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v. 24 n. 58 p.99-125 abr./jun. 2022
LIVROS INFANTIS LOCATIVOS A CAMINHO:
UM ROTEIRO PARA A SELEÇÃO DE
EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS SITUADAS
Douglas Menagazzi
1
Laryssa Tarachucky
2
Resumo: Nos últimos anos, as tecnologias locativas têm estado cada vez mais presentes em nosso
cotidiano. Elas são apontadas como tendência para a Literatura Infantil Digital (LID), podendo ser
exploradas para promover o patrimônio material e imaterial e conectar significativamente as
crianças com os espaços físicos por meio da ficção. Todavia, a complexidade destes artefatos e a
falta de familiaridade com seus recursos podem ser barreiras ao acesso a este tipo de tecnologia.
Essa pesquisa tem como objetivo oferecer informações acerca das possibilidades e desafios trazidos
pelos livros infantis locativos. Ela apresenta o estado da arte das pesquisas nesse campo e amplia o
repertório das contribuições prévias dos autores ao apresentar os resultados do estudo do caso
Uramado RA.
Como resultado, é apresentado um roteiro que consiste em um conjunto de itens a
serem considerados para a seleção e uso de livros infantis locativos por pais e educadores, visando
uma experiência literária situada significativa para crianças.
Palavras-chave: Literatura Digital; Tecnologias Locativas; E-Book; App; Mídias Urbanas.
Locative Children's Books on the way: a roadmap to select situated
literary experiences
Abstract: In recent years, locative technologies have been increasingly present in our daily lives.
They are pointed out as a trend for Digital Literature for Children, and can be explored to promote
material and immaterial heritage and meaningfully connect children with physical spaces through
fiction. However, the complexity of these artifacts and the lack of familiarity with their resources can
be barriers to accessing this type of technology. This research aims to provide information about
the possibilities and challenges brought by locative children's books. It presents the state of the art
of research in this field and expands the repertoire of the authors' previous contributions by
presenting the results of the Uramado RA case study. As a result, we present a roadmap with a set
of items to be considered for the selection and use of locative children's books by parents and
educators, aiming at a meaningful situated literary experience for children.
Key words: Digital Literature; E-Book; App; Urban Media.
1
Universidade Federal de Santa Catarina. (douglas.menegazzi@ufsc.br )
2
Universidade de São Paulo. (laryssa.tarachucky@gmail.com)
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UM NOVO CENÁRIO PARA A LITERATURA INFANTIL
Nos últimos anos, a popularização de dispositivos eletrônicos e das redes
de telefonia móvel tem gerado profundas mudanças nas rotinas e estruturas das
famílias, impactando especialmente a experiência de aprendizado e lazer das
crianças (TAKEUCHI, 2011; LIMA, 2018). Se, inicialmente, o uso de mídia
eletrônica era restrito a espaços internos, o advento das tecnologias móveis, como
smartphones
e
tablets,
permitiu que esse uso migrasse progressivamente para
espaços públicos urbanos (TARACHUCKY, 2021), tornando-se muito comuns
nas casas, nas escolas e nas atividades diárias de deslocamento das crianças. Antes,
porém, de tratarmos dos livros infantis locativos, convém dar um passo atrás em
busca de uma visão geral do cenário dos livros infantis digitais.
Na primeira vez que o segmento das publicações digitais foi inserido na
pesquisa sobre o setor livreiro do país, pela pesquisa FIPE (2012), foram
contabilizados cerca de 5.200 títulos digitais publicados. Passados 10 anos, o
número de títulos de publicações digitais subiu para mais de 81.000 obras e, no
ano de 2021 – um período de queda nas vendas do livro impresso – correspondia
a 6% de todo o mercado editorial brasileiro (CBL, 2022). Há indícios de que essa
rápida transição têm ocorrido devido ao encarecimento do livro físico ligado, em
especial, ligado ao aumento de impostos; ao confinamento social
decorrente da
pandemia da COVID-19 e toda a complexidade de suas implicações – que vão
desde a interferência no orçamento doméstico até a imposição de barreiras de
mobilidade e acesso aos tradicionais pontos de venda ou empréstimo de livros; e
à forte presença da cultura digital nos ambientes domésticos e, mais
recentemente, escolares.
Entre as vantagens frequentemente citadas dos livros digitais em relação aos
impressos, estão a possibilidade de acesso rápido e remoto a partir de endereços
ou lojas virtuais. Além disso, eles são, em média, 50% mais baratos que os títulos
impressos (CARRENHO, 2016). Essas questões ajudam a reduzir as barreiras
geográficas, causadas pela distância entre o leitor e o livro, bem como as barreiras
econômicas, ampliando a possibilidade de acesso a obras literárias entre
diferentes classes sociais. No Brasil, os livros digitais estão cada vez mais presentes
nos contextos educacionais e domiciliares das crianças e, com isso, surge um novo
cenário para a literatura infantil.
A confluência da literatura com as tecnologias digitais já era observada no
campo das artes por Hayles, quando, em 2008, apontou a tendência de
desenvolvimento de literatura eletrônica que incorporasse imagens
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tridimensionais de maneira interativa com espaços reais. Naquela época, havia
um movimento no sentido de criar experiências imersivas nas quais, através de
recursos tecnológicos, os leitores eram imersos em experiências cinestésicas que
envolviam o corpo inteiro. Quase uma década mais tarde, Ramada Prieto (2017)
trouxe estudos que apontam as tecnologias de realidade virtual e realidade
aumentada como implementos cada vez mais presentes e influentes na
experiência da literatura infantil digital. Esses estudos, embora distintos, são
complementares a pesquisadores que passam a observar a presença cada vez mais
constante das tecnologias de geolocalização na literatura digital como um recurso
narrativo, dentre os quais cabe destacar o trabalho de Kucirkova (2017) e, mais
recentemente, de Menegazzi e Tarachucky (2020). Além de sua crescente
relevância para o contexto dos livros infantis, têm sido cada vez mais frequentes
os debates sobre as possibilidades de uso das tecnologias baseadas em localização
para a comunicação de aspectos da cultura simbólica dos lugares (FEIJÓ et al.,
2018). Essas discussões são fruto da combinação entre os campos da computação,
do design de interação e do patrimônio cultural e vêm abrindo espaço para a
criação de experiências inovadoras no que diz respeito à exploração de histórias
digitais situadas, que se desenvolvem a partir da interação com o patrimônio
material, com espaços urbanos ou mesmo com paisagens naturais
(TARACHUCKY; BALDESSAR, 2017).
