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HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO
TEMPO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL.
UM OLHAR SOB A PERSPECTIVA
SOCIODINÂMICA DE MOLES E DA
MEMÓRIA SOCIAL DE HALBWACHS
ROONEY FIGUEIREDO PINTO*
Resumo: Partindo da tese de que a memória social é sociodinâmica e que a recordação reete um movi-
mento mnemónico socio-espaço-temporal dos eventos biográcos, propomos reexões sobre como se
manifestam as recordações do tempo de escola e que signicados são atribuídos. A partir de entrevistas
semiestruturadas aplicadas em 2017 a professoras que deram aulas durante o Estado Novo, recorremos à
análise qualitativa para o tratamento dos dados coletados. As narrativas revelaram que as recordações
emergem paradoxalmente nostálgicas e críticas aos contextos associados ao Regime, denunciando uma
narrativa em constante diálogo do passado com o presente, especialmente quanto à noção de autoridade
e a relação professor/a-aluno/a.
Palavras -chave: Histórias e Memórias da Escola; Estado Novo; Memória Social; Perspectiva Sociodinâmica.
Abstract: Starting from the thesis that social memory is sociodynamic and that remembrance reects a
socio-spatial-temporal mnemonic movement of biographical events, we propose reections on how school
time memories manifest themselves and what meanings are attributed to them. From semi-structured inter-
views applied in 2017 to teachers who taught during Estado Novo, we call upon qualitative analysis for the
treatment of collected data. The narratives revealed that the memories emerge paradoxically nostalgic and
critical to the contexts associated with the Regime, announcing a narrative in constant dialogue of the past
with the present, especially regarding the notion of authority and the teacher-student relationship.
Keywords: Histories and Memories of School; Estado Novo; Social Memory; Sociodynamic Perspective.
INTRODUÇÃO
A escola é um espaço privilegiado de interação, comunicação e dinâmicas mnemó nicas.
Em outras palavras, é um laboratório permanente e sociodinâmico da memória e os
eventos biográcos que habitam nossas memórias são permeáveis e socialmente dinâ‑
micos. Como refere o psicobiólogo italiano Alberto Oliverio, «in ricordi, in realità, no
sono stabili ma vengono continuamente ristrutturati»1. Assim, recordar e narrar estas
memórias é um exercício de reescrever o evento, dar‑lhe novos signicados e compre‑
ensões atualizadas. «Pois cada um é, como outrora, o produto social da sua época, mas
que se torna um produto especíco»2.
* GRUPOEDE/CEIS20, Universidade de Coimbra. Email: rooneypinto@uc.pt.
1 OLIVERIO, 2017: 177.
2 KAUFMANN, 2003: 87.
Pinto, R. F. (2021). Histórias e Memórias da Escola do Tempo do Estado Novo em Portugal. Um olhar sob a perspectiva sociodinâmica de Moles e da Memória Social de
Halbwachs. In Ribeiro, C. P.; Baptista, E.; Afonso, J. A. M.; Rocha, J. A investigação em História da Educação: novos olhares sobre as fontes na era digital. Porto: CITCEM. ISBN:
978-989-8970-43-5. https://doi.org./10.21747/978‐989‐8970‐43‐5/inv [https://ler.letras.up.pt/site_uk/resumo.aspx?qry=id024id1809&sum=sim&l=i&idn3=19068]
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A INVESTIGAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
O tempo, o espaço, as condições e seus efeitos3, abordagem sociodinâmica da
memória, faz‑se sentir nos diálogos mnésicos que se revelam nas narrativas do objeto
recor dado. A narrativa estimula a construção de cenários ou imagens‑lembranças,
«a lembrança pura, quando se atualiza na imagem‑lembrança, traz à tona da consciência
um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida»4. Essa imagem‑
‑lem brança precisa do manifesto narrativo para migrar do individual para o coletivo.
Nas palavras de Ricoeur, «testimony constitutes the fundamental transitional structure
between memory and history»5.
Para melhor enquadrar nossa proposta teórica acerca da perspectiva sociodinâmica
como um viés possível para leitura das narrativas da memória da escola, faz‑se neces‑
sário pontuar as distinções teóricas entre a memória social e a perspectiva sociodinâmica.
Embora ambas as teorias partilhem princípios comuns no estudo dos grupos, destacam‑
‑se distinções que justicam apresentar as duas teorias.
