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Precarização do Trabalho Travestida de Modernidade: uma Análise da Tarefa de Entregadores de Mercadorias

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Abstract

Resumo O trabalho vem passando por modificações intensas nas últimas décadas e o chamado trabalho "uberizado", mediado por plataformas de aplicativo, tem absorvido milhões de trabalhadores em todo o mundo. Esse cenário já justificaria a necessidade de se compreender melhor esse tipo de trabalho, mas o distanciamento social provocado pelo novo coronavírus torna o desafio ainda maior, já que restringe a presença do pesquisador em campo. Diante disso, a atual pesquisa tem como objetivo oferecer uma proposta metodológica alternativa em momentos de distanciamento social e, a partir disso, analisar as características das relações de trabalho existentes entre essas empresas e os entregadores. Realizou-se uma Análise da Tarefa, etapa metodo-lógica da Análise Ergonômica do Trabalho, com 15 entregadores de mercadorias. Os resultados revelam a existência de perfis de comportamento sub-metidos à precarização, bem como a estratégia, pelas empresas-plataforma, em travesti-la com a retórica da necessidade de modernização do trabalho. Palavras-chave: precarização do trabalho, uberização, plataformas digitais. Abstract The work of delivery drivers has undergone intense changes in recent decades and the so-called "uberized" work, mediated by application platforms, has absorbed millions of workers around the world. This scenario justifies the need to better understand this type of work, although the social distancing caused by the new coronavirus makes the challenge even greater, as it restricts the researcher's presence in the field. Therefore, the objective of this current research is to analyze the characteristics of the existing work relationships between delivery companies and the couriers. Task analysis-a methodological stage of ergonomic work analysis-was carried out with 15 delivery people, aiming to offer an alternative methodological proposal in moments of social distancing. The results reveal the existence of behavior profiles subjected to precariousness, as well as the strategy, by the platform-companies, to cross this with the rhetoric of the need to modernize work. Resumen El trabajo ha sufrido intensos cambios en las últimas décadas y el lla-mado trabajo "uberizado", mediado por plataformas de aplicaciones, ha absorbido a millones de trabajadores en todo el mundo. Este escenario justificaría la necesidad de comprender mejor este tipo de trabajos, pero la distancia social que genera el nuevo coronavirus hace que el desafío sea aún mayor, ya que restringe la presencia del investigador en campo. Por ello, la presente investigación tiene el objetivo de ofrecer una propues-ta metodológica alternativa en momentos de distanciamiento social y, a partir de ello, analizar las características de las relaciones laborales entre estas empresas y los repartidores. Se realizó un Análisis de Tareas, una etapa metodológica del Análisis Ergonómico del Trabajo, con 15 repar-tidores de mercaderías. Los resultados revelan la existencia de perfiles de comportamiento sometidos a la precarización, así como la estrategia, por parte de las empresas-plataforma, de travestirlo con la retórica de la necesidad de modernizar el trabajo.. Palabras clave: precarización del trabajo, uberización, plataformas digitales.
Resumo
O trabalho vem passando por modicações intensas nas últimas décadas e o chamado trabalho “uberizado”, mediado por plataformas de aplicativo, tem
absorvido milhões de trabalhadores em todo o mundo. Esse cenário já justicaria a necessidade de se compreender melhor esse tipo de trabalho, mas
o distanciamento social provocado pelo novo coronavírus torna o desao ainda maior, já que restringe a presença do pesquisador em campo. Diante
disso, a atual pesquisa tem como objetivo oferecer uma proposta metodológica alternativa em momentos de distanciamento social e, a partir disso,
analisar as características das relações de trabalho existentes entre essas empresas e os entregadores. Realizou-se uma Análise da Tarefa, etapa metodo-
lógica da Análise Ergonômica do Trabalho, com 15 entregadores de mercadorias. Os resultados revelam a existência de pers de comportamento sub-
metidos à precarização, bem como a estratégia, pelas empresas-plataforma, em travesti-la com a retórica da necessidade de modernização do trabalho.
Palavras-chave: precarização do trabalho, uberização, plataformas digitais.
Revista Psicologia: Organizações & Trabalho (rPOT)
Psychology: Organizations and Work Journal
Revista Psicología: Organizaciones y Trabajo
ISSN 1984-6657 - https://doi.org/10.5935/rpot/2021.4.22227
Abstract
The work of delivery drivers has undergone intense changes in recent
decades and the so-called “uberized” work, mediated by application
platforms, has absorbed millions of workers around the world. This
scenario justies the need to better understand this type of work,
although the social distancing caused by the new coronavirus makes
the challenge even greater, as it restricts the researcher’s presence in
the eld. Therefore, the objective of this current research is to analyze
the characteristics of the existing work relationships between delivery
companies and the couriers. Task analysis — a methodological stage of
ergonomic work analysis was carried out with 15 delivery people,
aiming to offer an alternative methodological proposal in moments of
social distancing. The results reveal the existence of behavior proles
subjected to precariousness, as well as the strategy, by the platform-
companies, to cross this with the rhetoric of the need to modernize work.
Keywords: work precarity, uberization, digital platforms.
Resumen
El trabajo ha sufrido intensos cambios en las últimas décadas y el lla-
mado trabajo “uberizado”, mediado por plataformas de aplicaciones, ha
absorbido a millones de trabajadores en todo el mundo. Este escenario
justicaría la necesidad de comprender mejor este tipo de trabajos, pero
la distancia social que genera el nuevo coronavirus hace que el desafío sea
aún mayor, ya que restringe la presencia del investigador en campo. Por
ello, la presente investigación tiene el objetivo de ofrecer una propues-
ta metodológica alternativa en momentos de distanciamiento social y, a
partir de ello, analizar las características de las relaciones laborales entre
estas empresas y los repartidores. Se realizó un Análisis de Tareas, una
etapa metodológica del Análisis Ergonómico del Trabajo, con 15 repar-
tidores de mercaderías. Los resultados revelan la existencia de perles
de comportamiento sometidos a la precarización, así como la estrategia,
por parte de las empresas-plataforma, de travestirlo con la retórica de la
necesidad de modernizar el trabajo..
Palabras clave: precarización del trabajo, uberización, plataformas
digitales.
Raoni Rocha1, Leonardo Pistolato2,
Eugênio Paceli Hatem Diniz3
1 http://orcid.org/0000-0003-1181-0132 / Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil
2 http://orcid.org/0000-0003-4723-1028 / Universidade Federal de Itajubá (Unifei), Brasil
3 http://orcid.org/0000-0003-0789-0416 / Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO), Brasil
Precarização do Trabalho Travestida de Modernidade:
uma Análise da Tarefa de Entregadores de Mercadorias
Submissão: 16/02/2021
Primeira Decisão Editorial: 14/08/2021
Versão Final: 29/11/2021
Aceite: 29/11/2021
Precarization of Work Disguised as Modernity:
an Analysis of the Work of Delivery Drivers
Precarización del Trabajo Travestida de Modernidad:
un Análisis de la Tarea del Repartidor de Mercaderías
Como citar esse artigo:
Rocha, R., Pistolato, L., & Diniz, E. P. H. (2021). Precarização do Trabalho Travestida de
Modernidade: uma Análise da Tarefa de Entregadores de Mercadorias. Revista Psicologia:
Organizações e Trabalho, 21(4), 1681-1689. https://doi.org/10.5935/rpot/2021.4.22227
1682 Rocha, R., Pistolato, L., & Diniz, E. P. H. (2021).
Nas últimas décadas, o mundo do trabalho vem passando
por múltiplos, complexos e contraditórios movimentos, marcados
pela instabilidade e insegurança em trabalhos realizados sem con-
trato, sem direitos e feitos sob demanda. Uma nova morfologia
do trabalho já vinha se desenhando desde o início do século XXI,
com o desenvolvimento da economia neoliberal no mundo oci-
dental e a explosão do setor de serviços atrelado ao desenvolvi-
mento tecnológico, gerando trabalhos terceirizados, intermitentes
e precarizados (Antunes, 2018).
