visando discutir e en-
caminhar ações sobre temas de interesse do CRH;
h. aprovar os valores a serem cobrados pelo direito de uso da água;
i. deliberar sobre os projetos de aproveitamento de recursos hídricos
que extrapolem o âmbito do comitê de bacia hidrográfica;
j. estabelecer os critérios e as normas gerais para a outorga dos direi-
tos de uso de recursos hídricos
3Essas competências gerais foram estabelecidas a partir de análise das competências dos conselhos estaduais
de Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina e Pernambuco.
32
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
k. reconhecer os consórcios ou as associações intermunicipais de ba-
cia hidrográfica ou as associações regionais, locais ou multisseto-
riais de usuários de recursos hídricos;
l. propor normas para uso, preservação e recuperação dos recur-
sos hídricos;
m. aprovar a criação de Agências de Águas.
Na criação dos conselhos estaduais foram previstos os comitês de ba-
cias hidrográficas (CBH), que funcionam com um colegiado normativo e
deliberativo permanente. Nele os representantes de diversos segmen-
tos da sociedade, pertencentes à bacia, se encontram para discutirem
problemas e suas soluções, no que diz respeito aos diversos usos dos
recursos hídricos, definindo ações para a preservação das águas. Ao se-
rem constituídos os CBH, a intenção foi propor uma gestão pública cole-
giada, defendendo a prioridade dos interesses da coletividade sobre os
interesses privados, formando um canal de participação de exercício da
cidadania. Desse modo, o CBH diminui os riscos de o interesse público
ser desvirtuado por interesses momentâneos, orientando as políticas
públicas (LOPES e NEVES, 2017).
5.1. Atribuições dos conselheiros
representantes dos CERH
Os conselheiros exercem papel de representantes dos interesses do seg-
mento ao qual estão vinculados. Os representantes de entidades ou or-
ganizações que pertencem aos CERH têm inúmeras atribuições que, se
bem compreendidas em sua importância, dão maior relevância ao papel
desempenhado pelos membros conselheiros, ao exercem uma função pú-
blica, na qual está explícita sua responsabilidade pelos atos do conselho.
Essas inúmeras atribuições dos conselheiros formam um leque de res-
ponsabilidade que permitem expandir a atuação do conselho e que pos-
sibilitam a cada membro, efetivamente, desempenhar uma função que
lhe vai servir de “treinamento” para o exercício de liderança em outros
33
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
espaços, públicos ou não. O funcionamento é semelhante ao que ocorre
numa câmara de vereadores, por exemplo. Nesse aspecto, os CERH cons-
tituem espaços não somente de caixa de ressonância dos problemas e
discussões sobre recursos hídricos que ocorrem nas sociedades, mas
formam um importante “locus” de formação de lideranças que aprendem
a se manifestar em reuniões e diante de atores os mais diversos ou, dito
de outra forma, entendem como fazer política, no sentido de articular
diversos interesses para obter o resultado que se espera.
As principais atribuições dos conselheiros dos CERH, em resumo, são4:
a. qualquer membro do conselho poderá formular proposições por es-
crito à secretaria executiva, sob a forma de propostas de resoluções,
emendas, requerimentos ou moções;
b. após relato da matéria, cada membro do conselho poderá usar a
palavra durante cinco minutos, respeitando-se a ordem de inscri-
ção, tempo que também será concedido para a defesa de qualquer
proposição ou esclarecimentos por parte do relator ou do proponen-
te. O orador somente será aparteado se assim consentir, não sendo
permitidos apartes paralelos;
c. qualquer conselheiro poderá pedir vistas do processo, apresentando
suas razões, durante a discussão ou a votação que, se deliberada por
maioria simples do plenário, determinará o adiamento da apreciação
da matéria para a reunião seguinte;
d. as questões destinadas a preservar a ordem dos trabalhos da re-
união poderão ser suscitadas por qualquer conselheiro, mediante
indicação do dispositivo regimental em que se fundamentam e serão
decididas pelo presidente;
e. as matérias, depois de discutidas, seo colocadas em votão pelo
presidente. Terão direito a voto todos os membros do conselho pre-
sentes em plenário, cabendo ao presidente, no caso de empate, o
4Essas atribuições formam um compilado obtido dos regimentos internos de diversos estados brasileiros, en-
tre os quais se destacam Amazonas, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande
do Sul e Mato Grosso.
34
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
voto de qualidade. Será considerada aprovada a matéria que obtiver
a maioria simples dos votos dos conselheiros;
f. atuar de forma cooperativa para que os objetivos do CERH sejam
alcançados;
g. designar representante de órgãos ou entidades para participaram
dos trabalhos;
h. divulgar e implantar, no âmbito de seus órgãos ou entidades que
representa, as medidas, os planos e os programas aprovados
pelo CERH;
i. propor matéria para pauta e apreciação pelo plenário;
j. pedir vista de qualquer matéria apresentada ao plenário, ou retirar
de pauta matéria de sua autoria;
k. requerer informações, providências e esclarecimentos ao presidente
e à secretaria executiva;
l. elaborar e apresentar relatórios e pareceres nos prazos pré-fixados;
m. participar das câmaras temáticas e dos grupos de trabalho com di-
reito à voz e, quando membro, a voto;
n. propor matéria à deliberação pelo plenário, na forma de proposta de
resolução ou moção;
o. propor questão de ordem nas reuniões plenárias;
p. quando o conselheiro titular e o suplente estiverem presentes, ao
suplente caberá somente direito à voz;
q. propor a criação de câmara técnica, provisória ou permanente;
r. solicitar à secretaria executiva que faça constar em ata seu ponto
de vista discordante, declaração de voto ou outra observação que
considere pertinente;
s. propor o convite de pessoas de notório conhecimento, personalida-
des e especialistas, em função de matéria constante na pauta, para
trazer subsídios aos assuntos de competência do conselho;
35
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
t. prestar esclarecimentos sobre ações, proposições e decisões das
entidades que representa.
Acrescentam-se, ainda, a necessidade de se manter informado e atua-
lizado sobre as matérias específicas da área e deliberações; colaborar
no aprofundamento das discussões para auxiliar as decisões do colegia-
do; divulgar as discussões e decisões do conselho nas instituições que
representa e em outros espaços; buscar expor contribuições de seus
respectivos segmentos, que possam fortalecer a gestão dos recursos
hídricos no estado; manter alinhamento com seu suplente para troca de
informações, além de princípios de conduta ética, tais como fidelidade
ao interesse público, decoro no exercício de suas funções, eficiência,
transparência, impessoalidade, além de manter-se atualizado sobre o fe-
nômeno da exclusão social, sua origem estrutural e nacional, para poder
contribuir para a construção da cidadania e para o combate da pobreza.
6.!
A questão de gênero
na gestão dos
recursos hídricos
37
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Para os países em desenvolvimento, atender às necessidades bá-
sicas de abastecimento de água e saneamento é a mais premente
questão de segurança hídrica (Ritchie e Roser, 2019). À medida
que a água se torna cada vez mais escassa, os governos que não adotam
melhorias na gestão dos recursos hídricos estarão permitindo que as for-
ças do mercado privatizem a água, o que ocorre quando empresas priva-
das se apropriam da produção e distribuição de água. Os preços da água
geralmente disparam quando ela é privatizada, mesmo que o serviço seja
ruim, causando muitos problemas para famílias empobrecidas que fazem
uso de grandes parcelas de sua renda para pagar por um direito básico.
As mulheres são as primeiras a sofrerem os impactos negativos da pri-
vatização da água porque, como gestoras de suas famílias, são, muitas
vezes, forçadas a comprarem água e devem renunciar a outras atividades
produtivas, como agricultura de subsistência de cultivos que necessitam
de irrigação. (UNWATER/WHO, 2015).
No entanto, as abordagens tradicionais para a gestão da água são alta-
mente segregadas, com foco em melhorias técnicas e soluções setoriais,
sem atenção suficiente para seus aspectos sociais e de metas básicas de
sustentabilidade. As abordagens tradicionais relacionadas à engenha-
ria dos recursos hídricos têm um discurso masculinizado, enfatizando
“construção, comando e controle”. Esse discurso é utilizado por elites
técnicas, econômicas e políticas, sendo também adotado em outros se-
tores da sociedade, como na política e nos negócios, deixando de fora
vozes já marginalizadas e invisíveis, como mulheres, pobres, grupos ét-
nicos e minorias raciais, entre outros (Earle & Bazilli, 2013)
Muitos grupos específicos são discriminados no acesso à água e ao sa-
neamento pela sua condição social ou pessoal por gênero, raça, etnia,
38
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
religião, nacionalidade, nascimento, casta, idioma, incapacidade física,
idade e estado de saúde, entre outros motivos. Entre as desigualdades,
a que se destaca, por marginalizar metade das sociedades humanas, é a
existente entre homens e mulheres, um traço presente em todo o mundo.
Essa desigualdade é acentuada não só pelo fato de ser mulher, mas ela
é intensificada naquelas mulheres que apresentam múltiplas identida-
des discriminadas, tais como as mulheres negras, as deficientes, as que
pertencem a diferentes etnias etc.
Gênero está vinculado a construções sociais, não a características na-
turais (ao sexo biológico). Refere-se a funções, responsabilidades, di-
reitos, relacionamentos e identidades de mulheres e homens, que são
definidos ou atribuídos a eles dentro de uma determinada sociedade e
contexto, e como esses papéis, responsabilidades, direitos e identida-
des de mulheres e homens afetam e influenciam uns aos outros. Assim,
refere-se ao conjunto de qualidades e comportamentos esperados de
mulheres e homens, e como isso é socialmente construído difere de cul-
tura para cultura.
As relações de gênero são construídas por uma série de instituições – sis-
temas domésticos, políticos e legais, autoridades religiosas e o mercado.
O que elas têm em comum é que tendem a desfavorecer as mulheres.
Quando as expectativas de gênero se cruzam com, por exemplo, pobreza,
etnia, origem, idade, deficiência e orientação sexual, o resultado é com-
plexo e multifacetado, criando barreiras para uma vida digna, igualitária
e segura para todas as mulheres e meninas. Essas barreiras determinam
quem tem acesso e controle sobre serviços, bens e recursos, e quem se
beneficia do uso deles (UNDP/SIWI, 2016).
A desigualdade entre homens e mulheres não foi camuflada nem esca-
moteada ao longo da história; ela sempre foi assumida como sendo um
reflexo da natureza diferenciada dos dois sexos, sendo necessária para
a sobrevivência e o progresso da espécie humana. A mudança come-
ça a ocorrer com o pensamento feminista, ao denunciar a situação das
mulheres como efeito de padrões de opressão e caminhando “para uma
crítica ampla do mundo social, que reproduz assimetrias e impede a ação
autônoma de muitos de seus integrantes” (Miguel e Biroli, 2014, p. 17).
39
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
É importante destacar que “a categoria ‘mulher’ foi construída em meio a
relações marcadas pelo patriarcado e pela dominação masculina”. Assim,
o que é aceito como feminilidade não é a expressão de uma natureza, mas
o resultado do trabalho de pressões, constrangimentos e expectativas
sociais (Miguel, 2014, p. 79), como explicitado por Simone de Beauvoir,
em sua obra O Segundo Sexo.
O fato é que as desigualdades econômicas, políticas e sociais estão mar-
cadas também no acesso à água potável e, neste processo de margi-
nalização, pessoas e grupos sofrem desproporcionalmente os impactos
econômicos, de saúde e a busca pela água, intensificando e reforçando
as desigualdades sociais. Neste caso, as relações de poder, a situação
financeira e as posições sociais impactam mais intensamente as mu-
lheres e as meninas, pela falta de água potável, de saneamento e de
serviços de higiene, além de afetar a dignidade das envolvidas nesse
processo. Compreender essas vulnerabilidades especiais é tão impor-
tante quanto revelar as dimensões de gênero no acesso à água porque
ambos acarretam situações de insegurança hídrica e grande necessida-
de de acesso mais equitativo (UNWATER/WHO, 2015). Assim, a equidade
refere-se à justiça entre homens e mulheres no acesso aos recursos da
sociedade, reconhecendo suas diferentes necessidades. Isso pode incluir
tratamento igual ou diferenciado que é visto como equivalente em termos
de direitos, benefícios, obrigações e oportunidades. No contexto de de-
senvolvimento, um objetivo de igualdade de gênero muitas vezes requer
a incorporação de medidas para compensar as desvantagens históricas
e sociais das mulheres.
