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1
Metaverso e NewsGames — dois lados da mesma moeda
Convergências e divergências entre plataformas ludoinformacionais num cenário de sinergias e
ambivalências entre informar e entreter, evidenciando mecanismos de controle social,
mudanças no status de cidadãos, fragilidade do Estado e o virtual advento de autocracias.
Geraldo Augusto Seabra
1
Luciene Alves Santos
2
Resumo
Este artigo explora perspectivas apontadas por Manoel Castells, que parte da
constatação de que a rede, antes tida como uma promessa de comunicação livre e sem
intermediários, vem se transformando em mecanismos de controle social em massa e
na redução de cidadãos a meros doadores de dados pessoais. Na mesma esteira, a
franca fragilização de democracias e da segurança institucional do Estado, tornando-se
um campo fértil para a proliferação de governos autocráticos. Por ironia, tal fenômeno
vem ocorrendo graças às facilidades acessibilidade, via interconexão, de arquivos de
redes. Assim, este artigo acadêmico visa direcionar a discussão em torno de
convergências e divergências entre duas plataformas ludoinformacionais: o metaverso
e os newsgames. A primeira ainda em gestação e, a segunda, em desenvolvimento
desde 2000. Para fins de análise, partiremos da hipótese de que ambas funcionam por
meio de um mesmo motor informacional: manipulação de dados por imersão do
usuário dentro de um caleidoscópio cognitivo, para onde escoam todas as
comunicações, independente de conteúdo e/ou formatos de mídia existentes.
Abstrat
This article explores perspectives pointed out by Manoel Castells, which starts from
the observation that the network, previously seen as a promise of free communication
and without intermediaries, has been transformed into mechanisms of mass social
control and the reduction of citizens to mere data donors. personal. In the same wake,
the frank weakening of democracies and the institutional security of the State,
becoming a fertile field for the proliferation of autocratic governments. Ironically, this
phenomenon has been occurring thanks to the accessibility facilities, via
interconnection, of network files. Thus, this academic article aims to direct the
discussion around convergences and divergences between two ludo-informational
platforms: the metaverse and newsgames. The first is still in gestation and the second,
in development since 2000. For the purposes of analysis, we will start from the
hypothesis that both work through the same informational engine: manipulation of
data by immersion of the user within a cognitive kaleidoscope, where flow all
communications, regardless of existing content and/or media formats.
Introdução
Ninguém sabe realmente como será o mundo em 2082. Segundo do historiador e
filósofo Yuval Novah Harari (2015), a capacidade da humanidade de entender o mundo
1
Jornalista, professor, escritor e mestre em Comunicação Social, Tecnologia e Games como Informação.
2
Jornalista, designer de moda e especialista em Comunicação Social e Games como Informação.
2
é muito menor hoje em dia, mesmo com tanta informação que acumulamos até agora.
Porque o mundo mudou e tornou-se um gigantesco caleidoscópio cognitivo, para onde
convergem todos os atos e fatos culturais sem precedente na história. Estamos
falando da complexa convivência entre o pré-moderno (civis despreparados lutando
com recursos improvisados), o moderno (ameaças nucleares, armas químicas e
biológicas) e o pós-moderno (advento do mundo cibernético e as disputas em torno da
verdade). Em pronunciamento após invasão russa à Ucrânia, assessor de Segurança da
Casa Branca, Jake Sullivan, disse que o que importa às nações não são conquistas
territoriais, mas conhecimento baseado na atração de cérebros. Faz parte de todo
processo de hegemonia o país em hegemônico atrair os cérebros de países periféricos.
Especialmente, nas grandes crises internacionais, esse movimento se acelera.
No passado, o conhecimento humano aumentava lentamente e a tecnologia demorava
a se desenvolver, de modo que a política e a economia também evoluíam na mesma
escala. Hoje, o conhecimento aumenta de forma veloz e, teoricamente, deveríamos
entender o mundo muito melhor do que antes. Mas ocorre exatamente o contrário.
Na tentativa de entender os acontecimentos, aceleramos a acumulação de
conhecimento, o que leva a agitações sociais cada vez mais recorrentes.
Consequentemente, estamos menos aptos a dar sentido ao presente ou mesmo prever
o futuro. Ninguém sabe realmente o que vai acontecer daqui a 60 anos, ou onde e
como estaremos no futuro. Aliás, na mesma semana que comecei a compilar este
artigo, o mundo foi ‘pego de surpresa’ com a decisão da Rússia de deflagrar guerra
total à Ucrânia, quando o Pentágono, União Europeia, Conselho de Segurança da ONU
e a Otan ainda acreditavam que o ditador russo, Wladimir Putin, permaneceria com
suas tropas circunscritas apenas às províncias de Donetsk e Lugansk, repúblicas
separatistas pró-russas situadas na região Leste da ex-república soviética.
É justamente nesse cenário de incertezas que a humanidade desafia uma nova
fronteira do conhecimento: o advento do metaverso
3
. Trata-se de uma plataforma 3D
de realidade aumentada, virtual e imersiva que permite a interação entre tecnologia,
política, cultura, negócios, sociedade e religião, tudo em um mesmo espaço de
comunicação digital. Em ‘Homo-Deus: Uma Breve História do Amanhã’, Harari (2015)
afirma que o seu livro foca justamente nessas interações supracitadas, questionando-
se o que acontecerá, por exemplo, com a política quando os algoritmos big data
4
conhecerem os nossos desejos e opiniões melhor do que nós mesmos.
Há mil anos, em 1017, havia muitas coisas que as pessoas não sabiam sobre o futuro, mas
podiam ter certeza sobre as características básicas da sociedade humana. Se você vivesse na
Europa em 1017 sabia que em 1050 os Vikings poderiam invadir novamente, as dinastias
poderiam cair e as pestes ou terremotos poderiam matar milhões. No entanto, era claro
3
Metaverso é o nome usado para denominar um ambiente virtual imersivo, coletivo e hiper-realista, uma
plataforma virtual onde as pessoas poderão conviver usando avatares customizados em 3D, ou seja, uma forma
habitável da Internet movida pela tecnologia blockchain (mesma tecnologia das criptomoedas) e acessível por
navegadores da web e kits de realidade virtual (VR) e realidade aumentada (AR).
4
São gigantescas bases de dados em formatos comunicáveis e acessíveis, como o imenso arquivo da Agência
Nacional de Segurança dos EUA — NSA — situada em Bluffdale, Utah.
