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um estudo pancrônico sobre o verbo “lacrar” a partir
dos processos de semanticização, lexicalização,
gramaticalização e discursivização
“”
, ,
Vanessa Leme Fadel Steinhauser| Laes | vanessalemefs@hotmail.com
Universidade Estadual de Maringá
Resumo: Este trabalho busca traçar um mapa processual do verbo “lacrar” em portu-
guês, já que diversos aspectos sócio-históricos zeram com que fossem acrescidas novas
semânticas a esse verbo. Ao se considerar a língua como um sistema complexo, dinâmi-
co e processual por natureza, adota-se uma abordagem multissistêmica (cf. CASTILHO,
2016) para se fazer um estudo pancrônico, em que se vê o dispositivo sociocognitivo
(DSC) afetando todos os sistemas linguísticos (discursivo, semântico, lexical, gramati-
cal). A priori, “lacrar”, em seu sentido denotativo, signicava apenas o ato de fechar/selar
produtos, objetos e lugares, como em: (i) Operação lacra cinco agências. Com o advento
das novas tecnologias, “lacrar” passou por um processo de semanticização, fazendo com
que, hoje, se possa interpretar esse verbo como sinônimo de “arrasar”/“ir bem em algo”,
como pode ser visto em: (ii) Khloé lacrou com look dourado. Por ser um verbo, “lacrar”
permaneceu com suas exões originais. Contudo, o número de ocorrências com a 1a pes-
soa (singular ou plural) aparenta ser menor do que com a 3a (ele/ela), o que indica um
processo de gramaticalização, já que uma das formas se sobressai. Ademais, discute-se
o processo de lexicalização no verbo “lacrar”, dado que novas palavras foram surgindo
por derivação, como é o caso do substantivo “lacração” e do adjetivo “lacrador(a)”. Por
m, questiona-se ainda o processo de discursivização atuante nessa expressão, já que ela
parece ser mais utilizada para encerramento dos turnos e dos discursos, podendo operar,
portanto, como um marcador discursivo de encerramento.
Palavras-chave: Verbo “lacrar”; Estudo pancrônico; Aspectos sócio-históricos.
Abstract: is work seeks to draw a procedural map of the verb “lacrar” in Portuguese,
because several socio-historical aspects caused new semantics to be added to this verb.
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When considering language as a complex, dynamic and procedural system by nature,
a multisystem approach is adopted (cf. Castilho, 2016) to make a panchronic study, in
which the socio-cognitive device (CSD) is seen aecting all systems linguistic (discur-
sive, semantic, lexical, grammatical). A priori, “lacrar”, in its denotative sense, meant only
the act of closing / sealing products, objects and places, as in: (i) Operação lacra cinco
agências. With the advent of new technologies, “lacrar” went through a process of seman-
ticization, making it possible today to interpret this verb as a synonym for “rocking” / “do-
ing well in something”, as can be seen in: (ii ) Khloé lacrou com look dourado. Because it is a
verb, “lacrar” remained with its original inections. However, the number of occurrences
with the 1st person (singular or plural) appears to be less than with the 3rd person (he
/ she), which indicates that we have a grammaticalization process here, since one of the
forms stands out. In addition, the lexicalization process is discussed in the verb “lacrar”,
given that new words have emerged by derivation, as is the case with the noun “lacração”
and the adjective “lacrador (a)”. Finally, the discursivization process active in this expres-
sion is also questioned, since it seems to be more used to end shis and speeches, and can
therefore operate as a discursive closure marker.
Keywords: Ver b “lacrar”; Panchronic study; Socio-historical aspects.
Introdução
Segundo os historiadores, pensar o presente é pensar o passado no presente. Por
essa razão, torna-se viável substituir a antinomia saussuriana sincronia/diacronia pelo
conceito de pancronia, em que se nota a convivência de estruturas do passado com estru-
turas do presente.
Considerando os usos socialmente congurados, a abordagem multissistêmica
entende a língua como pancrônica e adota uma explicação linguística que privilegie o
funcionamento da língua em todo processo de inovação, difusão, mutação e integração
linguística.
Partindo dessa ideia, o presente estudo almeja discorrer sobre os processos multis-
sistêmicos e as motivações sócio-históricas que zeram com que “lacrar” ganhasse mais
um sentido, que se destoa, até certo ponto, de sua carga semântica original (fechar), po-
rém convive com ela. Esses usos podem ser exemplicados a partir das seguintes senten-
ças:
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(1) “Se o alvará dos bombeiros venceu, cabe à prefeitura lacrar a boate”
(2) “Cês já viram quem vai reinar, protagonizar, pisar, lacrar e humilhar, né? Isso
mesmo, BÁRBA!!!”
Em (i), tem-se o verbo “lacrar” carregando o seu sentido original, que corresponde,
portanto, ao ato de fechar com lacre algo ou alguma coisa. Já em (ii), vê-se um novo sen-
tido sendo atribuído ao mesmo verbo, o qual pode ser substituído facilmente por outro
verbo de mesma carga semântica, como “arrasar”, por exemplo. Além dessas constata-
ções, novas palavras foram surgindo no vocabulário popular a partir desse verbo, como é
o caso do adjetivo “lacrador(a)” e do substantivo “lacração”, o que nos revela a existência
de múltiplos processos intra e extralinguísticos na criação, na atuação e na propagação
desses termos.
Tomando essas observações como ponto de partida, espera-se, com este estudo,
investigar como se deu a origem desse verbo e sua manifestação nos diferentes setores/
discursos da sociedade. Para tanto, traça-se um mapa processual, a partir da abordagem
multissistêmica de Castilho (2016), que indica quais motivações desencadearam o apa-
recimento dessas estruturas. Ademais, faz-se uma análise quanti-qualitativa em um corpus
consagrado nacionalmente (Corpus do Português Now), de modo que, assim, se possa
comprovar o comportamento e a solidicação dessas estruturas na história social do por-
tuguês brasileiro.
Até o presente momento, sabe-se que “lacrar” (arrasar) originou-se no grupo
LGBTQIA+ e, hoje, embora seja usado por outros setores da sociedade, serve principal-
mente para se referir a uma mulher ou a algo feito por uma mulher. Há, portanto, um
caráter social bastante intrínseco ao uso desse verbo e de suas variantes, já que são termos
usados preferencialmente por minorias1, seja no campo da moda, da cultura pop, da po-
lítica, do jornalismo e das mídias digitais. Agora, resta saber se, mesmo com os estigmas
sociais, “lacrar” veio para car ou, assim como outros termos, está com seus dias de glória
contados.
1 Pressupostos teóricos
1.1 Abordagem multissistêmica
Por ser um conjunto articulado de processos dinâmicos, a língua varia no tempo,
no espaço e no contexto social e textual de uso. Ela é o somatório dos usos concretos
1 É importante esclarecer que uma minoria não está sempre em menor número na sociedade, mas em
desvantagem social perante um grupo maioritário.
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historicamente situados. Em suma, a língua é um instrumento de comunicação que ser-
ve diretamente a uma atividade social, seja para sanar tarefas instrumentais, regulatórias,
interacionais, pessoais, heurísticas, imaginativas ou representativas (HALLIDAY, 1973).
Nesse sentido, a linguagem é um sistema complexo, processual por natureza, mu-
tável e, até certo ponto, imprevisível, “deslocando-se como pêndulos para lá e para cá”
(CASTILHO, 2016, p. 61). A língua passa a ser compreendida como a junção não hie-
rárquica/sequencial de produtos e processos, que interagem simultânea, dinâmica e mul-
tilinearmente. Os agentes desse sistema reconsideram constantemente sua atuação, de
acordo com as motivações internas e externas que estão em competição (cf. DUBOIS,
1985) e que, por extensão, pressupõem o uso.
