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Resistir na língua: a literatura indígena contra o silenciamento monolíngue

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Abstract

Resumo O presente trabalho propõe pensar a linguagem como terreno sobre o qual o colonialismo, a biopolítica e a necropolítica construíram suas bases, tanto porque a posse do logos é o que fundamenta a partilha do sensível e estabelece a cesura entre os que compartilham um comum e a parte dos sem parte, entre existência política e vida nua, quanto porque o monolinguismo é a engrenagem essencial da máquina colonial que, ainda hoje, mata idiomas e silencia histórias. Contra esse projeto excludente da língua nacional, a literatura indígena resiste com um devir-menor da língua maior, capaz de desestabilizar a unicidade do idioma, da história, da literatura e do próprio conceito de Povo brasileiro.
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ANA CAROLINA CERNICCHIARO | Resistir na...ALEA | Rio de Janeiro | vol. 24/1 | p. 203-218 | jan.-abr. 2022
https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/202224111
ARTIGO
203
RESISTIR NA LÍNGUA: A LITERATURA
INDÍGENA CONTRA O SILENCIAMENTO
MONOLÍNGUE
RESISTING IN LANGUAGE: NATIVE LITERATURE
AGAINST MONOLINGUAL SILENCING
Ana Carolina Cernicchiaro
ORCID 0000-0001-8448-963X
Universidade do Sul de Santa Catarina
Florianópolis, SC, Brasil
Resumo
O presente trabalho propõe pensar a linguagem como terreno sobre o qual o
colonialismo, a biopolítica e a necropolítica construíram suas bases, tanto porque a
posse do logos é o que fundamenta a partilha do sensível e estabelece a cesura entre
os que compartilham um comum e a parte dos sem parte, entre existência política
e vida nua, quanto porque o monolinguismo é a engrenagem essencial da máquina
colonial que, ainda hoje, mata idiomas e silencia histórias. Contra esse projeto
excludente da língua nacional, a literatura indígena resiste com um devir-menor da
língua maior, capaz de desestabilizar a unicidade do idioma, da história, da literatura
e do próprio conceito de Povo brasileiro.
Palavras-chave: linguicídio; devir-menor da língua; literatura indígena.
Abstract
e present work proposes to think lan-
guage as a terrain on which colonialism,
biopolitics and necropolitics have built
their bases. Both because the possession
of the logos is the basis for the distribu-
tions of the sensible and establishes the
division between those who share a com-
mon and the part of the partless, betwe-
en political existence and bare life, and
because monolingualism is an essential
gear of the colonial machine that, even
today, kills languages and silences stories.
Against this excluding project of national
language, Native Literature resists with a
Resumen
El presente trabajo propone pensar
el lenguaje como un terreno sobre el
que el colonialismo, la biopolítica y la
necropolítica han construido sus bases,
tanto porque la posesión del logos es la base
para el reparto de lo sensible y establece la
cesura entre los que comparten un común
y la parte sin parte, entre la existencia
política y la vida desnuda, como porque el
monolingüismo es un engranaje esencial
de la máquina colonial que, incluso hoy,
mata los idiomas y silencia las historias.
Frente a este proyecto excluyente de la
lengua nacional, la literatura indígena
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Línguas selvagens não podem
ser domadas, apenas decepadas
Gloria Anzaldúa
O poder de uma palavra na boca
é o mesmo de uma echa no arco
Kaká Werá
Em um texto basilar da losoa política ocidental, Aristóteles arma
que alguns seres veem-se destinados a mandar e outros a obedecer, pois o
emprego da força física “é o melhor que deles se obtém” (2010, p. 4). Como
bem demonstrou Jacques Rancière, nesta dicotomia entre corpo e alma, força
e inteligência, trabalho intelectual e trabalho bruto, homens da cultura e
homens da natureza, logos e phoné, Aristóteles naturaliza, a partir da linguagem,
uma divisão de espaços, tempos e tipos de atividade, um recorte do visível
e do invisível, da palavra e do ruído, enm, uma partilha do sensível “que
determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação
e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (RANCIÈRE, 2005, p. 15).
O homem enquanto animal político é um zoon logon ekhon
1
, diz a
expressão aristotélica. É homem aquele que tem o dom da palavra, aquele que
pode falar – e ser ouvido2 – na comunidade, que pode dizer do bem e do mal.
O homem só, entre todos os animais, tem o dom da palavra; a voz é o sinal
da dor e do prazer, e é por isso que ela foi também concedida aos outros
animais. Estes chegam a experimentar sensações de dor e de prazer, e a se
1 “Um ser vivo dotado de fala” (apud ARENDT, 2007, p. 36) ou “vivente que possui a linguagem” (apud
AGAMBEN, 2002, p. 15).
2 Grada Kilomba (e, a partir dela, também Djamila Ribeiro, 2017) destaca esse aspecto da escuta na
legitimação de uma fala. Segundo ela, ouvir é um ato de autorização em direção ao falante, quem é ouvido
pertence. “E aquelas/es que não são ouvidas/os se tornam aquelas/es que ‘não pertencem’” (KILOMBA,
2019, p. 43).
becoming-minor of the major language,
destabilizing the uniqueness of the lan-
guage, the history, the literature and the
very concept of Brazilian People.
Keywords: linguicide; becoming-
minor of language; native literature.
resiste con un devenir-menor de la
lengua mayor capaz de desestabilizar la
singularidad de la lengua, de la historia,
de la literatura y del concepto mismo del
Pueblo Brasileño.
Palabras clave: linguicidio; devenir-
menor de la lengua; literatura indígena.
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fazer compreender uns aos outros. A palavra, porém, tem por m fazer
compreender o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo
ou injusto. O que distingue o homem de um modo especíco é que ele sabe
discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim todos os sentimentos da
mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família do Estado.
(ARISTÓTELES, 2010, p. 1).
No entanto, na Grécia Antiga – assim como hoje – nem todas as falas
eram consideradas discursos legítimos, nem todos os humanos podiam falar
na pólis, nem todos eram ouvidos, nem todos eram capazes de manifestar
uma opinião ou um conhecimento, de dizer do justo e do injusto, pois
alguns, mesmo que capazes de falar, não possuíam “a plenitude da razão”
(ARISTÓTELES, 2010, p. 1). Daí Giorgio Agamben perceber na Política
aristotélica o vínculo entre linguagem e categorias binárias como vida nua-
existência política, zoé-bios, humano-não-humano. Segundo ele, “a política
existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a
própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa
exclusão inclusiva”.
Não é um acaso, então, que um trecho da Política situe o lugar próprio da
pólis na passagem da voz à linguagem. O nexo entre vida nua e política é o
mesmo que a denição metafísica do homem como “vivente que possui a
linguagem” busca na articulação entre phoné e logos. [...]
A pergunta “de que modo o vivente possui a linguagem?” corresponde
exatamente àquela outra: “de que modo a vida nua habita a pólis?” (AGAMBEN,
2002, p. 15).
Trata-se, lemos em O aberto, de uma máquina antropológica que,
ao mesmo tempo que decide o que constitui o humano ou o animal, cria
inumanidades, ou seja, humanos não-sujeitos que se encontram excluídos das
bases legais de proteção (AGAMBEN, 2006, p. 140). Essa máquina produz
no homem um não-homem, um homem animalizado: “A primeira família
se formou da mulher e do boi feito para a lavra. Com efeito, o boi serve de
escravo aos pobres” (ARISTÓTELES, 2010, p. 1).
Na modernidade, essa vida nua, não humana, matável, puro corpo
biológico, torna-se a gura fundamental da biopolítica, já que o Estado precisa
retirar a cidadania e, portanto, a humanidade
3
dos que deixa morrer, de forma
que o racismo, já avisava Michel Foucault (1999), torna-se a condição sine
qua non do Estado-nação biopolítico.
3 A partir de Hannah Arendt, Agamben analisa como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
vincula uma categoria a outra (2015, p. 27).
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O racismo está ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar
a raça, a eliminação das raças e a puricação da raça para exercer seu poder
soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento, através do biopoder,
do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento, a
introdução e a ativação do racismo. E é aí, creio eu, que efetivamente ele se
enraíza. (FOUCAULT, 1999, p. 309).
Conforme explica Achille Mbembe, para Foucault, “racismo é acima de
tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘este velho
direito soberano de matar’” (MBEMBE, 2018, p. 18). Segundo o lósofo
camaronês, “esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em
grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma
cesura biológica entre uns e outros”. No entanto, avalia Mbembe, “a noção
de biopoder é insuciente para dar conta das formas contemporâneas de
submissão da vida ao poder da morte” (2018, p. 71). Ele propõe o conceito
de necropolítica para pensar a perpetuação da lógica colonial na modernidade
tardia, uma lógica em que a violência é a forma original do direito e a exceção
proporciona a estrutura da soberania. O colonialismo relegava o colonizado a
uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto (MBEMBE, 2018, p.
39), já que, para o colonizador, as colônias eram habitadas por “selvagens”,
que “se comportavam como parte da natureza, que a tratavam como senhor
inconteste”, seres humanos “naturais” (2018, p. 35-36).
Podemos pensar, portanto, que antropocentrismo e racismo têm uma
origem comum na dicotomia natureza/cultura que abastece tanto a máquina
colonial quanto sua versão atual, a necropolítica. É a partir dessa dicotomia,
nos mostra Ailton Krenak, que o Ocidente passou a separar “o planeta em
lotes”, dando um tipo de direito para alguns humanos, outro tipo para os
mais ou menos humanos e, nalmente, nenhum direito humano para aquela
gente que “não vive em estado de humanidade” (KRENAK; CESARINO,
2016, p. 177). Assim, aqueles que não têm uma relação utilitarista com a
natureza, aqueles que são capazes de ver subjetividade em animais, vegetais,
acidentes geográcos, “aqueles que consideram que precisam car agarrados
nessa terra”, “que insistem em car fora dessa dança civilizada, da técnica,
do controle do planeta”, “caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-
humanidade” (KRENAK, 2019, p. 21) são tirados de cena “por epidemias4,
pobreza, fome, violência dirigida” (2019, p. 70).
4 No momento de uma crise política e de saúde como a que vivemos e que, inclusive, popularizou o
termo necropolítica no Brasil, cabe lembrar que os estados do Norte (onde se encontram mais de 98% das
Terras Indígenas do país) estão em situação de calamidade por conta da Covid-19. Até o dia 22 de março
de 2022, cerca de 70 mil indígenas haviam sido diagnosticados com a doença, sendo que 1294 pessoas
faleceram, mas o número deve ser ainda maior, pois, além do cenário de subnoticação geral, a Secretaria
de Saúde Indígena não está contabilizando nos números ociais (nem atendendo!) indígenas urbanos ou
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Ao denir os que possuem a linguagem, os que têm uma palavra
legítima, um discurso digno de ser ouvido, uma língua nacional, um logos, e não
apenas phoné, ruído, balbucio ou dialeto, determina-se os graus de humanidade
das pessoas, institui-se um Povo. Agamben opõe o Povo com letra maiúscula,
o sujeito político constitutivo (AGAMBEN, 2002, p. 184) que serve de base
à cção de legitimação do Estado moderno, em que a propriedade é o direito
fundamental, ou seja, o conjunto dos cidadãos proprietários portadores de
direitos reconhecidos pelo soberano (NEGRI, 2003, p. 143), ao povo com
letra minúscula, “a classe que, de fato, se não de direito, é excluída da política
(AGAMBEN, 2002, p. 183).
Povo se diz no singular, pois, enquanto “suporte vazio da identidade
estatal” (AGAMBEN, 2015, p. 66), só pode ser único e ter uma única
língua. Tanto língua quanto povo são dois conceitos obscuros, duas entidades
culturais contingentes, de contornos indenidos, que, em sua correspondência
biunívoca, “se transformam em organismos quase naturais, dotados de
características e de leis próprias e necessárias” (AGAMBEN, 2015, p. 65).
Daí o mal-estar que o primeiro Encontro dos Povos Indígenas, que em 1981
reuniu lideranças de todo o país para discutir assuntos relativos à demarcação
de suas terras, causou ao falar em nações indígenas. Conforme conta Álvaro
Tukano, “o General Chefe da Casa Civil cou ofendido com as palavras
‘nações indígenas’, porque para ele só existia a nação brasileira” (TUKANO,
2017, p. 94). Para o Estado, não existem povos indígenas – menos ainda
nações indígenas – porque no Brasil só existe uma nação, um povo: o Povo
Brasileiro, falante de um único idioma: o português.
A língua nacional comum, já dizia Bakhtin, é uma cção, na medida
em que é uma criação oriunda da intercomunicação entre povos plurais
(2006, p. 105). É essa pluralidade que a cartilha monolíngue da pátria quer
apagar. Enquanto os povos originários prezam pela pluralidade de línguas
– não é raro encontrar sociedades ou indivíduos indígenas em situação de
bilinguismo, trilinguismo ou mesmo multilinguismo (RODRIGUES, 1986)
– o colonialismo se alicerça sobre a unicidade. Conforme avalia Silviano
Santiago, evitar o bilinguismo signica impor o poder colonialista: “na álgebra
do conquistador, a unidade é a única medida que conta: uma só língua, a
verdadeira língua, como um só rei, o verdadeiro rei” (1978, p. 16).
Gilles Deleuze e Félix Guattari analisam que “a unidade de uma língua
é, antes de tudo, política. Não existe língua-mãe, e sim tomada de poder por
uma língua dominante” (2011, p. 49). A língua materna, ou talvez pudéssemos
que vivem em terras indígenas não homologadas. Segundo o pesquisador do Instituto Socioambiental,
Antonio Oviedo, em Boletim do ISA enviado por e-mail no dia 17 de julho de 2020, o governo permitiu que
invasores permanecessem em Terras Indígenas em plena pandemia,desestruturou os órgãos de scalização
e não implementou políticas para garantir a permanência de indígenas nas aldeias.
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dizer, a língua paterna – lembrando que, para Aristóteles, o patriarca é a célula
originária do poder soberano (pater-patriam) – é a língua da dominação
política, da padronização de um povo, de forma que a primeira estratégia
do Estado-nação é instituir um idioma único, assim se mata culturas física
e linguisticamente.
No caso do Brasil, essa perda diz respeito a mais de 1300 línguas, que,
desde a invasão europeia, foram tratadas como obstáculo ao desenvolvimento
da colônia e à unidade nacional. Chamadas de pobres, bárbaras, inferiores,
toscas, irracionais – “línguas brutas e de brutos, sem livro sem mestre e
sem guia”, dizia Padre Antonio Vieira (2001 apud FREIRE, 2016, p. 365)
–, essas línguas foram violentamente reprimidas desde o início da invasão
europeia. Já no século XVIII, foram as línguas gerais que foram eliminadas
em nome do português: “a política de línguas sofreu, então, uma reviravolta
marcada por interesses geopolíticos, com um discurso ocial de hegemonia
que demonstrava a percepção das relações entre língua, nação e estado,
semelhante ao discurso formulado pelos estados nacionais” (FREIRE, 2016,
p. 372). Dali em diante, as línguas ameríndias, consideradas perturbadoras
da ordem, foram cada vez mais perseguidas, numa perda vertiginosa da
diversidade linguística que, analisa a linguista Bruna Franchetto, “continua
sendo silenciada, com estratégias variadas, pelo Estado, por missões, meios de
comunicação, escolas, em todos os níveis do chamado ‘sistema educacional’
5
.
A soberania de uma única língua, a dos conquistadores que conformaram a
‘nação’, é mantida de todas as maneiras” (FRANCHETTO, 2017, p. 58).
Segundo o último Censo do IBGE, de 2010, apenas 37,4% das quase
900 mil pessoas que se declararam indígenas falavam sua língua nativa. O
cenário é bastante desolador, principalmente se considerarmos que a média é
de 250 falantes por língua e que algumas contam com menos de 10 falantes
– o último falante de Apiaká, por exemplo, morreu no começo de 2012
(FRANCHETTO, 2017). Por outro lado, o Censo apresentou um “equívoco”
interessante. Enquanto o número de línguas indígenas catalogadas pelo
Instituto Socioambiental é de 160, o IBGE constatou 274. Conforme explica
Franchetto, o IBGE trabalha com o critério da autodeclaração (enquanto o ISA
se baseia em dados acadêmicos) e língua é um “construto ideológico ocidental,
não compartilhado, como tal, pelas línguas ameríndias, onde outras palavras,
sentidos e micropolíticas são mobilizados” (FRANCHETTO, 2020, p. 25).
Além disso, no Censo aparecem indígenas que se declararam falantes de uma
5 Daniel Munduruku conta que, nos anos 70, não havia escolas nas aldeias. “Não era a intenção, naquela
ocasião, formar o indígena na sua própria comunidade. Ele era arrancado de lá e levado para os centros
urbanos, e ali, obviamente, seria massacrado com um tipo de conteúdo e conhecimento que não era
próprio dele. Ao mesmo tempo em que era proibido de falar a própria língua, proibido de praticar a sua
própria cultura” (MUNDURUKU, 2017, p. 16).
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língua já considerada “extinta”, mas que conseguiram ressurgir da invisibilidade
e do silêncio num movimento de resistência política absolutamente consciente.
Conforme analisa Franchetto, “em sua luta para o reconhecimento de sua
existência e resistência, bem como de seus direitos territoriais, se declarar
falantes de uma ‘língua’ é um corolário lógico e uma urgência política
(2017, p. 59)6.
Mas não se trata apenas de preservar a língua materna. A resistência
ao monolinguismo colonial também se dá no devir-menor que essa língua
realiza na língua dominante, fazendo a língua maior entrar em um devir
minoritário de todas as suas dimensões (DELEUZE; GUATARI, 2011). Um
devir que desvia a língua paterna de seus propósitos estatais homogeneizadores,
de sua violência excludente, que desterritorializa e desestabiliza seu poder,
revelando sua heterogeneidade, mostrando que o português, na verdade, é
um “pretuguês” (para usar um neologismo de Lélia González (1984) que
faz referência à inuência das línguas africanas sobre a língua portuguesa
e das culturas africanas na “Améfrica Ladina”), mas também um tupiguês,
jê-tuguês, panoguês e por aí afora.
Neste sentido, as línguas indígenas funcionam como “contralínguas”7
que tomam a língua do opressor e a viram contra ela mesma (HOOKS, 2008)
e sua literatura como “contrainformação” (DELEUZE, 1999) que desaa
as palavras de ordem da linguagem padrão. O ato de criação literária como
um ato de resistência – “a arte é aquilo que resiste” (DELEUZE, 1999) – à
língua única, à história universal, ao silenciamento colonial e sua herança
necropolítica.
Há algo que não deve ser dito para que os regimes de discurso
contemporâneos continuem exercendo seu poder, sua “universalidade”.
Como explica Judith Butler, os regimes discursivos são produzidos por
meio da produção de um não dizível8. Por isso o colonizador precisa negar o
discurso, o conhecimento, o idioma do colonizado. Há, nos mostra Grada
6 “O que aconteceria se as línguas indígenas invadissem as escolas não indígenas, as cidades, as universidades,
a mídia, os congressos, os seminários, a literatura, o cinema, com boas traduções (nas duas direções)? Cantos
são poemas, narrativas contam outras histórias, as oitivas de Belo Monte não teriam sido pantomimas de
fachada para ‘escutar os índios’ sem entender o que dizem” (FRANCHETTO, 2017, p. 61).
7 “Nas bocas de africanos negros no chamado ‘Novo Mundo’, o inglês foi alterado, transformado, e
tornou-se uma fala diferente. O povo negro escravizado pegou pedaços partidos do inglês e fez deles uma
contralíngua. Eles colocaram junto suas palavras de tal maneira que o colonizador tivesse de repensar o
signicado da língua inglesa. (...) Para cada uso incorreto de palavras, para cada colocação incorreta das
palavras, era um espírito de rebelião que reivindicava a língua como um local de resistência. (...) O poder
dessa fala não é simplesmente possibilitar resistência à supremacia branca, mas é também fabricar um espaço
para produção cultural alternativa e epistemologias alternativas – diferentes maneiras de pensar e conhecer
que foram cruciais para criar uma visão de mundo contrahegemônica” (HOOKS, 2008, p. 859–60.)