Dentro dessa reorientação social, em estudos mais recentes reconhe-
ceu-se que uma abordagem de gênero é essencial para o desenvolvi-
mento de sistemas e estratégias eficazes, eficientes e sustentáveis. Em
consonância com as recomendações em diferentes conferências, decla-
rações, agendas e compromissos internacionais, parece estar havendo
um consenso em torno do fato de que as mulheres devem participar
mais intensamente da gestão dos recursos hídricos, o que tornaria a
gestão mais eficiente, focada no usuário, financeiramente viável e am-
bientalmente sustentável (OECD, 2021). Pesquisa do Programa das Nações
40
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Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) buscou evidenciar que as comuni-
dades onde as mulheres são incluídas na gestão da água obtêm resulta-
dos melhores, incluindo sistemas de água que funcionam melhor, acesso
ampliado e benefícios econômicos e ambientais (PNUD, 2006)
No setor da água, muitas vezes ocorre que a tomada de decisões e a
sua implementação são majoritariamente realizadas por homens. Isso
resulta em decisões de gestão que provavelmente serão incompletas,
pois estarão faltando informações importantes de pelos menos metade
da população, formada pelas mulheres. A experiência tem demonstrado
que os projetos hídricos ganham eficiência e sustentabilidade quando
mulheres e homens estão envolvidos na tomada de decisões, supervisão
e fornecimento de água. As mulheres e as minorias têm conhecimento
diferenciado que é vital para a gestão sustentável de recursos, bem como
diferentes perspectivas sobre responsabilidades, prioridades e necessi-
dades em torno do uso e gestão da água (UNDP/SIWI, 2016).
Com efeito, os mais importantes recursos de desenvolvimento subuti-
lizados que temos são os recursos humanos. Se metade da população
mundial for impedida de desenvolver suas capacidades – mentais, físicas
e sociais –, então se estará restringindo severamente nosso potencial de
desenvolvimento sustentável para gerir de forma efetiva nossas reservas
de água cada vez mais escassa.
A ênfase na integração das perspectivas de gênero no setor de água re-
flete o reconhecimento de que os interesses e as necessidades das mu-
lheres, bem como dos homens, devem ser sistematicamente perseguidos
na implementação de políticas nacionais e regionais. Ou seja, a atenção
às questões de gênero não pode ficar confinada a um setor específico,
como departamento ou setor da mulher ou endereçada em programas
isolados ou marginais dentro do setor de água (OCDE/DAC, 1998).
De forma cada vez mais enfática, há o consenso de que qualquer solução
para a escassez global de água deve incluir a dimensão de gênero na
gestão e no consumo dos recursos hídricos (UNESCO, 2018). No ambiente
doméstico, as mulheres assumem a responsabilidade pela aquisição, alo-
cação e uso de água em muitas culturas. Na maioria delas, no meio rural,
41
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Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
as mulheres e as meninas, geralmente, são encarregadas da obtenção
da água a ser utilizada em sua residência, incluindo caminhar até fontes
distantes, localizar vendedores de água, comprar a água, e levar de volta
para casa. São as mulheres que cuidam da alocação dos suprimentos
escassos de água para diferentes membros da família e para as tarefas
em que ela é utilizada. Além disso, são elas que realizam a maioria das
atividades relacionadas à água e tarefas domésticas, como cozinhar, cui-
dar das crianças, limpar a casa e lavar a roupa (United Nations, 2019).
Sintetizando a questão sobre a igualdade de gênero pode-se afirmar que
é fundamental o tratamento igualitário para uma governança da água
sustentável, eficaz e inclusiva. Isso significa que todos devem ter as
mesmas oportunidades de acesso, gestão e uso dos serviços e recursos
hídricos. Mulheres e homens, assim como as minorias também discrimi-
nadas como negros, indígenas e deficientes físicos entre outros, devem
ter a mesma capacidade de influenciar a forma como as decisões são
tomadas e devem se beneficiar igualmente dos programas de água e
desenvolvimento.
Cabe aos Estados o dever de garantir que os direitos humanos água e
saneamento sejam garantidos para todos, de forma não discriminatória
e em igualdade de condições. Os Estados têm a obrigação de respeitar,
proteger e cumprir esses direitos humanos. Nesse sentido, devem re-
vogar leis e práticas discriminatórias por meio de medidas impositivas
empregadas para alcançar o gozo equitativo de direitos.
Uma das decorrências das relações de poder desiguais entre mulheres
e homens nas sociedades é o profundo enraizamento da violência de
gênero, o que é reforçado por preconceitos, estereótipos de gênero e
práticas nocivas que perpetuam a ideia de que as mulheres são inferiores
aos homens. Essas situações são agravadas para muitas mulheres que
sofrem discriminação interseccional com base, por exemplo, em raça,
etnia, casta, classe etária, deficiência, identidade de gênero, orientação
sexual, religião, estado civil e/ou outras características (AI, 2021).
7.!
Participação e
violência de gênero
43
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
A
busca por uma participação equitativa cria oportunidades so-
ciais e econômicas que podem fortalecer o arranjo democrático
no sistema de gestão da água, contribuindo, igualmente, para a
consolidação de um envolvimento mais sustentável. Diretamente rela-
cionada às mulheres, a participação equitativa na gestão da água pode
também chegar a outros grupos vulneráveis, como crianças, idosos e
pessoas com deficiência que, em grande parte, dependem dos cuidados
e zelo das mulheres.
Globalmente, a integração da perspectiva de gênero está sendo cada vez
mais reconhecida como crucial para a gestão sustentável da água, ten-
do em vista que a existência dessa lacuna, associada à necessidade de
empoderamento das mulheres, dificulta o alcance dos objetivos e metas
de desenvolvimento sustentável. Em todos os níveis, do internacional ao
local, a contribuição das mulheres para o desenvolvimento, a gestão e o
uso dos recursos hídricos, bem como a necessidade de seu envolvimento,
são condições necessárias para a existência de uma sociedade igualitária
em termos de gênero.
As mulheres possuem um conhecimento inestimável em relação aos re-
cursos hídricos e desempenham papel fundamental na gestão da água
e do saneamento, nos níveis local e comunitário (OCDE, 2021). Em con-
sequência, elas devem poder desfrutar não só de igualdade de acesso à
água, mas também ter uma voz igual à dos homens na gestão e na go-
vernança dos recursos hídricos. Como expresso na Resolução no 70/1695,
“Os direitos humanos à água potável segura e ao saneamento”, adotada
5Assembleia Geral da ONU, 2016. Resolução adotada pela Assembleia Geral da ONU em 17 de dezembro de 2015.
“Os direitos humanos à água potável e ao saneamento”, A/RES/70/169.
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pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 2015, dentre outras reco-
mendações, os Estados devem promover tanto a liderança das mulhe-
res quanto a sua participação plena, efetiva e igualitária na tomada de
decisões sobre a gestão da água e do saneamento, e garantir que uma
abordagem baseada no gênero seja adotada em relação aos programas
implementados.
Pouco mais de 25 anos após a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim
(1995), o progresso em direção à igualdade de gênero por meio do cum-
primento do direito básico à água ao saneamento pouco avançou, con-
siderando que grandes desigualdades persistem na prática. As mulhe-
res estão sub-representadas, em termos de participação em diferentes
esferas e arranjos institucionais ligados ao desenvolvimento e à gestão
dos recursos hídricos, a agências governamentais e serviços públicos de
água, à instituições locais de gestão de água (UNESCO/WWAP, 2021)
Ocorre que os instrumentos legais que constituem o arcabouço jurídico
para colocar em prática os direitos reconhecidos nos eventos interna-
cionais pelos Estados nem sempre têm as disposições que permitem e
empoderem a integração de gênero ou o envolvimento das mulheres nas
funções e programas de gestão dos recursos hídricos de bacias hidro-
gráficas. Na maioria das vezes, as cláusulas de gênero simplesmente
não existem ou são omissas nas questões essenciais que dizem respei-
to ao cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados e ao
exercício efetivo dos direitos humanos assegurados em muitas de suas
constituições para cerca de metade da população, constituída por mu-
lheres e meninas. Embora a simples inserção de gênero em instrumentos
legais e regulatórios não garanta a participação ativa, ela é necessária
por constituir medida de apoio sociocultural e político que fortalecem a
ação concreta das mulheres nos órgãos, nos conselhos ou nos comitês
dos quais participam.
Nesse sentido é que a adoção da Declaração e Plataforma de Ação de
Pequim, em 1995, na IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, foi um
momento importante no reconhecimento dos direitos e no empodera-
mento das mulheres. A visibilidade proporcionada pela Declaração às
questões que afetam mulheres e a forte vontade política demonstrada
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Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
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para lidar com essas questões foram sem precedentes. A Declaração
constituiu um esforço coletivo no sentido de destacar o direito das mu-
lheres de desfrutar do mais alto padrão de vida, em igualdade de con-
dições com os homens. A Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim
estabeleceram um roteiro abrangente para alcançar a igualdade de gêne-
ro, com resultados esperados, medidas concretas e compromissos rela-
cionados a áreas críticas e inter-relacionadas de preocupação, entre as
quais educação e treinamento de mulheres, violência contra as mulheres,
mulheres e economia, mulheres no poder e na tomada de decisões, me-
canismos institucionais para o avanço das mulheres e direitos humanos
das mulheres. (UNESCO/WWAP, 2021)
Já se passaram 28 anos desde a definição histórica da Nações Unidas
proclamada pela Assembleia Geral, em dezembro de 1993, como
“Declaração sobre a eliminação da violência contra a mulher”. Naquela
oportunidade, foi estabelecido que violência contra a mulher significa
“qualquer ato de violência baseado no gênero que resulte ou possa re-
sultar em dano físico, sexual ou psicológico ou sofrimento às mulheres,
incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liber-
dade, seja ocorrendo na vida pública ou privada” (ONU, 1993).
Outro evento de grande magnitude sobre a violência de gênero ocor-
reu em Istambul, na Turquia, em março de 2011, com a assinatura da
“Convenção sobre Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher e a
Violência Doméstica”, mais conhecida como “Convenção de Istambul”.
O documento foi elaborado pelo Conselho da Europa e estabelece pa-
drões juridicamente vinculativos (significa que os Estados partes têm
a obrigação de cumprir as suas disposições) não apenas para punir os
agressores, mas também para a prevenção da violência e a proteção das
vítimas, além de padrões mínimos para os governos da Europa sobre
prevenção, proteção e repressão à violência contra as mulheres e à vio-
lência doméstica.
A Convenção de Istambul é considerada o tratado internacional de maior
alcance especificamente concebido para combater a violência contra
as mulheres. É considerado, globalmente, como o terceiro tratado re-
gional que trata da violência contra a mulher e o mais abrangente após
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a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), adotada em 1994 e o
Protocolo à Carta Africana, dos Direitos do Homem e dos Povos, aos
Direitos das Mulheres em África (Protocolo de Maputo) em vigor desde
2003 (AI,2021).
O primeiro documento regional, patrocinado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA), entende “violência contra a mulher qualquer ato ou
conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada”. E define o seu conteúdo afirmando que “a violência contra a
mulher abrange a violência física, sexual e psicológica” que ocorre “no
âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação inter-
pessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua
residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e
abuso sexual”, ou, ainda, quando ocorre “na comunidade e cometida por
qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, o abuso se-
xual, a tortura, o tráfico de mulheres, a prostituição forçada, o sequestro
e o assédio sexual no local de trabalho” ou em qualquer outro local; e
destaca a violência a ocorrência “perpetrada ou tolerada pelo Estado ou
seus agentes, onde quer que ocorra”6.
O segundo evento em importância é o Protocolo de Maputo, que foi ado-
tado em 11 de julho de 2003, documento que define a violência contra a
mulher como “todos os atos perpetrados contra a mulher e que cause,
ou que seja capaz de causar danos físicos, sexual, psicológicos ou eco-
nômicos, incluindo a ameaça de tais atos, ou a imposição de restrições
ou a privação arbitrária das liberdades fundamentais na vida privada ou
pública, em tempos de paz e durante situações de conflito ou guerra”7
6Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém
do Pará”. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm
7Protocolo à Carta Africana, dos Direitos do Homem e dos Povos, aos Direitos das Mulheres em África (Protocolo
de Maputo) .Disponível em: https://au.int/sites/default/files/treaties/37077-treaty-0027_-_protocol_to_the_afri-
can_charter_on_human_and_peoples_rights_on_the_rights_of_women_in_africa_p.pdf
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Esses eventos provocaram avanços na legislação de muitos países; a
definição histórica da ONU foi debatida e detalhada. Uma das definições
mais recentes da UNICEF afirma que8
“A vioncia baseada em gênero (VBG) é a violação de direitos humanos
mais difundida e menos visível no mundo. Inclui danos físicos, sexuais,
mentais ou econômicos infligidos a uma pessoa por causa de desequilí-
brios de poder socialmente atribuídos entre homens e mulheres. Também
inclui a ameaça de violência, coerção e privação de liberdade, seja em
público ou privado”.
E complementa afirmando que
“Em todas as sociedades, mulheres e meninas têm menos poder que os
homens – sobre seus corpos, decisões e recursos. As normas sociais que
toleram o uso da violência pelos homens como forma de disciplina e con-
trole reforçam a desigualdade de gênero e perpetuam a violência de -
nero. Em todo o mundo, mulheres e meninas – especialmente adolescen-
tes – enfrentam o maior risco”.
Mas o fato é que a violência contra a mulher continua e, em muitos ca-
sos, parece ter se intensificado. De acordo com o Fundo de População
das Nações Unidas, uma em cada três mulheres sofrerá abuso físico
ou sexual ao longo da vida. Esse número aumenta para as mulheres em
áreas de baixa e média renda. E, em contextos humanitários, mulheres e
meninas são ainda mais vulneráveis à violência, enquanto aquelas com
deficiência o são duplamente (Devex, 2021).