MAURICE HALBWACHS E A MEMÓRIA SOCIAL
A teoria da memória social e coletiva interage com diferentes áreas, como Psicologia,
Sociologia, História, Antropologia, Filosoa e Neurociência. É incontestável, ao menos
do ponto de vista da antropologia da memória, o facto de que é antiga a vontade dos
grupos humanos de partilhar uma memória comum6 ou uma identidade pela memória
que reete a imagem de um grupo e suas dinâmicas sociais.
A Memória Coletiva tem como principal referência teórica as investigações condu‑
zidas por Maurice Halbwachs (1887‑1945) entre as décadas de 30 e 40 do século XX.
Halbwachs foi discípulo de Durkheim na École Normale Supérieure em Paris e, mais
tarde, professor na Universidade de Estrasburgo, onde estabelece intercâmbios e parti‑
cipa de debates teóricos com Charles Blondel, Marc Bloch, Lucien Febvre, Marcel Mauss,
entre outros. Em Estrasburgo publica Cadres Sociaux de la Mémoire Collective (1925) e
lança as bases acerca de sua inovadora teoria da memória coletiva. Como destaca Gerard
Namer, «Halbwachs termine les Cadres sociaux en concluant que la pensée collective est
essentiellement une mémoire collective»7. Os quadros sociais da memória compõem
o puzzle sobre o qual a memória coletiva se constitui, inuenciada por inúmeras dinâ‑
micas, tensões, coesões e morfologias sociais (família, religião e classes sociais) que
deambulam entre a recordação e o esquecimento.
3 Para Ferreira, «a abordagem sociodinâmica da memória deve levar em consideração os aspectos do tempo, espaço,
condições e seus efeitos». O que implica aceitar que o evento vivido pode ser ressignicado pelo narrador da memória.
Cf. FERREIRA, 2008: 137.
4 BOSI, 2015: 49.
5 RICOEUR, 2004: 21.
6 CANDAU, 2013: 91.
7 NAMER, 1987: 53.
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Na perspectiva de Halbwachs, o esquecimento, a recordação e o silêncio sobre o que
se escolhe não recordar são partes de uma mesma dinâmica social da memória, uma repre‑
sentação que reete os interesses, identidade e valores partilhados8. Suas percepções sobre
o intercâmbio de inuências entre o indivíduo e os grupos, os contextos e as dinâmicas
sociais indicam elementos e postulações do Funcionalismo. Esta inuência é mais explí cita
na obra Morphologie Sociale (1938), na qual faz um profícuo uso do método sociológico
de Durkheim, explorando os fenômenos e factos sociais e suas inter‑relações nos grupos.
Em La mémoire collective chez les musiciens («Revue Philosophique», 1939), dialoga
sobre a relação entre o registo mental sonoro e a memória visual evocada. Sua entrada
pelas dinâmicas sensoriais da memória denota algumas inuências tardias das ideias do
antigo colega da École Normale, Henri Bergson9, nomeadamente quanto às diferentes
percepções metafísicas da recordação. Em 1941, publica La topographie légendaire des
Evangiles en Terre sainte. Étude de mémoire collective, onde discorre sobre o simbólico na
recordação e a força do grupo religioso na xação de uma identidade social da memória.
Aplicando a «crítica da forma»10 enquanto método, explora a construção de memórias
de lugares santos, tão comum na Idade Média, e sua evocação na memória coletiva,
abastecida pelas dinâmicas sociais que se alimentam do sentimento de pertencimento
simbólico‑religioso.
Em 1944 é convidado a lecionar no Collège de France, em Paris, cargo que não
chegará a assumir. Em agosto do mesmo ano, ocorre a ocupação nazista em Paris e logo
no ano seguinte Maurice Halbwachs é preso pela polícia secreta alemã e deportado para
o campo de Buchenwald, na Turíngia, leste da Alemanha, onde falece. Na obra póstuma,
La Mémoire Collective, publicada em 1950 a partir de uma coleção de seus aponta‑
mentos, temos o constructo teórico da memória coletiva, armando que a memória não
se restringe a uma simples evocação pessoal, mas sim «um estado mental permanente
de representações coletivas» no interior nos grupos sociais, algumas vezes associado aos
eventos e lugares da memória como marcos sociais, revelando uma dinâmica política,
histórica, social11. A memória social em La Mémoire Collective é o ponto de contacto,
de reconhecimento e sentimento de pertença do indivíduo a um grupo e sua história em
torno do registo biográco.