Para desenvolver este estudo, adotou-se a abordagem multissistêmica funciona-
lista-cognitivista (CASTILHO, 2008, 2016), em que se vê o dispositivo sociocognitivo
(DSC) afetando todos os sistemas linguísticos (discurso, semântica, léxico, gramática).
Esses sistemas não se dão por processos hierárquicos, mas coexistem na língua. De acordo
com Castilho (2016, p. 69), existem alguns postulados que caracterizam essa abordagem:
(1) a língua se fundamenta num aparato cognitivo; (2) a língua é uma
competência comunicativa; (3) as estruturas linguísticas não são
objetos autônomos; (4) as estruturas linguísticas são multissistêmicas,
ultrapassando os limites da gramática; (5) a explicação linguística deve
ser buscada numa percepção pancrônica da língua.
O aparato cognitivo-funcional evidencia, portanto, esse caráter comunicativo e in-
terativo da língua, em que se prevê a dinamicidade do sistema linguístico e sua reade-
quação diante das pressões do uso. O uso faz com que, ao longo do tempo, as estruturas
possam se reelaborar, por meio dos processos multissistêmicos, já que:
As línguas são o resultado de complexa evolução histórica e se
caracterizam, no tempo e no espaço, por um feixe de tendências que se vão
diversamente realizando aqui e além. O acúmulo e a integral realização
delas depende quer de carências do próprio sistema linguístico, quer de
condições sociológicas, pois, como é sabido, a estrutura da sociedade é
que determina a rapidez ou a lentidão das mudanças. (SILVA NETO,
1977, p. 52).
Castilho (2016) defende duas formas de se entender a língua: (i) como um con-
junto de processos, (ii) como um conjunto de produtos. Enquanto um processo, pode-se
dizer que a língua “é um conjunto de atividades mentais, pré-verbais, organizáveis num
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multissistema operacional” (CASTILHO, 2016, p. 77). Destarte, sob o viés processual,
articula-se a língua em quatro domínios: lexicalização, semanticização, discursivização e
gramaticalização. Tais domínios operam simultânea, dinâmica e multilinearmente.
Já sob a ótica da língua enquanto produto, avaliam-se os sistemas: léxico, discurso,
semântica e gramática. A língua é apresentada assim como “um conjunto de categorias
igualmente organizadas num multissistema” (CASTILHO, 2016, p. 77). Assim como os
processos, esses sistemas não se apresentam hierarquicamente, isto é, não há sistemas
centrais e periféricos – “qualquer expressão linguística exibe ao mesmo tempo caracterís-
ticas lexicais, discursivas, semânticas e gramaticais” (CASTILHO, 2016, p. 77).
Constata-se, assim, que os princípios sociocognitivos administram os sistemas lin-
guísticos, certicando sua integração de acordo com os propósitos comunicativos do uso.
O discurso (DSC) faz com que o falante ative, reative e desative propriedades lexicais,
semânticas, discursivas e gramaticais no momento da criação dos enunciados. Os fa-
tores sócio-históricos tornam-se, desse modo, peças fundamentais para a mutabilidade
constante da língua, tanto em seus sistemas quanto em seus processos. Palavras surgem,
ganham vida, ou apenas são “readequadas” ao uso ao longo do tempo e do contexto so-
ciocultural.
A partir desses pressupostos teóricos, investigam-se agora os processos que tornam
a língua articulada e dinâmica, visto que o enfoque central deste estudo recai sobre os
processos que levaram a uma nova constituição do verbo “lacrar” a partir dos fatos sócio-
-históricos.
1.2 Lexicalização
De acordo com as premissas de Castilho (2016, p. 110), o léxico “é um inventário
de categorias e subcategorias cognitivas e de traços semânticos inerentes”. A partir desse
inventário, criamos as palavras, por meio do processo de lexicalização, que é:
a criação das palavras em que expressamos essas categorias e seus traços
semânticos, transformando impulsos mentais em ondas sonoras, num
mecanismo ainda bastante obscuro. [...] A lexicalização é o processo por
meio do qual conectamos o léxico, entendido como um inventário pré-
verbal, ao vocabulário, entendido como um inventário pós-verbal, um
conjunto de produtos concretos, ou seja, as palavras. (CASTILHO, 2016,
p. 110)
Durante a lexicalização, categorias cognitivas podem ser ativadas (por etimologia,
neologismo, empréstimo), reativadas (por derivação lexical: junção de prexos e suxos
a um radical; e composição lexical: junção de radicais) ou ainda desativadas (o que cor-
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responde ao desuso de certos termos). Isso mostra que as palavras e suas propriedades
estão direta e dinamicamente ligadas às situações concretas de uso da língua.
Para se vericar o processo de lexicalização, torna-se viável também buscar deni-
ções lexicográcas sobre o sentido das palavras comumente estabelecido na sociedade,
adentrando no campo sociocognitivo que trate da origem da palavra e de sua consolida-
ção no espaço social. Essas denições exploram a denotação (extensão signicacional da
palavra) e a conotação (intensão e compreensão), o que faz ver que “a lexicalização é um
processo negociado ao longo das interações linguísticas” (CASTILHO, 2016, p. 110).
1.3 Semanticização
De acordo com Castilho (2016, p. 122), “a semântica é o sistema através do qual
criamos os signicados”. Nesse viés, a semanticização é o processo de criação dos senti-
dos, gerenciado pelo dispositivo sociocognitivo (DSC). Para estudar esse processo, ado-
ta-se uma análise acerca do sentido lexical, do signicado gramatical e da signicação
pragmática. Por meio da ação do DSC no sistema da semântica, podem-se ativar, reativar
ou desativar sentidos.
A ativação semântica (semanticização) faz com que novos sentidos sejam criados a
partir das categoriais semânticas de: dêixes e foricidade, referenciação, predicação, veri-
cação, conectividade, inferência e pressuposição, metáfora e metonímia. Em se tratando
especicamente deste trabalho, volta-se o olhar para as duas últimas categoriais mencio-
nadas.
No que tange à metáfora, Lako e Johnson (2002) reiteram seu caráter conceitual e
sua propagação enquanto mecanismo cognitivo básico. Para os autores, pode-se entender
uma metáfora por meio do domínio de experiência de outro termo. Seguindo essa visão,
a metáfora é “a projeção de um conjunto de correspondências entre um domínio-fonte e
um domínio-alvo” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, apud CASTILHO, 2016, p. 132).
Lako e Johnson (2002) classicaram as metáforas com base nos domínios aos
quais elas se conguram. Nesse viés, têm-se: as metáforas imagéticas (voltadas às ima-
gens visuais do domínio-fonte); as metáforas ontológicas (entidades criadas por meio da
própria metáfora); as metáforas estruturais (em que se compara o domínio-fonte a uma
entidade física); e as metáforas orientadas (relacionadas à localização espacial do domí-
nio-fonte).
Já no que concerna à metonímia, vê-se a alteração de sentido de uma palavra por
meio da migração de traços contidos na expressão linguística. Ela consiste, assim, no uso
de uma palavra fora de seu contexto semântico “normal”, em virtude de possuir alguma
relação com o conteúdo ou o referente. Essa relação pode ser objetiva, material, concei-
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tual ou de contiguidade.
1.4 Discursivização
Mediante as premissas de Castilho (2016), tem-se que o DSC atinge ainda o siste-
ma do discurso por meio do processo de discursivização, que se refere à criação de textos.