A pandemia gerada pelo novo coronavírus agudizou esse
processo, presente alguns anos na sociedade. No nal de
2019, período ainda pré-pandêmico, mais de 40% da classe tra-
balhadora brasileira já se encontrava na informalidade e mais de
cinco milhões de trabalhadores experimentava as condições da
uberização (trabalho mediado por plataformas digitais), além das
altas taxas de desemprego (Antunes, 2020). A pandemia causada
pelo SARS-CoV-2 também trouxe consigo uma série de mudanças
no trabalho, ocasionadas, sobretudo, em razão da necessidade de
distanciamento social. Diversos tipos de trabalho, até então pre-
senciais, passaram a ser realizados remotamente, como forma de
conter o avanço do vírus e minimizar os impactos causados pela
pandemia (Castro, Oliveira, Morais, & Gai, 2020).
Algumas atividades prossionais, no entanto, permaneceram
no formato presencial, muitas delas sendo consideradas “ativida-
des essenciais”, tais como aquelas do setor hospitalar, do setor
alimentício, do setor de entregas (delivery), dentre outros. Para essas
categorias, a exposição ao risco aumentou consideravelmente, fa-
zendo-se necessário conhecer o trabalho destes indivíduos, espe-
cialmente neste momento, para que medidas de prevenção possam
ser tomadas (Jackson Filho et al., 2020).
Somado ao novo cenário da pandemia, a autonomia das em-
presas gestoras de aplicativos, ou empresas-plataforma, se susten-
ta no predomínio do receituário neoliberal que vem sendo im-
posto ao país desde o nal do século passado, caracterizado pela
desregulamentação do trabalho, por relações baseadas na con-
corrência extrema e pela atribuição de culpa do desemprego nos
trabalhadores protegidos pela legislação (Galvão, 2007), gerando
uma profunda regressividade produtiva e distributiva (Pochmann,
2020). A política governamental recorrente no Brasil de retirada
de direitos trabalhistas como a reforma trabalhista, a reforma
da previdência e o teto de gastos – entregou, ao contrário do pro-
metido, expressivo excedente de desempregados e precarização da
força de trabalho no Brasil (Kalil, 2020).
Para compreender o real impacto desse cenário no trabalho
das pessoas, seja ele qual for, é necessário lançar mão de discipli-
nas que estudam o trabalhador em ação. Nesse campo, a Ergono-
mia da Atividade é uma das principais representantes, oferecendo
subsídios teórico e metodológicos para compreensão do trabalho
real (Rocha, 2016).
A Ergonomia da Atividade é uma disciplina cientíca que
busca compreender as interações entre os indivíduos e os outros
componentes do sistema por meio da atividade por eles desenvol-
vida no trabalho (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg, & Ker-
guelen, 2001). Essa compreensão se fundamentalmente pela
confrontação entre a tarefa prescrita pelos gestores e a atividade
real desenvolvida pelos trabalhadores da ponta do processo. Para
isso, a Análise Ergonômica do Trabalho (AET) preconiza o desen-
volvimento de uma Análise da Tarefa” – composta basicamente
de análise documental e entrevistas com os trabalhadores com o
intuito de se compreender aquilo que está implícito e explícito em
relação aos objetivos do trabalho – e de uma “Análise da Ativida-
de” – composta por períodos de observação no campo, acompa-
nhamento da atividade e entrevistas com os trabalhadores, bus-
1 Adotaremos os termos utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE) (2020), em sua pesquisa PNAD-Covid, realizada durante a pandemia, que considera
“entregadores de mercadorias” como aqueles que fazem o transporte de encomendas em seus veículos, normalmente através de plataformas digitais.
cando compreender os sentidos dos gestos observados e como o
trabalho acontece em condições reais (Falzon, 2007).
Todavia, sendo uma disciplina etnográca que necessita, por-
tanto, da presença em campo do ergonomista para analisar a ati-
vidade e buscar compreender como o trabalhador coloca seu co-
nhecimento em ação ao executar a tarefa, o distanciamento social
provocado pela pandemia dicultou, inevitavelmente, a aplicação
do método. Neste contexto de acesso restrito, mas com deman-
das urgentes e necessárias de análise do trabalho, principalmente
daquelas categorias que executam atividades essenciais, uma per-
gunta se torna inevitável: como, do ponto de vista da Ergonomia
da Atividade, analisar o trabalho em tempos de distanciamento so-
cial? Nossa hipótese é que o desenvolvimento de uma Análise da
Tarefa aprofundada pode contribuir bastante para a compreensão
do trabalho em momentos nos quais a Análise da Atividade não é
possível de ser realizada.
Buscando responder a essas reexões, foi realizada uma pes-
quisa com uma das categorias mais impactadas pela pandemia cau-
sada pelo SARS-CoV-2: os trabalhadores que prestam serviço de
entrega para as plataformas digitais por meio de aplicativos, ou os
“entregadores de mercadorias”1 , neste caso, do setor de alimenta-
ção. Sem condições de acessar plenamente o campo e analisar de
perto a atividade desses prossionais devido ao distanciamento
social imposto pela pandemia, um grupo formado por três pesqui-
sadores partiu da Análise da Tarefa” proposta pela Ergonomia da
Atividade (Falzon, 2007) para se aproximar da realidade de traba-
lho dessa categoria prossional.
Partindo desse cenário, esse artigo tem um duplo objetivo:
oferecer uma proposta metodológica alternativa para a compreen-
são do trabalho em momentos de distanciamento social; e, a partir
disso, analisar as características das relações de trabalho existentes
entre as empresas-plataforma e os entregadores de alimentos.
O Contexto de Trabalho dos Entregadores de Alimentos
O desenvolvimento capitalista vem ocorrendo de maneira
que a terceirização e a informalidade se tornaram mecanismos
vitais para a sua preservação, levando milhões de homens e mu-
lheres em todo o mundo se encontrarem em situações de traba-
lho precarizado, ou aquele com uma “tendência à informalidade”
(Antunes & Druck, 2015, p. 24), ou seja, sem a garantia de direi-
tos sociais e com baixos níveis de remuneração. Esse movimento
proporcionado pelo capitalismo, associado ao avanço tecnológico
presente na sociedade e no mundo do trabalho criaram o fenôme-
no da uberização, que se tornou a principal manifestação da preca-
rização no trabalho (Antunes, 2020). A uberização, ou o trabalho
precarizado mediado por plataformas de aplicativo, representa as-
sim um novo e particular modo de acumulação capitalista no qual
o trabalhador, sob precárias condições de trabalho, ainda assume a
responsabilidade pelos principais custos e riscos da atividade pro-
dutiva (Franco & Ferraz, 2019). É dessa forma que um entregador
de aplicativo de alimentação se torna responsável pelos custos dos
seus instrumentos de trabalho, como a própria moto, os equipa-
mentos de proteção individual, a gasolina, etc., mas também dos
riscos de acidentes (Abílio et al., 2020).