8 JARAMILLO MARÍN, 2015: 94‑95.
9 Henri Bergson publica em 1896 em Paris Matière et Mémoire, obra icónica sobre as dimensões da memória e as questões
metafísicas da temporalidade.
10 O método investigativo «crítica da forma» ou «crítica formal» foi desenvolvido pelo teólogo alemão Rudolf Karl
Bultmann (1884‑1976), relevante entre contemporâneos da mesma linha como Martin Dibelius e Karl L. Schmidt.
De grande impacto nos estudos histórico‑teológicos, o método destacava a inuência social, religiosa e cultural sobre os
textos sagrados. Segundo Bultmann, os evangelhos e mesmo toda a Bíblia são o resultado de uma construção literária
social, de forma que seu conteúdo reete inuências relacionadas aos contextos históricos e religiosos de seu tempo e dos
grupos sociais. Cf. BULTMANN, 1994.
11 ALONSO, DUQUE, 2019: 222.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO TEMPO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL
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A INVESTIGAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Pour que notre mémoire s’aide de celle des autres, il ne sut pas que ceux-ci nous
apportent leurs témoignages: il faut encore qu’elle n’ait pas cessé de s’accorder avec leurs
mémoires et qu’il y ait assez de points de contact entre l’une et les autres pour que le
souvenir qu’ils nous rappellent puisse être reconstruit sur un fondement commun12.
O pioneirismo nos estudos da memória dos grupos permite a conceção embrio‑
nária ou prototeórica da memória social e, mesmo ainda, de uma antropologia social da
memória. Todavia, sem ignorar o seu incontestável mérito teórico, a visão halbwachiana
falha em não ter dispensado uma maior atenção sobre os fenómenos da consciência indi‑
vidual13 nas interações entre o indivíduo e o grupo, constituindo este um dos principais
problemas no enlace teórico da memória coletiva, denindo o indivíduo como «uma
espécie de autómato, passivamente obediente à vontade colectiva interiorizada»14.
Contudo, ressalta‑se que o contributo de Halbwachs avança para além de seu
tempo. «Referência para o estudo da memória enquanto objeto cientíco de interesse
social, o paradigma Halbwachiano transcende a memória histórica e explora o caráter
dialógico e transmutativo da memória nos grupos de indivíduos»15.
ABRAHAM MOLES E A SOCIODINÂMICA
Se por um lado a memória coletiva explora a inuência dos grupos sobre uma identidade
e memória social, a sociodinâmica recorre às teorias da comunicação e da cultura para
a constituição de suas bases prototeóricas. A memória coletiva de Halbwachs situa‑se no
âmbito do Funcionalismo, interpretando os fenómenos sociais à luz de factos sociais, já as
visões da sociodinâmica aproximam‑se do Estruturalismo. Nesta perspectiva, as dinâmicas
humanas produzem fenómenos inteligíveis à luz da cultura e seus variados estratos sociais.
Entre as décadas de 30 e 70 do século XX as ideias da perspectiva sociodinâ mica
emergem no âmbito dos estudos da Socionomia e da Sociometria, combinando as áreas
da Psicologia Social, Comunicação, Linguística, Economia e Sociologia. Em seu Estrutu‑
ralismo Informacional revelam‑se mais fortemente as inuências da Linguística Cogni‑
tiva, das Teorias da Comunicação e dos Grupos, o que explica o seu desdobramento
em pelo menos três áreas de aplicação: Comunicação, Psicologia Social e Gestão de
Grupos. Abraham Moles (1920‑1992), Jacob Levy Moreno (1889‑1974) e Jean‑Christien
12 HALBWACHS, 1997: 63.
13 Embora Halbwachs não dedique uma esperada atenção ao papel da consciência individual nos diálogos mnésicos,
não podemos deixar de ressaltar que a consciência era um tema de interesse nos debates em torno dos estudos da
memória. Em 1932 Frederic Bartlett publica no Reino Unido o livro Remembering, onde aponta a relação entre consciência
e memória. Para isso, utiliza os contos populares para explicitar a necessidade de que se atribua signicados às recor‑
dações, concebidas no âmbito de representações internas ou esquemas que se constroem na consciência. Cf. BADDELEY,
ANDERSON, EYSENCK, 2011: 7.