Porém, antes de tratar desse processo, é importante destacar a noção do autor acerca de
discurso:
O discurso é aqui entendido como o conjunto de negociações em
que se envolvem o locutor e o interlocutor, através das quais (i) se
instanciam as pessoas de uma interação e se constroem suas imagens;
(ii) se organiza a conversação através da elaboração do tópico discursivo,
dos procedimentos de ação sobre o outro ou de exteriorização dos
sentimentos; (iii) se reorganiza essa interação através do subsistema de
correção sociopragmática; ou (iv) se abandona o ritmo em curso através
de digressões e parênteses, que passam a gerar outros centros de interesse.
(CASTILHO, 2016, p. 133)
Assim como nos outros processos, tem-se a ativação, a reativação e a desativação.
No sistema do discurso, a discursivização gera unidades discursivas e parágrafos por meio
da hierarquização dos tópicos e de sua conexão. A rediscursivização promove a coesão
textual pela repetição dos enunciados, na correção e no parafraseamento. Já a desdiscur-
sivização refere-se ao abandono da hierarquia tópica, abrindo portas aos parênteses e às
digressões.
Ainda sobre o processo de discursivização, vale ressaltar a constituição dos mar-
cadores discursivos no processo de interação verbo-social. Partindo das premissas de
Marteloa et al. (1996), pode-se classicar os marcadores discursivos como aqueles que
atuam fora do nível textual; os operadores discursivos, por sua vez, agiriam no nível textu-
al. Valle (2000) explora essa divisão para armar que aqueles que atuam no nível textual
passariam por processo de gramaticalização, enquanto os que exercem função extratextu-
al seriam encaixados no processo de discursivização, por serem embriagados por fatores
pragmáticos e por focos interativos.
1.5 Gramaticalização
A gramaticalização se relaciona à ação do DSC no sistema da gramática e refere-se:
ao sistema linguístico constituído por estruturas cristalizadas ou em
processo de cristalização, dispostas em três subsistemas: (i) a fonologia,
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que trata do quadro de vogais e consoantes, sua distribuição na estrutura
silábica, além da prosódia; (ii) a morfologia, que trata da estrutura da
palavra; (iii) a sintaxe, que trata das estruturas sintagmática e funcional da
sentença (CASTILHO, 2016, p. 138).
Tomando como aparato as contribuições funcionalistas acerca da concepção de
gramática como uma entidade a posteriori, isto é, formada por um conjunto de regras
provenientes do discurso e observáveis no uso, entende-se que o processo de gramatica-
lização pode se dar por ativação, reativação ou desativação.
Mediante as palavras de Castilho (2016, p. 163), vê-se que, ao se ativarem as pro-
priedades gramaticais, tem-se o processo de gramaticalização (puro), o qual forma os
sintagmas, as sentenças, a ordem dos constituintes, a concordância e o arranjo da estrutu-
ra argumental. Por outro lado, ao se reativarem essas propriedades, produz-se a regrama-
ticalização/reanálise, a qual pode alterar uma classe gramatical e atribuir novas funções
sintáticas, por meio de mudanças nas fronteiras sintáticas de sintagmas e sentenças. Por
m, ao se desativarem as propriedades gramaticais, tem-se a desgramaticalização, a qual
refere-se à perda da função categoria vazia.
Corpus e metodologia
A língua não se limita a uma visão sistêmica e estrutural do código linguístico; ela
é dinâmica, heterogênea, ideológica e corrente. É, portanto, um mecanismo social de co-
municação que envolve a interação entre o eu e o outro, sendo um espaço discursivo
propenso à prática social, às novas descobertas, à construção dos sujeitos socialmente, à
formação de ideias e signicados. Portanto, “o sentido da linguagem está no contexto de
interação verbal, e não no sistema linguístico” (PANÁ, 2008) apenas.
Pensando nisso, neste estudo, optou-se por uma metodologia tipológica de inves-
tigação teórico-especulativa, de natureza quanti-qualitativa que assume uma perspectiva
interpretativista de condução, já que se busca entender, analisar e interpretar fenômenos
inseridos em um contexto (BORTONI-RICARDO, 2008). Adotando um paradigma
pós-positivista de investigação, fez-se uso do realismo crítico para a realização de um es-
tudo pancrônico que abarcasse a Abordagem Multissistêmica da Língua (CASTILHO,
2016).
Em novembro de 2019, os dados foram coletados do Corpus do Português NOW
(Notícias na Web), que contém aproximadamente 1,4 milhões de palavras de jornais e
revistas online de grande circulação nacional, de 2012 até a atualidade. Esse corpus foi
escolhido por apresentar textos que transmitem informações a um público diversicado,
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o que confere, consequentemente, uma ampliação do olhar linguístico diante do objeto
de análise, já que as escolhas linguísticas empregadas nos textos jornalísticos podem estar
atreladas à nalidade e ao contexto sociocultural de produção e recepção desses textos.
Ao se pensar na constituição do verbo “lacrar” com sua nova carga semântica, não
se pode reetir apenas sobre os fatores linguísticos, mas também sobre os aspectos socio-
culturais envolvidos na formação e propagação desse verbo e de suas variantes. Por essa
razão, realizou-se uma análise quanti-qualitativa sócio-histórica que traçou brevemente a
história social desse verbo no português brasileiro (PB), com base nos dados computa-
dos.
A priori, calculou-se o número de ocorrências do verbo “lacrar” no innitivo, no
gerúndio e no particípio, em seus dois sentidos (fechar e arrasar). Depois, investigou-se
o sentido empregado pelo verbo conjugado no presente e no pretérito perfeito do modo
indicativo, devido à grande ocorrência dessas formas nas redes sociais. Destarte, veri-
cou-se o comportamento dos adjetivos e dos substantivos derivados dos processos mul-
tissistêmicos já descritos, como é o caso de “lacrador”, “lacradora” e “lacração”, de modo
a se perceber o número de ocorrências abrangendo o sentido original (fechar) e o sentido
“novo” (arrasar).
Análise quanti-qualitativa sócio-histórica
Antes de iniciar uma análise dos dados computados neste estudo, torna-se váli-
do indagar o real sentido de “lacrar”. Para tanto, leia-se esse trecho adaptado de Araújo
(2017, s. p.):
Como o lacre, a treta virou símbolo linguístico dos novos tempos
conagrados, nos quais o outro deixa de ser alguém e passa a ser mais
um rosto perdido no pântano da internet. Shakespeare tretava e lacrava.
Drummond nem se fala. Clarice tretava uma treta de raiz e não essas
Nutella. E lacrava, ô se lacrava! Se o mundo, letrado ou iletrado, já tretava
e lacrava antes de saber o que eram essas coisas, o que lacrar quer dizer
hoje? Somos uma nação virtual que lacra e treta. Tretar e lacrar são
faces da mesma moeda. Tretar está para o conteúdo como lacrar para a
performance. Normalmente são vistos juntos, mas é possível tretar sem
performar e performar sem tretar. Caso raro, mas existe. (Adaptado de
AÚJO, 2017, s. p.).
Partindo dessa visão de “lacre”, torna-se pertinente descobrir a história por trás desse
verbo. “Lacrar”, no sentido de “arrasar”, teve sua origem na comunidade LGBTQIA+, assim
como “sambar” e “tombar”. Segundo Mendonça, pesquisador da UFMG, essa expressão
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“era usada em lugares como casas de festas, para expressar algo absolutamente diferente e
arrebatador. Podia referir-se a uma performance muito bem executada no palco ou a produ-
ções de moda e maquiagem impactantes” (MENDONÇA, 2019, apud VANINI, 2019, s.p).
Porém, a gíria caiu de fato no vocabulário de muitos brasileiros por meio de um ví-
deo publicado pela youtuber Romagaga, em 2013. Sobre isso, Vanini (2019) explica que:
Os relógios ainda marcavam as primeiras horas do dia 13 de dezembro de
2013 quando uma bomba musical explodiu na internet. Beyoncé pegou
o mundo inteiro de surpresa ao lançar, sem anúncio prévio, um álbum
de inéditas que levava o seu nome. Como tudo que cai na rede é meme,
as reações mais inusitadas pipocaram imediatamente. Entre elas estava o
vídeo “Novo álbum da Beyoncé lacrou o c... de todas as inimigas!”, em que
Romagaga aparecia exaltando, aos berros, o feito da diva pop. “Beyoncé
samba, tá querida? Beyoncé reina! Beyoncé... lacra”, dizia ela, adicionando,
a partir daquele momento, a expressão “lacrar” e suas derivações ao
vocabulário de muitos brasileiros. (VANINI, 2019, s.p)
Em seus vídeos no YouTube, Romagaga não somente utilizava o verbo “lacrar” no
innitivo, como também a terceira pessoa do singular do presente (lacra) e do pretérito
perfeito (lacrou), como em: (i) “O novo álbum, querida, lacrou, rompeu carreiras, meu
amor!”; (ii) “Ania com Roberto Carlos lacrou o ano de 2013. 2013 já pode acabar, tá,
querida?! Porque Ania já sambou, arrebentou, humilhou, lacrou [...]”; (iv) “Beyoncé
lacra, samba”.
Em 2014, Romagaga continuou publicando seus vídeos e obtendo fama por meio
dos bordões, o que fez com que ela saísse em turnê com seu Lacra Tour. No mês de outu-
bro desse mesmo ano, a youtuber lança o seu videoclipe “Eu vou lacrar o teu piri*”. Com
esse vídeo, Romagaga alcançou famosas, como Ania, que compartilhou o clipe em suas
redes sociais.
Nesse vídeo, a youtuber “lacra” usando o verbo e novas palavras derivadas dele.
Isso pode ser vislumbrado com os seguintes trechos da canção: (i) Eu vou lacrar com a
tua cara; (ii) Eu lacro tudo sim; (iii) Sou lacração pras inimigas; (iv) Sou lacradora, sim.
A partir desse e dos demais vídeos publicados em seu canal, o verbo “lacrar” atingiu um
número gigantesco de pessoas, seja diretamente pela Romagaga, ou indiretamente, graças
às redes e às mídias sociais.
Em um primeiro momento, entende-se que o termo foi sendo popularizado na co-
munidade LGBTQIA+, já que esse era o público-alvo da youtuber em suas redes sociais.
Contudo, com a tecnologia e a propagação da informação pelas mídias digitais, o verbo
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ganhou destaque na internet, fazendo com que pessoas de outros grupos também ade-
rissem ao termo, empregando-o ora como meme ora como elogio para se referir à perfor-
mance de cantores, à roupa de apresentadores, ao discurso de atores, ou ainda ao posicio-
namento de marcas famosas.
Além de estarem presentes em músicas de cantores(as) famosos(as) nacional e in-
ternacionalmente – a exemplo da música “Lacradora”, de Claudia Leie – e no linguajar
da maioria dos jovens, tais palavras já podem ser vistas no vocabulário de indivíduos de
diferentes setores da sociedade, como professores, políticos e jornalistas. Isso é extrema-
mente signicativo, pois mostra a propagação desses termos e, de certa forma, quebra
paradigmas, já que um verbo que se originou na comunidade LGBTQIA+ hoje transita
por diferentes grupos sociais.
Como forma de sistematizar os dados computados ao longo deste estudo, optou-se
por separá-los por grupos, de modo que se pudesse analisar o número de ocorrências do
verbo “lacrar” com sua carga semântica original – fechar (S 1) e com sua carga semântica
nova – arrasar (S 2). Para iniciar a análise, tem-se o gráco a seguir, que traz um panorama
das formas nominais encontradas a partir do verbo “lacrar” no innitivo, no gerúndio e
no particípio.
Gráco 1: Formas nominais do verbo “lacrar”
Fonte: Elaboração pela autora.
Diante desses dados, podem-se constatar algumas situações particulares que levam
a crer que, mesmo com o uso ainda bastante recorrente do verbo “lacrar” com seu senti-
do original de “fechar” estabelecimentos, envelopes e produtos, houve um crescimento
considerável do uso desse verbo em contextos que pedem a carga semântica 2, isto é,
relacionados ao ato de “arrasar”, “obter sucesso”. Isso se deu graças ao processo de seman-
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ticização, já que, com o advento das novas tecnologias e com a “miscigenação” dos grupos
sociais, um termo que antes era utilizado apenas por um grupo social (a comunidade
LGBTQIA+) passou a ser adotado por diferentes grupos da sociedade. Assim, um verbo
que antes continha apenas uma única carga semântica (lacre+ar: lacrar → fechar com
lacre algo ou algum lugar) ganhou um novo sentido, fazendo com que, hoje, se possa in-
terpretar esse verbo também como sinônimo de “arrasar”.
Como se viu outrora, o processo de semanticização faz com que novos sentidos se-
jam criados/acrescidos. No caso do verbo “lacrar”, podem-se vericar duas categorias se-
mânticas atuando nesse processo: a metáfora e a metonímia. Em um primeiro momento,
sabe-se que a origem do verbo “lacrar” no sentido de “arrasar” se deu com os bordões da
youtuber Romagaga, a qual, por metáfora, armava que a cantora Beyoncé havia lacrado
o c* das inimigas ao publicar seu novo álbum. Com essa armação, a youtuber estabe-
leceu uma relação direta com o sentido original do verbo “lacrar”, isto é, “fechar”, pois,
quando uma pessoa diz “não passa nenhuma agulha no c*”, signica que ele está “fecha-
do” em virtude de a pessoa estar com medo ou com vergonha de algo. Isto posto, ao dizer
que Beyoncé havia lacrado o c* das inimigas, Romagaga quis dizer, metaforicamente, que
ela havia humilhado/superado/calado a boca das invejosas que, consequentemente, -
caram sem reação. Assim, a youtuber projetou um conjunto de correspondências entre o
domínio-fonte (lacrar: fechar) e o domínio-alvo (lacrar: arrasar).
Essa metáfora pode ser comprovada ao se notar que, em certos casos, embora a
carga semântica de “arrasar” seja mais forte que a de “fechar”, restam ainda fragmentos
imagéticos que permitem uma leitura dupla. Isso pode ser evidenciado coma seguinte
sentença: (a) “Ania com Roberto Carlos lacrou o ano de 2013. 2013 já pode acabar, tá,
querida?!”. Nesse exemplo, sabe-se que Ania arrasou em sua performance com Roberto
Carlos. Contudo, há também algum indício do domínio-fonte, id est, do sentido original
de “lacrar”, já que se entende que Ania e Roberto Carlos fecharam o ano com chave
de ouro, centrando/isolando as atenções para eles e, consequentemente, restringindo/
fechando o espaço dos demais com o seu “lacre”.
É válido salientar que o termo “lacrar” permite uma leitura mais ampliada dos va-
lores semânticos envolvidos, que pode partir das metáforas do domínio do espaço-mo-
vimento. Com base nos pressupostos de Lako e Johnson (2002), pode-se supor que
“lacrar” converge sentidos diversos que podem ser interpretados como uma espécie de
movimento em direção à denição de um padrão máximo de representatividade de um
agente [+humano] que demarca o expoente máximo de um uso que pode ser considera-
do ideal e venerável.
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Lacrar, originalmente, era uma ação ou um movimento caracterizado por ser físico
e concreto. Lacrar era fechar algo, selá-lo, guardá-lo com segurança; era o que se fazia com
a carta, com o malote, com a porta de algo que não poderia ser violado. Esse movimen-
to físico foi, por processo metafórico, transportado para o abstrato, de modo que uma
entidade [+ humana] passa a lacrar quando atinge o máximo, o seu ápice, podendo ser
considerado “venerável”.
Como lacrar coisas, a exemplo da carta, era nalizar a ação, postar e defender um
discurso (em rede social ou em outros contextos) torna-se encerrar o assunto. Esse pro-
cesso parece ser uma metáfora orientada (o assunto passa a car guardado “dentro” para
sempre), mas existe ainda um teor ontológico (o discurso defendido é tomado como um
objeto físico lacrável como uma carta ou um cofre). De qualquer forma, nesse processo,
há uma associação de dois domínios distintos, nos termos de Lako e Johhson (1980,
2002), que permite uma ampliação do uso de lacrar antes restrito. O processo de seman-
ticização continua, de modo que o que era “venerável” tornou-se uma espécie de ação de
“muito barulho por nada”, defender um discurso apenas para obter aplausos.
É bem interessante ver como um novo verbo construiu-se a partir do processo de
semanticização, carregando consigo as marcas do seu domínio-fonte. Porém, indo mais
além, vê-se que outra categoria semântica atuou (e atua) nesse processo: a metonímia.
A metonímia se justica, nesse caso, pois nota-se que o acréscimo de um novo sen-
tido ao verbo fez com que este fosse utilizado fora de seu contexto semântico “normal”.
Embora haja uma relação com o referente, o verbo é empregado em outras situações, de
modo que até suas propriedades linguísticas são afetas. O verbo “lacrar”, no sentido de
“fechar”, é bivalente, isto é, exige dois argumentos (alguém que lacra e o que é lacrado),
por exemplo: “O policial lacrou o estabelecimento”, ou ainda, “A mulher lacrou o envelo-
pe”. Já o verbo “lacrar” com o sentido de “arrasar” apresenta geralmente apenas a exigên-
cia de um argumento, sendo, portanto, monovalente, como é o caso de “Manu Gavassi
lacrou”. Quando a análise se debruçar para o caso dos verbos conjugados, voltaremos a
tratar da valência verbal.
Outro ponto de suma importância refere-se ao verbo no innitivo, já que o sentido
de “arrasar” passou a ser incorporado gradativamente nesse corpus a partir de 2014 e ga-
nhou mais destaque ao longo dos anos seguintes. Além disso, vale citar que, geralmente,
“lacrar” vem funcionando como complemento de um outro verbo, ou ainda como verbo
de uma oração subordinada adverbial reduzida ao innito, como é o caso da construção
“para + vinf.”.
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(3) “Ela vai lacrar com seu novo programa.”
(4) “Exagerada, maximalista, irônica e debochada, Iris Apfel parece estar sempre
vestida para lacrar!”
(5) “Tudo que eles fazem pode virar meme ou viralizar. Todos querem lacrar.”
(6) “Compra produtos piratas e fala que é original pra tirar onda e lacrar no
Facebook.”
(7) “Está na hora de as nossas universidades se atualizarem frente as demandas
do século 21. Está na hora de democratizar verdadeiramente o saber. Lacrar e
mitar, fazer e acontecer.”
Já sobre o uso do verbo “lacrar” no gerúndio, no que se refere ao número de ocor-
rências, pode-se dizer que o sentido “arrasar” ganhou do original “fechar”. Isso é algo mui-
to expressivo, pois mostra que, desde 2014, essa forma nominal é cada vez mais utilizada
no vocabulário popular. Veja os exemplos a seguir, em que “lacrando” é sinônimo de “ar-
rasando”.
(8) “Os participantes do Show dos Famosos estão lacrando muito! Uma apresen-
tação mais incrível que a outra”
(9) “Ain, que lindo, Marvel mais uma vez lacrando e sambando na cara da família
tradicional, trazendo muitxs personagxs femininxs negrxs.”
(10) “Stefany, ela mesmo! Chega lacrando, com isoporzão de sacolés para alegrar
a galera.”
(11) “Como esquecer de Kéfera no programa da própria Fátima Bernardes lacran-
do em inglês?”
(12) Por outro lado, a partir dos dados expostos no gráco 1, vemos que, quando
o verbo “lacrar” é empregado no particípio, seu sentido normalmente está
vinculado ao ato de fechar. Isso pode ser materializado com as seguintes sen-
tenças:
(13) “O prédio será lacrado e interditado em sua totalidade visando a imediata
demolição.”
(14) “Ocorre que o prédio foi lacrado com tudo dentro, incluindo equipamentos
e remédios.”
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(15) Porém, apesar da predominância desse sentido no corpus, foi possível averi-
guar três casos em que “lacrado” apresentava o sentido de “arrasado”, o que
mostra ser perfeitamente possível encontrar essas construções no dia a dia.
(16) “Alguns seguidores mais atentos reagiram com humor à alnetada de Evaristo
Costa na Globo e se divertiram com a mensagem, dizendo que ele havia ‘la-
crado’”.
(17) “Além de Camila Cabello ter lacrado enquanto cantava em show de Taylor
Swi, o Fih Harmony também arrasou.”
(18) “Adrián López chegou em julho ao FC Porto rotulado como craque por ter
lacrado em edição especial, premium.”
Além das formas nominais do verbo “lacrar”, pesquisaram-se também as formas
verbais conjugadas no presente e no pretérito perfeito do modo indicativo, visto que se
notou uma frequência signicativa de sentenças formadas a partir do uso da terceira pes-
soa do singular (lacra – presente, lacrou – pretérito perfeito). Com o intuito de ilustrar
esses casos, optou-se por, inicialmente, retratar os dados obtidos com os verbos no pas-
sado, para, posteriormente, comparar os resultados com o levantamento dos verbos no
presente.
Gráco 2: Formais verbais do verbo “lacrar” no pretérito perfeito do modo indicativo
Fonte: Elaborado pela autora.
Os dados do gráco 2 mostram algo que já se vê com frequência no comportamen-
to de outros verbos regulares: o desuso da forma verbal com a segunda pessoa do singular
(tu) e com a segunda do plural (vós), tanto no sentido 1 (fechou) quanto no sentido 2
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(arrasou). Além disso, os dados apontam para uma questão discursiva vinculada à au-
toarmação, posto que, pensando no sentido 2, nota-se que o número de ocorrências
com a primeira pessoa do singular (eu) e com a primeira do plural (nós) é bastante baixo
quando comparado ao dos casos com a terceira do singular (ele/ela) e com a terceira do
plural (eles/elas). Isso poderia estar relacionado a um aspecto cultural do povo brasileiro
em não se achar sucientemente competente em comparação ao outro (como é o caso do
sentimento brasileiro de inferioridade e a xação ao estrangeiro).
Para Nelson Rodrigues (1993, p. 51), isso é fruto de um “complexo de vira-lata”,
denido como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face
do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem.
Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”.
De acordo com Byington (2013), o complexo de vira-lata dos brasileiros faz parte
da história do Brasil por alguns motivos: o país ter sido colonizado por prisioneiros por-
tugueses degradados; por pertencer ao Terceiro Mundo; e pelo sentimento de insegu-
rança e autodesqualicação diante do mundo branco, europeu e norte-americano, já que
o Brasil é um país altamente miscigenado (brancos, índios e negros, principalmente).
Sobre isso, Moreno (1975) acrescenta que essa identidade de colonizado não nasce com
os indivíduos, mas é imposta histórica e culturalmente, fazendo-os se sentirem inferiores.
Nesse sentido, a baixa ocorrência de construções como “lacrei” (arrasei), “lacra-
mos” (arrasamos) estaria relaciona à diculdade do indivíduo em se autoarmar como
capaz de fazer algo e ser reconhecido por isso. Por extensão, o uso predominante da forma
verbal na terceira pessoa (singular ou plural) indica um processo de gramaticalização, já
que uma das formas se sobressai. De certo modo, isso colabora para que o verbo “lacrar”
com sentido de “arrasar” se torne uma expressão mais xa, deixando de ter a liberdade de
outro verbos regulares.
Uma outra questão linguística importante a ser mencionada refere-se à não exi-
gência de um complemento pelo verbo “lacrar” no sentido de “arrasar”, o que mostra
um contraste com o comportamento do verbo quando utilizado em seu sentido original
(fechar). Vejam-se os exemplos a seguir.
(19) Uma advogada acompanhou o procedimento da vigilância sanitária que noti-
cou o responsável, lacrou o freezer e recolheu a carne.
(20) Operação conjunta autuou donos e lacrou fazenda.
(21) Faustão lacrou total quando mandou beijo para Justin Bieber, Selena Gomez
e Camilla Cabello.
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(22) A Netix “lacrou” novamente e conseguiu resolver o problema sem maiores
crises.
(23) Como posto em linguajar pós-moderno: a prova do Enem “lacrou”.
(24) Como se diz por aqui: lacrou!
Não se pode ser radical e dizer que, em todos os casos, o verbo “lacrar”, quando
utilizado como sinônimo de “arrasar”, não exija objeto. O que acontece é uma predomi-
nância de casos que permitem o verbo ser monovalente, isto é, ter apenas um argumento
(que, no caso, é o argumento externo/sujeito). Porém, há também situações em que um
complemento é solicitado:
(25) Atualmente, Karol G tem um parceiro mais frequente: o namorado e rappar
Anuel AA, com quem lacrou a internet ao postar uma foto.
(26) Poderia citar vários, mas “lacração” pontuou, ou melhor, lacrou o ano que
termina logo adiante.
Percebe-se, assim, que o verbo “lacrar”, quando equivalente a “arrasar”, vem pas-
sando por um processo de gramaticalização, o que o faz ser, até o presente momento,
predominantemente (mas não exclusivamente) monovalente, podendo, inclusive, ocor-
rer isoladamente em uma sentença, como nos comentários de fotos nas redes sociais, em
que o internauta escreve apenas “lacrou!”, e isso já é o suciente para se entender o que
ele quis dizer.
Ainda sobre o uso do verbo “lacrar” na terceira pessoa do singular do pretérito per-
feito, acrescenta-se uma análise voltada ao processo de discursivização, já que, em muitos
casos, se pôde constatar o uso dessa expressão para encerramento dos turnos e discursos,
atuando como marcador discursivo de encerramento e operando como uma partícula
para avaliar o que foi dito pelo enunciador. Essa característica permite dizer que o verbo
“lacrar”, nessa conjugação em especial, exerce a função de modalizador no subsistema da
semântica.
Segundo Vincent et al. (1993, apud VALLE, 2000, p. 105), quanto mais uma uni-
dade avança no processo de discursivização, mais ela: “a) perde complexidade semântica
e signicação sintática; b) ganha signicação pragmática; c) se distingue das outras uni-
dades que continuam a ser gramaticais pela sua entonação e posição na frase; d) tende a
desenvolver um uso opcional e diversica suas posições na frase”. Nesse viés, nota-se que
a expressão “lacrou” vem passando por um processo de discursivização, já que pode ser
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empregada isoladamente em comentários nas redes sociais e nos nais de turnos aos se
elogiar alguém.
Outro uso que esclarece essa função de marcador discursivo da expressão “lacrou”
refere-se ao emprego desse termo na rede social Instagram. Ao lado de opções como “aí
sim”, “daora”, “top” e “animal”, “lacrou” aparece como uma possibilidade de emoji para ser
utilizada em fotos e vídeos, de modo a se avaliar o conteúdo ali compartilhado.
Finalizada a análise das formas verbais do verbo “lacrar” no pretérito perfeito, bus-
ca-se agora investigar o comportamento dessas formas no tempo presente.
Gráco 3: Formas verbais do verbo “lacrar” no presente do modo indicativo
Fonte: Elaborado pela autora.
Ao se comparar o gráco 3 com o do pretérito perfeito (gráco 2), a priori, verica-
-se a nítida menor ocorrência dos verbos no presente, em quaisquer pessoas gramaticais.
Além disso, percebem-se novamente a ausência das formas na segunda pessoa do singular
e do plural, a baixa ocorrência dos verbos com a primeira pessoa do singular e do plural e
a grande incidência de casos abrangendo o verbo “lacrar” (arrasar) com a terceira pessoa
do singular. Vejam-se alguns exemplos.
(27) “Carla Perez lacra a web com novo modelito de arrasar”
(28) “Caramba, lacra muito, linda”
(29) “Ania entra em 2018 como a diva do pop brasileiro que lacra contra o ma-
chismo branco e opressor, por ser dona do seu corpo e ter o direito de fazer
dele o que quiser”
(30) “Pabllo Viar lacra em capa de revista gringa sobre luta LGBTQ+”
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Assim, tanto no presente quanto no pretérito perfeito, o verbo “lacrar” – no sentido
de “arrasar” – ocorre preferencialmente com a terceira pessoa do singular. Esse dado é
bastante profícuo, já que reforça a hipótese de que esse verbo vem passando por um pro-
cesso de gramaticalização, em que as formas conjugadas com a terceira pessoa do singular
(ele/ela), ou ainda com a segunda pessoa (quando se pensada como “você”), se sobressa-
em diante das demais. Isso indica que, apesar de poder funcionar como um outro verbo
regular qualquer, o verbo “lacrar” com sentido de arrasar está caminhando para se tornar
uma expressão mais xa.
Completada a análise das formas verbais, este estudo direciona o seu olhar às pala-
vras que foram surgindo por meio do processo de lexicalização – que, na verdade, será en-
tendido aqui como relexicalização, ou seja, reativação lexical (cf. Castilho, 2016), posto
que se vê o movimento mental pelo qual as categorias cognitivas e seus traços semânticos
são reagrupados, renovando, assim, o vocabulário. Esse processo pode se dar por deriva-
ção lexical (junção de prexos e suxos a um radical) e composição lexical (junção de
radicais). O gráco 4 ilustra as ocorrências do adjetivo “lacrador” e “lacradora”.
Gráco 4: Adjetivos
Fonte: Elaborado pela autora.
Diferentemente do que ocorre com os verbos, em que “lacrar” (fechar) e “lacrar”
(arrasar) coexistem no PB, vê-se que os adjetivos “lacrador” e “lacradora” se referem ex-
clusivamente ao sentido 2, ou seja, acrescentam uma característica ao substantivo ao qual
se referem, dizendo que é algo arrasador, maravilhoso, avassalador, conforme os exem-
plos a eguir.
(31) “A esposa de Mister Brau está sempre deslumbrante e com um penteado la-
crador de causar inveja nas inimigas.”
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(32) “E para acompanhar, uma make lacradora feita pela maquiadora do programa
Isabela Japiassú.”
(33) “Viviane Araújo mostra fantasia de desle e web elogia: ‘Lacradora’.”
De antemão, ressalta-se a predominância do adjetivo no feminino, já que perfaz
cerca de 75,6% dos casos. Isso poderia ser justicado pela ligação quase direta do termo
ao seu referente, que, muitas vezes, remete a uma mulher ou a algo feito por uma mulher.
Contudo, é importante frisar que, embora o adjetivo esteja fortemente atrelado
a um sentido positivo, em alguns casos, pode apresentar teor pejorativo, o que poderia
indicar um resquício de preconceito, já que o termo é preferencialmente utilizado por
grupos minorizados, como a comunidade LGBTQIA+ e as mulheres. Sobre isso, têm-se
os seguintes exemplos:
(34) “Esperamos do ministro “lacrador” menos piadas e mais seriedade para com
a educação.”
(35) “Você gosta tanto de fazer discurso lacrador que vai acabar tendo velório com
caixão lacrado.”
(36) “Governar envolve tudo isso. Não é escrever textão lacrador no Facebook.”
(37) “Enquanto essa esquerda não abandonar esse tom lacrador, as coisas perma-
necerão difíceis.”
Sem atenção a preferências políticas, e sim ao uso do termo nos contextos de al-
cance, faz-se uma breve análise do uso pejorativo do adjetivo “lacrador(a)” como forma
de representar a ideologia de um movimento político (e, por que não, social) bastante
conhecido no Brasil. No espectro político, a esquerda é conhecida por defender mais
igualdade social, preocupando-se, principalmente, com os grupos que estão em desvanta-
gem social. Como se viu anteriormente, o verbo “lacrar” e suas variantes são empregados
especialmente por LGBTQIA+ e mulheres, grupos que são defendidos pelo movimento
esquerdista. Isso poderia justicar, portanto, o uso do adjetivo “lacradora” por grupos de
direita como forma de designar a atuação da esquerda, em tom depreciativo.
Para estabelecer essa relação, a direita se valeu da ideia de que ser “lacrador(a)”
virou tendência entre os usuários das redes sociais que preferem reduzir uma questão
complexa a uma simples frase de efeito com o objetivo de encerrar o debate político e de
“lacrar” com o adversário, atacando-o e conquistando “likes” em suas publicações. Isto
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posto, quem é “lacrador” passou a ser visto por alguns como aquela pessoa que faz de
tudo para dar “audiência”, porém, muitas vezes, o “tiro pode sair pela culatra”, e ela passa
vergonha.
Assim, ao caracterizar a esquerda como “lacradora”, a direita se pauta em uma visão
estereotipada de que, por nascer na comunidade LGBTQIA+ e representar o público fe-
minino, esse adjetivo estaria, portanto, relacionado ao interesse das minorias em utilizar
as mídias digitais para fazer soar sua luta de modo alegórico, fútil e “forçado”.
Vale citar ainda que não são apenas os adjetivos que carregam esses estigmas sociais.
Outra palavra derivada do processo de relexicalização (reativação lexical) é o substantivo
“lacração”, que pode ser utilizado tanto para qualicar algo quanto para desqualicar. A
escolha do valor semântico atribuído pelo substantivo dependerá dos interlocutores que
estiverem produzindo o discurso e do contexto de produção. A seguir, apresenta-se o
gráco com o número de ocorrências do substantivo “lacração”.
Gráco 5: Substantivo
Fonte: Elaborado pela autora.
Apesar de existirem substantivos voltados ao sentido 1 (fechamento), cerca de
61,5% dos dados encontrados referem-se ao ato de “arrasar”. Apresentam-se a seguir al-
guns exemplos desses dois casos.
(38) “No interior, o cronograma de carga, lacração e distribuição das urnas segue
procedimentos especícos denidos por cada zona eleitoral.”
(39) “Essa foi a maior lacração de produtos não homologados pela scalização da
Anatel em 2018.”
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(40) “Vocês queriam lacração, babys?’. Foi assim que Cléo Pires começou a legen-
da de uma foto publicada em seu perl ocial do Instagram.”
(41) “E a lacração de estilo não para na Cidade do Rock!”
Com essas sentenças, vê-se que “lacração” pode sugerir o fechamento de estabeleci-
mentos, urnas, produtos, envelopes, e também pode indicar o ato de “arrasar”, “tombar”,
“impressionar”. A lacração pode ocorrer quando uma cantora lança uma nova música;
quando uma mulher assume o seu lugar de fala; ou ainda quando um político, para au-
mentar as curtidas de sua publicação, apela à criação de bordões que sugerem uma possí-
vel “militância”. Sobre isso, de acordo com Viana (2017, s. p):
Não é novidade que o universo LGBT tem um vocabulário próprio e
crescente de termos pra lá de únicos. Poderia citar vários, mas “lacração”
pontuou, ou melhor, lacrou o ano que termina logo adiante. Conseguiu
até sair do armário e fazer moda entre os não tão familiarizados com o
universo gay. Porém, engana-se quem limita a lacração ao simples ato de
“mandar bem”. O lacre é primo do “arrasou” e inimigo mortal do “mitou”.
Há um quê de lantejoulas salpicadas; tem ranço de hipocrisia e deve ser
falado com a boca transbordando. Lacração é tombo, é hino e é voz, que,
nem sempre, milita; mas obrigatoriamente causa, ora pela coragem de
usar aquele vestidinho desaforado, ora por bradar um “Fora Temer” em
ambiente hostil.
Nesse sentido, o termo “lacração” pode ser utilizado em diferentes segmentos, a
depender dos interlocutores e do sentido atribuído por eles. No texto de Viana (2017),
percebe-se um papel ideológico desempenhado pelo uso do termo, resultante de uma for-
ça advinda dos grupos minoritários que, com coragem, deslacram as barreiras impostas
pelo preconceito e libertam suas vozes. Sobre isso, Viana (2017, s.p.) declara:
E é disso que se trata a lacração: está mais para o “deslacre” do que para
o lacre. Liberta, ousa, age sem medo; defronta o preconceito e fecunda
novos estilos. Tão óbvio: a lacração é substantivo feminino; gay, bi,
trans, colorido e plural. É a celulite da Ania no clipe Vai Malandra e,
principalmente, são as mais de 60 milhões de visualizações do vídeo no
Youtube, jogando na nossa cara a sem-vergonhice malandra que deveria
nos caber mais vezes. [...] Que 2018 nos traga mais lacres, porque sim,
necessitamos! Precisamos de mais gordas usando as roupas que as fazem
felizes, de menos gente chata questionando seu batom escuro à luz do
dia. Precisamos de mais bateção de cabelo e menos fotos com edição.
[...] Lacração é emancipação, amor próprio e não ter medo de ser feliz,
simplesmente, sendo.
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Na ótica de Viana (2017), “lacração” é libertação, autenticidade e voz. Porém, as-
sim como o adjetivo “lacrador(a)” ganhou destaque na política de modo pejorativo, o
substantivo “lacração” também passou a ser utilizado para denir um tipo de “política”
realizada por indivíduos que almejam destaque nas mídias de comunicação. Sobre esse
uso, têm-se algumas sentenças que foram obtidas da internet:
(42) “Se estivesse menos preocupado em ganhar likes e lacrar na internet estaria
prestando melhor trabalho como deputado. Mas não, faltou sessão como a
dos precatórios na Alesp que foi decidida por apenas 1 voto. Mais responsa-
bilidade, menos lacração, por favor”, tuitou Eduardo Bolsonaro.
(43) “Murilo Resende, o novo coordenador do Enem, é doutor em economia pela
FGV, e seus estudos deixam claro a priorização do ensino ignorando a atual
promoção da ‘lacração’, ou seja, enfoque na medição da formação acadêmica,
e não somente o quanto ele foi doutrinado em salas de aula”, tuitou o presi-
dente Bolsonaro.
(44) “Marina Silva critica a ‘política da lacração’ de Lula e Bolsonaro”
(45) “Eu não faço política fazendo pirotecnia e isso é uma verdade. Não faço a po-
lítica da lacração. Eu faço política com intenção de contribuir para o debate,
não faço também oposição por oposição. Eu analiso as questões e me posicio-
no”, explicou Marina Silva.
Nos exemplos (xxxviii) e (xxxix), nota-se que a expressão “lacração” está direta-
mente relacionada à política de esquerda, pensando nas relações ideológicas defendidas
pelos interlocutores do discurso. Já nas sentenças (xl) e (xli), vê-se uma outra visão: a po-
lítica da lacração criticada por Marina Silva deprecia tanto as atitudes da esquerda quanto
as da direita. Vê-se assim que, nessa visão, a “lacração” não seria uma característica espe-
cíca de um movimento ideológico político (um partido), mas sim da política atual que
vem sendo nutrida por políticos que preferem “lacrar” e “mitar” nos holofotes em vez de
“politicar”2 de verdade.
Essa visão estereotipada e contorcida do verbo “lacrar” e de suas variantes acaba
comprovando o estigma social que uma palavra carrega por se originar e circular em de-
terminado grupo social. Vê-se que, apesar de serem empregadas por indivíduos de di-
versos setores da sociedade (cantores, artistas, jornalistas, políticos), há um preconceito
2 Politicar, aqui, refere-se ao ato de fazer política; ocupar-se das funções básicas de um político na sociedade.
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incrustado no uso desse termo. Isso pode ser notado inclusive em ações governamentais,
que proíbem o uso de determinados termos por fazerem alusão a grupos sociais margi-
nalizados, como é o caso da determinação do presidente, em abril de 2019, proibindo3
palavras do dicionário LGBTQIA+ (a exemplo de “lacrou”) de serem veiculadas em pu-
blicidade de estatais. O anúncio aconteceu após o presidente armar que o Brasil não
pode ser visto como “paraíso do mundo gay”.
Esses desdobramentos sociais envolvendo o verbo “lacrar” e suas variantes mos-
tram que, de 2013 até 2019, esses termos sofreram apropriações e reapropriações – o que
já era de se esperar, posto que a língua está em constante oscilação devido às vicissitudes
do discurso comunicativo e dos contextos semântico-pragmáticos. Contudo, resta saber
agora se esse termo permanecerá no vocabulário popular brasileiro ou se perderá força
nas redes sociais devido ao caráter pejorativo que ganhou em alguns grupos.
Uma matéria escrita por Vanini e publicada no jornal O Globo, no nal de novembro
de 2019, defende o crescente desuso das palavras derivadas do verbo “lacrar” no sentido
de arrasar. Para justicar sua tese, Vanini (2019) declara que, com a adoção do termo pe-
las mídias e pela cultura pop, “lacrar” ganhou um signicado muito amplo e se esvaziou. A
exemplo disso, cita o uso do substantivo “lacração”, que, muitas vezes, é empregado como
rótulo pejorativo para vídeos sobre temas como discriminação, homofobia e política que
buscam apenas gerar “likes”.
Assim, o termo “lacração” passou a ser questionado, pois o jovem atual percebeu
que a exposição exagerada e distorcida da realidade nas redes sociais com o intuito ape-
nas de “lacrar” é mera ilusão e traz apenas fama efêmera. Com base nesses argumentos,
Vanini (2019) acredita que o termo esteja sofrendo um “cancelamento”4, e essa mudança
linguística estaria diretamente vinculada ao novo comportamento dos jovens, que, insa-
tisfeitos com o sentido pejorativo que o termo ganhou diante de outras gerações, o estão
abandonando. Para Karam (2019, apud VANINI, 2019), o processo de “cancelamento”
que está ocorrendo com o verbo “lacrar” e suas variantes é equivalente à saída dos jovens
do Facebook após a entrada dos pais na rede social e a consequente ressignicação do
aplicativo.
Em suma, partindo dos pressupostos levantados por Vanini (2019) e pensando nos
dados aqui discutidos, vê-se que, quando o verbo “lacrar” se propagou, sua carga semân-
tica era positiva, sendo empregado para dizer que alguém “arrasou”, “obteve sucesso” em
algo. Contudo, com a incorporação desse termo por outros segmentos da sociedade –
3 Informação compartilhada pela revista Veja em 2019.
4 Palavra usada pelos jovens para decretar o m de alguma coisa.
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como é o caso do meio político –, o verbo ressignicou-se nesses grupos e ganhou tam-
bém um sentido negativo, especialmente por razões ideológicas. Embora os dois sentidos
coexistam (em grupos de bases ideológicas distintas), a depreciação de sentido oriunda
do setor político vem fazendo com que o verbo “lacrar” no sentido de “arrasar” esteja
caindo em desuso.
Considerações nais
Os dados obtidos e as análises elaboradas colocaram em evidência não só os aspec-
tos linguísticos, mas também os sócio-históricos que, inevitavelmente, inuenciaram e
continuam inuenciando o comportamento do verbo “lacrar”. Diz-se isso pois sabe-se
que a efemeridade das relações sociais tem afetado a composição linguística do vocabu-
lário popular. A exposição frequente às redes sociais e a obsessão pelo “agora” têm feito
palavras surgirem e perderem força rapidamente. Os “tempos líquidos” dos quais trata
o sociólogo Zygmunt Bauman retratam com perfeição o que vem acontecendo com o
verbo “lacrar”.
Os tempos são “líquidos” porque tudo muda velozmente. Nada é feito para durar,
para ser “sólido”. Em uma entrevista para a Revista IstoÉ, Bauman (2014, s.p.) declarou
que:
Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na
verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No
atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente
impedidos de se solidicarem. A temperatura elevada – ou seja, o impulso
de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias
rentáveis – não dá ao uxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo
necessário para condensar e solidicar-se em formas estáveis, com uma
maior expectativa de vida.
O bombardeamento de informações diariamente nas redes sociais fez com que, por
meio dos processos de semanticização, lexicalização, gramaticalização e discursivização,
“lacrar” não mais signicasse apenas “fechar”, mas ganhasse também o sentido de “arra-
sar” perante um grande público em poucos anos de uso. Contudo, esse mesmo bombar-
deamento de informações está fazendo com que esse termo se ressignique em diferentes
grupos da sociedade, ganhando uma conotação positiva em certos grupos e negativa em
outros.
A grande questão que ca é: esse verbo e suas variantes realmente vão durar? Só o
tempo poderá responder a essa pergunta, pois, como se sabe, a língua é mutável e, até cer-
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to ponto, imprevisível. Muitos fatores podem fazer um termo se reinventar e se ressigni-
car. A história do português é isso! Pensar o presente, pensando o passado e imaginando
o futuro. “Imaginando”, pois não há uma fórmula secreta para se armar com certeza o
que acontecerá.
De fato, os fatores citados ao longo deste trabalho indicam que esse termo está ca-
minhando para o desuso, porém, assim como ganhou voz de um colapso beyonciânico5,
pode ainda renascer em outro contexto e fazer rebrotar a chama de lacrar na vida dos
lacradores.
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5 Neologismo para referenciar o surgimento de “lacrar” (arrasar) no vídeo em que Romagaga reagia
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Data de submissão: 14/06/2020
Data de aceite: 30/10/2020