Concomitante a esse contexto, a disseminação do SARS-
-CoV-2 no Brasil e a consequente adoção de medidas de distancia-
mento social e de teletrabalho como tentativa de frear a velocidade
de propagação do vírus gerou uma elevada demanda no trabalho
de tele-entrega, realizado por trabalhadores que prestam serviço
para as plataformas digitais através das próprias motocicletas e
bicicletas (Filgueiras & Antunes, 2020). Seria de se esperar que os
entregadores passassem a auferir maiores ganhos pelo seu traba-
1683
Revista Psicologia: Organizações & Trabalho, 21(4), 1681-1689.
lho, já que é considerado como uma das atividades essenciais (De-
creto n. 10.282, 2020). Contudo, a pesquisa realizada por Abílio
et al. (2020) registra uma redução dos rendimentos, mesmo para
aqueles que passaram a trabalhar mais horas por dia. Tal redução
se expressou mesmo quando 70% dos participantes armaram
trabalhar para quatro plataformas digitais diferentes e 52% infor-
maram trabalhar os sete dias da semana. Cabe ressaltar que, para
essa categoria, o rendimento mensal se refere ao salário por peça,
cujo valor unitário é estabelecido unilateralmente pelas platafor-
mas digitais para cada tarefa executada (Kalil, 2020).
Assim, num momento crítico, no qual essa categoria deveria
ser mais bem reconhecida e melhor remunerada por prestar um
serviço essencial para a população e para as empresas que depen-
dem deles para continuar a operar, o que se observa é justamente
o contrário. Esse estranho fenômeno de trabalhar mais e receber
menos pelas tarefas executadas se dá, por um lado, como conse-
quência do aumento do número de trabalhadores que ingressaram
no setor e, por outro, por escolha das próprias empresas-platafor-
ma, que adotam tarifas dinâmicas, reduzem o valor da bonicação
ou extinguem prêmios (Abílio et al. 2020).
Mas qual seria a responsabilidade das empresas-platafor-
ma em relação aos trabalhadores de tele-entrega? Segundo Kalil
(2020), o direito dos trabalhadores à saúde e segurança independe
do vínculo trabalhista, ou seja, da natureza jurídica entre o traba-
lhador e o tomador de serviços. Por essa razão e amparado nos
instrumentos internacionais de direitos humanos, na legislação fe-
deral e no posicionamento da Justiça do Trabalho e do Ministério
Público do Trabalho, o autor sustenta que as empresas gestoras
de plataformas digitais são obrigadas a cumprir algumas determi-
nações sobre as relações de trabalho com os seus entregadores.
Apesar disso, de acordo com Abílio et al. (2020), 58% dos traba-
lhadores não receberam nenhuma orientação ou apoio para evitar
o contágio do SARS-CoV-2 durante a realização de suas tarefas e
96% dos participantes informaram que adotaram por conta pró-
pria medidas de proteção, como por exemplo, uso de álcool-gel
(89%) e máscaras (75%). Ao assumir a responsabilidade que seria
da empresa, adquirindo por conta própria os meios para tentar se
proteger da pandemia durante a realização da tarefa de entrega de
bens, produtos e serviços, os trabalhadores comprometem ainda
mais a sua restrita remuneração e escancaram a transferência de
responsabilidade da empresa para o próprio trabalhador (Filguei-
ras & Antunes, 2020).
A Análise da Tarefa a partir da Tarefa Prescrita: da Divulgada
à Efetiva
A Ergonomia da Atividade, disciplina que objetiva conhecer
e transformar o trabalho, diferencia a “tarefa” i.e. o objetivo a
ser cumprido – da “atividade”, ou seja, o modo como a tarefa
é executada pelos trabalhadores para fazer frente ao contexto da
situação real do trabalho e à sua própria condição (Guérin et al.,
2001). Mas se a atividade é o eixo central nas análises, exigindo a
presença in loco do analista, a tarefa é muito frequentemente deixa-
da de lado no processo, perdendo-se as contribuições que ela pode
oferecer na compreensão do trabalho (Veyrac & Bouillier-Oudot,
2011). Assim, embora a Análise Ergonômica do Trabalho descre-
va a Análise da Tarefa como uma etapa crucial de seu método,
poucos estudos desenvolveram sucientemente a forma como ela
deve ser realizada (Veyrac, 2018), o que nos leva à um necessário
resgaste conceitual do termo.
O conceito de “tarefa” ou “tarefa prescrita” está bastan-
te consolidado na ergonomia francófona, sendo compreendida
como um “resultado antecipado, xado em condições determi-
nadas” (Guérin et al., 2001, p. 14). Embora essa denição traga a
ideia de antecipação e planejamento, é interessante observar que
isso nem sempre é explícito ou está escrito em alguma parte da or-
ganização. Neste sentido, a tarefa prescrita não é necessariamente
escrita, mas é também o que é implícito na forma de gerir o traba-
lho nas organizações. Parte da tarefa só será conhecida se for ver-
balizada pelos trabalhadores que a executam, sendo assim impres-
cindível a realização de entrevistas como parte da análise da tarefa,
além da consulta aos documentos da empresa, tais como contratos
de trabalho, padrões e procedimentos operacionais (Montmollin,
1995). Portanto, nem toda tarefa prescrita está escrita. A tarefa es-
crita é aquela divulgada, mas outra parte dela, implícita, é esperada
pela gestão. Neste caso, a tarefa permite “prescrever sem escrever”
(Falzon, 2007, p.25).
É nesse sentido que Guérin et al. (2001, p. 25) armam que
“a tarefa é um conjunto de prescrições, mas também de represen-
tações” e Falzon (2007, p. 25) que “a tarefa prescrita é o que se
espera explicitamente ou implicitamente de um indivíduo”. Por-
tanto, nos casos em que uma organização não possui nada (ou
muito pouco) escrito, a tarefa prescrita virá quase exclusivamente
da expectativa dos gestores em relação ao trabalho do outro, ou
da expectativa dos trabalhadores em relação ao próprio trabalho.
A tarefa prescrita é subclassicada de acordo com os seus
desdobramentos, tanto ao nível da gestão quando da operação,
desde o seu nascimento até o momento em que é, de fato, executa-
da. No nível da gestão, a Tarefa Prescrita é dividida em dois tipos,
a tarefa divulgada – ou aquela ocialmente prescrita e explícita – e
a esperada, ou aquela implicitamente desejada pelos gestores em
relação ao trabalho dos seus trabalhadores.