14 FENTRESS, WICKHAM, 2013: 7.
15 PINTO, FERREIRA, MOTA, 2018: 543.
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Fauvet (1927‑2010) destacam‑se como autores de referência da perspectiva sociodinâ‑
mica, respec tivamente nas três áreas referidas. Embora os três autores sejam de elevada
impor tância para a compreensão da teoria, escolhemos usar apenas as ideias em torno
da conceção de Moles, por melhor se adequarem aos objetivos deste trabalho.
Assim como a investigação de Halbwachs reete o contexto de seu tempo entre
guerras, Moles vê os desdobramentos dos eventos sociais que se seguem após o conito
armado. O otimismo industrial pós‑II Guerra Mundial promove um crescimento do
consumo e da comunicação de massas sem precedentes, despertando o interesse de Moles
por este objeto de investigação. O boom industrial e econômico que se observa entre
1945 e 1960 reete‑se diretamente sobre os comportamentos de consumo das massas,
particularmente pela ação da publicidade nos meios de comunicação como o rádio e a
televisão. O fenómeno da relação entre o consumo e a ainda embrionária comunicação
de massas desperta o interesse cientíco de investigadores das Ciências Sociais, mesmo
antes de haver uma sistematização do estudo da comunicação enquanto disciplina
nas universidades16.
Engenheiro pela Université de Grenoble em França, integra a equipa do Centro
Nacional de Pesquisa Cientíca, no Laboratório de Acústica e Vibrações em Marselha
(1948‑1950) e colabora no serviço de investigação cientíca da RTF, particularmente
no Centre d’études de la radio‑télévision. Na Université de Paris‑Sorbonne, defende seu
primeiro PhD com a tese La structure physique du signal musical et phonétique (1952),
estabelecendo os elementos primários de sua «Teoria Informacional da Percepção»,
a qual viria a aprofundar em diversos trabalhos posteriores17. Em 1954, conclui seu
segundo PhD com a tese La création scientique, sob a orientação de Gaston Bachelard.
A historicidade da epistemologia e a relatividade do objeto e da cultura, frente aos
processos dialéticos das relações sociais, reetem‑se diretamente na visão sociodinâ‑
mica de Moles, o que já se observa em suas obras Communications et langages (1961),
Phonétique et phonation (1966) e Psychologie du Kitsch (1971). Publica em 1969 Socio-
dynamique et politique d’équipement culturel dans la société urbaine, onde discorre sobre
as políticas culturais e seu impacto sobre as massas. O emprego de uma compreensão
semiótica das dinâmicas dos grupos está mais amadurecido na obra Sociodynamique de
la culture (1971). Em 1973 publica La Communication e, mais tarde, Micropsychologie et
vie quotidienne (1976). Os trabalhos L’image, communication fonctionelle e éorie struc-
turale de la communication et société serão publicados em 1981 e 1986, respectivamente18.
16 Simonson e Park apontam que os cientistas sociais são os primeiros a debruçarem sobre o tema da comunicação
enquanto objeto de estudo, mais especicamente entre 1950 e 1960, contribuindo diretamente para a historiograa da
comunicação e suas interfaces sociais. Cf. SIMONSON, PARK, 2016.
17 PIÑUEL RAIGADA, 1999.
18 Devido às limitações formais deste trabalho, não é possível referir e muito menos comentar sobre a extensa lista de
trabalhos publicados por Abraham Moles.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO TEMPO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL
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A INVESTIGAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
O campo epistemológico de Abraham Moles reete uma percepção social dos
grupos e suas dinâmicas à luz do Estruturalismo e de uma Fenomenologia do Indivíduo.