A convergência entre literatura e tecnologia digital geram não apenas novas
oportunidades, mas também impasses e desafios para o uso e seleção de livros
digitais pelos leitores e mediadores de leitura (LIMA, 2018). Por exemplo,
algumas evidências apontam que os dispositivos móveis de interação,
smartphones
e
tablets,
tendem a tornar as atividades de tela privadas (YUILL;
MARTIN, 2016). Argumenta-se, nesse sentido, que recursos interativos com
potencial para compartilhamento são desenvolvidos para promover leituras
isoladas, o que torna a presença dos mediadores desnecessária
(TOMOPOULOS; KLASS; MENDELSOHN, 2019). Também, os livros
infantis desenvolvidos para serem lidos nestes dispositivos demandam novas
competências e habilidades de leitura digital, pois alteram significativamente as
praxes da leitura convencionais do livro impresso e modificam as interações e
papéis dos agentes - crianças, pais e mediadores - em torno da atividade
(CARDOSO; FREDERICO, 2019). Assim, as estruturas orientativas para o uso
e seleção de livros infantis digitais ainda são escassas e recentes, tendo-se uma das
poucas referências em Menegazzi (2020). Ainda maior é a lacuna na literatura
voltada a explorar as complexidades dos livros infantis locativos (MENEGAZZI;
TARACHUCKY, 2020).
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Esse artigo compõe um conjunto de estudos que tem como objetivo
desvendar as oportunidades e desafios do uso dos livros infantis locativos para
oportunizar uma experiência literária e espacial significativa para crianças e
adultos mediadores. Ele propõe um exercício de análise de um livro infantil
locativo a partir de uma das poucas lentes disponíveis na literatura
(MENEGAZZI; TARACHUCKY, 2020) como forma de exemplificar e
contribuir para a atividade de pais e educadores que buscam proporcionar
experiências literárias situadas significativas para crianças. Por meio do método
close reading
(VAN LOOY; BAETENS, 2003), será analisado o app Uramado
AR – um aplicativo de realidade aumentada que vincula uma narrativa a um
espaço urbano e que figura entre alguns dos exemplos recentes de histórias
locativas replicáveis a diferentes cidades – e, então, será estabelecido um conjunto
de itens a serem considerados no momento de seleção e uso de livros infantis
locativos. Como base teórica, nos apoiaremos nos resultados apresentados em
Menegazzi e Tarachucky (2020) e nas contribuições prévias do projeto de
pesquisa Children’s Books Going Mobile, fruto de uma parceria entre os grupos
de pesquisa Literatura e Design de Artefatos para Crianças e Jovens no Mundo
Digital (CNPq) e A Cidade e a Névoa (independente).
NOVOS RECURSOS E FRONTEIRAS
Ao contrário do que se pode imaginar, os livros infantis apps não são apenas
uma simples remediação do livro impresso. Eles são frutos da convergência de
propriedades várias mídias anteriores e de novas mídias que, quando
combinadas, podem permitir uma experiência literária altamente sinestésica. Os
livros digitais de formato aplicativo são construídos a partir de – e, portanto,
podem conter – uma variada gama de recursos multimídia, disponíveis nas
interfaces multimodais dos dispositivos móveis (MENEGAZZI, 2020). Eles
podem atrelar diferentes áreas e diferentes mecanismos e ativar variados níveis
de interatividade para oportunizar, por exemplo, jogos e atividades locativas.
Como é possível observar na figura 1, além das interfaces gráfica, sonora e háptica
(
touch screen),
há um modo de interface que reage ao movimento, localização e
inclinação do dispositivo móvel, intitulada interface 360°. Esta interface está
diretamente associada aos sensores de movimento dos
smartphones
e
tablets,
e
viabiliza recursos de realidade virtual e realidade aumentada, oferecendo recursos
de visualização da narrativa em 360° e, até mesmo, permitindo conexões com
objetos do mundo real.
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Figura 1. Mapa das interfaces multimodais e multimídias em livros infantis digitais.
Fonte: Menegazzi (2020).
Quando combinados ao tipo do conteúdo, à intencionalidade do autor e à
tipologia de interação com o espaço, os recursos acima apresentados podem
oferecer diferentes estilos de experiência estética, ligados à maior ou menor
experimentação e proximidade com outros formatos de narrativa lúdicos,
audiovisuais e tecnológicos. Dentre as principais tendências para a literatura
infantil em dispositivos de interação móvel, Menegazzi (2020) identifica os
seguintes recursos ligados ao conceito de mídia locativa: tridimensionalidade dos
espaços narrativos, realidade virtual e aumentada, geolocalização e dataficação.
A tridimensionalidade dos espaços narrativos está associada com o
incremento de conteúdos e recursos interativos programados para responder aos
sensores de movimento presentes nos avançados dispositivos
smartphones
e
tablets
: o giroscópio, sensor responsável pela leitura gravitacional e da direção, o
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acelerômetro, que detecta o mede a aceleração e vibrações na mobilidade dos
aparelhos, e o barômetro, que mede a pressão atmosférica.