A divisão entre tarefa divulgada e esperada se dá ao nível daque-
les que prescrevem as regras, ou seja, na gestão. Mas o nível daque-
les que recebem e executam as regras também deve ser avaliado, já
que as tarefas podem ser mais ou menos denidas por linguagens,
mais ou menos codicadas nas regras, mas passam necessariamen-
te pela interpretação dos trabalhadores (Ferreira, 2011). Portanto,
se a tarefa prescrita é dividida em tarefa divulgada e esperada ao nível
da gestão, há uma outra classicação, agora no nível da operação,
entre tarefa compreendida, que é aquilo que o indivíduo pensa que se
pediu para ser realizado e tarefa apropriada, aquela escolhida pelo
operador como mais adequada a partir da tarefa compreendida
(Falzon, 2007).
Essa distinção entre o que é compreendido e apropriado vai de-
pender tanto da maneira com que os gestores constroem as tarefas
divulgadas e esperadas (ou seja, da clareza das instruções e do grau
de implícito) quanto do nível de formação e das possibilidades de
julgamentos que o trabalhador faz em função das suas prioridades,
contexto de trabalho e valores. Neste caso, a tarefa apropriada é
um produto da representação que o indivíduo tem da situação ou
a combinação entre os questionamentos “em qual situação eu me
encontro?” com “o que eu tenho que fazer nessa situação?” (Bar-
bier, 2011, p. 152-153).
Por m, ainda aquelas tarefas que, após compreendidas
e apropriadas, foram efetivamente realizadas através da atividade,
ou foram impedidas de serem executadas. A tarefa efetiva é, assim,
aquela que foi executada e que, descrita ou verbalizada, se torna
uma representação ou modelo mais próximo possível da atividade
concretizada (Falzon, 2007). Para que ela seja analisada é necessá-
rio, portanto, o acompanhamento da atividade real. Já a tarefa ou
atividade impedida (Clot, 2007) é aquela que não foi efetivada em
razão das circunstâncias do trabalho e/ou de si próprio, apesar de
todas as possibilidades de ação que os indivíduos tinham na situa-
ção de trabalho. Compreender, dentro do quadro analisado, quais
são as tarefas efetivas e impedidas é a última etapa da análise da tarefa
e só é possível com o acesso do pesquisador ao campo ou com a
possibilidade de uma confrontação em vídeo da situação real.
1684 Rocha, R., Pistolato, L., & Diniz, E. P. H. (2021).
Método
O desenvolvimento da análise da tarefa compreende geral-
mente uma estrutura que possui a presença de duas fases: análise
documental e entrevistas com gestores e trabalhadores (Mont-
mollin, 1995). Essas fases, bem como o desenvolvimento comple-
to do método, estão descritos a seguir.
Participantes
A amostra foi composta por 15 entregadores de alimentos,
todos eles homens (100%), a maioria com idade entre 25 e 44 anos
(73,3%), todos eles da região metropolitana de Belo Horizonte/
MG. Para que a amostra se mantivesse homogênea, foram de-
nidos, como critérios de inclusão, entregadores de alimentos que
prestam serviço para plataformas digitais e utilizam motocicleta
como meio de transporte.
Os entregadores entrevistados trabalhavam, em média, 14
horas/dia, e ganhavam entre R$ 1.500 e R$ 2.000 por mês. A
maior parte deles (66,6%) trabalhava 7 dias/semana, mesma por-
centagem daqueles que tinham esse trabalho como principal fonte
de renda.
Instrumento
Como documentos relativos ao trabalho, os entregadores
possuem apenas os chamados “Termos de Uso” dos aplicativos
de entrega de alimentos, que podem ser encontrados no website
de cada uma das empresas-plataforma e que descrevem as políti-
cas, normas e aspectos legais, as obrigações ao exercer o trabalho e
elementos gerais da relação com os entregadores. Nessa pesquisa,
foram coletados e analisados quatro termos de uso dos aplicativos
mais utilizados no mercado, com o intuito de vericar a tarefa
prescrita e as obrigações dos entregadores, bem como a forma
com que elas são apresentadas no documento.
Paralelamente à análise documental, foram realizadas entre-
vistas semi-estruturadas com 15 entregadores. A entrevista se-
mi-estruturada focaliza em um assunto sobre o qual é feito um
roteiro com perguntas principais, dentro de categorias especícas,
que são complementadas por outras questões dadas pelas circuns-
tâncias da entrevista (Manzini, 1990). Para elaborar as perguntas,
foram utilizadas as categorias de Triviños (1987): perguntas de
consequências, perguntas avaliativas, perguntas hipotéticas e per-
guntas categoriais. Dessa forma, foi desenvolvido um roteiro com
6 perguntas principais (relacionadas com as atividades exercidas
pelo entregador num dia típico de trabalho; sua relação com os
colegas, restaurantes e aplicativo; o seu grau de satisfação com
o trabalho; as diculdades que ele enfrenta; as estratégias utiliza-
das para superar as diculdades encontradas; e as modicações
na execução das tarefas que ocorreram em função da pandemia),
além de informações pessoais como gênero, horas trabalhadas por
dia e média salarial. Esse roteiro foi utilizado como um guia, de
forma que cada entregador poderia discorrer livremente sobre
quaisquer assuntos que considerasse pertinentes.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
A coleta de dados foi realizada em um período total de nove
meses (abril a dezembro de 2020) por um grupo de três pesquisa-
dores, por meio das entrevistas e análises documentais. Dos três
pesquisadores, dois deles possuem ampla experiência em pesquisa
no campo da Ergonomia da Atividade, tendo um deles realiza-
do pesquisas em nível de mestrado e doutorado sobre o trabalho
de motociclistas. Um aluno de mestrado completou o grupo, de
maneira a auxiliar na operacionalização das entrevistas juntos aos
entregadores, bem como na análise dos dados.
Para selecionar os participantes das entrevistas, os pesquisa-
dores estiveram presencialmente em pontos comerciais utilizados
pelos entregadores para buscar a encomenda, tais como bares,
lanchonetes e restaurantes. Nesses locais, os pesquisadores expli-
caram aos trabalhadores os objetivos da pesquisa, convidando-os
para participar da mesma. Muitos deles negaram a demanda, com
a justicativa de falta de tempo ou por não se sentirem à vonta-
de em participar. Para aqueles que aceitaram, foram explicados
os objetivos e combinada a forma (presencial ou à distância) e o
momento em que a entrevista poderia acontecer (durante nossa
abordagem ou em momento posterior). Assim sendo, 15 entrega-
dores, todos eles motociclistas, concordaram em participar volun-
tariamente da pesquisa.
Dos 15 entregadores entrevistados, 9 deles concordaram que
as entrevistas fossem realizadas de maneira presencial, no momen-
to da abordagem, respeitando as medidas de prevenção do SAR-
S-CoV-2, como o uso de máscaras e álcool-gel, além do distan-
ciamento de 2 metros. Os outros 6 entregadores participaram de
maneira remota, através de chamadas de vídeo e áudio feitas por
telefone celular. Cada uma das entrevistas teve duração média de
40 minutos e todas elas foram gravadas mediante autorização dos
entrevistados e posteriormente transcritas para análise.