Expõe sua conceção de que os sistemas e/ou subsistemas de signicação e ressignicação
social são inuenciados por meios de comunicação de massa como os jornais, o rádio
e a televisão: «C’est la communication de masse qui, pour une grande part, contribue à
meubler le cerveau de chacun de connaissances, de mosaïques, de sémantèmes, fournis‑
sant le matériau de nos associations d’idées et construisant éventuellement nos créations
intellectuelles»19. Mais ainda, Moles alerta que as bases cognitivas da linguagem estão
interativas com uma semiótica da comunicação, de forma que as políticas de utilização
dos meios de comunicação de massa inuenciam diretamente a sociedade e apoia sua
obser vação num conjunto de esquemas matemáticos, os quais recorrem a uma Socio‑
metria e Socionomia dos grupos. Seu contributo à compreensão das dinâmicas sociais
numa perspectiva sociodinâmica permanece ainda mais atual nos contextos sociais
contem porâneos, especialmente nos aspetos relacionados às políticas de comunicação e
à aceleração das redes interativas digitais.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO TEMPO DO
ESTADO NOVO
Partindo da tese de que a memória social da escola do tempo Estado Novo é sociodinâ mica
e que a recordação reete um movimento mnemónico socio‑espaço‑temporal dos e ventos
biográcos, propomos reexões sobre como se manifestam as recordações do tempo de
escola e que signicados são atribuídos. A partir de entrevistas semiestru turadas aplica‑
das em 2017 a professoras que deram aulas durante o Estado Novo, recorremos à análise
qualitativa para o tratamento dos dados coletados20. Das dez entrevistas aplicadas no ano
de 2017, foram utilizados neste trabalho os três casos que melhor ilustram a reexão so‑
bre a perspectiva sociodinâmica da memória, sendo os três indivíduos nascidos nos anos
quarenta e tendo iniciado a atividade de professor nos anos sessenta.
Compreendemos que estas memórias reetem uma construção social que se encontra
num tempo distante do tempo em que é recordada. Portanto, adotamos o quadro analí‑
tico de Amado, no qual o indivíduo é um criador de «signicados que se tornam parte da
própria realidade social»21. Com efeito, o uso de entrevistas semiestruturadas foi a opção
mais indicada para este tipo de investigação, em linha com o que refere Winwood sobre
a complexidade dos tópicos de investigação social: «ey oen require more extensive
19 MOLES, 1969: 140.
20 Os procedimentos éticos foram respeitados em toda recolha de dados. As identicações foram omitidas em respeito à
privacidade dos entrevistados, para quem foram explicadas a natureza e os objetivos da investigação, sendo a recolha de
dados autorizada por Consentimento Informado. O investigador é grato pela generosidade dos entrevistados, os quais
partilharam suas experiências e gentilmente permitiram‑se fazer parte nesta investigação.
21 AMADO, 2014: 73.
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qualitative data to be gathered to gain insights into experiences and perceptions of those
involved. In these situations, less formalized, so‑called “semi‑structured” interviews
(or semi‑structured questions within an interview) are oen favoured»22.
As entrevistas permitiram uma substancial recolha de dados qualitativos, os quais
felizmente superam as limitações deste trabalho. Foi possível vericar que as recor dações
da escola privilegiavam os contextos econômicos e sociais comparando o tempo vivido
com o tempo presente em diversos momentos das narrativas da memória. As recordações
enfatizam as diculdades com as quais as pessoas viviam, especialmente as crianças.
[Estado Novo/Contexto Social] Nós realmente só vimos a miséria, depois de
termos outro regime. Especialmente para os desfavorecidos, para as crianças que
frequentavam a escola, que não tinham nada para comer, que usavam trapos… (E41)
[Contexto Social] Ele era tão pobre, tão pobre… […] andava tão mal vestido…
No casaco do pai, longo o suciente para não se molhar. Ele foi o aluno mais pobre
que eu já tive. (E42)
A narrativa declara um facto já documentado e devidamente investigado em outros
trabalhos acerca da pobreza em Portugal no espaço temporal do regime. Contudo, E41 e
E42 expressam com uma semântica mais emotiva a fragilidade das crianças com quem
mais interagiam — «que frequentavam a escola» (E41) — enquanto vítimas de desigual‑
dades sociais — «menos favorecidos»; «que não tinham nada para comer» (E41)/«Ele
era tão pobre, tão pobre» (E42). Suas recordações identicam as condições do evento
biográco, o contexto e o espaço onde ele se formou. Por outro lado, vemos também
um alinhamento da percepção coletiva da realidade social. Podemos armar que estas
memórias individuais, recolhidas em momentos distintos, reetem uma memória cole‑
tiva do contexto social dos alunos.