Espaços de leitura responsivos a livros digitais têm sido desenvolvidos e
implementados como uma estratégia de letramento digital multimodal para a
infância, como é o projeto STREEN - Story Reading Environmental Enrichment
(RIBEIRO et al. 2017). STREEN
propõe espaços de imersão literária para
crianças em bibliotecas escolares, nos quais ocorre a projeção multimídia dos
conteúdos de livros digitais tridimensional em paredes ou telas enquanto lidos no
dispositivo móvel (Fig. 4). De acordo com os desenvolvedores, a projeção
multimídia dos conteúdos do livro digital em um espaço físico promove o
engajamento com a história e possibilita interação social do leitor com o espaço
e demais leitores no entorno (ibid). Propostas como estas, que procuram
entender como enriquecer a experiência literária envolvendo leitores e
professores com ambientes e espaços de interação mútua, ainda são novas e,
como no caso de STREEN, encontram-se geralmente em fases de prototipação
e pesquisa.
Figura 4. Demonstração do protótipo do Projeto STREEN
.
Fonte: RIBEIRO et al. 2017
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Ramada Prieto (2017) observou o aumento de projetos contendo narrativas
ou recursos 360° submetidos e selecionados anualmente pela Feira Internacional
do Livro Infantil de Bolonha, a mais importante feira do setor literário para a
infância e uma das primeiras a inserir uma categoria de premiação exclusiva para
produtos digitais: Bologna Ragazzi Digital Award. Conforme o autor, estes novos
produtos literários têm explorado cada vez mais a interseção com jogos
eletrônicos e curtas-metragens com realidade virtual e aumentada, o que implica
em profundas transformações na forma como as crianças interagem com as
histórias digitais, e apresenta um cenário de produção ainda pouco documentado
no que diz respeito a melhores procedimentos para sua execução e recepção. Um
exemplo que trazemos é o aplicativo Mur (2017), criado pela editora
dinamarquesa Step in Books e ganhador o prêmio Bologna Ragazzi Digital
Awards de 2017. O app complementa a história do livro homônimo impresso e,
por meio de realidade virtual e aumentada permite a leitura de uma história digital
e interativa com animações e vídeos em 360° (Fig. 3).
Figura 3. Demonstração de interação por realidade virtual e aumentada e 360° na leitura
do app Mur.
Fonte: Editora Step in Books (2017).
A geolocalização é um recurso disponível em dispositivos móveis que ainda
tem uma presença tímida entre os livros infantis (KUCIRKOVA, 2017). Ela
oferece extensivas oportunidades para a literatura para crianças. O implemento
desse recurso à história permite que, conforme a criança se direcione com o
dispositivo a determinados espaços geográficos, novos ou diferentes conteúdos
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sejam disponibilizados na programação dos livros digitais. Ou seja, a mobilidade
dos dispositivos eletrônicos de leitura pode ser projetada para revolucionar a
forma como se realiza a leitura digital, pode estabelecer novos formatos de se
conectar as histórias e com os espaços urbanos, bem como oferecer formas de
imersões interativas com grande potencial criativo e expressivo na literatura
infantil situada.
Um exemplo de uso das tecnologias de geolocalização em narrativas
situadas é o app Natu – Contos das Árvores
3
, uma produção brasileira feita em
parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica que tem como objetivo oferecer
uma experiência literária com as árvores da Mata Atlântica localizadas em
parques e áreas verdes urbanas das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro,
Uberaba e Divino São Lourenço. Utilizando-se das informações do GPS por
meio de um API (sigla do inglês para Interface de Programação de Aplicações)
que permite importar dados do sistema Google Maps, o app Natu – Contos das
Árvores informa a distância dos leitores até as árvores mais próximas e quando
este chega perto da localização é destravada a história da espécie específica,
incluindo narrações feitas por Lenine, Ney Matogrosso, Fernanda Takai e
Martn’alia.
Figura 4. Recursos de geolocalização no app Natu Contos
.
Fonte: Natu Contos, 2022.
3
Disponível em https://apps.apple.com/br/app/natu-contos/id1426227666?l=en. Visitado em março de 2022.
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Dataficação é o termo utilizado para nomear o mecanismo de coleta e
tratamento de dados pessoais em análises de comportamento de consumo para
ofertar novos produtos, etc. Kucirkova (2017) chama atenção para a questão dos
livros infantis digitais poderem realizar a coleta e monitoramento das informações
e atividades dos usuários registrando, dentre outros itens, o tempo de leitura, o
local onde a leitura é realizada e os interesses dos leitores. Se, por um lado, esses
dados podem ser valiosos na implementação contínua de novas versões, como,
por exemplo, melhores adequação dos livros digitais aos interesses dos leitores e
indicação de títulos similares; por outro lado, o fenômeno
big data
gera a
discussão da necessidade de maior segurança e clareza quanto ao uso desses
dados coletados a respeito dos usuários, especialmente quando são crianças.
Nesse sentido, é importante que pais e educadores estejam atentos quanto às
políticas de privacidade, coleta e compartilhamento e segurança dos dados
referentes às crianças para as quais disponibilizam estes artefatos, especialmente
quando estes dados podem também mapear as localizações em tempo real das
crianças, seu modo de deslocamento e destinos.
Além das tecnologias utilizadas como recursos para incremento da
narrativa, estão as abordagens de criação. Packer et al. (2017) identificam quatro
formas de combinar histórias e tecnologias locativas em aplicativos móveis. A
primeira delas é o guia turístico, um formato que usa histórias para representar
um retrato do lugar. A segunda, é denominada história educacional, configurada
como uma narrativa que tem foco no processo de aprendizagem sobre um lugar.
A terceira forma é o jogo de reconhecimento de localização, que podem incluir
desde atividades narrativas gamificadas até mecânicas avançadas de jogo,
conexões com o contexto do jogador, bem como experiências de realidade
aumentada. Por fim, a quarta forma de combinar histórias e tecnologias locativas
identificada pelos autores é a ficção situada, cujo foco está em entregar uma
história envolvente dentro de um determinado lugar.
URAMADO AR: UMA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA SITUADA
Uramado AR é uma experiência literária híbrida criada pela designer e
ilustradora Julie Stephen Chheng sob uma abordagem de caça ao tesouro. A
experiência acontece por meio de um aplicativo de tecnologia de realidade
aumentada disponível para dispositivos móveis, combinado com adesivos
espalhados em espaços físicos. À medida que o usuário encontra os adesivos e os
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coloca em contato com o aplicativo para dispositivos móveis, a combinação de
mídia analógica e digital permite habilitar uma história de personagens do folclore
japonês (Fig. 5). O
app
, publicado em sua primeira versão em janeiro de 2019,
está disponível gratuitamente para sistemas IOS
4
e Android
5
e é recomendado
para crianças a partir de 4 anos de idade e está disponível em sete idiomas:
francês, inglês, espanhol, português, japonês, chinês e coreano.
Figura 5. Ilustrações de personagens do
app Uramado AR.
Fonte: Site de Julie Stephen Chheng, 2020.
De acordo com a autora
6
, Uramado AR tece uma viagem imersiva em torno
dos Tanukis, espíritos do mundo natural que acordaram na cidade. Considerado
o personagem mais travesso das lendas japonesas, Tanuki é uma criatura mística
e divertida que, em sua forma tradicional, lembra um cão-guaxinim japonês. Por
ser tratar de um mestre do disfarce, o Tanuki pode trocar facilmente de forma
física e usar diferentes máscaras.
4
Disponível em https://apps.apple.com/br/app/uramado-ar/id1450611764. Visitado em março de 2022.
5
Disponível em https://play.google.com/store/apps/details?id=com.stephenchheng.uramadotanuki&hl=pt_BR&gl=US.
Visitado em março de 2022.
6
Disponível em: https://juliestephenchheng.com/portfolio/uramado-ar/. Visitado em março de 2022.
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Como mencionado acima, a experiência de caça aos Tanukis no app
Uramado acontece por meio da “caça” a adesivos fixados em diferentes locais da
área designada para o desenrolar da narrativa. Eles estão mais ou menos
escondidos, disponíveis em diferentes tamanhos - de até 4 metros. À medida que
os adesivos são descobertos, os espíritos são animados na tela do dispositivo por
realidade aumentada (Fig. 6 à direita e do meio), surpreendendo os leitores com
pequenas histórias e incentivando-os a interagir por meio de perguntas que, ao
final do percurso, permitem ao usuário/leitor descobrir qual é o seu espírito
Tanuki. A máscara referente ao espírito Tanuki é liberada ao leitor para uso em
realidade aumentada ao final do percurso (Fig. 6 à direita).
Figura 6. Imagens da utilização do
app Uramado AR
e a liberação da máscara
.
Fonte: Site de Julie Stephen Chheng, 2020.
O projeto, inicialmente exposto na cidade de Paris, teve passagem pelo
Digital Choc, em Tóquio, e pelo Tilt Festival, em New York. Em novembro de
2020, Uramado no ar chegou ao Brasil, quando ganhou um circuito em realidade
aumentada em Belo Horizonte, e teve os adesivos dos Tanukis colados nas
fachadas de prédios de 12 centros culturais da cidade. No ano seguinte, foi
exposto na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro
7
-
ocasião em que realizamos esse estudo.
7
http://eavparquelage.rj.gov.br/agenda/?evt=42357.
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UMA LEITURA APROXIMADA DE URAMADO AR
A análise da interface ocorreu mediante o uma leitura aproximada do
aplicativo Uramado AR nos espaços internos e externos do Parque Lage durante
algumas horas do dia 24 de novembro de 2021. A coleta de dados ocorreu pela
experiência
in loco
e também por meio de gravações e fotos deste processo, que
incluem
prints
e gravações da tela do app, do local de disposição dos adesivos,
bem como de notas de campo. As notas de campo contemplam, também,
observações de crianças e grupos de pessoas que circulavam o espaço utilizando
o app.
O método utilizado para a análise de dados é denominado
close reading
(VAN LOOY; BAETENS, 2003), um método específico da análise literária
frequentemente utilizado para a análise de mídias digitais. Esse tipo de análise
permite que o pesquisador compreenda os efeitos de pequenas partes de uma
mídia no restante do conjunto, uma vez que requer compreender a função de
cada um dos elementos e perceber como ele interage com os demais para
proporcionar a experiência de mídia.
Após a coleta do material em campo, as etapas de análise seguiram a mesma
ordem sugerida por Tarachucky, Baldessar e Fadel (2017), a saber: resumo,
desconstrução e interpretação. A primeira etapa, resumo, consistiu em
reconhecer a mídia, i. e., as interfaces que compõem a narrativa de maneira
objetiva. A segunda etapa consistiu na desconstrução de cada um dos elementos
da interface com base no conjunto de aspectos a serem considerados no design
de livros infantis e juvenis locativos pontuados por Menegazzi e Tarachucky
(2020). Esses aspectos são utilizados aqui como um roteiro para a exploração e
avaliação das oportunidades e desafios no uso desta modalidade de livros em
campo a partir da perspectiva de um adulto mediador ou de um educador. A
análise das interfaces levou à descrição de seus elementos e à anotação detalhada
sobre eles. À desconstrução, seguiu-se a terceira etapa, interpretação dos dados,
que buscou revelar as características dos elementos das interfaces em função de
aspectos específicos e sua função dentro de uma experiência literária situada
significativa para crianças.
É importante salientar que o conjunto de aspectos considerados pela
ferramenta de análise utilizada orginalmente abrangia dois grupos: (1) Objetivos
111
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de Design e (2) Processos de Design, sendo que este último concentrava
recomendações e preocupações relacionadas à formação da equipe de
desenvolvedores e às formas de coletas de dados para o desenvolvimento de
livros locativos, questões que prontamente não se aplicam à perspectiva que
adotamos aqui. Contudo, dentro do grupo 2 (Processos de Design), os itens
agrupados em torno do tema
recursos tecnológicos
são utilizados aqui por
trazerem recomendações ou preocupações acerca da aplicação de diferentes
recursos multimídia no design dos livros locativos. Assim, o roteiro que seguimos
é composto de aspectos a considerar acerca dos temas: (a) Objetivos de Design;
(b) Relacionados às Crianças; (c) Relacionados ao espaço urbano; (d)
Relacionados à narrativa; (e) Relacionados aos recursos tecnológicos.
O primeiro contato com o
app
acontece já na entrada do Parque Lage,
onde estão afixados cartazes suspensos nos postes para o caminho que leva à
Escola de Artes Visuais (Fig. 7 à esquerda). Em seguida, em uma área de destaque
no saguão de entrada da EAV há uma placa apoiada no chão, na qual são dadas
orientações para acesso e uso do aplicativo (Fig. 7 à direita)
Figura 7. Imagens da utilização do
app Uramado AR
e a liberação da máscara
.
Fonte: Site de Julie Stephen Chheng, 2020.
112
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A configuração inicial do aplicativo contém cinco áreas: (1) começar, (2)
Tanukis, (3) idioma, (4) equipe e (5) recomeçar, e seu uso requer, desde o início,
que a câmera do dispositivo esteja habilitada. Um total de vinte e quatro diferentes
Tanukis formam a narrativa, divididos em criaturas do dia e da noite (Fig. 8).
Figura 8. Imagens da utilização do
app Uramado AR
e a liberação da máscara
.
Fonte: Site de Julie Stephen Chheng, 2020.
No site da exposição havia a divulgação de horários de visita guiada
relacionada ao app. É importante destacar que na ocasião da coleta de dados em
campo, os pesquisadores já haviam tomado as duas doses da vacina contra a
COVID-19 e que para a entrada no espaço interno era necessário seguir um
protocolo de segurança sanitária.
a) Objetivos gerais dos Livros Locativos
Menegazzi e Tarachucky (2020) propõem que dentre os objetivos gerais
dos livros locativos, um dos principais seja o de promover e valorizar histórias,
escritores e desenvolvedores locais, o que se fundamenta na percepção de que se
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torna inviável a produção de histórias locativas sem um conhecimento consistente
do patrimônio material e imaterial, que é geralmente ligado a um território
específico (MENEGAZZI; TARACHUCKY, 2020). Deste modo, não só autores
locais ou com profunda pesquisa sobre a localidade, mas toda a equipe de
desenvolvedores precisa ser conhecedora das possibilidades e problemáticas do
local onde a experiência situada ocorre. Isso tem efeito positivo para o fomento
de projetos e equipes de especialistas a nível regional e potencializa o
desenvolvimento do setor frente às grandes corporações, geralmente
internacionais, que dificilmente produziriam conteúdos ricos acerca da cultura
local.
A proposta de Uramado AR é baseada na cultura japonesa. Isso faz
repensar uma nova camada nesta reflexão e origina um novo item no roteiro, pois
consegue propagar elementos de uma cultura geograficamente distante
sobreposta aos espaços físicos do Parque Lage e, como supracitado, de outros
países. Assim, o app atende à valorização da cultura de uma localidade, mas
oferece a multiculturalidade como uma camada virtual para repensar espaços
locais. Isso possivelmente implica em algum tipo de orientação ou adequação
mínimos do projeto inicial, mesmo que este ofereça uma aplicação genérica. Por
exemplo, alguns Tanukis (Fig. 9) são visivelmente figuras aquáticas e, por isso, fez
muito sentido que estivessem localizados proximamente ao Lago dos Patos,
Grutas e Aquário do Parque Lage.
Figura 9. Imagens da animação por RA de um Tanuki com forma de polvo
.
Fonte: fotografias feitas opelos autores.
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Os demais aspectos que visam objetivos gerais dos livros foram visivelmente
atendidos pelas observações durante a visita de campo: há um planejamento de
história ou, na verdade, um conjunto de pequenas histórias de cada Tanuki que
dão corpo e unificação à um modelo estético e criam uma linha narrativa; o
engajamento das crianças com os espaços físicos pôde ser observado desde os
espaços internos da EAV, como também durante a caça aos adesivos espalhados
pelo jardim do parque; e estas estavam sempre acompanhadas de adultos,
geralmente familiares, o que promoveu uma experiência literária e lúdica em
família por meio do envolvimento com o patrimônio, rotas turísticas e atividades
do parque. Pôde-se observar, inclusive, expressões de desejo de continuar a
investigar a propriedade para encontrar mais Tanukis
.
b) Aspectos relacionados às crianças
Dentre os objetivos para o design de LIJ Locativa identificados por
Menegazzi e Tarachucky (2020), um grupo de aspectos é exclusivamente voltado
à forma como as mídias locativas devem ser cuidadosamente implementadas
visando a experiência de leitura das crianças. Neste sentido, os três itens
propostos se cumprem no estudo de campo de Uramado AR:
o envolvimento da
criança para observações do mundo real pôde ser observado enquanto, na
procura pelos Tanukis
no espaço do parque, interagiam com a flora e também a
fauna presente no espaço. Era comum que animais silvestres cruzassem os
caminhos e a própria localização estratégica dos adesivos de Tanukis temáticos
(eg., a presença de seres aquáticos em áreas próximas a cursos d’água)
estimularam conexões entre a ficção e a paisagem natural.
Foram oferecidas histórias como uma atividade de mobilidade interativa e
lúdica pelos espaços e, mais que isso, pudemos entender que a disposição dos
adesivos nas áreas internas da EAV e ao largo da grande área dos jardins do
Parque Lage estimulou um grande percurso de mobilidade e atividade física.
Neste sentido, pôde-se perceber que em espaços internos a configuração permitiu
uma mobilidade mais reduzida e contemplativa das animações geradas pela
realidade aumentada, enquanto que nos ambientes ao ar livre os percursos foram
maiores, permitindo uma dispersão maior e, por isso, maiores conexões e
desdobramentos da obra com o percurso e interações com o mundo real. Ou
seja, o conteúdo da obra locativa pode beneficiar e ser beneficiado pela
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localização estratégica dos pontos de interesse, elementos de interação da
realidade aumentada, em espaços fechados e abertos para promover maior ou
menor mobilidade e conexão com o mundo real.
Em relação à presença de estratégias/mecanismos para promover a
participação parental, Uramado AR
não traz nenhum recurso exclusivo. Ele
apenas conta com a própria configuração de um passeio. O próprio fato de a
criança estar no Parque Lage é devido a um adulto tê-la levado, e a dinâmica
extrovertida vista na forma como algumas crianças comemoravam com os pais ou
acompanhantes ao encontrar um novo Tanuki, por exemplo, o convite a ajudá-
las ou o desafio a participar da tarefa de “caça” era algo não intencional. Um item,
portanto, que poderia ser melhor explorado na obra.
Outro item supracitado no estado da arte, mas que originalmente não faz
parte das recomendações prévias de Menegazzi e Tarachucky (2020) e não
aparece de nenhuma forma em Uramado AR diz respeito à dataficação e reside
na preocupação acerca da clareza com que é informado aos usuários/leitores
como ocorre a captura de dados pessoais e de mobilidade por meio do livro
digital: se há níveis de segurança para proteger estas informações, se os dados são
utilizados para algo, ou mesmo se há a preocupação com o consentimento de
adultos responsáveis acerca desta coleta.
c) Aspecto relacionados aos espaços urbanos
Os aspectos analisados em Uramado AR sobre a exploração de
oportunidades dos espaços urbanos/paisagem em que foi experimentado
contemplam poucos itens daqueles recomendados em Menegazzi e Tarachucky
(2020). Isso ocorre muito provavelmente pelo fato de o app não ter sido
desenvolvimento especialmente para o parque onde foi analisado. Assim, se o
ideal era que a história fosse planejada para interagir com ou responder a pontos
de interesse demarcados no espaço, isso propriamente não aconteceu. Também,
o uso de pontos de interesse como intersecções entre o espaço urbano e a
narrativa só aconteceu deliberadamente quando, como supracitado, alguns
Tanukis combinavam sua forma com alguns elementos geográficos: área de
plantas, água etc. Isto nos levou a pensar que livros locativos baseados em
narrativas não projetadas exclusivamente para um espaço, como Uramado AR,
poderiam oferecer uma versão personalizável de seus pontos de interesse para
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que instituições responsáveis por determinados espaços possam adequar os
conteúdos a eles e, assim, oferecer experiências literárias locativas em níveis mais
autênticos.
Contudo, Uramado AR cumpriu ao adicionar uma camada lúdica aos
deslocamentos, que, no caso, não são cotidianos para a grande maioria das
crianças, tendo em vista que o parque não é um espaço de passagem devido à sua
localização na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, Uramado AR criou um
motivo a mais para que famílias se dirigissem ao espaço, como o foi para os
pesquisadores, e, mesmo que eventualmente, pôde estimular um retorno mais
frequente de visitantes ou mesmo reforçar o ponto de passeios de moradores
próximos. Assim, adicionamos um novo item a ser levado em consideração: a
criação ou reativação de um destino lúdico para crianças e familiares.
d) Aspecto relacionados à narrativa
Este grupo reúne aspectos a considerar em relação à narrativa de livros
locativos. Recomenda-se especialmente que o livro infantil locativo explore e
promova histórias/narrativas locais e que a história tenha sido projetada para
interagir com ou responder a pontos de interesse, o que já observamos que
acontece com baixa frequência em Uramado AR. Ainda, agrupa recomendações
na forma de acesso e fruição da narrativa, tais quais prover alternativas para
usuários interessados em deliberadamente não seguir o caminho da história
principal e oferecer um fluxo de narrativa que prevê segmentação e quebras na
linearidade de acordo com a movimentação do leitor pelos espaços urbanos, o
que acontece muito bem durante a leitura e uso do aplicativo, já que se configura
a partir da coleta de personagens que trazem pequenas histórias independentes.
Entretanto, por mais que a proposta do app por si só seja em função de
gamificar a narrativa para encorajar a finalização da rota da história, constatamos
que este não é um desafio nem um pouco fácil devido à proporção da área na
qual estão dispersos os Tanukis e, especialmente, porque o aplicativo não traz
um mapa, nem dá orientações de onde estão os personagens faltantes, o que, por
vezes, impede de habilitar o recurso final. Portanto, estas observações também
apresentam itens que podem ser relevantes para a seleção e uso de livros
locativos.
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Figura 10. Interface em que apresenta informação de
Tanukis
caputarados e faltantes
Fonte: prints realizados pelos autores a partir do
app
Uramado RA
.
Uma última questão diretamente relacionada à narrativa diz respeito ao
acesso da história quando o leitor não está
in loco
é se o app oferece um modo
sofá. O modo sofá não significa disponibilizar a obra na íntegra para a leitura de
casa, o que comprometeria o sentido de uma narrativa locativa, mas permitir que
o artefato possa ser revisitado de alguma forma também fora do espaço físico no
qual está vinculado de modo que seu uso não se torne absolutamente
evanescente. No caso, Umarado AR continua a disponibilizar os Tanukis já
destravados e suas histórias, o que é uma solução simples e eficiente, mas não há
nenhum conteúdo extra ou atualização para além daqueles vistos na visita ao
Parque Lage, o que também salienta um item a ser considerado para a seleção de
outros projetos quando é sabido que nem sempre é possível levar a criança ao
espaço-chave da história.
e) Aspecto relacionados aos recursos tecnológicos
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Quanto aos recursos, é recomendável que histórias locativas possam
explorar interfaces multimodais simultaneamente: interfaces gráficas, háptica e de
som. Uramado AR não apresenta recursos sonoros, portanto não permite uma
experiência sensorial mais completa, não indo além dos modos visual e háptico
a partir das animações dos personagens na interface de realidade aumentada. Isso
impede associar som à interface gráfica para os momentos em que a criança está
ao ar livre e tem problemas com ou não pode visualizar a tela do dispositivo para
ter acesso à história, o que pode ocorrer por motivos simples, como a incidência
da luz solar que dificulta a visão da tela ou, até mesmo, momentos em que deve
prestar mais atenção ao deslocamento pelo espaço urbano. Ainda, no que diz
respeito às interfaces, não foi possível avaliar se, como foi recomendado pela
pesquisa anterior, possibilita adequação da realidade aumentada para dispositivos
móveis com câmeras de baixa qualidade ou telas com iluminação insuficiente em
cenários externos. Isso porque a pesquisa de campo foi conduzida apenas em um
aparelho iPhone 8 S que
,
apesar de não tão moderno (lançado em 2017) possui
uma câmera de 12 mega pixels e um
display
de tela de 5,5 polegadas, o que
significa uma boa resolução de captura e uma tela relativamente boa para
visualização.
O app
em questão aproveita dos sensores internos do telefone móvel como
fonte de informação para a narrativa locativa, mas não se baseia em geolocalização
por GPS, utiliza do sensor da câmera para a leitura dos Tanukis adesivados pelo
cenário e, por meio de giroscópio, acelerômetro, barômetro aplica o personagem
animado, inclusive com as devidas perspectivas e angulações conforme inclinação
do dispositivo sobre a captura de vídeo do dispositivo. Outros recursos, como
usar adequadamente fontes de informação e mídias externas para enriquecer as
histórias com informação geográfica, que dizem respeito a, por exemplo, usar
bases de dados ou sistemas de softwares/apps externos (eg. Google Maps), não
ocorrem no caso analisado. Por um lado, isso torna seu sistema locativo muito
simples para uso e, portanto, mais confiável. Por outro lado, isso impede que
ofereça um mapeamento ou direcionamento claro para o leitor de onde
encontrar os Tanukis que faltam. Por não depender da geolocalização, Uramado
AR mitiga problemas decorrentes da precisão do GPS ou sinal fraco para evitar
experiências frustrantes, mas não oferece notificações de interação e feedbacks
como recursos de segurança e orientação enquanto o usuário caminha em
espaços urbanos. Esse último aspecto é compensado pelo fato de a experiência
ocorrer dentro de um espaço fechado, sem grandes fluxos de veículo e com
apenas uma saída – fato que oferece relativa segurança, exceto quando
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considerado que alguns dos Tanukis foram alocados junto à área de
estacionamento.
Figura 11. Tanuki em lata de lixo disposta no estacionamento
.
Fonte: fotografias feitas opelos autores.
Por fim, quanto à recomendação e cuidado na oferta de recursos
tecnológicos em livros infantis locativos, faltou ao app Uramado AR fornecer
mapas interativos que apoiem a localização dos pontos de interesse e, por
consequência, fornecer um ajuste dinâmico da escala do mapa de modo a facilitar
visualizações rápidas durante a jornada. Especialmente por não fornecer um
mapa, o artefato gerou uma demanda muito maior de tempo para cumprir as
tarefas, podendo até mesmo impossibilitar alguns usuários/leitores de encontrar
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todos os Tanukis, comprometendo, assim, a apreciação completa dos conteúdos
da obra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Especialmente no que se refere às tecnologias locativas, estas são recursos
que têm sido gradativamente incorporados aos livros infantis digitais, uma vez que
estes estão migrando cada vez mais para os dispositivos de interação móveis,
incorporando recursos de geolocalização, realidade virtual e aumentada, entre
outros. Pode acontecer, por exemplo, em aplicativos que dão acesso a novos
conteúdos e informações da história à medida que o usuário se desloca ou
interage com pontos de interesse presentes no espaço urbano. Acredita-se que a
mobilidade dos dispositivos eletrônicos de leitura pode ser projetada para
revolucionar a forma como se realiza a leitura digital e que pode estabelecer novos
formatos de se conectar as histórias com os espaços urbanos e até mesmo
oferecer formas de imersões interativas com grande potencial criativo e
expressivo na literatura infantil digital.
Os livros infantis locativos podem permitr a criação de narrativas situadas
que podem promover a interação das crianças com o espaço urbano e oferecer
uma estratégia de reinserção e ressocialização em um cenário pós-pandêmico,
levando em consideração a incorporação dos dispositivos móveis, como
smartphones
, no cotidiano, inclusive educacional, revertendo seu efeito de uso
privado para o retorno às atividades presenciais e reocupação dos espaços.
Considerando a migração forçada das atividades para plataformas e ferramentas
digitais causada pela pandemia da COVID-19 – deve-se ter em conta ainda as
proporções de desigualdade no acesso à literatura e à tecnologia, que não
ocorrem de forma homogeneizada entre a população.
Nesta confluência entre a Literatura Infantil e as tecnologias locativas, o
que denominamos livros infantis locativos ou histórias locativas têm apresentado
uma gama de novos recursos, como também desafios, que demandam novos
modelos de seleção e utilização, tendo em vista que tendem a ser percebidos
complexos ou pouco familiares às crianças leitoras e, especialmente, aos
educadores e adultos mediadores. Também devem ser levados em consideração
os efeitos colaterais do uso de artefatos como estes, que coletam, analisam e
podem compartilhar informações dos usuários e por em risco sua segurança, o
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que chamamos de dataficação ou, ainda, os problemas em torno da utilização
destes artefatos em espaços de circulação de pessoas e automóveis e os riscos que
esses contextos trazem.
A partir do levantamento bibliográfico e discussão do estado da arte e,
especialmente utilizando de recomendações para o design de livros infantis
locativos identificados na pesquisa anterior de Menegazzi e Tarachucky (2020),
uma última contribuição desse artigo está em fornecer um roteiro que possa servir
para a seleção de experiências literárias significativas para crianças. Conforme
sistematicamente demonstrado na análise do app Uramado AR, a lista original de
recomendações serviu como um guia funcional para orientar a maioria dos
recursos e para identificar problemas na utilização de um livro infantil locativo
.
Contudo, alguns itens especialmente relacionados ao processo de design destes
artefatos demonstraram não ser aplicáveis em um estudo de usuário e de
recepção. Ainda, outros aspectos não considerados anteriormente apresentaram-
se importantes de serem considerados para a formulação do roteiro, como, por
exemplo, tratar de questões de multiculturalidade. Assim, o roteiro abaixo
apresentado é trazido de forma sistematizada de modo a facilitar sua visualização
e utilização (Quadro 1):
Quadro 1. Roteiro para avaliação e uso de livros infantis locativos
.
Fonte: dos autores.
Objetivos Gerais dos Livros Infantis Locativos
I. Se trata de uma obra literária? Apresenta uma história ou um conjunto de
histórias que guiam a experiência situada?
II. Estimula a criança a interagir com espaços físicos internos ou externos, urbanos
ou naturais?
III. Promove experiências literárias situadas envolvendo o patrimônio local, rotas
turísticas, atividades educativas, ficção situada ou atividades lúdicas em
movimento?
Aspectos relacionados às crianças
I. Envolve a criança em observações do mundo real?
II. Apresenta estratégias para promover a participação parental?
III. Deixa claro a política de coleta de dados e se os utiliza ou compartilha para
outras finalidades? Solicita consentimento/aprovação de um responsável?
IV. Oferece segurança para os dados dos usuários?
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Aspectos relacionados ao espaço urbano
I. A história está relacionada com pontos de interesse do espaço urbano?
II. Usa pontos de interesse do espaço urbano como elemento da narrativa?
III. Oferece uma camada lúdica para deslocamentos ou destinos das crianças?
Aspectos relacionados à narrativa
I. Promove ou valoriza histórias/narrativas/assuntos locais?
II. Explora na experiência situada o multiculturalismo?
III. Oferece conteúdos ou atividades também para o modo sofá?
IV. Oferece alternativas para usuários interessados em deliberadamente não seguir o
caminho da história principal?
V. Encoraja de forma viável a finalização da rota da história?
VI. Permite o acesso da narrativa prevendo segmentação e quebras na linearidade de
acordo com a movimentação do leitor pelos espaços?
Aspectos relacionados aos recursos tecnológicos
I. Oferece experiências sinestésicas por meio das interfaces multimodais
simultaneamente: interfaces gráficas, táteis e de som?
II. Faz uso dos sensores internos do telefone móvel como a primeira fonte de
informação para o sistema (eg. GPS, giroscópio, acelerômetro, barômetro e
profundidade da câmera e sensores, realidade virtual e/ou aumentada, leitor de
QR code)?
III. Quando utiliza de informação de mídias externas para enriquecer as histórias
com informação geográfica (e. g., APIs), isso ocorre de um modo facilitado e
seguro ao leitor?
IV. Oferece orientações de segurança enquanto o usuário caminha por espaços
urbanos? Isso acontece por meio de recursos multimodais (eg. alertas de som)
ou apenas na interface gráfica?
V. Utiliza de recurso multimodal (eg. áudio), para problemas de visualização da tela
em cenários externos?
VI. Oferece recursos disponíveis mesmo em dispositivos com baixa qualidade ou
resolução de câmera
VII. Prevê problemas decorrentes da precisão do GPS ou sinal fraco para evitar
experiências frustrantes (eg. permitir que a localização atual seja definida
manualmente)?
VIII. Fornece mapas que apoiem a localização dos pontos de interesse e dos
conteúdos da narrativa dispostos no espaço urbano?
IX. Fornece formas facilitadas de visualizar e ajustar o mapa às necessidades de
visualização do leitor (como mudar escala, etc.)?
123
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É importante salientar que o guia apresentado é resultado de apenas um
estudo de campo, uma versão
beta
que esperamos que sirva como ponto de
partida para novas atualizações e desdobramentos de pesquisas. Note-se, ainda,
que cabe ao utilizador desse guia avaliar quais e quantos dos aspectos acima
citados são imprescindíveis para a experiência situada que deseja oferecer à
criança.
Para além dos agentes vinculados à recepção dos livros digitais, esperamos
também que essa pesquisa pode contribuir para o trabalho de desenvolvedores,
editores e produtores destes novos formatos de literatura para a infância.
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Recebido em 02 de fevereiro de 2022
Aprovado em 11 de abril de 2022