3
para si que mesmo em 1050 a maioria dos europeus ainda trabalharia na agricultura, os
homens ainda dominariam as mulheres, a expectativa de vida seria de cerca de 40 anos e o
corpo humano seria exatamente o mesmo. Hoje, pelo contrário, não fazemos ideia de como
a Europa ou o resto do mundo vai ser em 2050. (HARARI, 2015)
Esses questionamentos tornam urgente buscar compreender sinergias e ambivalências
que possa haver entre o metaverso e outra plataforma não menos poderosa: os
newsgames
5
. Nesse cenário de disruptivo, há necessidade de confrontação de
possíveis desdobramentos do metaverso em relação aos jogos baseados em notícias.
Por quê? Porque são duas plataformas ludoinformacionais
6
. Portanto, dois lados de
uma mesma moeda, através da qual buscaremos apontar possíveis convergências e
divergências em um cenário de sinergias e ambivalências: entretenimento e
informação, mecanismos de controle social e mudanças no status de cidadão, bem
como a fragilidade institucional do Estado e o surgimento de autocracias pelo mundo.
1 – Dois lados de uma mesma moeda
O advento do metaverso tem movimentado o universo das tecnologias em diversas
esferas: das redes sociais às criptomoedas. O termo surgiu no livro de ficção científica
Snow Crash
7
. Na obra, o personagem Hiro Protagonist é um entregador de pizzas na
vida real. Mas, no mundo virtual, ele se transforma em um hacker samurai. O autor
Neal Stephenson chamou essa realidade digital de metaverso. Mais recentemente, as
chamadas big techcs
8
passaram a investir no desenvolvimento dessa tecnologia
metaversa. Além do Facebook, que mudou o nome para Meta como forma de
confirmar seu novo foco, outras marcas como a Microsoft, Google e Nike
9
também
investem há anos em tecnologia metaversa. Diferente dos games — feitos em alta
fidelidade realista — a arquitetura do metaverso é normalmente projetada em baixa
resolução para que qualquer navegador possa acessar e carregar seus ambientes
espaciais. Sua plataforma pode considerada uma espécie de reimaginação de
edificações reais, que promove a união de avatares, tokens não fungíveis (NFTs), play
to earn e criptomoedas num mesmo espaço de jogo. Por absorver profissionais da
arquitetura e gente sem experiência, a plataforma pode ser comparada ao Velho
Oeste, onde qualquer um com um espírito pioneiro e um pouco de moeda digital pode
fincar sua bandeira no mundo virtual.
Por séculos, arquitetos, engenheiros, e construtores ditaram o modo como as cidades
deveriam ser erguidas. Mas, agora, isso pode soar como uma ameaça existencial a
alguns arquitetos, pois qualquer um, sem nenhuma experiência formal em design,
5
O termo newsgames abrange um vasto campo de trabalhos produzidos na interseção entre o campo dos
videogames e do jornalismo. Esse gênero de games eletrônicos, jogados em ambiente online, é geralmente baseado
em histórias e acontecimentos reais, mas também podem oferecer experiências de ficção baseadas em fontes reais,
onde podem convergir com a mesma realidade virtual do metaverso.
6
Plataformas que misturam conteúdos informativos e entretenimento num mesmo ambiente, a partir de recursos
lúdicos utilizados em suportes de videogames.
7
O livro foi publicado em 1992 pelo escritor Neal Stephenson.
8
Big techs são grandes empresas de mídia oriundas principalmente do Vale do Silício.
9
Nike criou o metaverso Nikeland, um pedaço no mundo virtual que promove a interação social dos usuários em
torno da marca.
4
pode criar da maneira que quiser um canto no ciberespaço. Considerado pelos
arquitetos como uma segunda natureza a ser explorada, o metaverso é esse lugar de
colaboração coletiva em tempo real, a partir de salas futurísticas com tabelas
holográficas que apresentam visualizações de dados e renders 3D. Por outro lado, o
metaverso ainda será mediado pelas mesmas forças que controlam o mercado
imobiliário no mundo físico: dinheiro, acesso e conhecimento. E isso já é uma realidade
no ciberespaço onde investidores especulativos de criptoativos e empresas imobiliárias
compram grandes pedaços de ‘terra’ no metaverso, cuja parcela de espaço virtual
pode demandar milhares de dólares. Por isso, é preciso criar formas de promover o
contraditório para que o metaverso não possibilite o surgimento de um Wladimir Putin
3D, com poderes ainda maiores em relação a sua empoderada versão orgânica. E é
nesse contexto de poder desproporcional, também no metaverso, que plataformas
metaversas newsgameficadas parecem urgentes e necessárias, a fim de garantir o
equilíbrio político, social e democrático no mundo real e virtual. Para tanto, há anos,
mega plataformas como The Sims, Minecraft, Second Life, e Roblox já vêm construindo
mundos virtuais imersivos, permitindo que seus jogadores construam suas próprias
estruturas e explorassem paisagens em expansão constante.
E foi a partir dessas iniciativas que foi possível projetar jogos informativos imersivos a
partir de acontecimentos reais e/ou ficcionais. Afinal, como afirma Jacques Ranciére
(2009), ‘o real precisa ser ficcionado para ser pensado’. Eis um das razões para jogar
com notícias e não apenas consumi-las como pão francês. Pensando assim, no início
dos anos 2000, o uruguaio Gonzalo Frasca lança seus primeiros games baseados em
notícias, mesclando jornalismo e videogames numa mesma plataforma. Embora os
nossos estudos
10
não constam do site do Wikipédia
11
, em 2005 já havíamos iniciado as
primeiras pesquisas no Brasil sobre games como emuladores de notícias, dentro do
mestrado em Comunicação Social e Tecnologia, iniciado em Barbacena e defendido em
Juiz de Fora, em Minas Gerais (MG). Como diferencial em relação a todos os demais
estudos sobre o tema fora e dentro do Brasil, fomos os primeiros a demarcar os
newsgames como um novo modelo de jornalismo online
12
, em cuja plataforma é
possível promover a produção, circulação e veiculação de notícias. Como também
podem oferecer experiências de ficção baseadas em fontes reais, os newsgames
convergem com a mesma proposta de realidade virtual do metaverso, inclusive com a
possibilidade de uso de avatares. No artigo ‘Newsgames: Demarcando um novo
modelo de Jornalismo Online’, os autores Seabra & Santos (2008a) até vislumbram a
possibilidade de os jogadores atuarem dentro do tabuleiro virtual tal qual um flâneur
13
pelas ruas de paris do século 19:
10
Link: https://www.slideshare.net/seabhra/artigo-games-como-emuladores-de-notcia-198569/
11
Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newsgame
12
Disponível em: https://www.slideshare.net/BlogNewsGames/newsgames-demarcando-um-novo-modelo-de-
jornalismo-onlinepdf
13
Flâneur ( pronunciada (o) [flɑnœʁ] ), do substantivo francês flâneur, significa "errante", "vadio", andarilho,
ocioso, "caminhante" ou "observador". Flânerie é o ato de passear. Flâneur é um quase-sinônimo, é um
boulevardier. O flâneur era, antes de tudo, um tipo literário do século XIX, na França, essencial para qualquer
imagem que traduza a figura de um andarilho pelas ruas de Paris. (Fonte: Wikipédia)
5
(...) “almejamos o tempo em que os gamers possam se transformar de fato num NewFlaneur,
alguém com avatar de andarilho virtual, revivendo a figura do Flâneur surgido nas arcadas da
Paris do século XIX. Mas, diferente da versão dada por Walter Benjamin, o NewFlaneur seria
mais que um mero observador que se move através das paisagens urbanas e das multidões;
seria uma espécie de ciborgamer com poderes reais de guiar-se pelo mundo através da
informação que realmente interessa”. (SEABRA & SANTOS, 2008a)
Porém, o metaverso da forma que vem sendo concebido flerta em grande medida com
premissas dos newsgames, carregando consigo algumas características semânticas dos
jogos informacionais. Assim como jogos-notícia, o metaverso também são games que
promovem interação social dentro de uma plataforma virtual 3D de realidade
aumentada. No metaverso Decentraland
14
, os jogadores podem viver uma vida virtual,
interagir com outros usuários, marcar encontros e ouvir música; desfrutar das
inúmeras interações construídas nos terrenos virtuais do jogo. Tudo mediante
pagamento com criptomoedas em tokens não fungíveis (NFT) para customização de
avatares e realização de missões no jogo.
Plataforma do metaverso
Plataforma dos newsgames
A economia do Decentraland usa dois tokens: LAND (voltado aos terrenos e
empreendimentos) e MANA, que é o token nativo para pagamentos e interações na
plataforma. Para jogar é preciso ter uma carteira digital, como MetaMask
15
, para
vincular a plataforma e armazenar os tokens que serão usados como pagamento no
game. Ou seja, as plataformas metaversas atuais são uma versão atualizada não
apenas do Second Life
16
, mas de outros suportes imersivos criados anteriormente,
como os newsgames, cujas pesquisas desenvolvidas por Seabra & Santos (2014) já
apontavam a possibilidade da notícia 3D
17
como sendo um dos pilares dos games
como emuladores de notícias — a chamada NewNews jogada em ambiente imersivo.
Afinal, a notícia em três dimensões funciona a partir de uma plataforma de realidade
aumentada onde a cidade inteira, a partir da qual se desenvolve o game, é
transformada em um tabuleiro virtual jogável, que pressupõe o uso de avatares assim
como no metaverso. Contudo, como reafirma o designer Michael Beneville (citado por
14
Decentraland é um mundo virtual estabelecido na blockchain da Ethereum. O terreno sobre o qual ele é
construído se chama LAND e é dividido em pequenas partes chamadas de parcelas, com 16x16m, nas dimensões do
jogo. Cada uma dessas parcelas é um ativo tokens não fungíveis (NFT) que pode ser adquirido pelos usuários.
15
As carteiras armazenam os colecionáveis e outros itens do game como LAND, roupas, avatares, entre outros.
16
O Second Life é um ambiente virtual e tridimensional que simula a vida real e social do ser humano através da
interação entre avatares. Foi criado em 1999, lançado em 2003 e é mantido pela empresa americana Linden Lab.
17
Disponível em: https://books.apple.com/us/book/newsgames-teoria-geral-aplicada-dos-games-
baseados/id982975459
6
STINSON, 2002), ninguém está construindo o metaverso como algo totalmente novo,
pois toda a sua plataforma é soma de diversas tecnologias já desenvolvidas. Beneville
acredita ainda na possibilidade de ocorrer navegação em múltiplos metaversos,
previsão que coaduna com a nossa tese de que a tecnologia metaversa, embarcada
também dos newsgames, possa se juntar a eles em um futuro próximo.
[Michael Beneville] ‘O que quer que o metaverso venha a ser, será a junção de todas essas
coisas no que melhor atender à humanidade. No futuro, as pessoas não irão experienciar
um único metaverso; elas irão navegar em metaversos múltiplos e interoperáveis, todos
com a capacidade de se conectarem uns aos outros em uma tapeçaria de espaços digitais, e
todos movidos pelo blockchain e por moedas internas de plataformas que irão abastecer
suas meta-economias’. (STINSON, 2002)
2 - Convergência e divergência entre plataformas
A questão que se coloca em discussão é como deve ocorrer as convergências e
divergências entre essas duas plataformas ludoinformacionais, cujos motores giram
em torno da manipulação de dados culturais, políticos e econômicos por meio da plena
interação e imersão do usuário. Nessa realidade de complementaridade, portanto de
convergência, a interface entre real e virtual deve se dar dentro de um imenso
caleidoscópio cognitivo
18
, para onde devem se convergir todas as ações e
comunicações, oriundas do mundo real em direção ao universo virtual, e vice-versa,
independente de conteúdo e/ou formatos de mídia existentes, como mencionado
acima por Beneville e citado por Stinson (2002). Porém, ao menos do ponto de vista do
gênero, as duas plataformas divergem entre si. Enquanto o metaverso está centrado
numa espécie de entretenimento alargado
19
, os newsgames usam a informação
noticiosa, baseada num estrutura flexibilizada
20
, como base narrativa em ambiente
lúdico. Em algum momento, essas plataformas e suas interconexões midiáticas irão se
cruzar na rede 3D num cenário de sinergias e ambivalências entre entretenimento e
informação, evidenciando lacunas relativas a mecanismos de controle social,
mudanças no status de cidadãos, fragilidade institucional do Estado e o virtual
surgimento de autocracias.
Na galáxia do metaverso em si, a virtualização do real em escala imersiva apresenta
questões que preocupam pais e educadores como, por exemplo, a difusão e
manipulação de informação falsa, fraudes bancárias e conteúdos pedófilos, sem contar
a crescente bipolarização ideológica na rede. Em contraponto, os newsgames podem
atuar como uma espécie de ‘bombeiro informativo’, apagando o fogo onde houver
sinais de fumaça de informação manipulada, como por exemplo, conteúdos
ideologizados com algum viés político, étnico ou religioso. Claro, não dá para prever
como isso se dará na prática, pois a tecnologia metaversa ainda está em fase de testes.
18
Somos um dos poucos pesquisadores a encarar os newsgames como um enorme caleidoscópio cognitivo, que não
permitiria subdividi-lo em classificações editoriais como se faz no jornalismo tradicional e online.
19
Trata-se de entretenimento mais ampliado em relação à internet atual; um ambiente virtual imersivo, coletivo e
hiper-realista, onde as pessoas poderão conviver usando avatares customizados 3D.
20
São chamadas notícias 3D (NewNews) que não seguem a mesma rigidez conceitual da notícia tradicional, baseada
nos seis elementos do lead (por que, onde, o que, quando, quem, como). (SEABRA & SANTOS (2014)
7
Aliás, os protótipos vêm apresentando diversos problemas de configuração. Contudo,
Castells (2015) é cético em relação a qualquer tipo de tecnologia em si no sentido de
promover mudanças políticas reais. Segundo ele, os meios tecnológicos pouco podem
fazer para evitar a crescente dominação política e a exploração comercial das pessoas
ao redor do planeta. Para Castells,
os urbanistas sabem utilizar o potencial tecnológico atual para melhorar transporte,
qualidade de vida, saúde, educação, meio ambiente. Mas as empresas só se ocupam de suas
ganâncias e os políticos se dedicam prioritariamente a manter seu poder. Dessa forma,
ainda que estejamos conectados, estamos cada vez mais desconectados do poder que
delegamos e da riqueza que produzimos com nosso trabalho. (CASTELLS, 2015)
Ao contrário das posições de Castells, este artigo se pauta justamente nas premissas,
segundo as quais, tanto o metaverso quanto a plataforma dos newsgames podem, sim,
auxiliar de forma convergente a agenda multicivilizatória que começou a emergir a
partir dos recentes conflitos entre Rússia e Ucrânia, no Leste Europeu. Mesmo porque,
a tecnologia em si não é determinista, haja vista que as duas Coreias se desenvolveram
ao longo do séc.XX de forma díspares, embora ambas tenham se utilizado das mesmas
tecnologias de comunicação e produção disponibilizadas à época nos dois países
asiáticos. Vale lembrar que a Coreia do Sul se tornou capitalista e a do Norte optou
pelo comunismo, preferindo se aliar à extinta União Soviética (URSS).
3- Sinergias e ambivalências: informar e entreter
Embora seja uma evolução da internet atual 2D, o metaverso surge como ambiente
virtual imersivo, coletivo e hiper-realista, onde as pessoas poderão conviver usando
avatares customizados em 3D e fones de ouvido para se comunicar dentro da
plataforma. Para entender o conceito, basta comparar o metaverso com a internet de
hoje. Atualmente, as redes sociais são as principais mediadoras do ambiente virtual.
Por meio de celulares e computadores é possível o usuário acessar a sua ‘vida digital’,
experiência que será ainda mais interativa e imersiva na nova plataforma. Mais do que
surfar em ambientes virtuais 2D, será possível vivenciá-la por dentro em três
dimensões, o que tiraria do usuário aquela sensação de ‘controle’ do meio, se é que já
teve essa sensação alguma vez. Afinal, as pessoas tendem a confundir qualquer
suporte midiático
21
(material físico) com de entretenimento disponibilizado (conteúdo
simbólico), razão pela qual a informação noticiosa acaba perdendo a sua capacidade
de influência por ser veiculada em mídias que, na perspectiva do senso comum, são
encaradas pelos usuários, geralmente, como suportes de diversão, mesmo que de
forma inconsciente para a maioria deles. Um exemplo são os smartphones. Em
princípio, a nosso ver, no metaverso pressupõe-se a emulação de um ambiente de
21
O termo suporte (de texto ou de gênero) tem se tornado recorrente no debate teórico sobre linguagem nos
últimos anos, ao menos no Brasil e em alguns países europeus (notadamente, na França). A definição de suporte é,
contudo, uma questão ainda em aberto (Bonini, 2011). Essa caracterização passa necessariamente pelo
levantamento da relação entre suporte e gênero, para a qual foram esboçadas na literatura, até o momento, três
explicações: 1- Marcuschi (2003) defende a tese de suporte como elemento material (físico) e o gênero como
elemento simbólico; 2-Bonini (2005) defende duas formas: os físicos e os convencionados; e 3 – Távora (2008)
centra-se entre o material (físico), representando o suporte, e o convencional (simbólico), representando o gênero.
8
entretenimento alargado, uma vez que a maioria das empresas que desenvolvem essa
nova plataforma a relaciona a jogos de interação social
22
. Segundo Phil Spencer (citado
por Stinson (2002), responsável pelo projeto que vem sendo desenvolvido pelo
Windows, a iniciativa envolve o console de videogame Xbox, que estaria planejando
criar uma ‘realidade mista’, embora a empresa de Bill Gates também esteja projetando
ainda um ‘metaverso empresarial’, que no fundo é um jogo de interação social entre
pessoas interessadas em tranding view
23
. Na mesma seara dos videogames, a empresa
Epic Games, proprietária do jogo Fortnite, está desenvolvendo projetos para a nova
plataforma, que poderão ser incorporados ao game. Para plataformas como a
Spatial.io, o Microsoft Mesh e a Horizon Worlds (Facebook), o ambiente metaverso
parece uma extensão do trabalho ou da vida natural de cidadãos comuns, onde
avatares podem se encontrar em ambientes modernos ou paisagens alienígenas para
reuniões sociais. Do outro lado da mesma moeda, há bem mais tempo, grandes
plataformas como The Sims, Minecraft, Second Life, e Roblox já desenvolviam mundos
virtuais sem levar a denominação de metaverso. Contudo, esses suportes permitiam
que seus jogadores também construíssem suas próprias estruturas e explorem
paisagens em expansão constante, tal qual propõe a tecnologia metaversa.
Independente de ser mais ou menos lúdico, o metaverso abre definitivamente uma
caixa de Pandora para a manipulação nociva da informação, implicando, sim, em
questões relativas ao mundo real. Pois, as características arquitetônicas próprias do
novo ambiente virtual pode criar zonas cinzentas de percepção, principalmente para
usuários imaturos cognitivamente, como adolescentes e crianças. Como explica
Johnatan (2022), os usuários investidos com seus avatares digitais irão surfar por uma
série de labirintos metaversos, cuja percepção pode ser esvaziada à medida em que
vão desbravando esse novo mundo quase infinito.
Avatares digitais podem perambular por uma série de labirintos aparentemente infinitos de
salas pintadas pela luz solar e cujas características arquitetônicas parecem ter sido retiradas
de um desenho do artista M.C. Escher. As salas foram projetadas com uma suavidade
nebulosa que segundo Lesmes ajudam nos tempos de carregamento e para aliviar olhos
viciados a telas a se acostumarem a um novo ambiente. “A iluminação é incrivelmente
importante; ela pode tornar um espaço virtual muito mais agradável. (JOHNATAN, 2022)
Como não associar termos como imersão, interação e alienação em um contexto de
distorção virtual num ambiente de realidade aumentada? Em contraponto, os
newsgames apresentam-se como uma espécie de ‘firewall cognitivo’ que
instrumentaria o usuário a se ‘defender’ de possíveis reveses desse entretenimento
ampliado, estimulado pelos nebulosos labirintos emulados pelo metaverso. Embora
também abarque possibilidades informativas, a essência dessa plataforma flerta mais,
em um sentido amplo, com o entretenimento do que com a função referencial
24
da
22
São jogos que promovem a aproximação social entre usuários em diferentes formas de sociabilidade.
23
São plataformas de negociação social que permite ao usuário conversar com milhões de traders de diversos
países em tempo real, leia e publique ideias de trade diretamente em gráficos ou assista e grave ideias em vídeo.
24
O compromisso com a informatividade é sua principal característica; caracteriza-se pela mensagem centrada
naquilo de que se fala
9
informação. Ao menos teoricamente, a informação baseada no referente tornaria a
realidade mais previsível e controlável, uma vez que está em questão, como pondera
Castells (2015), a vida do ser humano transformada em dados
25
.
Nesse mundo digitalizado e conectado, o Estado nos vigia e o Capital nos vende, ou seja,
vende nossa vida transformada em dados. Vigiam-nos pelo nosso bem, para proteger-nos
do mal. E nos vendem com nossa própria concordância, quando aceitamos cookies e
confiamos nos bancos que nos permitem viver de crédito (e, portanto, julgam-se no direito
de saber a quem fornecem cartão). Os dois processos, a vigilância eletrônica maciça e a
venda de dados pessoais como modelo de negócio, ampliaram-se exponencialmente na
última década, pelo efeito da paranoia da segurança, a busca de formas para tornar a
internet rentável e o desenvolvimento tecnológico da comunicação digital e do tratamento
de dados. (CASTELLS, 2015)
Em um ambiente de hiper-realismo, a imersão interativa pode criar aquilo que
Lazarsfeld e Merton classificam como disfunção narcotizante
26
, em função do grande
volume de informação disponibilizada. Essa disfunção pode ser relacionada também à
teoria de Walter Benjamin sobre a hiperestimulação sensorial do mundo moderno, na
qual os estímulos, principalmente os visuais, por serem difundidos de maneira tão
ampla em nossa sociedade, acabam banalizando-se e tornando-se imperceptíveis.
Claro, isso já acontece nas redes sociais, mas seria muito mais potencializado em um
ambiente imersivo 3D. Como já mencionamos, na maioria das organizações do Vale do
Silício, o desenvolvimento do metaverso é voltado quase que exclusivamente para
conteúdos ligados ao entretenimento, pois funcionam basicamente como games de
interação social em diversos níveis. Desse modo, é essencial nos debruçar sobre o
poder dos newsgames em promover uma confrontação exógena ao conteúdo
disponibilizado, seja dentro ou fora do metaverso, dispondo de mecanismos de
interoperabilidade. Afinal, a essência da narrativa dos newsgames é a análise,
confrontação e proposição de informação que promove engajamento social, cultural e
político nos jogadores, assim como já ocorre nas redes sociais 2D. Porém, com um
detalhe importante: de forma imersiva e labiríntica. Sendo assim, os jogos informativos
podem ser usados como mídias alienígenas ou endógenas no âmbito do metaverso.
Basta criar as bases tecnológicas para que essa possibilidade seja possível. Isto porque,
numa plataforma 3D, os usuários correm mais riscos de serem manipulados a partir de
conteúdos ideologizados, uma vez que os algoritmos big data os conhecem melhor que
eles a si mesmos. Mas, não foi sempre assim, como aponta Castells (2015),
(...) porque não estávamos digitalizados e não existiam tecnologias suficientemente
potentes para obter, relacionar e processar essa imensa massa de informação. A
emergência do chamado big data, gigantescas bases de dados em formatos comunicáveis e
25
Dado puro é o registro sem conexões ou interpretações. Uma informação gravada em seu estado natural, sem
necessariamente contexto. Dados podem ser números, palavras, imagens, entre outros registros. O mais
importante é entender que trata-se de um dado bruto, ou Raw Data como é chamado na área de informática, que é
aquele dado/valor recolhido e estocado exatamente da forma que foi adquirido, sem qualquer tipo de tratamento
ou interpretação (...) o dado puro quando ganha contexto vira Informação. (CAPPRA, 2015)
26
A exposição a grandes quantidades de informação pode provocar a chamada disfunção narcotizante (Lazarsfeld &
Merton, 1948), podendo acarretar na chamada dissonância cognitiva (Festinger, 1957), que remete à necessidade
do indivíduo de procurar coerência entre suas cognições (conhecimento, opiniões ou crenças); ocorre quando existe
uma incoerência entre as atitudes ou comportamentos que acredita serem certos e o que realmente é praticado.
10
acessíveis (como o imenso arquivo da Agência Nacional de Segurança dos EUA — NSA — em
Bluffdale, Utah) resultou no reforço dos serviços de inteligência depois do bárbaro ataque a
Nova York, assim como da cooperação entre grandes empresas tecnológicas e governos, em
particular com a NSA (que é parte do Ministério de Defesa dos EUA, mas goza de ampla
autonomia). (CASTELLS, 2015)
Por sua vez, como sugere Pierre Lévy (1993), a audiência só sairá da sua famigerada
inércia social a partir de um envolvimento emocional com a informação que consumir.
No caso de a fruição ocorrer num ambiente imersivo, como o metaverso, a tendência é
que o usuário apreenda e compreenda a informação mesmo que ela seja
disponibilizada em uma plataforma lúdica. Segundo Lévy, a emoção contribui de forma
incisiva na apreensão e compreensão de informação, porque revela o envolvimento
pessoal com a mensagem recebida. Portanto, de acordo com Lévy,
a implicação emocional das pessoas face aos itens a lembrar irá igualmente modificar, de
forma drástica, suas performances mnemônicas. Quanto mais estivermos pessoalmente
envolvidos com uma informação, mais fácil será lembrá-la] (LÉVY, 1993).
4- Controle social e mudanças no status do cidadão
Como afirma Castells (2015), 97% da informação do planeta está digitalizada, a maior
parte dessa informação é produzida por meio da internet e redes de comunicação sem
fio. Ao nos comunicar, transformamos boa parte de nossas vidas em registros digitais,
o que nos torna reféns de mecanismos de controle social, tanto por parte do Estado
quanto por parte de grandes empresas de mídia e tecnologia. Segundo Castells, esses
dados são comunicáveis e acessíveis via interconexão de arquivos de redes, o que
coloca cada um de nós numa posição de vulnerabilidade perante os provedores de
informação, cujos mecanismos de controle social implicam na mudança de status dos
cidadãos, reduzindo-os a meros doadores de dados, como ilustra Castells, diante da
progressiva transferência de informação pessoal para empresas de mídia e tecnologia.
Com uma identificação individual que se conecta com nossos cartões de crédito, nosso
cartão de saúde, nossa conta bancária, nosso histórico pessoal e profissional (incluindo
domicílio), nossos computadores (cada um com seu número de código), nosso correio
eletrônico (requerido por bancos e empresas de internet), nossa carteira de motorista, o
número do registro do carro, as viagens que fazemos, nossos hábitos de consumo
(detectados pelas compras com cartão ou pela internet), nossos hábitos de música e leitura,
nossa presença nas redes sociais (tais como Facebook, Instagram, YouTube, Flickr ou Twitter
e tantos outros), nossas buscas no Google ou Yahoo e um amplo etcetera digital. E tudo isso
referido a uma pessoa: você, por exemplo. (CASTELLS, 2015)
E, como sustenta Castells, supondo-se que sem sombra de dúvidas as identidades
individuais estejam legalmente protegidas e os dados de cada um de nós sejam
realmente privados. Evidentemente, isso pode ser verdade até o momento que esses
dados deixem de ser privados pelo fato de terem caído na rede por engano, ou
intencionalmente. E essas exceções, ressalta Castells, que na verdade são a regra, e
guardam uma relação quase de simbiose com as duas instituições centrais em nossa
sociedade: o Estado e o Capital. A prova dessa interseção capitalista veio em 2013,
11
com as revelações de Edward Snowden
27
sobre práticas de espionagem permanente
de cidadãos comuns. Com escassa proteção judicial ou simplesmente ilegais, como
afirma Castells, essas descobertas expuseram no mundo todo uma sociedade em que
nada pode escapar à vigilância do chamado Grande Irmão, nem a ex-primeira ministra
da Alemanha, Angela Merkel.
Nesse mundo digitalizado e conectado, o Estado nos vigia e o Capital nos vende, ou seja,
vende nossa vida transformada em dados. Vigiam-nos pelo nosso bem, para proteger-nos
do mal. E nos vendem com nossa própria concordância, quando aceitamos cookies e
confiamos nos bancos que nos permitem viver de crédito (e, portanto, julgam-se no direito
de saber a quem fornecem cartão). Os dois processos, a vigilância eletrônica maciça e a
venda de dados pessoais como modelo de negócio, ampliaram-se exponencialmente na
última década, pelo efeito da paranoia da segurança, a busca de formas para tornar a
internet rentável e o desenvolvimento tecnológico da comunicação digital e do tratamento
de dados. (CASTELLS, 2015)
Inevitavelmente, essas fragilidades do usuário, diante de um mundo cada vez mais
digitalizado e conectado, expõem intenções enviesadas de mecanismos de controle
social, que reduzem cidadãos comuns a meros doadores de dados pra fins políticos e
comerciais, de modo que suas decisões não são guiadas pela vontade própria, mas por
interferência de conteúdos manipulados por algoritmos big data. E, num ambiente 3D
de entretenimento alargado, o metaverso potencializa essas e outras possibilidades de
ações ideologizadas. Em contrapeso, os newsgames podem funcionar como um
instrumento de promoção de uma equidade informacional em rede. Ou seja, mitigar
possíveis interferências de caráter manipulatório baseado em dados pessoais,
capturados de forma ainda mais sofisticada.
5 - Fragilidade do Estado e advento de autocracias
A partir da segunda década do Século XXI, o mundo vem testemunhando um tipo novo
de fenômeno ao redor do planeta: os grandes protestos sociais. Da Primavera Árabe
ao Ocuppy Wall Street, passando pelas manifestações de rua em Londres, Paris até os
protestos nas principais capitais do Brasil e as marchas dos trabalhadores sem-terra,
criando um espécie de movimento distópico contra o sistema legal institucionalizado.
Aliás, um dia após a Rússia ter lançado suas tropas contra a Ucrânia, cidadãos russos
foram às ruas de Moscou protestar contra o regime de Wladimir Putin. Nesses
movimentos, há algo em comum: o uso da Internet como ferramenta de aglutinação
espontânea de cidadãos indignados, que usam a força das ruas para dar visibilidade a
todo tipo de injustiça social. Assim, Castells (2016) descreve:
Todos eles são protestos sociais, porque as pessoas protestam contra as muitas injustiças
em todos os âmbitos. Mas há movimentos específicos, que eu chamo de movimentos em
rede, que têm características similares em todo o mundo. (...) identifico os traços
característicos dos movimentos sociais da sociedade em rede, movimentos que articulam a
presença na internet com a presença espontânea nas ruas e praças, movimentos
descentralizados, que surgem espontaneamente da indignação contra a injustiça, sem
27
Era um analista de sistemas, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA que tornou públicos em
2013 detalhes de vários programas que constituem o sistema de vigilância global da NSA americana.
12
organização partidária e sem liderança centralizada. Seus temas e origens são muito
diversos, mas repetem as mesmas formas e em todos eles o espaço de autonomia que a
rede representa é essencial. (CASTELLS, 2016)
Esse tipo novo de fenômeno social coloca em xeque o sistema estatal e interestatal
vigente atualmente na Europa, Ásia e América do Norte, isso sem contar os países
periféricos. Em outras palavras, as formas atuais de representação política em torno de
parlamentos desacreditados. Ao que tudo indica, a crise política entre Ucrânia e Rússia
tende a promover o avanço acelerado de uma nova ‘era multicivilizacional’. Segundo
Fiori (2022), a emergência desse novo status quo irá redesenhar toda a geopolítica e
valores mundiais arraigados na cultura, rompendo com a hegemonia política dos
últimos 500 anos, baseada em um projeto planetária cunhado a partir de um
expansionismo assentado na tradição greco-romana e judaico-cristã.
Tudo indica que o avanço desta nova ‘era multicivilizacional’ já não tem como ser revertido,
nem há mais como devolver o sistema mundial à sua situação anterior, de completa
supremacia eurocêntrica. E mesmo que o eixo do sistema mundial ainda não tenha se
deslocado inteiramente para a Ásia, o certo é que já se estabeleceu um novo ‘balanço de
poder’ que deslocou a hegemonia anterior, do projeto universal e do ‘expansionismo
catequético’ da tradição greco-romana e judaico-cristã. (FIORI, 2022),
Nesse contexto de rupturas geopolíticas, ambivalências entre fragilidade estatal e
surgimento de governos autocráticos são potencializadas pelas novas tecnologias de
comunicação (NTC’s), inteligência artificial (IA) e algoritmos big data, de modo que o
advento do metaverso ganha ainda mais importância, por se tratar de uma plataforma
imersiva controlada por algoritmos com alto poder de ideologização midiática,
podendo tornar os usuários reféns de toda sorte de manipulação como nunca
estiveram em protestos de rua. Porque, como alerta Castells (2016), vivemos uma
nova ética mundial e a velha forma de repressão social não pode ser mais ser exercida
como antes. Assim, o que restaria aos poderosos é o exercício da manipulação de
corações e mentes em ambientes cada vez mais digitalizados.
A repressão é a forma mais fraca de poder. É muito mais eficaz manipular as mentes do que
torturar os corpos. O poder que precisa matar é um poder débil, fraco, erodido. O custo
político dos sistemas que reprimem violentamente é tão alto e a capacidade de reconstruir
legitimidade é tão lenta que a repressão violenta de grande escala é apenas exercida
quando o sistema precisa absolutamente. Não é o caso dos países ocidentais hoje.
(CASTELLS, 2016)
Mas, o mesmo não podemos dizer, com segurança, em relação aos países do Leste
Europeu, após a invasão russa à Ucrânia, contra um país soberano com seu presidente
eleito democraticamente. Para Fiori (2021), na nova ordem mundial cria-se uma
espécie de diáspora étnico-cultural, em que os velhos modelos civilizatórios, em
especial do mundo ocidental, não coadunam mais com uma realidade cada vez mais
multicivilizacional, erguida a partir da segunda década do sec.XXI, principalmente após
o advento das chamadas mídias sociais. E tudo isso fica ainda mais descontrolado com
as infinitas possibilidades do metaverso.
13
Já não existe mais um único ‘critério ético’, tampouco existe mais um único juiz com poder
para arbitrar todos os conflitos internacionais, com base na sua própria ‘tábua de valores’. E
já não é mais possível expulsar os ‘novos pecadores’ do ‘paraíso’ inventado pelos europeus,
como aconteceu com os lendários Adão e Eva. Como essa supremacia acabou, talvez seja
possível, ou mesmo necessário, que o Ocidente aprenda a respeitar e conviver de forma
pacífica com a “verdade” e com os “valores’ de outras civilizações. (FIORI, 2021).
Diante desse cenário de mudanças quase inegociáveis, a engenharia metaversa altera
e acelera artificialmente qualquer processo de manipulação política do mundo real por
meio de algoritmos big data. Se não houver um sistema de freios e contrapesos, a
tendência é ocorrer rupturas políticas numa velocidade nunca antes vistas no mundo.
Para deter qualquer sanha manipuladora do real, é necessário criar ‘barreiras de
contenção midiáticas’ para fazer valer a real e verdadeira autodeterminação dos
povos. Pois, mecanismos que fragilizam institucionalmente o Estado abrem caminho
para a ascensão de autocracias, como se vê ainda hoje em dia no Leste Europeu, Ásia,
Oriente Médio e América Latina. Então, como evitar a fragilização institucional do
Estado sem ferir prerrogativas legais que possam reduzir o cidadão a status de párea
social? Em seu artigo ‘Vigiados e vendidos’, Castells (2015) alerta para esse crescente
controle do Estado sobre o cidadão diante da gradativa flexibilização legal para que os
meios (espionagem até do cidadão comum) possam justificar os fins (segurança
institucional do Estado e monetização de empresas de mídia e tecnologia). Certa vez, o
diretor da NSA, Michael Hayden, declarou que, para identificar uma agulha num
palheiro (o terrorista na comunicação mundial) é necessário controlar todo o palheiro
— e é isso que o Estado acabou conseguindo, segundo seus próprios critérios, com
uma cobertura legal mais flexível, porém, inidônea.
Ainda que os Estados Unidos sejam o centro do sistema de vigilância, os documentos de
Snowden mostram a cooperação ativa com as agências especializadas de vigilância do Reino
Unido, da Alemanha, da França e de qualquer país, com exceção parcial da Rússia e da
China, salvo em momentos de convergência. Na Espanha, depois da escandalosa revelação
de que a NSA havia interceptado 600 milhões de chamadas telefônicas, Snowden apontou
que na realidade a CNI havia feito isso por conta da NSA. Seguia a política do ex-primeiro-
ministro José Maria Aznar, que deu ao presidente norte-americano George W. Bush
permissão ilimitada para espionar na Espanha em troca de material avançado de vigilância.
E vigiaram qualquer pessoa que estivesse compartilhando informação. (CASTELLS, 2015)
Para evitar ou apenas minimizar qualquer tipo de enfraquecimento institucional do
Estado e a possível ascendência de ditaduras pelo mundo, é preciso criar mecanismos
anti-manipulação de conteúdo na esfera da comunicação digital, como já vê contra as
fakes news, cujo expediente vil vem sendo usado tanto por partidários da direita como
da esquerda, para defender suas posições ideológicas ao redor do mundo. Por seu
poder de análise, confrontação e proposição informativa, os newsgames podem
funcionar sinergeticamente como fonte crítica e de autodefesa do cidadão no
metaverso, para enfrentar qualquer tipo novo de manipulação induzida que possa
subsistir no futuro. Sob a ótica de Castells (2015), ainda que a vigilância sem controle
do Estado seja uma ameaça à democracia, a erosão da privacidade provém
essencialmente da prática das empresas de comunicação de obter dados de seus
14
clientes, agregá-los e vendê-los. No ciberespaço, os usuários são vendidos em forma
de dados, sem qualquer censura legal. Em 2018, o CEO do Facebook, Mark
Zuckerberg
28
, foi pressionado por senadores em depoimento no Congresso dos EUA,
sobre o uso de dados pela empresa Cambridge Analytica, que teria contrariado as
próprias regras da rede social. Um exemplo dessa flexibilização que abusa da boa-fé do
cidadão pode ser constatada ainda na política de privacidade publicada pelo Google:
o buscador outorga-se o direito de registrar o nome do usuário, o correio eletrônico,
número de telefone, cartão de crédito, hábitos de busca, pedidos de busca, identificação de
computadores e telefones, duração de chamadas, localização, usos e dados das aplicações.
Fora isso, respeita-se a privacidade. Por isso o Google dispõe de quase um milhão de
servidores para processamento de dados. (CASTELLS, 2015).
Claro, essa bisbilhotagem por parte das empresas de mídia, principalmente nas redes
sociais, tende a ser ainda maior no metaverso. Pois, essa prática ocorre também entre
os poderosos. Segundo a Agência TASS
29
, há cerca de 20 anos, o ditador Wladimir
Putin orientou oligarcas russos a retirarem seus ativos de paraísos fiscais, porque sabia
que nenhuma conta era totalmente imune a violações. Assim, evitou que bilionários
russos perdessem ativos quando o Ocidente decidiu impor sanções econômicas,
durante a invasão da Rússia à Ucrânia em 2022. Mas, como minimizar tal prática dos
dois lados? Apostando no mesmo expediente usado pelos algoritmos big data, que
nada mais são do que formas avançadas de jogabilidade provenientes dos velhos
videogames. Afinal, a mecânica de qualquer jogo – sendo ele de tabuleiro, eletrônico
ou digital – trabalha essencialmente com condicionantes, aquilo que os algoritmos
agora fazem de maneira mais acurada e assertiva com base nos dados capturados,
muitas vezes, sem permissão do usuário. Assim, tal como no combate à intromissão
indesejada do Estado, os newsgames podem funcionar, de forma sinergética, contra a
erosão da privacidade em ambiente metaverso. E melhor, com a permissão do usuário.
Considerações finais
Não há dúvida de que a tecnologia do metaverso, somada à sinergia dos newsgames,
transformará a noção que temos sobre a forma de se comunicar num ambiente de
informação tridimensional. E as possíveis sinergias, ambivalências, convergências e
divergências supracitadas entre essas duas plataformas ludoinformacionais podem
auxiliar e fortalecer movimentos sociais em rede, uma vez que o velho modelo de
representação política parece desgastado e incapaz de atender as novas demandas
multicivilizacionais. Como afirma Castells, se houvesse vontade das elites, a
comunicação em rede oferece enormes possibilidades de incrementar essa
participação cidadã no debate público. A nosso ver, essa mobilização espontânea dos
cidadãos comuns é possível, inclusive, em um ambiente metaverso desde que hajam
28
Acessado em 28 de fevereiro de 2002. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/em-
depoimento-de-zuckerberg-senadores-questionam-modelo-do-facebook.shtml
29
Acessado em 06 de março de 2002. Disponível em: https://www.theedgemarkets.com/article/tass-myth-
inviolability-private-property-us-eu-ruined-%E2%80%94-duma-speaker
15
freios e contrapesos baseados em plataformas informativas que potencializem o
contraditório, a exemplo da tecnologia metaversa dos newsgames.
Afinal, os games como emuladores de notícias podem auxiliar na análise, confrontação
e proposição informativa, apontando possíveis desvios manipulatórios potencializados
em um ambiente metaverso. Em um contexto de disrupção do sistema político
baseado em canais institucionalizados, a sinergia entre plataformas ludoinformacionais
contribui para que formas autônomas de debate, organização e manifestação online
ganhem também a força das ruas, e vice-versa. Nesse sentido, tomando carona nas
palavras de Castells, a comunicação em rede num ambiente metaverso pode revitalizar
a democracia tradicional e criar uma nova forma de representação democrática por
meio de plataformas ludoinformativas, que demarcariam um novo tipo de
representação extraparlamentar, indo contra os velhos partidos burocratizados
recheados de políticos corruptos. Em geral, salienta Castells, esses protestos
espontâneos em rede são um sintoma da crise da democracia representativa atual,
dominada por partidos a serviço deles mesmos e não dos cidadãos, para quem a
política deveria demandar seus esforços.
Além de denunciar eleições controladas por dinheiro e meios de comunicação que
promovem agendas ocultas, esses movimentos externos a uma forma de
representação parlamentar tradicional emergem ainda para combater a corrupção
sistêmica e partidária ao redor do mundo. Um exemplo dessa participação
extraparlamentar ocorreu no 5º dia da invasão russa à Ucrânia, quando a Fifa foi
pressionada pela comunidade internacional a voltar atrás na posição tomada no dia
anterior, que garantia a permanência da seleção russa na disputa das eliminatórias
para a Copa do Mundo no Catar, em 2022. Mas bastou a mobilização social (por parte
de jogadores de outras seleções e clamor das redes sociais) para que entidade maior
do futebol banisse a Rússia do próximo mundial. Isso só foi possível porque as formas
de controle tradicionais estão se dissolvendo, por isso o sistema político atual está em
uma crise profunda de legitimidade e representatividade em todo o mundo. Mas, ao
mesmo tempo, alerta Castells, a vigilância eletrônica e o controle social mediante a
tecnologia estão aumentando as capacidades do estado autoritário de utilizar a fundo
a tecnologia para contrariar as mobilizações democráticas e a demanda de
transparência para reforçar o domínio e limitar a democracia. Por isso, não sejamos
tolos, afinal os donos das plataformas metaversas podem atuar, sim, como um novo
Wladimir Putin em três dimensões..
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