As políticas da memória do Salazarismo seguiam uma linha comum aos regimes
autoritários, com uma forte presença do Estado nas salas de aulas das escolas, mas as
memórias associadas aos elementos iconográcos do regime na sala de aula e nos materiais
ou no dia a dia não receberam relevo na recordação. Ainda assim, em uma das entrevistas,
na qual E42 recorre às memórias enquanto aluna, foi possível detetar o condicionamento
de respeito sob dois aspetos: a autoridade simbólica do regime e a auto ridade da profes‑
sora recordada, bem como o seu alinhamento com as políticas da memória:
22 WINWOOD, 2019: 13‑14.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO TEMPO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL
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A INVESTIGAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
[Estado Novo/Contexto Político] Na minha terceira classe, a professora disse:
«Carmona morreu, agora você tem que colocar aqui, uma ta preta…» Terceira classe,
eu tinha oito anos. Fiz o que a professora disse. A professora ainda era minha amiga,
ela não me bateu nem nada. (E42)
[Estado Novo/Contexto Político] Essa parte me fez sentir um pouco de arrepio
porque vivi em uma época em que não sabia o suciente de alguns detalhes, não se os
entendia muito bem, mas senti que havia muito medo. (E49)
Embora E42 não tenha dado tanta importância às suas memórias acerca do que
havia do Estado Novo em sua sala de aula, vericou‑se que o tópico central de sua
recordação era o regime, sob o signo linguístico do condicionamento de respeito ou
medo. Importa ressaltar que E49 refere que «não sabia o suciente de alguns detalhes,
não sabia se os entendia muito bem», e deixa implícito que atribui novos signi cados
por hoje os entender melhor. Numa perspectiva sociodinâmica, vemos os efeitos da
relação entre o tempo e as condições. Pois sua narrativa põe o tempo de sua memória
sob o signo qualitativo de Kairós (tempo circular) em recusa da linearidade quantita‑
tiva de Khronos (tempo cronológico), pois para E49 o passado só é inteligível no tempo
presente. Recor demos o que nos revelou anteriormente E41: «Nós realmente só vimos
a miséria, depois de termos outro regime». Os efeitos do tempo representam em ambas
narrativas uma evolução da percepção dos contextos.
Quanto à dimensão punição/castigos, vemos que evoca uma memória subjetiva ao
mesmo tempo em que se associa ao que lhe é exterior, num movimento reativo e social.
Recordam o facto, mas a narrativa da memória é cuidadosa e autocensurada.
[Punição/Castigos] Mas eu as puni, de vez em quando um estalo, «ca quieto»,
não posso dizer não, porque foi o conceito de educação que foi aceito na época. Então o
conceito mudou e eu também mudei. (E41)
[Punição/Castigos] E, confesso, dentro da minha sala de aula nunca usei a régua
no primeiro dia, mas mostrei. «Olha, se você não for educado aqui, não vou admitir».
«Aqui está, espero nunca usar, mas se eu precisar…» Então eu z isso. (E49)
A memória individual de E41 e E49 reete um autoescrutínio, uma autocensura
consciente dos eventos recordados, reagindo aos novos paradigmas em linha com às
dinâ micas da memória na morfologia social halbwachiana. Esta memória partilhada
é resul tado de um julgamento pessoal introspectivo com a preocupação de acomodar
o discurso ao interlocutor que não pertenceu ao tempo em causa e pode interpretar
de forma negativa a narrativa apresentada. Se o «espaço» representa novos contextos
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consoante ao «tempo» atual, a narrativa se adequa a estas novas «condições» sociodinâ‑
micas, o que veri camos quando E41 destaca: «Então o conceito mudou e eu também
mudei» ou quando E49 refere: «E, confesso, dentro da minha sala de aula nunca usei
a régua no primeiro dia, mas mostrei». «Olha, se você não for educado aqui, não vou
admitir». Na altura em que E41 e E49 deram aulas, em pleno Estado Novo, mas não
por causa do regime, a ideia de punição/castigos estava relacionada à falta de respeito ou
incum primento de uma obrigação enquanto estudante. Era comum os pais delegarem
ao professor a autoridade para baterem em seus lhos se o docente julgasse necessário.
A «menina de cinco olhos» (palmatória), a régua ou a vara era os instrumentos utili‑
zados como «apoio educativo». Os paradigmas sociais contemporâneos estão muito
distantes desta conceção de autoridade. Os pais e o senso comum do tempo presente não
concebem com normalidade que um professor venha a bater numa criança e os progeni‑
tores não estão dispostos a dar tal permissão. O que justica a preocupação no discurso
da memória em esclarecer que esta recordação se encontra em outro tempo.