Como mencionado, as relações sociais de poder são causas das desigual-
dades estruturais de gênero. De modo similar, a violência contra a mulher
tem raízes socioculturais profundas na sociedade, como mostra Baptista
(2022), ao assinalar que esse tipo de violência se “configura pela proxi-
midade da relação entre vítima e agressor” e, no mais das vezes, inclui
a “invisibilidade” do local em que ocorre: o lar ou a residência da vítima.
“Esta invisibilidade é uma característica da violência contra a mulher
que incide sobre a produção dos dados que orientam a construção das
políticas de combate” ao problema. O Estado tem dificuldade de acessar
o local onde ocorre a violência de gênero. No entanto, “a violência contra
a mulher se solidifica pela moralidade com a qual é tratada: às mulheres
8Unicef – Disponível em: https://www.unicef.org/protection/gender-based-violence-in-emergencies
48
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cabe decidir” se comprometem a estrutura familiar ou das relações fa-
miliares quando uma violência acontece. Nesse sentido, qualquer análise
de violência de gênero deve considerar “as condições de dependência
criadas nas relações familiares que impedem as denúncias de violência
ocorridas no ambiente doméstico” (Baptista, 2022, p. 19).
Com abordagem semelhante, Sebaldelli, Ignotti e Hartwig (2021) afirmam
que violência de gênero é um problema de saúde pública “pela magnitu-
de de sua prevalência, gravidade e recorrência, assim como pelas con-
sequências negativas na saúde física, mental, sexual e reprodutiva das
mulheres”. É um problema disseminado em todo o mundo, e são muitas
as suas causas, incluindo aspectos sociais, políticos, econômicos e os
fatores biológicos. Este é um “tipo de violência que ocorre na residên-
cia e tem como principal agressor o companheiro” (Sebaldelli, Ignotti,
Hartwig, 2021, p.2).
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP (2021) publicou pes-
quisa realizada em 2020, durante a pandemia de covid-19, que revela
a gravidade do problema da violência de gênero no Brasil. De acordo
com o levantamento, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos
afirma ter sofrido algum tipo de violência, o que significa que cerca de
17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual
naquele período. As agressões no ambiente doméstico representaram
48,8% dos casos.
Os dados da violência de gênero revelados pela pesquisa do FBSP (2021)
apresentam detalhes do problema acentuando que 4,3 milhões de mu-
lheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes.
Ou seja, a cada minuto, oito mulheres apanharam no Brasil, durante o
primeiro ano de pandemia causada pelo coronavírus. O tipo de violência
mais comum foi a ofensa verbal, como insultos e xingamentos, expe-
rimentado por cerca de 13 milhões de brasileiras (18,6%). Ameaças de
violência física, como tapas, empurrões ou chutes, atingiram 5,9 milhões
de mulheres (8,5%). Foram vítimas de ameaças com faca ou arma de
fogo 2,1 milhão de mulheres e outras 1,6 milhão (2,4%) foram espanca-
das ou sofreram tentativas de estrangulamento. As que foram atingidas
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por ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais
somaram cerca de 3,7 milhões de brasileiras (5,4%).
Considerando os dados elencados no parágrafo anterior e que há sub-
notificação dos casos de violência contra a mulher, podemos afirmar
que o brasileiro os brasileiros convivem com muitas ações desse tipo ao
longo do ano, fato que é ilustrado nessa pesquisa segundo a qual, cin-
co em cada 10 brasileiros (51,1%) relataram ter visto uma mulher sofrer
algum tipo de violência no seu bairro ou comunidade, ao longo de 2020.
Considerando os dados anteriores de que a violência contra a mulher é
alta no ambiente doméstico, pode-se considerar que há uma alta sub-
notificação de casos, pois, se metade dos brasileiros presenciou um ato
de violência de gênero, o número real de casos deve ser muito maior do
que mostraram os dados da pesquisa (FBSP, 2921).
O relatório do Projeto Justiceiras, publicado em março de 2022 com-
plementam os dados obtidos até o momento com dados estatísticos
cobrindo um período maior de ocorrência da pandemia da covid-19 e
levantamento mais amplo e detalhado, com 9,5 mil atendimentos reali-
zados no período. Esse relatório aponta que oito em cada 10 vítimas de
violência contra a mulher sofreram abusos psicológicos durante a pan-
demia. As mulheres relataram diferentes tipos de violência, como psico-
lógica (82,96%), física (59,06%), sexual (52,48%) e patrimonial (68,59%),
na maioria das vezes, dentro da própria casa (74,89%). Em cada dez mu-
lheres, sete relataram situações de média e alta gravidade cometidas
por seus atuais relacionamentos (40,41%) ou anteriores (37,86%). Outra
preocupação é o acesso dos agressores a armas: quase um quarto das
vítimas confirmou essa situação (Projeto Justiceiras, 2022).
O enraizamento da violência de gênero na sociedade é profundo e tem
raízes socioculturais que se perpetuam a partir da violência praticada
no âmbito doméstico, se espraiando na sociedade como um todo e se
manifestando nos mais diversos setores. No sistema em que se articula
a governança de água e saneamento não poderia ser diferente. O que se
consolida cada vez mais é o combate a essa violência, que tem origem
na disparidade de poder entre homens e mulheres, em todos os âmbitos
da sociedade, buscando aos poucos solapar essa dominão secular e
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enraizada culturalmente. Nesse sentido é que é importante a manifes-
tação contrária à desigualdade de gênero e à violência contra a mulher,
inclusive nas instâncias de governança dos recursos hídricos.
A discriminação feminina no âmbito da gestão dos recursos hídricos se
insere num contexto mais amplo que envolve a situação da mulher na
sociedade global. A busca por uma “pluralidade democrática depende
da garantia do espaço para o florescimento de identidades baseadas em
crenças e práticas distintas”. Ocorre que é necessário “garantir que esse
espaço seja livre de violência, do constrangimento sistemático”, bem
como “das desigualdades que potencializam o exercício da autoridade
por parte de alguns e a vulnerabilidade e a subordinação de outras.”
(Biroli, 2012, p. 46)
A dificuldade que se interpõe no trato da questão da violência contra
a mulher, inclusive na geso dos recursos dricos, é a forma como se
obtêm os dados estatísticos, ou seja, pela carência de dados robustos,
consistentes, desagregados por sexo e sensíveis ao gênero9, que não
identificam claramente a quem se referem, não individualizando se a
homens ou a mulheres, escamoteando uma realidade de submissão de
um gênero a outro. Pode, ainda, ser destacada a falta de análises relacio-
nadas que ajudariam a sustentar o desenvolvimento de um conhecimento
básico de gênero relacionado à água. A obtenção de dados que se refe-
rem à família, por exemplo, como mencionado, esconde a realidade de
que no ambiente familiar existe uma relação de poder desigual, e onde
se manifesta com mais força a dominação masculina, calcada, em geral,
na tradição que é transmitida por gerações.
A utilização de dados desagregados por gênero poderá vir a resolver, em
parte, esse problema.
9Que levem em consideração, por exemplo, o impacto das políticas, projetos e progra-
mas sobre homens, mulheres, meninos e meninas e tentando mitigar suas consequências
negativas.
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7.1. O machismo e o seu significado
na violência de gênero
É muito difícil discutir a violência de gênero sem identificar suas raí-
zes e, nesse sentido, é importante destacar o papel do machismo na
sociedade e seus impactos na perpetuação da desigualdade de gênero.
Considerando que o Brasil atravessa, no ano de 2022, um dos seus piores
momentos no que diz respeito à intensificação da misoginia, é importan-
te destacar o papel que o machismo desempenha nesse processo e como
ele está enraizado na sociedade em suas diversas manifestações. Há um
machismo explícito, que é o mais combatido por ser mais evidente, mas
há, em maior intensidade, o machismo implícito, enrustido em palavras
e atos e que não é questionado com a mesma intensidade. No entanto,
ambos manifestam preconceito e discriminação de gênero.
O machismo é o preconceito ou a discriminação com base no sexo ou no
gênero de uma pessoa e que pode levar a um amplo número comporta-
mentos prejudiciais, desde atos de violência a comentários sutis que re-
forçam estereótipos. Todas as manifestações machistas são prejudiciais
e têm impacto negativo na sociedade. Leonard (2021) descreve diferentes
tipos de machismo que podem ser transmitidos em comportamentos,
falas, escritas, imagens, gestos, leis e políticas, práticas e tradições.
A mesma autora considera, ainda, que existem seis tipos básicos de ma-
chismo, os quais denomina de hostil, benevolente, ambivalente, insti-
tucional, interpessoal e internalizado, e descreve cada um deles, com
exemplos ilustrativos (Leonard, 2021), como os mostrados a seguir10.
1Machismo hostil: se refere a crenças e a comportamentos que são
abertamente hostis em relação a um grupo de pessoas, com base
em seu sexo ou gênero. A misoginia, ou o ódio às mulheres, é um exem-
plo de machismo hostil. As pessoas que têm opiniões hostis e machis-
tas podem ver as mulheres como manipuladoras, enganosas, capazes de
10O texto a seguir, com os tipos de machismo, constitui uma adaptação de Leonard (2021).
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usar a sedução para controlar os homens e que precisam ser mantidas
em seu lugar.
As pessoas que praticam o machismo hostil querem preservar o domínio
dos homens sobre as mulheres e as pessoas de outros gêneros margina-
lizados. Eles, normalmente, se opõem à igualdade de gênero e também
podem se opor aos direitos das pessoas LGBTQIA+, vendo-os como uma
amea aos homens e aos sistemas que os beneficiam. Alguns exemplos
de machismo incluem usar linguagem machista e insultos; fazer comen-
tários ameaçadores ou agressivos com base no gênero ou no sexo da
pessoa; assediar ou ameaçar alguém por desafiar as normas de gênero,
on-line ou off-line; tratar as pessoas como subordinadas, com base em
seu sexo ou gênero e puni-las quando elas “saem da linha”; acreditar que
algumas vítimas de agressão sexual “pedem” essa agressão devido ao
seu comportamento ou a roupas que vestem e envolver-se em agressão
física ou sexual.
2Machismo benevolente: esse tipo inclui visões e comportamentos
que enquadram as mulheres como inocentes, puras, que precisam
de cuidados, são frágeis, necessitam de proteção e são bonitas. Em com-
paração com o machismo hostil, o machismo benevolente pode ser me-
nos óbvio. É uma forma mais aceita socialmente e é muito mais provável
que seja endossada por homens e mulheres. No entanto, apesar do nome,
esse tipo de machismo não é verdadeiramente benevolente, pois embo-
ra aplique alguns traços positivos às mulheres e à feminilidade, ainda
enquadra um sexo ou gênero como mais fraco que outro. Essas ideias
podem levar a políticas e a comportamentos que limitam a agenda de
uma pessoa ou a capacidade de alguém fazer suas próprias escolhas.
Os homens que endossam o machismo benevolente podem ser mais pro-
pensos a apoiar políticas que limitam a liberdade das mulheres grávidas.
O machismo benevolente também mina a confiança das meninas em si
mesmas e em suas habilidades.
Alguns exemplos de machismo benevolente incluem basear o valor de
uma mulher em seu papel como mãe, esposa ou namorada; concentrar a
atenção e os elogios na aparência de alguém, em vez de outros atributos;
acreditar que as pessoas não devem fazer coisas por si mesmas, como
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administrar dinheiro ou dirigir um carro, por causa de seu gênero; assu-
mir que uma pessoa é enfermeira, assistente ou secretária – não médica,
executiva ou gerente – com base em seu gênero e apoiar políticas que
dificultem o trabalho das mulheres, sua independência ou se desviem
dos papéis tradicionais de gênero.
3Machismo ambivalente: esta é uma combinação dos dois tipos an-
teriores, o machismo hostil e benevolente. As pessoas que mani-
festam machismo ambivalente podem variar entre ver as mulheres como
boas, puras e inocentes e como manipuladoras ou enganadoras, depen-
dendo da situação. O machismo benevolente oferece proteção às mulhe-
res em troca de elas adotarem um papel mais subordinado, enquanto o
machismo hostil visa àquelas que se desviam disso.
Exemplos desse tipo incluem glorificar o comportamento tradicional-
mente feminino e demonizar o comportamento “não feminino”; contratar
alguém porque é atraente e, em seguida, demiti-la se não responder a
avanços sexuais e diferenciar entre mulheres decentes e mulheres in-
decentes com base em como elas se vestem.
4Machismo institucional: se refere ao machismo que está arraigado
em organizações e instituições, tais como no governo, no sistema
judico, no sistema educacional, no sistema de saúde, nas instituões
financeiras, na mídia e em outros locais de trabalho. Quando políticas,
procedimentos, atitudes ou leis criam ou reforçam o machismo, isso é
machismo institucional. O machismo institucional é generalizado. Pode
ser hostil, benevolente ou ambivalente. Um dos indicadores mais claros
desse comportamento é a falta de diversidade de gênero entre líderes po-
líticos e executivos de negócios. Outro indicador é a disparidade salarial
entre homens e mulheres. Essa lacuna é maior para mulheres com filhos
e para mulheres negras, indígenas e deficientes, entre outras minorias.