Os entregadores que aceitaram participar do estudo foram
devidamente esclarecidos sobre seus objetivos e expressaram sua
concordância através de um termo de consentimento livre e es-
clarecido. Foi respeitada a privacidade e a condencialidade das
informações obtidas em todas as etapas do projeto, tendo sido
solicitada autorização para a escrita e publicação do artigo.
Procedimentos de Análise de Dados
O material de análise dos pesquisadores foi composto, por-
tanto, dos termos de uso das empresas e das transcrições das en-
trevistas realizadas. Com esse material, os pesquisadores buscaram
identicar nos textos, para a busca e análise dos dados, cada uma
das classicações da tarefa prescrita, em que nível essa tarefa ocor-
re (se na gestão ou na operação), qual a denição do tipo de tarefa
analisada, bem como a fonte de informação na qual essa tarefa
poderia ser encontrada (Tabela 1).
Sabendo que a tarefa divulgada é aquela que está explícita nos
Tabela 1
Critérios para análise dos dados
Classicação da Tarefa Nível (Gestão/ Operação) Denição Fonte da Informação
Divulgada Gestão O que é escrito ou falado Termos de Uso
Esperada Gestão O que não foi dito ou escrito, mas é
esperado Termos de Uso e Entrevistas
Compreendida Operação
O que é entendido pelo operador,
daquilo que é escrito/falado, mas
também do que não é escrito/falado.
Entrevistas
Apropriada Operação O que é escolhido pelo trabalhador. Entrevistas
Nota. Fonte: Elaboração dos autores (2021).
1685
Revista Psicologia: Organizações & Trabalho, 21(4), 1681-1689.
textos da empresa ou que é verbalizada pelos gestores, para identi-
cá-la nessa pesquisa, foram destacadas, nos termos de uso, as fra-
ses consideradas mais relevantes na relação empresa-plataforma e
entregador. Como a tarefa esperada é aquela relacionada à expec-
tativa implícita (não escrita ou verbalizada do gestor) em relação
ao trabalho do entregador, procurou-se identicar, nos termos de
uso e nas entrevistas, as situações relacionadas ao comportamen-
to provavelmente esperado pelos gestores sobre os entregadores.
Sendo a tarefa compreendida aquilo que é entendido pelo indivíduo,
foi ressaltado nas entrevistas o que parecia estar claro para o entre-
gador, buscando encontrar frases ou expressões que se referissem
essa ideia (por exemplo, “eu sei que”, “eu acho que”, “eu penso
que”, “eu entendo que”). Por m, sendo a tarefa apropriada aquela
escolhida pelo indivíduo para executar a ação, procurou-se iden-
ticar, nas transcrições das entrevistas, trechos que remetessem à
essa escolha, principalmente do ponto de vista da execução das
ações frente a determinadas situações. A análise das tarefas efetiva
e impedida não foi realizada nessa pesquisa, dado que necessita do
acompanhamento da atividade, in loco, pelos analistas ou de uma
confrontação por vídeo da situação real. Os resultados da análise
realizada serão descritos a seguir.
Resultados
Da Tarefa Divulgada pelas Empresas à Apropriada pelos
Entregadores
Tarefas ao nível da gestão: Divulgada e Esperada. Um
entregador só tem registrado como tarefa divulgada ou explícita os
termos de uso que ele aceita no momento em que cria a sua conta
no aplicativo da empresa. Alguns trechos importantes analisados
nestes documentos, relacionados à relação empresa-entregador,
incluem:
A inexistência de qualquer vínculo empregatício;
A obrigatoriedade de arcar com todos os custos referen-
tes aos equipamentos de trabalho, como o próprio veículo utili-
zado, sua manutenção e combustível, luvas, capacete, jaqueta e a
mochila;
A obrigatoriedade de indenizar a plataforma em caso de
qualquer dano, prejuízo, demanda, despesas e “utilização indevi-
da” ou “violação dos termos de uso”;
A responsabilização, por parte do entregador, caso ocor-
ram multas, acidentes, danos, extravio do produto e processos de-
correntes das entregas;
A obrigatoriedade de “envidar” (ou empregar) os me-
lhores esforços na execução das entregas, solução de problemas,
atendimento de clientes e atualizar o status da entrega a cada etapa
realizada.
A tarefa esperada é aquilo que não está escrito (neste caso nos
termos de uso), mas é esperado que o entregador faça sob o risco
do mesmo receber algum tipo de punição ou sanção por parte da
empresa, conforme relatado pelos entregadores. No trabalho ana-
lisado, não está dito e nem escrito, mas é esperado pelas empre-
sas-plataforma, que o entregador não se atrase, que ele seja cordial
com o cliente e que o alimento chegue ainda quente e íntegro
ao destino. Embora não haja treinamentos prévios ou orientações
explícitas para cumprir esses requisitos, qualquer cenário diferente
desse é passível de reclamação do cliente e sanção da plataforma
junto ao entregador, como bloqueios ou exclusão do trabalho. As-
sim, embora as empresas-plataforma declarem que não há vínculo
empregatício formal, as análises mostram que elas têm imposi-
ções como a de empresas formais junto aos seus empregados, tais
como exigências de compliance em relação aos entregadores junto
2 As verbalizações apresentadas no quadro são representativas dos padrões de comportamento encontrados e por questão de espaço, tiveram de ser selecionadas. Outras verbaliza-
ções, que não necessariamente estão presentes no quadro, serão encontradas no decorrer do texto.
aos clientes e denição de quanto os entregadores devem ganhar
em cada tarefa efetivada, ou seja, cada entrega concluída.
Tarefas ao nível da operação: Compreendida e Apro-
priada. A tarefa compreendida é aquilo que é entendido pelo ope-
rador em relação ao que foi dito/escrito e ao que é esperado pela
gestão. Já a tarefa apropriada é aquela que o operador escolhe fazer
a partir do que foi compreendido por ele.
Na análise das transcrições das entrevistas sobre o grau de
compreensão e apropriação da tarefa por parte dos entregadores,
foi possível observar pelo menos dois parâmetros transversais às
verbalizações de todos eles: o grau de satisfação em relação à al-
gumas situações vividas e grau de obediência em relação às regras
explicitas ou implícitas que envolvem o trabalho da categoria.
Alguns deles se mostram satisfeitos com o trabalho e obe-
dientes às regras da empresa e de trânsito. Outros se mostram
satisfeitos, mas desobedecem a algumas dessas regras. Outros ain-
da se dizem insatisfeitos. Mesmo assim, obedecem a essas regras.
Por m, alguns se manifestam como insatisfeitos e desobedientes
a tais regras. A tabela 2 apresenta esses padrões de comportamen-
to e algumas verbalizações2 dos entregadores que representam a
ideia de cada um desses padrões.
A Reprodução de Padrões de (Des)Obediência e (In)
Satisfação
As análises das transcrições das entrevistas realizadas nos
permitiram compreender que existem quatros padrões típicos de
comportamento entre os entregadores avaliados. Esses padrões
foram agrupados em categorias, de acordo com a manifestação de
(des)obediência em relação às regras e de (in)satisfação relativa a
algumas situações vividas e verbalizadas pelos entregadores. Com
o objetivo de sumarizar os resultados apresentados, foi elaborada
uma matriz, categorizando os graus de satisfação versus obediên-
cia às regras (Figura 1). Cada categoria recebeu uma denominação
distinta, a saber: o perl “satisfeito e obediente” é aqui chamado
de “aderente”; o perl “satisfeito e desobediente”, de “tolerante”;
o perl “insatisfeito e obediente” é aqui chamado de “intolerante”;
e o perl “insatisfeito e desobediente”, de “resistente” (Figura 1).
As categorias de comportamento acima descritas não se tra-
tam de pers de personalidade, mas sim de modelos que variam
de acordo com a situação na qual o entregador está exposto. Dessa
maneira, não há um entregador que é, o tempo todo, “aderente”
ou “resistente”, mas há situações em que esses padrões de com-
portamento aparecem em maior ou menor frequência dentre os
entregadores entrevistados. Destarte, um mesmo entregador pode
apresentar todas as categorias denidas nessa pesquisa durante o
mesmo dia ou semana de trabalho, de acordo com a situação na
qual está exposto.
Discussão
Novos Contornos da Precarização do Trabalho
Diante da análise da tarefa realizada, podemos nos perguntar:
o que as verbalizações dos entregadores revelam sobre a relação
entre eles e as plataformas digitais?
Inicialmente, o trabalho de entrega mediado por plataformas
digitais é extremamente novo na nossa sociedade, ainda sem ne-
nhum tipo de regulação ou regulamentação no Brasil, o que faz
com que as empresas do setor imponham livremente e unilateral-
mente as regras do trabalho e a vigilância sobre os trabalhadores
(Kalil, 2020). Assim sendo, essas empresas denem, por si pró-
prias, as formas de contratação, demissão e as relações a serem
1686 Rocha, R., Pistolato, L., & Diniz, E. P. H. (2021).
Tabela 2
Padrões de comportamento dos entregadores entrevistados a partir das verbalizações obtidas nas entrevistas
Padrão de
Comportamento Verbalizações
Satisfeito e
obediente
- “Olha, tem gente que fala que não gosta desse trabalho, que é muita exploração, não sei mais o quê. Eu penso diferente. Eu tô aqui pra trabalhar.
Eles têm o sistema pronto aí e baixa quem quer. Eu acho que quem não tá satisfeito, é só sair, ir fazer outra coisa. Mas para mim é bom. Eu trabalho
muito e faço tudo que eles mandam sem reclamar. É o que eu uso para pagar minhas dívidas”.
- “Sei dos riscos, mas eles já falaram a regra do jogo e eu topo jogar. Se tem comida para entregar, eu pego minha moto e entrego. Tomo os
cuidados para evitar acidente e multa e tento chegar sempre na hora na casa do cliente e com o alimento fresco. Aí ganho meu dinheiro na corrida
e tá tudo certo”.
- “Vou te falar a verdade. Eu prero um trabalho assim, que eu posso sair pra trabalhar na hora que eu quiser, do que car chado em algum lugar”.
Satisfeito e
desobediente
- “Eu acho assim... eu tava desempregado, né. Eles tinham emprego para me oferecer e eu aceitei. É minha única fonte de sustento, para mim e
para minha família, então eu não reclamo. Tô satisfeito. Não quer dizer que eu aceito tudo também não. Às vezes a gente tem de dar um jeito pra
tirar um a mais, passar no ponto cego do radar, negociar a gorjeta direto com o cliente (sem passar pelo aplicativo). Mas no geral eu tô tranquilo.
Faço meu corre e ganho meu dinheiro”.
- “As vezes não tem onde parar, por exemplo, e eu acabo parando em local proibido. Tomo cuidado para evitar multa, mas mês passado mesmo já
tomei uma por parar em local proibido. Fazer o quê?. Como dizem ‘são os ossos do ofício’. Mas eles pedem pra não negar corrida pro restaurante,
mas eu já neguei várias vezes. Não subo morro nem a pau. No mais, tá de boa. Tudo certo. O trabalho é esse aí, é o que me ajuda a criar minhas
lhas”.
- “Olha... eu acho o seguinte. Entra quem quer, né não? Tem gente que não gosta, reclama... Pra mim tá suave. Quer dizer, eu trabalho muito, né.
Corro atrás o dia todo. Mas por exemplo, outro dia tinha um entrega no (bairro) Nova Suíça e arrumei um cliente querendo ir pra lá. Fiz moto-
táxi junto com a entrega. Quando dá eu faço isso. Como se diz, mato dois coelhos com uma paulada só. Ganho duas vezes no mesmo corre”.
Insatisfeito e
obediente
- “Eu tô estressado, cara. Ralo o dia inteiro, subo morro, desço morro, subo favela, vou no centro, e quando recebo vejo uma miséria. Faço o
trabalho todo direitinho, sou correto com o restaurante, com o cliente e mesmo assim não sobra grana. Agora com o vírus, nem álcool-gel a gente
recebeu. Nem uma única mensagem para buscar ou retirar em algum lugar. Eu entendo que as empresas deviam oferecer uma alimentação, um
álcool-gel, mas nem isso. Eu tenho que comprar com meu dinheiro e trazer de casa”.
- “Pra te falar a verdade não concordo com muita coisa mas eu jogo o jogo e respeito as regras. O aplicativo te leva a fazer coisa errada no trânsito
porque o motoqueiro quer fazer entrega a qualquer custo, e por isso acabam fazendo muita coisa errada no trânsito. Então eu tenho que me policiar
pra fazer o que o aplicativo pede e respeitar as regras do trânsito”.
- “Não tem muito o que fazer, né. Não estudei e tenho família para criar. Minha opção é aceitar as regras mesmo se sou contra e fazer as entregas
o dia todo. Eu já reclamei várias vezes com os aplicativos de um monte de coisa. Não adianta muito, mas eu falo, o sistema é injusto. Outro dia eu
enchi o saco deles até me arrumarem um álcool-gel”.
- “Muitas vezes, o prazo de entrega é muito curto, mano. Uso somente um aplicativo por que vi que eles exigem um tempo mais fácil de atender,
assim posso ter mais cuidado, não preciso correr para não passar do tempo”.
Insatisfeito e
desobediente
- “No fundo, eles dizem ‘você tem de trabalhar em qualquer condição. Pode estar chovendo, você pode tomar multa, pode ser região de violência,
você pode sofrer um acidente, quebrar a perna ou perder a moto. Não sou seu patrão e não me importo’. Falam que não tem subordinação, mas
já fui bloqueado por negar rota. Como não tem subordinação?”.
- “Então, eu tento compensar essa situação do jeito que eu posso. Quando o cliente é conhecido eu peço a gorjeta em dinheiro, para o aplicativo
não pegar uma parte, porque até isso eles fazem. Se eu tô com pressa, eu passo no ponto cego do radar... quando o porteiro é conhecido eu mando
mensagem quando tô chegando, pra ele já ir adiantando o cliente. Quando o cliente não tá ou demora demais, eu não levo a comida de volta pro
restaurante, eu paro na esquina e como. E aí vamos compensando de alguma forma a injustiça toda”.
- “Vou te falar o que aconteceu comigo. Fui entregar num prédio e o porteiro falou que o morador tava com Covid. Eu vou subir pra entregar
direto pro cliente assim? Não vou. Não quis subir. O que o cliente fez? Ele achou ruim de eu não ter subido, que ele teria que descer e reclamou
no aplicativo. O aplicativo me bloqueou por 2 dias por causa disso. A parada é sinistra. Os caras não querem nem saber se você vai pegar Covid,
se você vai tá vivo ou morto amanhã. Então, o que eu posso fazer pra burlar esse sistema, eu faço”.
- “Eu dou golpe no aplicativo direto. Pego o lanche, não dou saída, cancelo o pedido e co com o lanche. Não faço isso de má fé, faço porque
estou com fome. Não vou car rico comendo um lanche, né?”.
Nota. Fonte: Elaboração dos autores (2021).
Figura 1. Padrões de comportamento dos trabalhadores entrevistados. Fonte: Elaboração dos autores (2021).
1687
Revista Psicologia: Organizações & Trabalho, 21(4), 1681-1689.
estabelecidas durante o período de trabalho ativo do entregador,
mesmo defendendo, através da tarefa divulgada (ou termos de
uso), a ausência de vínculo formal com eles.
De maneira mais detalhada, na contratação as plataformas
denem quem pode trabalhar, delimitando, através dos termos
de uso, o que vai ser feito e como deve ser feito, enquanto na
demissão, ocorre um desligamento simples e rápido, sem
necessidade de justicativas ao trabalhador (Filgueiras & Antunes,
2020). durante o período ativo do trabalho, as plataformas
determinam os prazos de execução, estabelecem unilateralmente os
pagamentos por peça ou contrato de zero hora, denem como os
trabalhadores devem se comunicar com a gestão, usam bloqueios
ou a possibilidade de dispensa para ameaçar os entregadores
(Kalil, 2020). Frases como “fui bloqueado e nem entendi porque”
ou “o aplicativo me cancelou” foram frequentemente verbalizadas
nessa pesquisa. Ao mesmo tempo, as plataformas exigem, sem
oferecer qualquer tipo de treinamento ou orientação que possa
permitir uma compreensão do que é exigido, níveis de excelência
e compliance, ao mencionar que os entregadores devem envidar os
melhores esforços na execução dos serviços.
Nesse processo de aparente inexistência de vínculo formal,
as plataformas transferem para o trabalhador as responsabilidades,
os riscos e os custos do trabalho. Num sistema tradicional, a em-
presa contratante deve arcar com os custos e riscos da produção,
uma vez que é ela própria quem detém o lucro. No capitalismo
contemporâneo incorporado pelo sistema uberizado – caracteri-
zado por trabalhadores just in time, disponíveis e descartáveis com
as suas relações mediadas, organizadas e gerenciadas por platafor-
mas digitais – é o próprio trabalhador quem assume os custos da
produção e do seu instrumento de trabalho, qual seja, o veículo de
transporte do alimento. É, portanto, exclusivamente sua a obri-
gação de aquisição, manutenção e transporte do seu carro, moto
ou bicicleta. Ao mesmo tempo, ca a cargo do entregador os ris-
cos na execução do trabalho, sejam eles acidentes, perda ou dano
do produto transportado, multas de trânsito ou quaisquer outros
decorrentes das entregas. Em outras palavras, o trabalhador de-
tém os instrumentos de trabalho sem, entretanto, auferir qualquer
compensação pelo uso, manutenção e depreciação de seus veícu-
los (Abílio, 2019).
Além disso, até o aparecimento do sistema uberizado, cabia
às contratantes assumir os custos e riscos não somente do período
ativo de produção, como também da sua ociosidade. O trabalho
mediado por plataformas digitais aprofundou ao extremo a es-
sência do capital, fazendo o entregador, que passou a arcar com
os custos e riscos do trabalho, internalizar também o custo da
ociosidade, ou seja, o tempo de espera da produção (Kalil, 2020).
Em síntese, alegando ausência de vínculo e desejando um
trabalhador just in time, o gestor da plataforma estabelece que o
trabalhador esteja sempre disponível para buscar a encomenda no
estabelecimento comercial no momento que o cliente demandar,
para entregá-la nas melhores condições, com todos os custos e ris-
cos entre esses dois pontos sendo exclusivamente do entregador3,
lhe remunerando apenas pelo tempo efetivamente convertido em
produção. Assim, as empresas gestoras de plataformas conseguem
desenvolver um nível de exploração extremo e personalizado para
cada trabalhador (De Siqueira, Pedreira, & Boas, 2020).
A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 não é, portanto, a
causadora principal da precarização contemporânea do trabalho.
Ela somente agudizou o problema, que já vinha sendo fortemente
agravado com o fenômeno da uberização.
3 Cabe ressaltar que essa transferência de riscos e custos não é só da empresa para o trabalhador, mas também para o Estado e toda a sociedade, uma vez que, em caso de acidente, é
o hospital público quem irá lhe atender. Além disso, por ocasião da aposentadoria, na qual o indivíduo não puder mais trabalhar será o Estado, mais uma vez, que será demandado a lhe amparar.
Precarização Travestida de Modernidade e o “Privilégio da
Servidão”
A uberização do trabalho gera uma mutação da gestão do
trabalho que elimina direitos e transforma trabalhadores em indi-
víduos autogeridos, e, ao mesmo tempo, superexplorados (Abílio,
2020). Não obstante, as empresas-plataforma se servem de es-
tratégias eufemísticas que adoçam o cenário de superexploração
com as ideias neoliberais de que os entregadores são “parceiros”,
“empreendedores” e “autônomos”, buscando fazer com que o
trabalho ganhe ares de modernidade, de um jogo limpo, justo e
com equilíbrio de forças entre as partes. A estratégia faz com que
alguns trabalhadores altamente explorados pelo sistema se tor-
nem, por vezes, mais “aderentes” a ele, armando satisfação e/ou
obediência às suas regras de funcionamento. Não raro, encontra-
mos verbalizações que representam esses padrões, tais como “tô
satisfeito”, “quem não tá satisfeito, é só sair”, “faço tudo que eles
mandam sem reclamar” e ainda, “sei dos riscos, mas eles já falaram
a regra do jogo e eu topo jogar”.
A estratégia de criar uma narrativa que esconda ou atenue um
sistema de superexploração e ludibrie os próprios trabalhadores
não é nova, sendo utilizada em outras indústrias como a carvoei-
ra ou da cana-de-açúcar. Nesta última, Reis (2017) mostra vários
exemplos: o termo “remuneração variável” esconde o principal
mecanismo de intensicação do trabalho ao ser empregado como
uma forma moderna do pagamento por produção; “líder de tur-
ma”, nome dado ao scal, retira o estigma punitivista que o termo
carrega neste setor; “campeão” ou “podão de ouro” é o título
dado ao cortador de cana mais produtivo, mesmo que alguns deles
morram por exaustão.