8 Segundo ela, nenhum discurso é permissível sem que outro se converta em não permissível, de forma
que a censura é aquilo que permite a fala (BUTLER, 2004, p. 228)
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Kilomba, um segredo que cala os colonizados e glorica a história colonial de
forma a mantermos a mesma linguagem e a mesma estrutura de poder-saber.
Existe um medo apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, a/o colonizadora/
or terá de ouvir. Seria forçada/o a entrar em uma confrontação com as verdades
da/o “Outra/o”. Verdades que têm sido negadas, reprimidas, mantidas e
guardadas como segredos. (...) Segredos como a escravização. Segredos como
o colonialismo. Segredos como o racismo. (2019, p. 41).
A história brasileira e a história da literatura brasileira foram sempre as
histórias do colonizador. Conforme mostra Lucia Sá, mesmo “as apropriações
românticas e modernistas de textos, gêneros literários e visões de mundo
indígenas” costumam não deixar espaço para a possibilidade de sobrevivência
cultural, como se eles não tivessem sobrevivido, recriado e reinventado a si
mesmos “em meio às piores adversidades” (2012, p. 366).
Nos livros, na mídia, na escola, os povos originários foram constantemente
estereotipados ou invisibilizados, declarados extintos ou estorvo ao progresso,
pertencentes a um passado distante ou atrasados. A própria palavra índio,
lembra-nos Daniel Munduruku, fala de uma categoria genérica, singular, presa
ao passado, sem diferenças étnicas e muito menos singularidades pessoais:
o índio romântico, o bom selvagem do século XVI, ou o índio preguiçoso
que tem terra demais (MUNDURUKU; CERNICCHIARO, 2017, p. 19).
Nas palavras de Kaká Werá:
Constantemente exploradores de minérios, senhores dos agrotóxicos
(envenenadores da terra), cultivadores de experiências transgênicas,
desmatadores da vida, difundem uma ideia pejorativa, folclórica e negligente
de toda uma riqueza imaterial presente no modo de ser e de pensar destes
inúmeros povos (WERÁ, 2017, s/p).
Neste contexto, a escrita torna-se um ato político, uma forma de
recuperar “uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas
impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podíamos entrar,
tampouco permanecer para falar com nossas vozes” (KILOMBA, 2019, p.
27). A partir de Bell Hooks, Grada Kilomba defende que escrever sua própria
história é deixar de ser objeto de conhecimento do outro e tornar-se sujeito
de conhecimento.
Essa passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político.
Além disso, escrever é um ato de descolonização no qual quem escreve se
opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/escritor “validada/o” e
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“legitimado/a” e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora
nomeada erroneamente ou sequer foi nomeada. (KILOMBA, 2019, p. 28).
Segundo o poeta Macuxi Ely Ribeiro de Souza, os textos escritos por
autores indígenas permitem contar uma outra história, rememorar tradições
que foram desvirtuadas por estranhos e transformadas “em folclorismo,
modismo literário, justicativas nacionalistas que em muito prejudicaram
e distorceram nossas histórias” (2018, p. 68). Assim a escrita deixa de ser
um instrumento de dominação e controle e passa a ser uma ferramenta de
armação, divulgação e defesa “das riquezas culturais, das narrativas, dos
mitos, das imagens, dos simbolismos que destacam a estética, o belo, os
grasmos que orientam nossa condição de povos diferenciados, com línguas
e territórios, losoas e ciências” (SOUZA, 2018, p. 69).
Também Daniel Munduruku avalia que a literatura indígena é uma
“conquista que vem sendo realizada gradualmente por meio da ocupação de
espaços” nesta sociedade que “invisibilizou e, em alguns casos, inviabilizou” os
indígenas como cidadãos (MUNDURUKU, 2018). Em entrevista publicada
na revista Crítica Cultural, ele conta que gosta de pensar que, com sua
literatura, está ajudando o Brasil “a desentortar seu pensamento”, “a olhar
para os povos indígenas sem o crivo dos estereótipos” (MUNDURUKU;
CERNICCHIARO, 2017, p. 18).
Não é à toa que a história da literatura indígena contemporânea
confunde-se com o avanço do movimento político dos povos originários.
Até o início dos anos 90, conta Kaká Werá (1998), praticamente tudo o que
existia escrito sobre os povos e as culturas indígenas no Brasil tinha sido escrito
por um branco e “eu achava que na medida em que nós nos tornássemos
protagonistas das nossas próprias vozes, isso poderia gerar uma força muito
grande”, pois, conforme “a sociedade nos reconhece como fazedores de
cultura, como portadores de saberes ancestrais e como intelectuais, ela vai
reconhecendo também que existe uma cidadania indígena”, com direitos
constitucionais. Segundo ele, “a tradição indígena é uma tradição literária, é
uma tradição poética, é uma tradição artística”, trazer isso para a escrita era
apenas uma questão de habilidade técnica, de tradução. “É como aprender
uma nova língua” (WERÁ, 2017, p. 26).
É dessa tradição poética e da história silenciada de luta e resistência
dos Kambeba que trata o poema “Ser indígena – ser omágua”, de Márcia
Wayna Kambeba, publicado no livro de poemas Ay Kakyri Tama: Eu moro
na cidade (2013):
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Sou lha da selva, minha fala é Tupi.
Trago em meu peito,
as dores e as alegrias do povo Kambeba
e na alma, a força de rearmar a
nossa identidade,
que há tempo cou esquecida,
diluída na história.
Mas hoje, revivo e resgato a chama
ancestral de nossa memória.
Sou Kambeba e existo sim:
No toque de todos os tambores,
na força de todos os arcos,
no sangue derramado que ainda colore
essa terra que é nossa.
Nossa dança guerreira tem começo,
mas não tem m!
Foi a partir de uma gota d’água
que o sopro da vida
gerou o povo Omágua.
E na dança dos tempos
pajés e curacas
mantêm a palavra
dos espíritos da mata,
refúgio e morada
do povo cabeça-chata.
Que o nosso canto ecoe pelos ares
como um grito de clamor a Tupã,
em ritos sagrados,
em templos erguidos,
em todas as manhãs! (KAMBEBA, 2013, p. 25).
Manter a palavra dos espíritos da mata, fazê-la ecoar nos ritos sagrados,
nos seus templos, em sua poesia, em seu cotidiano é sair da invisibilidade,
resgatar as tradições dos Kambeba e sua história de luta que foi “diluída na
história” ocial. Contra a história do poder que tenta apreendê-los, este
canto arma sua (r)existência – “Sou Kambeba e existo sim” – já que, para os
indígenas, existir é antes de tudo um ato de resistência, que se dá na música
(“no toque de todos os tambores”), na memória dos antepassados (“resgato a
chama / ancestral de nossa memória”), na luta pela terra (“na força de todos
os arcos / no sangue derramado que ainda colore / essa terra que é nossa”),
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no seu modo de vida na oresta, na sobrevivência de sua língua. Não à toa o
primeiro verso do poema nos diz “sou lha da selva, minha fala é Tupi” e, mais
para frente, “na dança dos tempos / pajés e curacas / mantêm a palavra / dos
espíritos da mata / refúgio e morada / do povo cabeça-chata”, vinculando um
modo de existência, ou melhor, de coexistência – com a oresta, a mata, os
animais, as plantas, os espíritos – à sobrevivência de uma língua (lembremos
que o Kambeba, como grande parte das línguas indígenas, é considerada
uma língua em perigo).
Esse vínculo entre língua e modo de vida, resistência e existência, é
uma temática importante também nos livros da coleção Mundo Indígena,
da editora Hedra. A coleção é quase toda bilíngue, de forma que, explica a
organizadora Luisa Valentini, as comunidades envolvidas na produção dos
textos possam utilizá-los e a imensa diversidade linguística dos povos indígenas
no Brasil seja divulgada (POPYGUA, 2017). Mesmo em Yvyrupa/A terra é
uma só, que não vem acompanhado da língua original, as palavras aparecem
primeiro em guarani e depois em português, como uma espécie de insistência
da língua indígena que desestabiliza o monolinguismo da língua de Estado.
No livro, Timóteo da Silva Verá Tupã Popygua escreve, em português
e sem intermediário de um jurua (não indígena), uma versão original do
Ayvú rapyta, feita a partir das palavras dos xeramõ’i (anciãos), que escutou ao
longo da vida, e da bibliograa existente sobre os cantos sagrados dos Guarani
Mbya. O canto descreve o começo do mundo, os preceitos éticos dos Nhande’i
va’ e (lhos de Nhamandu) e os cuidados que devem ter com Yvyrupa, a terra
sobre a qual Nhanderu criou o mundo. O canto vai descrevendo o caminho
feito pelos ancestrais, os rios, os animais, os frutos que encontravam e os
que plantavam, as plantas medicinais que descobriram, a Serra do Mar e o
Oceano Atlântico – local “ideal para formar tekoa, onde acontece nosso modo
de vida, para viver o nhandereko, nosso modo de ser, para ter yvy poty aguyje,
agricultura e plantio com abundância, e para oupyty aguã Nhanderu arando,
para alcançar a sabedoria divina, a morada dos Nhanderu” (POPYGUA,
2017, p. 46-48).
Xeramõi convoca a todos para continuarem a caminhada para alcançar
Tenondere, onde nasce o sol, em Yy ramõi, chamado também de Para guaxu,
o grande mar, o Oceano Atlântico. Para realizarem essa caminhada, ore retarã
ypykuery, nossos parentes originários, levavam com eles suas variedades de
plantas originais, que foram colocadas por Nhanderu Tenondegua em Yvy
mbyte: jety mirĩi, batata doce original, avaxi ete’i, milho verdadeiro, manduvi
mirĩi, amendoim original, mandyju mirĩi, algodão original, mandi’o mirĩi,
espécie de mandioca, ya para’i, melancia, pet, fumo, ka’a, erva-mate, e muitas
outras plantas. Levaram em forma de alimentos e de sementes.
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Para chegar à margem do Mar, Yvy apy, ponta da Terra, andaram primeiramente
na direção de Yvytu ymã, lugar dos ventos originários. Passaram por vários
nhuũ upa, campos, Kurity, pinheirais de araucária, ka’aguy karape, matas
baixas, encontraram guavira mirĩ, gabiroba do campo, e muitas plantas que
já conheciam. Nhanderu indicava os lugares onde deveriam parar e cultivar
as sementes e os frutos trazidos para se reproduzirem em todos os cantos de
Yvyrupa, a Terra criada por ele. (POPYGUA, 2017, p. 43-44).
O que se percebe nessa citação é uma espécie de gagueira que tensiona
o português: “quando a língua está tão tensionada a ponto de gaguejar ou de
murmurar, balbuciar..., a linguagem inteira atinge o limite que desenha o seu
fora e se confronta com o silêncio” (DELEUZE, 1997, p. 128), mas, aqui, o
fora com o qual a língua se confronta não é o silêncio, e sim uma outra língua.
O idioma padrão se confronta com sua própria heterogeneidade, reprimida
em nome do monolinguismo dominante que quer calar a língua Guarani,
seu modo de vida, seu direito à terra, sua própria existência9.
Outro, entre tantos exemplos profícuos dessa “intromissão” da língua
original na “tradução
10
das narrativas orais dos povos originários para o
português escrito é a antologia de literatura indígena Nós, organizada e ilustrada
por Maurício Negro, que reúne autores Mebengôkré Kayapó, Saterê-Mawê,
Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Taurepang, Ʉmuko
Masá Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ-Bakairi. Vejamos o começo do
conto “Amor originário”, de Aline Ngrenhtabare L. Kayapó e Edson Kayapó:
A aldeia já estava iluminada por mytyruwy-raj moro, a lua crescente. Panhonka
contava as horas, ansiosa pela chegada da mytyruwy-noti, a lua cheia.
Desde muito cedo a jovem kayapó se acostumou a ouvir sua mãe, iruwá,
contar que, durante a lua cheia, os homens, os me my, e as mulheres, as menire
e as mekurerere, se encontravam pela aldeia para se conhecer e eventualmente
namorar. Por isso, a menina deveria tomar cuidado.
Durante o dia, Panhonka observava o guerreiro que mexia com seus
sentimentos. Bepkaety tinha cabelos longos e escuros, pele dourada e tuirenta
(NEGRO, 2019, p. 15).
9 Em um manifesto escrito em setembro de 2019, lideranças, rezadores e pesquisadores avá, mbya, ñandeva,
kaiowa, guarani e tupi-guarani de diversas localidades da América Latina, reunidos no II Seminário
Internacional de Etnologia Guarani, denunciam a “restrição territorial de diversos povos e comunidades,
promovida por meio de sistemáticas remoções e desaparecimentos forçados, expulsões violentas, massacres,
entre outras técnicas criminosas de genocídio”, concluindo que “somos chamados de invasores, mas fomos
nós que tivemos nossas terras, nossos corpos e nossas vidas invadidas pelos não-indígenas”.
10 Entre aspas porque o trabalho de transcriação é ainda mais evidente nestes casos do que nas traduções
literárias ocidentais. Não estamos falando de simples transcrições de cantos tradicionais traduzidas ao
português, mas de trabalhos autorais a partir de um saber coletivo, imemorial.
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As belas palavras Kayapó dão ritmo e sonoridade à singela história
de amor de Panhonka e Bepkaety, ao mesmo tempo que nos colocam em
contato com a língua Kayapó, do tronco macro-jê
11
. Também deste tronco é a
língua dos Balatiponé ou Umutima, que quase foram dizimados por invasores
de terras desde o contato em 1911. Nos anos 40, 23 desses sobreviventes
reuniram-se no alto do Rio Paraguai e hoje a etnia conta com 515 indivíduos
(segundo dados de 2014 da Secretaria Especial de Saúde Indígena). Sua
língua foi considerada extinta, mas Ariabo Kezo tenta mostrar que a língua
balatiponé está viva, foi transmitida pelos anciãos junto com seus costumes
e mitos. Com graduação em Letras pela Universidade Federal de São Carlos,
Kezo produz material didático bilíngue para reforçar o balatiponé junto às
crianças do seu povo. Na antologia Nós, Kezo nos dá a conhecer essa língua
em “Jibikí Porikopô, o furto da panela de barro”. O “reconto” passa-se em
um tempo mítico no qual homens, animais e astros não se distinguiam
12
: “Na
época dos boloriê, antepassados do povo balatiponé, os animais eram pessoas
como nós. Meni e Hari, Sol e Lua, foram criados pela mesma motô antes de
partirem para o boropô, o teto que nos cobre”. As ariranhas, que “eram gente
também”, peritas na pesca e admiradas pelos Balatiponé” (NEGRO, 2019, p.
57), tinham uma linda panela de barro que atraiu a cobiça do Sol. Ao tentar
roubá-la, ele acaba morrendo, mas é ressuscitado pelo canto do valente Meni:
Hari, Hari, hutakí
Hari, Hari, hokotoponô
Hari, Hari, yaporé
Meni, Meni, inondotoré
Meni, Meni, hutakí
Baru, Baru, inondotoré
Ao repetir o canto, a esteira que estava enrolada começou a se mexer. Meni
cantou ainda mais forte e a esteira foi se abrindo, pouco a pouco, até nalmente
revelar alguém respirando forte – o’rebutá Hari. O irmão guerreiro tinha
ressuscitado (NEGRO, 2019, p. 57).
11 No Brasil, as línguas indígenas se dividem em dois grandes troncos linguísticos (Tupi e Macro-Jê) e
outras 19 famílias, que não pertencem a esses troncos, mas tampouco têm semelhança entre si, impedindo
a formação de novos troncos.
12 [-Gostaria de lhe fazer uma pergunta simples: o que é um mito?] – Não é uma pergunta simples,
é exatamente o contrário, porque se pode respondê-la de vários modos. Se você interrogar um índio
americano, seriam muitas as chances de que a resposta fosse esta: uma história do tempo em que os
homens e os animais ainda não eram diferentes (LÉVI-STRAUSS, 2005, p. 195).
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A imagem da esteira de onde os mortos ressuscitam, junto com a
predominância da língua balatiponé no penúltimo parágrafo do conto,
parece-me apropriada para pensarmos a literatura indígena contemporânea.
Assim como Hari, as línguas silenciadas voltam a respirar com toda força no
espaço literário e desviam a língua portuguesa de seus propósitos coloniais,
desnaturalizando o monolinguismo, permitindo-nos ouvir vozes por tanto
tempo sufocadas e lembrando-nos da pluralidade das histórias, das literaturas
e dos povos brasileiros.
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Ana Carolina Cernicchiaro. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), coordenadora do
Grupo de Pesquisa em Estética e Política na Contemporaneidade (EPOCA). Mestre
e doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com
estágio-sanduíche na San Francisco State University, recentemente desenvolveu a
pesquisa de pós-doutorado “Do apocalipse à resistência: perspectivas indígenas para
uma abertura na história” na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
E-mail: anacer77@yahoo.com.br
Recebido em: 18/01/2021
Aceito em: 16/11/2021
Declaração de Autoria
ANA CAROLINA CERNICCHIARO, declarada autora, conrma sua participação em todas as etapas de elaboração do
trabalho: 1. Concepção, projeto, pesquisa bibliográca, análise e interpretação dos dados; 2. Redação e revisão do
manuscrito; 3. Aprovação da versão nal do manuscrito para publicação; 4. Responsabilidade por todos os aspectos do
trabalho e garantia pela exatidão e integridade de qualquer parte da obra.
Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a
versão nal deste texto para sua publicação.
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Article
Full-text available
bell hooks relaciona as opressões veiculadas pela apologia ao inglês padrão com os usos das variantes da língua inglesa nos Estados Unidos. A autora discute o lugar da linguagem nas relações de poder, especificamente nas hierarquias raciais, e propõe a ressignificação dos usos lingüísticos para a emancipação dos oprimidos.bell hooks relates the oppressions, which are caused by the apology to the standard English, to the uses of the varieties from English language in the USA. The author discusses the place of language in the power relations, specifically in the racial hierarchies, and she proposes the resignification of the linguistic uses aiming at the emancipation of the oppressors.
Article
O Brasil é um país decididamente multilíngue. A surpreendente diversidade de línguas e variedades dialetais, que para muitos pode ser uma descoberta, pouco conhecida e ameaçada, é o primeiro ponto para o qual este artigo quer chamar a atenção. Fala-se em “língua”, mas esta palavra e os sentidos a ela associados, sobretudo no senso comum, são raramente postos em discussão. Aquém e além de uma definição estritamente linguística, “língua” é basicamente um construto ideológico ocidental, não compartilhado, como tal, pelas línguas ameríndias, onde outras palavras, sentidos e micropolíticas são mobilizados. O mesmo pode ser dito dos mitos ocidentais sobre a “origem” da linguagem/línguas, já que palavras, falas e conceitos ameríndios apontam para outras visões e apreensões. A partir de uma interpretação da “dança dos números” a respeito das línguas originárias no Brasil, outro tema abordado diz respeito aos não poucos movimentos de retomada de línguas originárias, consideradas “extintas”, movimentos efervescentes, sobretudo no nordeste brasileiro. A última parte do texto volta às macropolíticas pressupostas e implicadas pelas desventuras das línguas ameríndias no cenário englobante da escolarização, da escrita, de leis e da retórica oficial.
Literatura para desentortar o Brasil
  • MUNDURUKU Daniel
Racismo e sexismo na cultura brasileira
  • Lélia Gonzales
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, Brasília, p. 223-244, 1984.
Como domar uma língua selvagem. Cadernos de Letras da UFF
  • Gloria Anzaldúa
ANZALDÚA, Gloria. Como domar uma língua selvagem. Cadernos de Letras da UFF, Niterói, n. 39, 2009, p. 297-309.
A literatura indígena não é subalterna
  • Daniel Munduruku
MUNDURUKU, Daniel. A literatura indígena não é subalterna. Itaú Cultural, 2018. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/a-literatura-indigena-naoe-subalterna. Acesso em: 22 mar. 2022.
Meios sem fim: notas sobre a política
  • Giorgio Agamben
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Origens do totalitarismo
  • Hannah Arendt
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2006.
Marxismo e filosofia da linguagem
  • Mikhail Bakhtin
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. BUTLER, Judith. Lenguaje, poder e identidad. Madri: Editorial Sintesis, 2004.