5Machismo interpessoal: se manifesta durante as interações com
os outros. Pode ocorrer no local de trabalho, nos relacionamentos,
entre membros da família e nas interações com estranhos. São exemplos
deste tipo dizer à mulher para ser mais elegante; julgá-la por não se
encaixar em estereótipos de feminilidade, como ser carinhosa ou sub-
missa; fazer comentários inapropriados sobre a sua aparência; falar com
54
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ela com base em suposições sobre seu gênero e envolver-se em aten-
ção sexual indesejada ou tocá-la e justificar o comportamento machista
dizendo que “meninos serão meninos”, descartando a possibilidade de
adotarem outro comportamento de gênero.
6Machismo internalizado: refere-se às crenças machistas que uma
pessoa tem sobre si mesma. Normalmente, uma pessoa adota es-
sas crenças involuntariamente, como resultado da exposição ao com-
portamento machista ou às opiniões de outras pessoas. O machismo
internalizado pode causar sentimentos de incompetência, dúvida, impo-
tência e vergonha. Também faz com que as pessoas involuntariamente
conspirem com o machismo. A menor taxa de mulheres trabalhando em
ciência, tecnologia, engenharia e matemática pode ser devido ao machis-
mo internalizado. Os estereótipos machistas podem afetar o desempenho
acadêmico. Como há uma crença generalizada de que os meninos são
melhores do que as meninas em matemática e ciências, isso pode causar
falta de confiança.
Exemplos de machismo internalizado incluem fazer piadas autodeprecia-
tivas sobre o próprio gênero, como aquelas envolvendo mulheres loiras;
baseando sua autoestima em quão desejáveis são aos olhos dos homens;
sentir vergonha de aspectos de ser mulher, como menstruação ou geni-
tália feminina e sentir que é essencial se adequar aos ideais de gênero,
mesmo que isso signifique prejudicar a si mesma, por meio de dietas
restritivas, por exemplo.
O machismo está arraigado na sociedade e está na raiz da desigualdade
de gênero. Para combatê-lo é fundamental entendê-lo, identificar como
se manifesta e, então, desafiar as atitudes e as práticas machistas em
todos os lugares, sejam eles quais forem, desde instituições governa-
mentais até as reuniões de sociedade de amigos de bairros, nos clubes,
nos grêmios estudantis, nos conselhos de políticas públicas, no ambiente
doméstico, na mídia, enfim, nos diferentes âmbitos em que se articula
a sociedade.
8.!
Necessidade de
dados desagregados
por gênero
56
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
A
desigualdade de gênero na gestão de água e do saneamento, além
de uma questão de direitos humanos, envolve também a gestão
dos recursos hídricos para torná-los mais eficazes para atender
a um número maior de pessoas, fornecendo água e serviço de qualidade.
A base para o desenvolvimento desse processo de inclusão é a obtenção
de melhores dados sobre a desigualdade existente entre os gêneros. A
disponibilidade desses dados contribui para tornar visíveis as desigual-
dades estruturais existentes e, assim, sua obteão é um desafio e uma
oportunidade para o aperfeiçoamento e a criação de políticas públicas.
Sem dados estratificados por gênero é impossível se obter a exata di-
mensão da marginalização das mulheres em relão aos homens, que
fica camuflada por dados agregados, não individualizados.
No setor de água e saneamento, homens e mulheres expressam dife-
rentes prioridades, usos e necessidades. Como já foi reconhecido11, as
mulheres têm um papel fundamental na gestão dos recursos hídricos em
benefício de suas famílias e da sociedade como um todo e, ainda, que a
dimica de gênero no setor de água e saneamento reflete e refoa as
interligações entre pobreza, gênero e sustentabilidade do desenvolvi-
mento. Nesse sentido, as análises sensíveis e inclusivas de gênero são
essenciais para compreender as desigualdades no acesso à água potável
(ODS 6.1.1), ao saneamento e à higiene (ODS 6.2.1), para apoiar o moni-
toramento e a avaliação dos aspectos de gênero na gestão de recursos
hídricos (ODS 6.5.1) e a conservação desses recursos, dentre outros as-
pectos (Seager, 2015; UN, 2015; GWP, 2021).
11Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente, Dublin, 1992.
57
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Na maioria dos contextos, mulheres e homens têm diferentes níveis de
acesso e controle sobre os recursos hídricos. Os diversos valores e prio-
ridades relacionados a esses recursos entre mulheres e homens geram
benefícios diferentes e vitais para a subsistência e os ecossistemas.
Pesquisas mostram que, ao coletar dados desagregados por gênero
(DDG), as diferenças entre homens e mulheres tornam-se evidentes. A
coleta de dados desagregados no setor de água e saneamento, por sexo,
idade e outras dimensões, é uma etapa crucial para entender melhor
como a água é usada, gerenciada e distribuída. A realização de análises
de gênero permite identificar e compreender as questões de gênero e
como abordá-las de forma adequada no planejamento, nos projetos e nas
políticas. (Unesco, 2021a).
Sem o recolhimento de DDG não é possível monitorar e medir plenamente
o progresso real no sentido da realização dos processos envolvendo a
água e compromissos globais em matéria de saneamento, em particular
os relacionados com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Dados desagregados por gênero são essenciais para avaliar e tornar mais
visíveis os efeitos diferenciais das medidas políticas sobre mulheres e
homens, e para avaliar e acompanhar mais eficazmente o papel das mu-
lheres nas questões da água e do saneamento.
Em geral, os dados envolvendo produção e consumo da água são, ge-
ralmente, apresentados por família. No entanto, na maioria dos casos,
a unidade de análise é a família ou a comunidade, nenhuma das quais
distingue os membros individuais, resultando em uma análise que ignora
as diferenças de gênero em água e saneamento, envolvendo mulheres e
homens de diferentes idades e níveis socioeconômicos. A família é uma
unidade social com desequilíbrios de poder dentro dela, e considerá-la
como unidade escamoteia essa relação.
Para compreender melhor a situação dos gêneros no trato com os re-
cursos hídricos são necessárias melhores informações sobre quem tem
direito à água, quanto trabalho é necessário para ter acesso à água, quem
faz o trabalho, quem usa e se beneficia da água e os propósitos para os
quais a água é usada. Este requisito é proporcional ao direito humano à
água, que é um direito inalienável do indivíduo e não da família. (UNESCO,
58
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
2021b). Do mesmo modo, o impacto da desigualdade de gênero na go-
vernança dos recursos hídricos não pode ser avaliado corretamente sem
dados desagregados.
Os DDG são aqueles dados coletados, tabulados e analisados separada-
mente entre homens e mulheres. Enquanto dados quantitativos cola-
boram para o acompanhamento das mudanças numéricas ao longo do
tempo, os dados qualitativos, por sua vez, podem buscar avaliar mudan-
ças relacionadas a experiências, atitudes ou percepções, e isso pode
envolver questões sobre seus papéis e responsabilidades individuais.
O objetivo da coleta de DDG é fornecer uma compreensão mais completa
das relações humanas existentes na gestão dos recursos hídricos, a fim
de desenvolver melhores políticas e programas. Como um meio de resol-
ver o desequilíbrio entre responsabilidades e poder, e ou direitos entre
homens e mulheres, é fundamental compreender, primeiro, os motivado-
res subjacentes e as causas raízes dessas discrepâncias e quantificá-los,
para que as mudanças apropriadas possam ser feitas na concepção, no
planejamento, no monitoramento e na avaliação de projetos ou progra-
mas de água e saneamento, bem como em políticas e em estratégias de
recursos hídricos (Thuy, Miletto e Pangare, 2019).
Os dados desagregados por gênero permitem a compreensão das dife-
renças por sexo, as necessidades únicas de homens e mulheres, e tam-
bém podem refletir diferenças de papéis sociais e de gênero, responsabi-
lidades e expectativas culturalmente construídos de mulheres e homens.
Dados desagregados são essenciais para entender completamente onde
e como ocorre a discriminação em relação ao acesso aos direitos huma-
nos à água e ao saneamento. Dessa forma, eles permitem a identificação
de desigualdades, a discriminação potencial, podendo, ainda, revelar si-
tuações em que se evidencia a igualdade. (Bethany et al, 2021).
A realização dessas análises de modo separado permite medir as dife-
renças entre mulheres e homens em várias dimensões sociais e econômi-
cas, e é um dos requisitos na obtenção de estatísticas de gênero. Assim
sendo, a obtenção dessas informações pode contribuir para reduzir a
lacuna de gênero nas vulnerabilidades sociais, econômicas e ambien-
59
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
tais em qualquer área, também relacionadas aos recursos dricos e ao
uso da água (foco deste trabalho). Nesta linha, as informações sobre os
processos de coleta, análise e uso de dados devem ser vistas como uma
oportunidade de promover a igualdade de gênero e o envolvimento de
grupos sub-representados. As avaliações também podem considerar in-
terseccionalidades (idade, etnia, classe, educação, sexualidade, saúde,
etc.), ao analisarem as dimensões de gênero.
No entanto, as estatísticas de gênero são mais do que DDG. Ter dados por
gênero não garante, por exemplo, que conceitos, definições e métodos
utilizados na produção de dados sejam concebidos para refletir papéis,
relações e desigualdades de gênero na sociedade (EIGE, 2021).
Embora existam muitos dados de gênero e água em diferentes organi-
zações em todos os níveis (local, regional, nacional e internacional), a
qualidade e o tipo de dados não são adequados para apoiar as metas dos
ODS em água e saneamento, muitas vezes devido à utilização de unida-
des inadequadas (ou não compatíveis) de análise e de metodologias, e
entrevistadores que não são sensíveis a questões de gênero.
A utilização de DDG é fundamental para a formulação de políticas pú-
blicas que consideram a desigualdade de gênero como fato impeditivo
ao desenvolvimento sustentável, principalmente num setor importante
para a sustentabilidade, como são os recursos hídricos. A melhoria da
qualidade de vida passa, necessariamente, pela resolução desse pro-
blema de desigualdade e o caminho para que isso aconteça é a ampla
utilização de DDG.
9.!
Aspectos
Metodológicos
61
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
A
abordagem adotada nesta pesquisa de caráter descritivo é do
tipo quantitativa e qualitativa, tendo sido coletados dados pri-
mários e secundários. Trata-se de uma pesquisa exploratória e
descritiva, na qual se procurou, a partir de uma primeira exploração das
informações disponíveis, descrever a característica dos atores que par-
ticipam da gestão dos recursos hídricos. Nos questionários de pesquisa
com questões fechadas e espaços para a inserção de apontamentos fo-
ram obtidas as fontes primárias. Nas publicações relacionadas à legisla-
ção estadual e ao funcionamento dos Conselhos Estaduais de Recursos
Hídricos foram obtidos os dados secundários.
Os sujeitos alvo da pesquisa foram considerados “atores sociais” que
têm o potencial de protagonizar o processo de formulação, implemen-
tação e avaliação das ações no que diz respeito à política de gestão dos
recursos dricos e, ao mesmo tempo, se entende que assim o fazendo
estão expressando demandas sociais.
Quanto aos procedimentos necessários para a obtenção de dados, numa
primeira etapa recorreu-se ao levantamento dos conselhos estaduais
existentes no país e da quantidade de membros titulares e suplentes,
em cada organismo. A partir do momento em que os dados eram obti-
dos, os contatos com seus membros iam sendo realizados, com o envio
de questionários, através de meio eletrônico, para os representantes
dos conselhos estaduais, e feito um reforço da solicitação para que fos-
62
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
sem respondidos. Foram obtidas respostas entre os meses de janeiro a
maio de 2020.
Conforme levantamento realizado, 1.522 espaços para participação
em conselhos estaduais de recursos hídricos, considerando as vagas
de titulares e suplentes. Na Tabela 1 apresentam-se informações acerca
desses muitos espaços, instalados entre 1985 e 2006.
Tabela 1 – Número de membros (titulares e suplentes) dos
Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos12 13
Acre14
Alagoas
Ano de criação 1997
Nº de membros (regulamento) 50
Nº de participantes 46
Dispositivo Instituído pela Lei nº 5.965, de 10 de novembro de 1997, e
regulamentado pelos decretos nº 37.784/1998 e nº 658/2002
Amapá
Ano de criação 2002
Nº de membros (regulamento) 55
Nº de participantes 55
Dispositivo Decreto nº 4.509, de 29 de dezembro de 2009, e
Decreto nº 4.544, de 29 de dezembro de 2009.
12Número de membros (titulares e suplentes), conforme regimento interno.
13Número de membros ativos, informação obtida a partir da relação de membros dispo-
nibilizadas no site e por e-mail.
14Instituiu pela Lei nº 1.022 de 21/01/92 o Conselho Estadual de Meio Ambiente, Ciência
e Tecnologia – CEMACT, órgão colegiado deliberativo e normativo, que integra o Sistema
Estadual de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia – SISMACT.
63
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Amazonas
Ano de criação 2005
Nº de membros (regulamento) 88
Nº de participantes 81
Dispositivo Criado pelo Decreto nº 25.037/2005
Bahia
Ano de criação 1998
Nº de membros (regulamento) 71
Nº de participantes 53
Dispositivo Criado pela Lei nº 7.354, de 14 de setembro de 1998, e
regulamentado pelo Decreto nº 12.120, de 11 de maio de 2010.
Ceará
Ano de criação 1994
Nº de membros (regulamento) 48
Nº de participantes 47
Dispositivo Decreto nº 23.039, de 1º de fevereiro de 1994
Distrito Federal
Ano de criação 2001
Nº de membros (regulamento) 56
Nº de participantes 51
Dispositivo
instituído pela Lei Distrital nº 2.725, de 13 de
junho de 2001, e regulamentado pelo Decreto
Distrital nº 24.674, de 22 de junho de 2004.
64
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Espírito Santo
Ano de criação 2000
Nº de membros (regulamento) 60
Nº de participantes 56
Dispositivo
Criado pela Lei nº 5.818, de 29 de dezembro
de 1998, e regulamentado pelo Decreto
nº 1.737, de 3 de outubro de 2006.
Goiás
Ano de criação 1997
Nº de membros (regulamento) 35
Nº de participantes 35
Dispositivo
Criado pelo inciso I, do artigo 25, da Lei nº 13.123/1997.
Foi extinto na reforma administrativa do Poder
Executivo, realizada em 2008, e revigorado em 2009,
Decreto nº 6.999, de 17 de setembro de 2009
Maranhão
Ano de criação 2004
Nº de membros (regulamento) 61
Nº de participantes 52
Dispositivo
criado pela Lei nº 8.149, de 15 de junho de 2004,
cujos membros foram designados pelo Decreto
Estadual nº 30.191, de 09 de julho de 2014
Mato Grosso
Ano de criação 1997
Nº de membros (regulamento) 56
Nº de participantes 56
Dispositivo
instituído pela Lei Estadual nº 11.088/2020, regulamentado
pelo Decreto nº 316, de 06 de novembro de 2015, alterado
pelos Decretos nº 597, de 16 de junho de 2016 e nº 1.163, de
22 de agosto de 2017. E 363, de 11 de fevereiro de 2020.
65
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Mato Grosso do Sul
Ano de criação 2004
Nº de membros (regulamento) 73
Nº de participantes 65
Dispositivo
regulamentado pelo Decreto nº 11.621, de 1º de
junho de 2004, e reorganizado pelos Decretos
pelo decreto nº 14.217 de 17 de junho de 2015, o
decreto nº 15.079 de 09 de outubro de 2018
Minas Gerais
Ano de criação 1987
Nº de membros (regulamento) 118
Nº de participantes 117
Dispositivo criado pelo Decreto nº 26.961, de 28 de abril de 1987
Pará
Ano de criação 2001
Nº de membros (regulamento) 54
Nº de participantes 48
Dispositivo
Instituído pela Lei n° 6.381/2001 e
regulamentado e regulamentado pelo Decreto
nº 1.556, de 09 de junho de 2016.
Paraíba
Ano de criação 1996
Nº de membros (regulamento) 52
Nº de participantes 51
Dispositivo
Artigo 7º da Lei nº 6.308, de 2 de julho de 1996, e
Decreto nº 19.257, de 31 de outubro de 1997, dá nova
redação aos dispositivos do Regimento Interno.
66
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Paraná
Ano de criação 1999
Nº de membros (regulamento) 83
Nº de participantes 70
Dispositivo instituído pela Lei nº 12.726, de 26 de novembro de
1999, e regulamentado pelo Decreto nº 9.129/2010.
Pernambuco
Ano de criação 1997
Nº de membros (regulamento) 60
Nº de participantes 58
Dispositivo instituído pela Lei nº 11.426, de 17 de janeiro de 1997
Piauí
Ano de criação 2000
Nº de membros (regulamento) 42
Nº de participantes 38
Dispositivo
criado pela Lei nº 5.165, de 17 de agosto
de 2000, regulamentado pelo Decreto nº
10.880, de 24 de setembro de 2002.
Rio de Janeiro
Ano de criação 2000
Nº de membros (regulamento) 64
Nº de participantes 52
Dispositivo
Instituído pelo Decreto Estadual nº 27.208,
de 2 de outubro de 2000, nº 32.862/2003, nº
41.309/2007, nº 44.115/2013 e nº 45.804/2016.
67
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Rio Grande do Norte
Ano de criação 1996
Nº de membros (regulamento) 64
Nº de participantes 54
Dispositivo criado pela Lei nº 6.908, de 1º de julho de 1996, e
regulamentado pelo Decreto nº 13.284/1997.
Rio Grande do Sul
Ano de criação 1994
Nº de membros (regulamento) 42
Nº de participantes 33
Dispositivo
Instituído pela Lei nº 10.350, de 30 de dezembro de 1994,
e regulamentado pelo Decreto nº 36.055/1995, alterado
pelo Decreto nº 40.505, de 8 de dezembro de 2000.
Rondônia
Ano de criação 2002
Nº de membros (regulamento) 60
Nº de participantes 19
Dispositivo
Instituído pela Lei nº 255, de 25 de janeiro
de 2002 e regulamentado pelo Decreto nº
10.114, de 20 de setembro de 2002.
Roraima
Ano de criação 2006
Nº de membros (regulamento) 38
Nº de participantes 30
Dispositivo
Instituído pela Lei nº 547, de 23 de junho
de 2006, e regulamentado pelo Decreto nº
8.122-E, de 12 de junho de 2007.
68
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Santa Catarina
Ano de criação 1985
Nº de membros (regulamento) 40
Nº de participantes 37
Dispositivo Criado pela Lei nº 6.739, de 16 de dezembro de
1985 e alterado pela Lei nº 11.508/2000.
São Paulo
Ano de criação 1987
Nº de membros (regulamento) 66
Nº de participantes 63
Dispositivo Criado pelo Decreto nº 27.576/1987 e
alterado pelo Decreto nº 57.113/2011
Sergipe
Ano de criação 1997
Nº de membros (regulamento) 36
Nº de participantes 34
Dispositivo
criado pela Lei nº 3.870, de 25 de setembro
de 1997, e regulamentado pelo Decreto nº
18.099, de 26 de maio de 1999.
Tocantins
Ano de criação 1998
Nº de membros (regulamento) 52
Nº de participantes 49
Dispositivo Criado pelo Decreto nº 687, de 22 de julho de 1998, e
regulamentado pela Lei nº 2.097, de 13 de julho de 2009.
Total
Nº de membros (regulamento) 1.522
Nº de participantes 1.348
Fonte: Pró-gestão (ANA) páginas dos CERHs (2020).
69
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Ao mesmo tempo em que eram levantadas as informações e eram apli-
cados os questionários de pesquisa, foram realizadas verificações nas
páginas dos conselhos, e também contatos por e-mail e telefone, com o
objetivo de confirmar a quantidade de membros e a existência de cadei-
ras em vacância. Conforme levantamento considerado para a elaboração
deste estudo, observou-se a existência de 174 espaços de representação
em aberto, seja por ausência de instituição interessada ou por não in-
dicação do representante, totalizando 11,43% de cadeiras em vacância.
Em relação à posterior análise das respostas, foram excluídas aquelas
consideradas em duplicidade ou que apresentassem incongruências,
resultando, por fim, na obtenção de amostra com 47% dos membros.
Ressalta-se que foram realizados diversos contatos, no intuito de obter
maior número de respostas aos questionários. Apesar de ser conside-
rado um baixo percentual de retorno, ainda assim, os dados compilados
dessa forma podem apontar aspectos importantes da sua capacidade
inclusiva e oferecer informações sobre lacunas de governança existen-
tes nos espaços estudados. Embora tenha havido um baixo potencial de
retorno, o número de respostas obtidas, estatisticamente, ultrapassa o
tamanho mínimo da amostra para o nível de confiança de 95% e margem
de erro de 5%.
A operacionalização da análise e a apresentação dos dados basearam-se
no conjunto das seguintes categorias analíticas que orientaram a ela-
boração deste estudo: a) perfil socioeconômico dos representantes e
b) composição, representação e aspectos relacionados ao perfil parti-
cipativo, sendo, portanto, apresentada neste estudo apenas parte das
questões inseridas no questionário de pesquisa.
Cabe ainda destacar que este estudo compõe a série Retratos de
Governanças das Águas, cujos objetivos são analisar o perfil de repre-
sentantes de comitês de bacias hidrográficas no Brasil (ampliação tam-
bém dos conselhos estaduais de recursos hídricos), oferecer informações
que possam apontar aspectos importantes da capacidade inclusiva dos
representantes pesquisados e identificar como eles percebem o seu en-
volvimento no processo decisório e o funcionamento dos organismos
colegiados. A série integra o projeto Governança dos Recursos Hídricos,
70
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
tendo como premissa a ideia de que uma “boa” governança é fundamen-
tal para alcançar a segurança hídrica. Espera-se que os estudos possam
colaborar para subsidiar a elaboração de políticas para o fortalecimento
da democratização na gestão da água e a superação das falhas de gover-
nança identificadas nos espaços colegiados.
Em uma terceira etapa, solicitou-se às mulheres que responderam ao
questionário anterior que contribuíssem em uma nova rodada de per-
guntas relativas à ocorrência de atos denominados de “violência política
de gênero” nos espaços dos conselhos estaduais de recursos hídricos,
ou seja, atos de constrangimento que dificultam ou inviabilizam a par-
ticipação das mulheres nos espaços colegiados de políticas públicas.
Dentre os mais comuns estão ignorar a fala da mulher, fazer interrupções
frequentes, desqualificar as falas, mudar o tom de voz, apropriar-se das
ideias sugeridas e quando um homem começa a explicar o óbvio para
uma mulher, dentre outros. Nesta etapa foram recebidas 44 respostas.
10.!
Apresentação dos
dados obtidos
72
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Neste segmento são apresentados os dados obtidos durante a pes-
quisa, destacando-se as informações que reforçam o objetivo
deste trabalho, que é mostrar o perfil dos representantes mem-
bros dos conselhos estaduais de recursos hídricos e que a participação
da mulher sofre limitações devido à sua condição de gênero. Além disso,
subsidiariamente, são fornecidos dados que irão aumentar o conheci-
mento sobre os conselhos.
As relações de gênero são fundamentais na determinação da possibili-
dade de acesso e de uso dos recursos hídricos, e seu conhecimento e
participação nos processos de tomada de decisão, de tal modo que, para
alcançar uma gestão sustentável e equitativa da água, uma integração
total de todas as perspectivas de gênero no planejamento, na gestão e na
tomada de decisão da água, torna-se necessária. Assim sendo, gênero,
gestão da água e governança da água estão fortemente relacionados.
Entre essas perspectivas de gênero destacam-se as diferenças nas ne-
cessidades, usos e práticas, prioridades, emprego e empreendedorismo,
acesso a recursos, vulnerabilidades e impactos, capacidade de adaptação
e mitigação, entre outras.
Essas reflexões indicam claramente que o gênero também desempenha
papel importante na determinação do nível de vulnerabilidade e da na-
tureza das restrições que as pessoas enfrentam. A avaliação de como
homens e mulheres são impactados por leis, programas e políticas na
geso de recursos dricos é mais bem realizada com a abordagem da
integração de gênero
73
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
10.1. Perfil socioeconômico
dos representantes
Na primeira etapa do processo analítico houve a preocupação de iden-
tificar quem eram os sujeitos sociais que participam dos processos de
formulação e deliberação de políticas de gestão dos recursos hídricos no
âmbito dos conselhos interestaduais de bacias hidrográficas. Buscou-se
identificar as características dos participantes quanto à escolaridade e
à área de estudos, dentre outros aspectos. A partir dessa caracterização
foi possível analisar e discutir se os colegiados de gestão das águas são
capazes de incluir sujeitos que estão tradicionalmente pouco inseridos
em espaços de decisão.
Como lembra Hannah Arendt (2002), a política trata da convivência entre
diferentes, ou seja, “os homens se organizam politicamente para certas
coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos
absoluto das diferenças”. E, a partir dos diferentes olhares e interesses
contidos nos comitês e colegiados de recursos hídricos, deve-se buscar
equalizar o acesso e o uso da água para todos os interessados em uma
determinada região e estado. Nesse sentido, a participação e a repre-
sentação na gestão compartilhada dos recursos hídricos são os aspectos
que dão ensejo ao funcionamento destes espaços, ou seja, a participação
ativa desses atores é fundamental para o avanço da gestão dos recur-
sos hídricos.
A partir da análise do perfil dos representantes de acordo com o gênero,
percebeu-se que os conselhos estaduais de recursos hídricos apresen-
tam composição predominantemente masculina, tendo em vista que o
percentual dos homens (68%) foi superior ao de mulheres (32%). Nesta
questão, também foi disponibilizado para marcação o campo “outros”,
mas não houve indicações para esta variável.
74
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
FEM.
32%
MASC.
68%
Gráfico 1 – Distribuição dos respondentes por gênero, em %. Dados de pesquisa
De modo geral, os dados revelaram grande disparidade de representa-
ção feminina nos conselhos estaduais de recursos hídricos, estando
os percentuais próximos aos identificados nas pesquisas referentes à
composição nos comitês estaduais, de 31% (Matos, 2020), e nos comitês
interestaduais de bacias hidrográficas, de 27,17% (Matos et al., 2021), os
quais também não refletem a equidade participativa entre os gêneros. A
representação feminina nos espaços colegiados para a gestão das águas
corresponde a 30% (percentual médio) do total de membros desses cole-
tivos,mero que revela uma enorme diferença em relação ao número de
mulheres da população brasileira, que formam um contingente de mais
de 50%. Essa disparidade da representação nos espaços colegiados em
relação à população feminina no Brasil certamente impacta as delibera-
ções, a elaboração de proposições, as ações e as políticas públicas que
afetam, de modo mais intenso, suas vidas.
Como destacado por Heller (2016 p.14), a “participação é não só um di-
reito em si mesmo, mas também imperativo para o cumprimento de ou-
tros direitos. Participação engloba o poder das mulheres para influenciar
decisões”. Assim, a incorporação da perspectiva de gênero nas políticas
públicas parte da compreensão da necessidade de objetivar ações que
coíbam a desigualdade das mulheres.
Buscou-se também identificar a distribuição dos representantes de
acordo com o gênero, por conselho, e esta análise está apresentada
no gráfico 2.
75
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Estado Fem. Masc.
Alagoas 23,5% 76,5%
Amapá 16,7% 83,3%
Amazonas 40% 60%
Bahia 25% 75%
Ceará 56,3% 43,8%
Distrito Federal 40,5% 59,5%
Espírito Santo 30,8% 69,2%
Goiás 15,4%84,6%
Maranhão 18,2%81,8%
Mato Grosso 39,4% 60,6%
Mato Grosso do Sul 43,8% 56,3%
76
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Estado Fem. Masc.
Minas Gerais 26,3% 73,7%
Pará 47,4% 52,6%
Paraíba 14,3% 85,7%
Paraná 34,6% 65,4%
Pernambuco 45,8% 54,2%
Piauí 11,8% 88,2%
Rio de Janeiro 52% 48%
Rio Grande do Norte 30,4% 69,6%
Rio Grande do Sul 27,6% 72,4%
Rondônia 57,1% 42,9%
Roraima 28,6% 71,4%
Santa Catarina 35,3% 64,7%
77
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Estado Fem. Masc.
São Paulo 28,2% 71,8%
Sergipe 26,7%73,3%
Tocantins 31,6% 68,4%
Gráfico 2 – Distribuição dos respondentes por sexo X conselho, em %. Dados de pesquisa
Na alise comparada, nota-se que o Ceará foi o estado que apresentou
melhor índice de participação feminina (56,3%) e Piauí e Goiás os índices
mais baixos (11,8% e 15,4%, respectivamente). Lembrando que, apesar de
ser um percentual superior ao cálculo de amostragem necessário para a
realização da análise, um número maior de respondentes proporcionaria
maiores níveis de confiança e possibilidades de análise.
Na sequência, buscou-se identificar como estão distribuídos, por idade,
os respondentes dos conselhos estaduais de recursos hídricos (Gráfico
3). Os dados gerais permitiram assinalar que a distribuição dos atores
nos conselhos concentra as maiores proporções de representantes na
faixa entre 51 a 60 anos, com 24,74%. Os conselhos estudados apresen-
taram propoão de 4,0 % de atores considerados em idade jovem (até
30 anos), no entanto, considerando que quase a metade, 47,94%, estava
com mais de 51 anos.
78
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
de 41 a 50
anos
de 51 a 60 anos de 61 a 70 anos mais de 70 anos
24,40%
24,74% 19,24% 3,95%
até 30 anos de 31 a 40 anos de 41 a 50 anos
de 51 a 60
anos
4,47% 23,20% 24,40%
24,74%
Gráfico 3 – Distribuição total dos representantes por idade e sexo, em %. Dados de pesquisa.
Ao desagregar os dados (gráfico 4) e realizar o comparativo entre as ca-
tegorias “faixa etária” por “sexo”, os dados permitiram assinalar que as
mulheres concentram as maiores proporções das representantes na faixa
etária entre 31 a 50 anos (19,8%), embora a representação masculina seja
superior (28,35%), havendo uma baixa porcentagem de jovens mulhe-
res (2,06%). A partir dos 50 anos de idade, a participação das mulheres
(11,17%) vai decrescendo desproporcionalmente em relação à dos homens,
que detêm, nesta faixa, o maior índice de representantes (36,77%), mais
que o triplo da representação feminina.
79
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Até 30 anos de 31 a 40 anos
de 41 a 50 anos de 51a 60 anos
de 61a 70 anos mais de 70 anos
2,06% 2,41% 11,17% 12,03%
8,08% 16,32% 6,70% 18,04%
4,30% 14,95% 0,17% 3,78%
Gráfico 4 – Distribuição total dos representantes por idade e sexo, em %. Dados de pesquisa.
Também houve a preocupação de se buscar o nível de escolaridade e a
área de formação dos representantes, com a intenção de compreender
as possíveis variáveis para a formação deles. Além disso, investigar se
havia desigualdade na representação nos conselhos de bacia, com a au-
sência daqueles com menores níveis de escolaridade ou de diferentes
áreas de formação.
Quando se analisa o grau de escolaridade dos representantes que atuam
nesses espaços é possível observar um perfil altamente escolarizado dos
membros dos conselhos estaduais de recursos hídricos. Os dados gerais
revelaram que 96,23% das representantes que responderam à questão
80
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
sobre o grau de escolaridade havia concluído o curso de ensino superior,
1,37% estavam cursando e 76,12% ingressaram em programas de pós-gra-
duação. Os dados mostraram, ainda, que, no que se refere à escolaridade,
os extremos estão situados no nível fundamental, tendo o percentual de
representantes com esse grau de ensino completo atingido 0,34% e, no
nível de doutorado, 17,18%.
No Gráfico 5 apresenta-se a distribuição dos dados de escolaridade dos
respondentes por sexo e, em análise comparada, percebe-se que mais
de 98,41% das representantes que responderam à questão sobre o grau
de escolaridade concluíram curso de ensino superior e mais de 84,66%
ingressaram em programas de pós-graduação.
81
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
15,34%
18,07%
3,17% 3,56%
29,63%
21,12%
10,05%
2,29%
26,46% 26,97%
13,76%
23,16%
0,53% 1,78% 0% 0,51%
1,06% 1,53% 0% 1,02%
Doutorado
completo
Doutorado
incompleto
Mestrado
Completo
Mestrado
Incompleto
MBA/
Especialização
Superior
Completo
Superior
Incompleto
Curso
Técnico
Ensino
Médio
Ensino
Fundamental
Feminino
Masculino
Gráfico 5 – Distribuição dos respondentes, por sexo e escolaridade, em %. Dados de pesquisa.
Para tratar o perfil socioeconômico foram considerados aspectos re-
lacionados à renda familiar e à área de formação, considerando o nível
de escolaridade, abordado no gráfico 4. A formação e a constituição do
representante, membro de um organismo de bacia, e seu estabeleci-
mento neste espaço estão significativamente relacionados à trajetória
que o acompanha, seja como estudante ou como profissional da área (e
até mesmo antes) e à sua inserção no campo como um indivíduo apto
a deliberar como membro (no conselho), em nome de sua organização.
Sua trajetória é influenciada por processos de socialização e de iden-
82
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
tificação, em que o agente continuamente se constrói como membro,
modificando-se ao longo do tempo. Em sua interação com os outros (na
organização em que trabalha e representa, e também com outros mem-
bros do conselho do qual faz parte) e em seu processo de identificação
ou não com esses outros o representante vai se constituindo.
Ao ser eleito para participar do conselho, o representante deve estar pre-
parado para defender os interesses do segmento e da organização que
representa. Assim, buscou-se também conhecer a sua área de formação.
Após análise dos dados, constatou-se que entre os representantes dos
conselhos de bacias predominam certas áreas de formação, destacan-
do-se os cursos de Engenharias (37,04%), distanciando-se da segunda
área mais indicada, que é das Ciências Sociais Aplicadas (Administração
Pública e de Empresas, Contábeis e Turismo Arquitetura, Urbanismo e
Design, Comunicação e Informação, Direito, Economia, Planejamento
Urbano e Regional, Demografia e Serviço Social), com 19,58%. Na se-
quência, aparecem os cursos da área de Ciências Agrárias (Ciências de
Alimentos, Ciências Agrárias, Veterinária e Zootecnia), com 11,99% e de
Ciências Biológicas (Biodiversidade e Ciências Biogicas) e os cursos da
área Multidisciplinar (Biotecnologia) com 10,41%.
Com menores percentuais de indicações estão os cursos de Ciências
Exatas e da Terra (Ciências Ambientais Astronomia/Física, Ciências
da Computação, Geociências, Matemática/Probabilidade e Estatística,
Química), com 9,88%; na sequência, os de Antropologia/Arqueologia,
Ciência Política e Relações Internacionais, Educação, Filosofia, Geografia,
História, Psicologia, Sociologia e Teologia, com 6% e os cursos da área
Multidisciplinar (Biotecnologia), com 3,17% cada.
Por fim, os cursos da área de Ciências da Saúde (Educação Física,
Enfermagem, Farmácia, Medicina e Nutrição) obtiveram apenas 1,23%
das indicações, e os cursos da área de Linguística, Letras e Artes (Artes/
Música e Letras/Linguística), 0,71% das indicações.
No Gráfico 6 apresenta-se a distribuição dos respondentes de acordo
com a área de formação e por sexo. Pode-se observar que a concentração
em certas áreas de formação ocorre para ambos os sexos, ou seja, com-
.
com 10,41%.
83
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
parativamente, o maior percentual de mulheres tem formação na área
dos cursos de Engenharias. Perceberam-se também pequenas diferenças
entre as áreas de formação, sendo a mais significativa nas de Ciências
Sociais Aplicadas, Ciências Agrárias e Ciências Biológicas.
Feminino Masculino
Ciências Sociais
Aplicadas
Engenharias Ciências
Exatas
Ciências
Biológicas
Linguística Ciências
Agrárias
Antropologia/
Arqueologia Multidisciplinar Ciências
da Saúde
28,26% 15,4%
15,22% 8,09%
7,07% 5,48%
35,87% 37,6%
0% 1,04%
2,17% 3,66%
5,98% 11,75%
3,26% 16,19%
2,17% 0,78%
Gráfico 6 – Distribuição dos respondentes, por área de formação e sexo, em %. Dados de pesquisa
No que se refere à distribuição dos recursos, expressos no Gráfico 7, os
resultados do estudo mostraram que, em relação à renda familiar, dentre
as categorias previamente estabelecidas, cerca de 43,81% informaram
que tinham rendimentos acima de R$ 12.000,00.
84
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
0,34% 1,03%
2,92%
9,62%
23,54%
18,73%
43,81%
abaixo de
R$ 900
de
R$ 900
até
R$1.500
de
R$ 1.501
até
R$2.500
de
R$ 2.501
até
R$4.000
de
R$ 4.001
até
R$8.000
de
R$ 8.001
até
R$12.000
acima de
R$12.001
Gráfico 7 – Distribuição dos respondentes por renda familiar média, em %. Dados de pesquisa
Observou-se que 86,08% ganhavam acima de R$ 4.001,00 (percentuais
ainda mais altos dos que os identificados nas pesquisas realizadas jun-
to aos comitês interestaduais e estaduais de bacias hidrográficas). Os
resultados encontrados indicam um perfil com renda acima da média do
país, se comparada com o valor do salário-mínimo (R$954,00) ou com o
rendimento nominal mensal domiciliar per capita nacional, de R$2.112,00
(IBGE, 2018), definindo, assim, os grupos que controlam as decisões em
torno da gestão da água. Esses dados corroboram os apontamentos de
Santos Júnior et al. (2004, 37) de que o perfil dos representantes cons-
titui uma espécie de elite de referência ou de uma “comunidade cívica
portadora de uma cultura associativa”, caracterizada por um perfil so-
cioeconômico superior e por maior grau de informação e de capacitação
técnica e política, se comparada à média da população em geral.
85
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Quando se desagregam os dados pelo setor de representação (Gráfico
8), observa-se que há representantes pertencentes ao segmento da so-
ciedade civil presentes em todas as categorias de renda previamente
elencados. Nota-se também que os representantes do poder público fe-
deral estavam presentes nas categorias de rendimentos superiores a
R$ 4.001,00.
de
R$ 2.501 a 4.000
2%
4%
1%
2%
0%
acima de
R$ 12.001
2%
19%
8%
13%
5%
de
R$ 1.501 a 2.500
0%
1%
0%
1%
0%
de
R$ 8.001 a 12.000
1%
9%
3%
5%
2%
menos de
R$ 1.500
0%
0%
0%
1%
0%
de
R$ 4.001 a 8.000
4%
1%
4%
8%
1%
Poder Público Mun.
Poder Público Est.
Usuários
Sociedade Civil
Poder Público Fed.
Gráfico 8 – Distribuição da renda familiar média dos representantes em
porcentagem x segmento de representação, em %. Dados de pesquisa.
Quando se desagregam os dados dos respondentes por gênero, como
pode ser observado no Gráfico 9, nota-se uma expressiva desigualdade
de renda entre os respondentes.
86
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
abaixo de R$ 900
0%
de R$ 900 até R$ 1,500
0,5%
de R$ 1,501 até R$ 2,500
1,7%
de R$ 2,501 até R$ 4,000
2,9%
de R$ 4,001 até R$ 8,000
10,1%
de R$ 8,001 até R$ 12,000
6,2%
acima de R$ 12,001
11%
0,3%
0,5%
1,2%
6,7%
13,4%
12,5%
32,8%
MASC.FEM.
Gráfico 9 – Distribuição dos respondentes, por renda e sexo, em %. Dados de pesquisa
A apresentação dos dados desagregados por gênero reforça a necessi-
dade de fortalecer a inserção da mulher na administração pública e que
os comitês de bacias precisam refletir sobre a questão de gênero e a
representação das mulheres e dos setores mais vulneráveis na gestão
de recursos hídricos. Apesar de ainda serem minoria nesses organismos,
as mulheres se destacam pela renovação nestes espaços de decisões
coletivas, tendo em vista também representarem as faixas etárias mais
jovens e com níveis de escolaridade mais elevados, em comparação ao
perfil nacional, mas também com menores rendimentos.
Estes achados estão em conformidade com o que foi encontrado pela
Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílio (PNAD), disponibilizada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017), pois, da par-
87
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
cela da população com mais de 25 anos e que havia concluído o ensino
superior (15,3%), as mulheres eram a maioria (16,9%). Porém, elas rece-
biam rendimento bruto menor, se comparado aos ganhos mensais dos
homens brasileiros, o que corresponde a 76,5% dos ganhos masculinos
(IBGE, 2018).
O planejamento e a gestão dos recursos hídricos trazem consigo a com-
plexa relação de natureza intersetorial, interdisciplinar e transdiscipli-
nar. Uma abordagem baseada na transdisciplinaridade requer a “interco-
nectividade dos ramos do conhecimento, visando à melhoria da condição
humana” (Sehume, 2013 p.4), considerando que a água é um recurso do
qual a humanidade não pode prescindir; é um bem vital e insubstituível.
A abordagem da transdisciplinaridade, segundo o autor, “encoraja a sín-
tese das experiências de conhecimento, envolvendo atores na academia,
governo, indústria, sociedade civil”, o que é preconizado na gestão de
recursos hídricos e nos estudos dos processos de governança da água
ou, em outras palavras, a necessidade de maior envolvimento no modelo
de articulação dos distintos setores da sociedade.
O avanço da governança também em recursos hídricos exige o envol-
vimento de uma ampla gama de atores sociais por meio de estruturas
inclusivas que reconheçam a dispersão da tomada de decisão através
de vários níveis e entidades (Matos e Dias, 2013). Os dados apresenta-
dos, desde a escolarização até a faixa de renda dos atores participan-
tes no comitê de bacia, parecem indicar a necessidade de ampliação
da base social para que outros grupos mais frágeis, em termos sociais,
sejam representados na gestão das águas. A composição diversificada
e democrática nos comitês pode contribuir para que todos os setores da
sociedade com interesse sobre a água na bacia tenham representação
e assim manifestem seus interesses no processo de tomada de decisão
sobre a gestão da bacia hidrográfica. É também imperativo reconhecer,
por exemplo, a contribuição das mulheres para a gestão local dos recur-
sos hídricos e seu papel nas tomadas de decisão relacionadas à água,
como previsto no Princípio de Dublin nº 3 (ONU, 1992).
Sobre o tempo de participação e representação no conselho de recursos
hídricos, 22,99% dos respondentes informaram que participavam há me-
88
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
nos de 1 ano da composição do conselho; 54,58% de 1 a 5 anos; 13,27%
de 6 a 10 anos; 5,23% de 10 a 15 anos; 2,43% de 16 a 20 anos e 1,50%
mais de 20 anos.
Nota-se que a maioria dos respondentes (77,57%) é de membros de con-
selho por período inferior a 6 anos, tendo a variável 1 a 5 anos de parti-
cipação sido a que recebeu o maior percentual de indicações (22,99%).
Quando se desagregam os dados pelo segmento de representação e os
analisam-se separadamente, percebe-se que 85,7% dos respondentes
do poder público municipal e 85,3% dos respondentes do poder públi-
co estadual participavam por período inferior a 6 anos, nos conselhos.
No outro extremo, a maior concentração de membros que participavam
há mais de 6 anos situou-se entre os representantes da sociedade civil
(32,2%) e dos usuários de água (30,6%).
Quando se desagregam os dados de tempo de participação por gênero
analisando-os separadamente, percebe-se que 83,82% das mulheres par-
ticipavam dos conselhos por período inferior a 6 anos.
89
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
MASC.FEM.
menos de 1 ano
1 a 5 anos
27.2%
1.2%
4.6%
0.6%
9.8%
56.6%
21%
3%
5.5%
1.9%
14.9%
53.6%
6 a 10 anos
10 a 15 anos
15 a 20 anos
mais de 20 anos
Gráfico 10 – Distribuição dos respondentes, sexo e tempo
de participação, em %. Dados de pesquisa.
10.2. Composição da representação
Do total de respondentes do questionário de pesquisa, 53,99% eram re-
presentantes titulares e os demais (46,01%) eram suplentes (36,55% ocu-
pavam a vaga de 1o suplente e 9,46% ocupavam a 2ª suplência). Os mem-
bros suplentes que não estão no exercício da titularidade não votam, mas
têm direito à voz nas plenárias. A existência dessa figura, a quantidade e
a forma de substituição do titular estão previstas no regimento interno
de cada Conselho.
As respostas obtidas para esta questão - como os respondentes ocu-
pam os espaços do plenário - foram redistribuídas comparativamente.
Inicialmente, entre os titulares, buscou-se analisar o percentual por sexo.
90
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Dentre os que ocupavam a representação como titulares, apenas 25%
eram do sexo feminino. Entretanto, como o percentual de participão
feminina é baixo, isso impacta a forma de observação dessa informa-
ção. Assim, as respostas foram redistribuídas comparativamente para
se observar a distribuição por sexo; como mostrado no Gráfico 11, 57,72%
das mulheres que participavam desses espaços colegiados à época da
pesquisa ocupavam vagas de suplência.
Titular
31.59%
59.62% 8.79%
10.86%42.29% 46.86%
1º Suplente 2º Suplente
MASC.
FEM.
Gráfico 11 – Distribuição dos respondentes por sexo e titularidade, em %. Dados de pesquisa.
A composição de um organismo colegiado deverá refletir os múltiplos
interesses em relação às águas da bacia. De forma geral, são três os
interesses que se expressam nas bacias: dos usuários diretos de recur-
sos dricos (sujeitos ou o à outorga de direito de uso), dos poderes
públicos constituídos (municípios, estados e União) na implementação
das diferentes políticas públicas e das organizações civis na defesa dos
interesses coletivos e com o olhar dos interesses difusos. Em resumo,
“esse conjunto de representações deve buscar reunir os antagonismos
dos interesses sobre a água, porém, o uso dos recursos hídricos deve
ser sustentável de modo a assegurar condições não só para as atuais
gerações, mas também para as futuras’’ (ANA, 2011).
Titular
1º Titular
91
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
De modo geral, sem a marcação generificada, no que se refere ao setor
de representação, 7,79% dos respondentes pertenciam ao segmento do
poder público municipal; 39,33% ao poder público estadual; 15,96% aos
usuários de água; 28,57% à sociedade civil e 8,35% ao poder público fe-
deral. Importa realçar que, no caso da sociedade civil e dos usuários de
água, essa representação está relacionada a entidades constituídas e,
nesse sentido, não existe espaço para a participação individual. Cabe
destacar que o termo sociedade civil abriga um conjunto bastante dife-
renciado de organizações, entidades e grupos de interesses, como ONGs,
entidades filantrópicas, entidades sindicais e organizações empresariais,
dentre outros. E, como usuários da água, consideram-se grupos, entida-
des públicas e privadas, e coletividades que, em nome próprio ou no de
terceiros, utilizam os recursos hídricos ou, ainda, que captam água, lan-
çam efluentes ou realizam usos que não são para consumo diretamente
em corpos hídricos (rio ou curso d’água, reservatório, açude, barragem,
poço, nascente, etc.).
Outro ponto, ainda sobre o segmento de representação, é que uma orga-
nização representa um conjunto de seus pares. Uma pessoa é nomeada
representante dessa entidade no conselho. Em outras palavras, é atri-
buído poder a um ator para tomar decisões em nome de uma organização
e de um segmento de representação ao apresentar as perspectivas e as
ansiedades de um grupo e, ainda assim, pensar no interesse coletivo,
que é o uso racional dos recursos hídricos.
Nessa perspectiva, entende-se que a participação ativa dos representan-
tes pode potencializar a gestão e a conservação dos recursos na bacia
hidrográfica de que participam. Quanto a isso, vale lembrar que Norberto
Bobbio (1986) assinala que a regra fundamental da democracia é a regra
da maioria, quer dizer, essa é a regra base sobre a qual o consideradas
decisões coletivas, e assim vinculadas para o todo o grupo, as decisões
aprovadas pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão.
As respostas obtidas para a questão sobre o segmento de representação
dos entrevistados foram redistribuídas comparativamente por sexo. No
gráfico 12 apresentam-se os dados apurados.
92
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Poder público municipal
Poder Público estadual
Usuários
Sociedade civil
Poder público federal
21% 79%
40% 60%
22% 78%
34% 66%
22% 78%
Feminino Masculino
Gráfico 12 – Distribuição dos respondentes por segmento de
participação e sexo, em %. Dados de pesquisa.
Observou-se que as mulheres estão mais presentes no segmento de enti-
dades ligadas ao poder público estadual, 40%, e em menores percentuais
no segmento poder público municipal, com 21%.
Ao serem questionadas sobre se no seu período como representante, já
representou outros segmentos?, apenas 14,58% informaram que sim,
haviam representado outro segmento. Analisando-se separadamente, ob-
servou-se que, dentre os respondentes do sexo masculino, 17,17% haviam
representado outros segmentos e, para o sexo feminino esse resultado
foi de 9,2%.
93
Perfil dos Representantes dos Conselhos Estaduais de
Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
Apesar de ter sido realizada a análise utilizando-se outras variáveis,
como escolaridade, área de formação e renda, este é um estudo intro-
dutório ao entendimento da participação das mulheres, no sentido de
que apresenta um panorama dessas representantes, tendo a limitação
que concerne às pesquisas quantitativas. Assim, não se aprofundou nas
diferenças entre elas ou em suas relações e posições dentro dos arranjos
de governança, mas, como preconizado pelo GWP (2012b), as diferenças e
as desigualdades entre homens e mulheres determinam como os indiví-
duos respondem às mudanças na gestão dos recursos hídricos e, nesse
sentido, envolver a ambos nas iniciativas integradas desse recurso pode
aumentar a eficácia e a eficiência dos arranjos de governança das águas.
Estudos indicam que as mulheres são mais vulneráveis aos eventos na-
turais mais extremos, mas essa vulnerabilidade não vem de sua própria
natureza, mas de processos socialmente construídos.
Buscou-se também identificar o percentual de inserção dos representan-
tes do conselho em outros organismos colegiados relacionados à gestão
de recursos hídricos. Notou-se que 33,98% dos respondentes, além de
serem membros do conselho, eram também membros em comitês de ba-
cia hidrográficas. No espaço do questionário destinado ao acréscimo de
observações e comentários foi destacada a participação entre um a seis
comitês de bacias hidrográficas (sejam interestaduais e/ou estaduais).
Em análise desagregada por sexo, observou-se que 34,67% dos homens
eram também membros de comitês de bacia e 32,54% das mulheres in-
formaram que sim, “sou representante em CBHs”. Além disso, 41,4% dos
respondentes também eram membros de alguma câmara técnica. Em
análise desagregada por sexo, observou-se que 39,5% dos homens eram
membros de Câmaras Técnicas15, bem como 45,35% das mulheres.