Curiosamente, em outros momentos da entrevista os mesmos contextos são recor‑
dados em tom paradoxalmente nostálgico e quase saudosista acerca do tempo do Estado
Novo, comparando o prestígio e respeito que as professoras tinham antes com o contex‑
to presente.
[Autoridade/Respeito] As pessoas, penso de uma maneira geral eram dife-
rentes do que você vê agora. […] as crianças mais tarde também não respeitam a
profes sora. (E41)
[Autoridade/Respeito] Agora, acho que existem as duas visões, o exagero da
época, de ser muito austero, de ser muito rigoroso, muito punitivo e agora acho que os
pais são muito facilitadores. É o que penso, muito facilitadores. (E42)
[Autoridade/Respeito] Tivemos sorte em nosso tempo, porque os alunos e os
pais nos respeitavam muito e os alunos também eram respeitosos. (E49)
À luz da perspectiva sociodinâmica e da Memória Social, podemos vericar que a
recordação revela uma panóplia de emoções e percepções que põem aquele que recorda
entre Cila e Caríbdis, pois conhece o facto vivenciado e o signicado que lhe atribuiu,
mas igualmente vê‑se tentado a ignorar o fenómeno objetivo e decide apresentá‑la como
um fenómeno subjetivo no qual a percepção individual do evento supera os escrutínios
pessoais que aplicara sobre o passado narrado, elevando sua face positiva como uma
crítica ao presente. Quem recorda, consciente do domínio de sua imagem‑ lembrança23,
23 BOSI: 2015.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO TEMPO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL
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A INVESTIGAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
está à vontade para comparar os tempos da memória: «As pessoas, penso de uma maneira
geral eram diferentes do que você vê agora» (E41). O tempo vivido é compa rado ao
tempo presente com recurso a um julgamento de valores e ao mesmo tempo uma disso‑
nância cognitiva quanto à sua linha narrativa anterior, especialmente quando refere que:
«Tivemos sorte em nosso tempo» (E49) e justica sua armação ao destacar «porque os
alunos e os pais nos respeitavam muito e os alunos também eram respeitosos».
A relatividade do objeto e da cultura, frente aos processos dialéticos nas percepções
dos contextos, é pontuada quando E49 refere: «Agora, acho que existem as duas visões,
o exagero da época, de ser muito austero, de ser muito rigoroso, muito puni tivo e agora
acho que os pais são muito facilitadores». Com efeito, este quadro social da memória
social denuncia as relações mnemónicas sob a perspectiva sociodinâmica e da
memória coletiva.
Ainda que o discurso condene o regime, e lamente o contexto social e econômico
da época, as narrativas insistem em evocar recordações positivas que se sobrepõem às
negativas. Passado e presente são comparados na máxima do «antes não era assim»,
nomeadamente quando referem a autoridade do professor daquele tempo em compa‑
ração ao tempo presente.
Esta brevíssima reexão sobre como se manifestam as recordações do tempo de
escola e que signicados lhes são atribuídos indica que os temas conituantes de natureza
dilemática são sociais na medida em que reetem imagens sociais, mas não podemos nos
distanciar do facto de que os dilemas residem na individualidade e os de uma pessoa não
são os de outra24. O que implica aceitar que as memórias das professoras que deram aulas
no tempo do Estado Novo correspondem a uma complexa rede de fenómenos sociais,
sendo promissor considerar as dimensões individuais e coletivas, culturais e semânticas
da memória.
As recordações que emergem são transversais entre os entrevistados, reetindo
um comportamento muito aproximado do grupo, uma memória coletiva de um evento
individual em dinâmicas sociais muito próximas. Contudo, as narrativas das memórias
reetiram os paradigmas da percepção sociodinâmica e da memória social.
Este trabalho propôs um olhar para a recordação do tempo da escola sob um
prisma no qual o exercício mnemónico transita entre o espaço, o tempo e seus contextos
históricos e sociais, ao mesmo tempo que contribui para uma melhor compreensão da
memória social da infância, da família e da escola.
24 MOTA, 2010: 395.
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BIBLIOGRAFIA
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HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA ESCOLA DO TEMPO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL
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A INVESTIGAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO