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1 Schoenberg, A.:
Harmonia
. São Paulo,
UNESP, 2001, p. 95.
2
Ibid
.: p. 569.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em Educação Artística
Mediocrizes
Fico perturbado quando ouço sisudos
argumentos para negar às vítimas os
meios necessários a m de que possam
defender-se do agressor, carregando a
culpa no alvo do crime e ilibando o cri-
minoso. Isso obriga-me a reetir sobre
a aurea mediocritas de Horácio (Odes
II, 10, 5) onde o ideal é amar a mediania
e nunca aspirar à excelência para não
ser invejado e despertar, desse modo, a
cobiça do malfeitor, como assim fazem
as alminhas irrelevantes que me prodi-
gam seus mansos conselhos quando
tenho a ousadia de assinalar mediocri-
dades e máas musicais.
A mediocridade contradiz a lei darwi-
niana da sobrevivência dos ‘mais aptos’
pois, se aceitamos o consenso de que
aproximadamente 82% da população
tem valores de QI entre 80 e 120, temos
de concordar que a mediania da massa
não é um banal preconceito, mas, sim,
uma triste realidade. A mediocridade
é gregária e rotula de inadaptados os
que procuram a excelência. Os medío-
cres são aqueles pobres de espírito aos
que a Bíblia lhes promete o reino dos
céus, porém, Jorge Luís Borges, escla-
rece, em Os anjos de Swedenborg, que
esses pobres estão excluídos do paraí-
so porque não o compreenderiam.
A distribuição dessa massa de inteli-
gência mediana é transversal e uni-
forme. Encontra-se em todas as ativi-
dades humanas independentemente
da idade e da posição social dos indi-
víduos. Artistas, empresários, políti-
cos, professores, e mesmo doutores
conformam essa massa limitadamente
cinzenta e faz todo o sentido falar, com
o maior respeito, de musiquetas, his-
torietas e até de doutoretas. Não é um
fenómeno novo pois a história ilustra-
-nos que os marginais, nomeadamente
os da margem superior, aqueles que
pela sua originalidade e capacidades
criativas se situam fora da caixa da
esmagadora maioria, são frequente-
mente ignorados pelos seus contem-
porâneos. Bach foi apagado durante
um século; Vivaldi morreu em Viena
esquecido de todos e só três séculos de-
pois é que se lhe reconheceu o talento
musical; Hildegard Von Bingen perma-
neceu oculta por oito séculos; Mozart
foi atirado para uma vala comum com
a única presença do seu el cão e, hoje
em dia, alimenta uma vasta indústria
musical liderada por uma legião de
medíocres.
Entretanto os aplausos e elogios do pú-
blico destinaram-se a medianias que
o tempo cobriu com o véu do esqueci-
mento. Por vezes, os musicólogos des-
vendam algumas dessas obscuras cele-
bridades e reconhecemos o inexorável
bom senso desse tempo que sabe pôr
cada um no seu preciso lugar, designa-
damente na gaveta da desmemória.
Os que cam fora da caixa pela mar-
gem inferior não têm melhor sorte,
mas a caridade sempre ajudou a lavar
a má consciência das injustiças e não
se consideram um perigo. Os da mar-
gem superior é que incomodam muito
e são vistos com desconança porque
podem representar uma rutura no sta-
tus quo.
O ensino, que deveria servir para es-
timular as capacidades criativas, o
pensamento crítico, e ampliar os ho-
rizontes dos alunos, também está do-
minado pela mediania geral e quando
algum professor tenta elevar a fasquia
criativa sabe que o principal obstáculo
não são os alunos, mas os colegas que
vão resistir a abandonar a sua zona
de conforto. A programação cultural
está cada vez mais orientada para o
divertimento das massas e não para
o discernimento pessoal. A música
transforma-se numa banalidade so-
nora para adormecer consciências e
uniformizar o pensamento. Nos con-
certos de música erudita observa-se
como a programação insiste sempre no
mesmo repertório de museu decadente
e julga a música que nos é contempo-
rânea como uma excentricidade para
snobes. Aquilo que Schoenberg con-
siderava “o eterno dilema de escolher
entre o desejo de repetir as sensações
agradáveis e o contrário: a ânsia por
mudanças, transformações, por novas
sensações”1, virou agora em puro he-
donismo que elimina qualquer desejo
de novidade.
A mediocridade é o verdadeiro ópio
do povo, e todo aquele que aspire a
ter êxito nesta sociedade de medianias
competitivas deve fugir de toda e qual-
quer excelência. Parece piada, mas se
quisermos ser um desses famosos a
aparecer nos meios de ‘incomunica-
ção’ social, temos de ser medíocres o
suciente.
Aquelas alminhas irrelevantes já me ti-
nham pressagiado que, de insistir a fa-
lar do que ninguém gosta de ouvir, aca-
baria tendo poucas amizades, e assim
é. Eu é que agradeço que se afastem
de mim aqueles que não têm qualquer
excelência humana, ética ou estética
para partilhar. A aurea mediocritas fa-
vorece a criação de esquemas e até de
máas, para defender os seus plúm-
beos interesses, controlar o mercado
e impedir que a excelência os obrigue
a mudar; no entanto “o artista não faz
o que outros consideram belo, mas so-
mente o que ele tem por necessário”2.
Nesse entretanto, as vítimas ganham
coragem e resistem com dignidade, de-
sarmando moralmente o criminoso in-
vasor e as sisudas medianias que lhes
negam o auxílio necessário.
13ABR’22
FOTO: DR
Vivaldi