15As câmaras técnicas têm a atribuição de subsidiar a tomada de decisões do comitê,
buscando desenvolver e aprofundar as discussões temáticas necessárias antes de sua
submissão ao plenário. As câmaras são constituídas preferencialmente pelos membros,
titulares ou suplentes do comitê, ou, excepcionalmente, poderão ser compostas por re-
presentantes formalmente indicados por esses membros. Em geral, a composição deve
procurar refletir a proporcionalidade entre os segmentos representados. Nesses fóruns de
discussão é comum serem convidados técnicos especialistas para que possam colaborar
com os debates e enriquecer as análises efetuadas (ANA, 2011b)
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Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
A dinâmica política que caracteriza o estabelecimento de arranjos e arti-
culações institucionais tem papel importante na atuação dos represen-
tantes em outros espaços de decisão política que envolvem o tema das
águas. E, por esta razão, questionou-se aos respondentes se, além de
participar do conselho, também integravam outros organismos colegia-
dos/conselhos de outras áreas (por exemplo, meio ambiente, educação,
saúde, etc.). Os dados obtidos mostram que, além de participarem do
conselho de bacia, 49,81% dos respondentes também eram membros de
outros organismos colegiados, em diferentes temáticas e abrangências.
Em análise desagregada por sexo, observou-se que 52,89% dos homens
e 43,53% das mulheres informaram que sim, eram membros de outros
organismos colegiados/conselhos de outros setores (por exemplo, edu-
cação, saúde, meio ambiente, etc.).
A participação dos atores da gestão das águas em instâncias de dife-
rentes políticas pública pode contribuir para a articulação e a integra-
ção da temática recursos hídricos em outras políticas públicas. Algumas
formas de participação são apenas consultivas, enquanto os conselhos
de bacia diferem de outras formas de participação previstas em outras
políticas públicas, pois têm como atribuição legal deliberar sobre a ges-
tão da água, fazendo isso de forma compartilhada com representantes
da sociedade civil, dos usuários e do poder público.
10.3. Participação da mulher
nos Conselhos Estaduais
de Recursos Hídricos
Em um estudo publicado por Tonja Jacobi e Dylan Schweerst, em 2017,
estes autores buscaram analisar e apresentar o efeito do gênero nas ar-
gumentações orais na Suprema Corte dos Estados Unidos. Além do baixo
percentual de participação de magistradas, identificaram que elas eram
interrompidas em taxas desproporcionais por seus colegas do sexo mas-
culino, bem como por advogados do sexo masculino (para esses últimos,
cabe destacar que o fizeram contrariando as regras do Tribunal). Como os
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autores observaram, atos de homens silenciando mulheres ocorrem em
diferentes esferas, seja no legislativo ou no judiciário, e estas instâncias
não estão imunes “às desigualdades de gênero que existem na socie-
dade em geral.” Assim, argumentaram que nessas instâncias ocorrem
os “mesmos padrões díspares de comunicação entre homens e mulhe-
res – regular e previsivelmente” (p.1381).
No âmbito da gestão dos recursos hídricos, situação semelhante foi en-
contrada por Matos (2020; 2022), ao identificar tanto a baixa participa-
ção das mulheres nos comitês de bacia hidrográficas quanto, ao expor
diferentes relatos de entrevistadas denunciando constrangimentos sofri-
dos no exercício de sua atuação como representantes em organismos co-
legiados, também explicitando casos de desigualdades de gênero. Como
base nos dados argumenta ainda que há um desafio duplo e simultâneo,
que se manifesta na necessidade de as mulheres ocuparem esses es-
paços, levando em consideração que não há paridade entre homens e
mulheres nos organismos de bacias hidrográficas brasileiros e, ao mes-
mo tempo, buscarem relações mais harmônicas - nos termos de Fraser
(2002) - nos espaços de poder, no que se refere à qualidade dos debates.
Neste estudo, além da apresentação dos dados desagregados por gênero,
sobre o perfil dos membros de conselhos estaduais de recursos hídricos,
realizou-se uma segunda rodada de questões sobre a participação das
mulheres nesses espaços colegiados.
Sejam interrupções diretas, falta de reconhecimento, mansplaining16,
bropriating17 ou outros constrangimentos, as diferenças nos compor-
16Mansplaining, termo que vem do inglês man, que significa homem, e splaining, uma
versão informal do verbo explain (explicar). Em tradução livre, seria algo como “explica-
ção do homem”. Trata-se da tentativa de um homem de elucidar algo a uma mulher, sem
considerar que ela já saiba – possivelmente até mais do que ele.
17Bropriating (originalmente bropropriating) é um neologismo em língua inglesa forma-
do pela junção do prefixo bro (de brother, aqui no sentido de “cara, como na gíria) e pro-
priating (da palavra appropriating, apropriação). Bropriating se refere a situações, em sua
maioria profissionais, em que homens tomam para si o crédito de ideias expressadas por
mulheres. Para evitar essa prática é importante que seja respeitado o espaço de fala das
mulheres e que suas ideias tenham o devido crédito e valorização, na mesma proporção
que é dada aos colegas homens.
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tamentos entre homens e mulheres nos espaços colegiados de gestão
das águas levantam uma questão: as representantes têm oportunidades
iguais? Assim, cabe explicitar a gravidade de tais atos, que podem invia-
bilizar ou dificultar a participação das mulheres nos espaços colegiados
de políticas públicas.
Para abordar essas questões, inicialmente se forneceu um contexto às
participantes em que foram explicitados os diversos atos de constrangi-
mento que se caracterizam como violência política de gênero, tais como
ignorar a fala da mulher, fazer interrupções frequentes, desqualificar as
falas, mudar o tom de voz, apropriar-se das ideias sugeridas e quando
um homem começa a explicar o óbvio para uma mulher, dentre outros.
Em seguida, após essa contextualização, foram fornecidas as questões
para que fossem respondidas, e que são abordadas na sequência.
O processo decisório de um comitê ou conselho deve decorrer de am-
plo processo de articulação e negociação e ser embasado por estudos
técnicos para subsidiar as decisões políticas. É, portanto, um processo
comunicativo de opinião, formação de entendimento e posicionamento
que precede o momento da tomada de decisão. Nesse sentido, a exposi-
ção de argumentos e ideias pelos membros desses espaços colegiados
é preponderante. Ela permite que eles esclareçam dúvidas, indaguem,
questionem e cristalizem questões relevantes relacionadas à pauta em
discussão, sendo também uma oportunidade para comunicar e persuadir
os demais membros, podendo influenciar o resultado das deliberações.
Na primeira questão apresentada às mulheres, na segunda rodada de en-
trevistas, o objetivo era saber se, durante as reuniões do conselho, a en-
trevistada já havia passado por algum constrangimento por ser mulher?
No gráfico 13 apresentam-se os dados apurados para esta questão. Além
de indicar a categoria de resposta, solicitaram-se exemplos para que as
respostas e situações vivenciadas pudessem ser mais bem entendidas.
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Recursos Hídricos e a voz das Mulheres nesses espaços
13,95%
11,63%
74,42%
Não / Nunca
Sim, ocasionalmente / às vezes
Sim, raramente
Sim, frequentemente
Sim, de modo muito frequente
Não sei dizer
Gráfico 13 – Ocorrências pessoais de constrangimento, em %. Dados de pesquisa.
Como se observa no gráfico, 74,42% das respondentes informaram que
“não/nunca” haviam passado por constrangimento, durante as reuniões
do conselho, por serem mulheres. Para a marcação desta categoria, hou-
ve a inserção dos seguintes apontamentos: nunca fui constrangida pelo
fato de ser mulher; sempre que me manifesto, sou ouvida; até o presente
momento, sempre me senti respeitada nas reuniões do CERH. Entretanto,
as demais 25,58% relataram já terem vivenciado esse tipo de situação.
Para as marcações “Sim, raramente” (11,63%), houve três apontamentos.
Em primeiro, apresenta-se o que se relaciona ao termo manterrupting18
que significa a interrupção, por várias vezes e de forma desnecessária,
de homem a uma mulher, dificultando que ela consiga prosseguir com
sua argumentação ou conclua sua frase. Como expresso no apontamen-
to da respondente, geralmente, corta a fala sem permitir conclusão do
pensamento. Mas isso acontece com alguns colegas específicos.
Outro comentário refere-se ao ato de creditar ideias e sugestões apre-
sentadas pelas mulheres para os homens, podendo, nessa apropriação,
levar vantagem em relação a ela em reuniões ou acontecimentos. Além
disso, outra forma de constrangimento é o que se pode descrever como
18Manterrupting é um neologismo em língua inglesa formado pela junção da palavra man
(homem) com parte da palavra interrupting (interrompendo) e cuja tradução literal mais
próxima é “homem interrompendo”. Refere-se a interrupções que homens fazem quando
mulheres estão falando por (e para) desconsiderar, invalidar e desrespeitar a expressão
de suas ideias.
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olhares indiscretos, comentários machistas, que visam intimidar a mulher
tolhendo sua participação.
Para as respostas “sim, ocasionalmente/às vezes” (13,95%) houve cinco
apontamentos, dentre eles, além do relato de interrupção de fala por
parte de conselheiros e diretoria e pontos relacionados à qualificação
da conselheira, como tentativas de ignorar a minha fala ou de desqua-
lificá-la. De forma mais detalhada, ela acrescentou o seguinte: numa
oportunidade um colega conselheiro insinuou que a posição a qual eu
estava tomando sobre um assunto era desqualificada e fez um comentário
machista em plenária.
Assim como observado no estudo de Tonja Jacobi e Dylan Schweerst
(2017), as argumentações orais servem para diferentes propósitos e po-
dem influenciar os processos de tomada de decisão, sendo, nesse con-
texto, essencial que os deliberantes possam fazer as perguntas que de-
sejam fazer e, portanto, “o ato de interromper ameaça essa capacidade
(p.1395)”. As queixas apresentadas pelas conselheiras remetem ainda a
outro ponto de reflexão, que é o de que “a dinâmica de gênero é pode-
rosa o suficiente para persistir mesmo diante de altos níveis de poder
alcançados pelas mulheres (p.1405)”.
Outro exemplo citado, relacionado ao efeito do gênero nos espaços co-
legiados, foi o seguinte: quando peço a palavra, há prioridade para os
homens. Em indicação para representação em comissões indicam os ho-
mens. Esta outra conselheira queixou-se de que as minhas perguntas não
foram devidamente atendidas, não havendo respostas sobre o assunto
e sim dizendo que o tema já está sendo tratado. Olhar de reprovação ao
votar diferentemente do “sugerido”. Fala e olhar persuasivo do defensor
de um item de pauta. Conversas paralelas e risos ao manifestar-me.
Os constrangimentos relatados (ações de interrupções, desqualificação,
tentativas de ignorar, falta de prioridade de fala, etc.) podem impactar
o potencial de participação dessas mulheres em seu papel de represen-
tantes, comprometendo o processo deliberativo, as ações a serem em-
preendidas (resultante da tomada de decisão), bem como o processo
participativo no âmbito desses espaços.
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Em outra questão, perguntou-se se, durante as reuniões do conselho,
elas observaram formas de constrangimento durante as falas de outras
mulheres. No gráfico 14 apresentam-se os dados apurados para esta
questão. Além de indicar a categoria de resposta, solicitaram-se exem-
plos para que melhor pudessem ser entendidas as respostas e as situa-
ções observadas.
23,26%
9,30%
6,98%
60,47%
Não / Nunca
Sim, ocasionalmente / às vezes
Sim, raramente
Sim, frequentemente
Sim, de modo muito frequente
Não sei dizer
Gráfico 14 – Percepção sobre a ocorrência de constrangimentos
no espaço do CERH, em %. Dados de pesquisa
Como pode ser observado nos dados do gráfico 14, 60,47% das respon-
dentes informaram que “não/nunca” haviam observado formas de causar
constrangimento, nas reuniões do conselho, durante as falas de outras
mulheres. Dentre as que selecionaram esta categoria houve apenas os
seguintes apontamentos: não observei tratamento diferenciado para as
mulheres e até o presente momento.
Entretanto, com maiores percentuais do que a questão anterior (25,58%),
mais respondentes (32,56%) relataram já ter presenciado algum tipo de
constrangimento durante as reuniões do conselho.
Na percepção de 9,3% das respondentes esses atos acontecem “Sim,
raramente” e foi apontada, de forma mais recorrente, a ocorrência de
interrupção das falas das conselheiras. Como já explicitado, o manter-
rupting, seja realizado em tom de voz ríspido, irônico ou brincalhão, tem
como objetivo causar o silenciamento das mulheres, sendo, portanto,
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uma discriminação19 de gênero que deve ser combatida, evitando-se tam-
bém situações como a seguinte, relatada por esta respondente: alguns
conselheiros (homens) fazem falas mais agressivas/veementes quando
estão em um debate com mulheres.
Segundo 23,26% das respondentes, atos de constrangimento acontecem
“Sim, ocasionalmente/às vezes”. Na percepção destas conselheiras, du-
rante as reuniões, às vezes, ocorrem tentativas de ignorar a fala ou de
desqualificá-la, desconsiderar a fala da mulher; falta de oportunidades
de fala e não dão importância para as propostas ou sugestões apresen-
tadas pelas mulheres, bem como situações nas quais os homens agem
atropelando os processos, não ouvir com atenção os pontos abordados
como se a fala não fosse importante.
Outra conselheira, ainda sobre tentativas de desqualificação, afirmou
que uma colega é frequentemente desqualificada por um homem, com-