No trabalho uberizado, a estratégia léxica funciona, levando
alguns trabalhadores, inclusive, a negar os próprios direitos traba-
lhistas. Mesmo trabalhando, em média, 14 horas/dia e a maioria
deles 7 dias/ semana, alguns pers, mais aderentes e tolerantes,
verbalizam: “eu gosto é da liberdade e da autonomia”; “o bom
desse trabalho é poder fazer o seu horário”; “prero um corre
assim do que car chado em algum lugar”. Vinícius (2020), ao
analisar os resultados de uma pesquisa feita com mais de 100 en-
tregadores, constata que a maioria daqueles que usava motocicleta
não gostaria de trabalho com carteira assinada. O autor argumenta
que este posicionamento coloca em evidência a disposição ou não
do trabalhador em substituir uma ilusória autonomia e exibili-
dade, delimitadas pelas plataformas, pela proteção econômica e
social oferecida pela carteira de trabalho.
Uma possível explicação para isso pode ser encontrada na
pesquisa de Diniz (2003), realizada bem antes da era das platafor-
mas digitais, com motofretistas de Belo Horizonte/MG, que reve-
la os reexos da baixa remuneração registrada em carteira desses
prossionais e a insatisfação manifestada por eles. Ao se destruir o
valor da remuneração registrada em carteira, se destrói também o
valor subjetivo que esse instrumento de proteção social representa
para a classe que vive do trabalho. E, por efeito, tem-se ainda uma
obliteração do valor subjetivo do próprio trabalho.
Outra leitura que se faz dessa manifestação de usufruir de um
“privilégio da servidão” (Antunes, 2018) tem relação com o grau
de dependência do trabalhador com a empresa. Embora as empre-
sas-plataforma defendam que este pode ser um trabalho utilizado
como renda complementar, muitos deles (a maioria em nossa pes-
quisa) o tem como atividade principal. Apesar de não termos feito
uma análise direta sobre a relação entre o nível de dependência e
os pers “aderente” e “tolerante”, foi possível perceber que no
grupo com maior grau de dependência com a empresa parte dos
entregadores aceitam melhor as regras e utilizam os eufemismos
1688 Rocha, R., Pistolato, L., & Diniz, E. P. H. (2021).
praticados por elas, manifestando satisfação e obediência às regras
(Tabela 2).
Por outro lado, outra parte deles se denem como insatisfei-
tos e/ou desobedientes às regras, tornando-se mais “resistentes”
ao sistema. Segundo Kalil (2020), aqueles que possuem uma fonte
de renda primária e utilizam as plataformas digitais como comple-
mento salarial têm maior controle de quando, quanto, onde e para
quem trabalhar. Assim, essa outra parte questiona as regras e se
declara insubordinada sempre que possível, nos indicando que o
motor da luta de classes sempre foi o desequilíbrio de forças e pri-
vilégios, bem como o desejo de fuga da subordinação do trabalho,
que se expressa desde a busca do controle do ritmo de trabalho
pelos trabalhadores até os movimentos revolucionários de auto-
gestão (Abílio, 2019).
Alguns dos entregadores manifestam a sua insatisfação e de-
sobediência verbalizando que “o sistema é injusto”, questionando
as formas de subordinação através de bloqueio e dizendo burlar
frequentemente o sistema, por exemplo, pedindo a gorjeta em di-
nheiro, passando no ponto cego do radar, realizando alguns com-
binados com o porteiro ou dando “golpe” no aplicativo para car
com o lanche.
Ainda que esse grupo traga exemplos que, à primeira vista,
nos pareçam desconfortáveis sob o prisma legal, as verbalizações
devem ser interpretadas não como uma burla inconsequente ao
sistema, mas como um indicativo de basta às amarras, à superex-
ploração, ao desequilíbrio de forças, ao controle e à rigidez das
hierarquias do trabalho. Esse argumento pode ser observado nas
verbalizações de diferentes padrões de comportamento dos entre-
gadores, ao manifestarem com frequência o sistema “injusto” e
“desequilibrado”, e as formas que eles encontram de “compensar”
esse cenário. Sob este prisma, a burla está menos presente nas
estratégias desenvolvidas pelos entregadores e mais nas formas de
gestão desenvolvidas pelas empresas-plataforma que buscam de-
liberadamente maneiras de negar o vínculo com os entregadores
e, assim, evitar a regulação social da justiça do trabalho (Filgueiras
& Antunes, 2020).
Contribuições da Análise da Tarefa
Embora muito pouco utilizada de maneira aprofundada, a
análise da tarefa pode representar uma solução alternativa para
auxiliar a compreensão e a análise do trabalho quando os pesqui-
sadores estão impedidos de acompanhar in loco o desenrolar da
atividade. Para além disso, as contribuições presentes na análise
da tarefa, enquanto etapa metodológica da Análise Ergonômica
do Trabalho, são primordiais para a compreensão do trabalho dos
indivíduos, independentemente do contexto de pandemia.
Contudo, faz-se necessário esclarecer que a análise da tarefa
não substitui a análise da atividade e nem prescinde da análise sub-
jetiva do discurso do trabalhador. A análise da tarefa feita nesse
estudo corresponde ao que é determinado pelas empresas-plata-
forma e o que é entendido e escolhido pelos entregadores. Até
aqui, permanecemos no limite das representações e percepções
dos indivíduos em relação ao próprio trabalho. A partir disso, é
necessária outra etapa, presencial, através do acompanhamento da
atividade, o que permite vericar o que e como foi executado ou o
que impediu a realização da tarefa, saindo da esfera das percep-
ções e representações de trabalhadores e gestores, e adentrando
o campo da atividade real vivida por eles. É nesse momento que
se pode constatar as variabilidades presentes e analisar as respec-
tivas regulações implementadas, como por exemplo, que o cliente
que sempre dá gorjeta não deu ou deu a mais, que o porteiro não
colaborou naquele dia ou, ao contrário, adiantou o trabalho do
entregador e avisou previamente o cliente sobre a chegada da mer-
cadoria, que o aplicativo aumentou a taxa em determinado dia, que
o entregador não encontrou estacionamento onde normalmente
encontra etc. Isso é a atividade real e a sua análise in loco, através
do acompanhamento dos entregadores, é fundamental para pros-
seguimento dessa pesquisa.
Isto posto, a análise da tarefa, muitas vezes negligenciada
por pesquisadores e consultores do trabalho, pôde nos mostrar
elementos nos da atividade dos entregadores, nos levando a
compreender padrões de (des)obediência e (in)satisfação por eles
adotados, o nível de exploração ao qual estão submetidos, as es-
tratégias que eles próprios utilizam para trabalhar e as armadilhas
eufemísticas adotadas pelas empresas para dourar a pílula do tra-
balho precarizado que desenvolvem.
Considerações Finais
Considerando o contexto de distanciamento social imposto
pela pandemia causada pelo SARS-CoV-2 e a necessidade de de-
senvolvimento de pesquisas sobre a atividade dos entregadores
de mercadoria, a análise da tarefa permitiu compreender o modus
operandi deste grupo de trabalhadores e das empresas-plataformas
gestoras do trabalho. Apesar da amostragem relativamente limita-
da (15 entregadores), decorrente do contexto de distanciamento
social e consequente diculdade de seleção dos participantes, essa
pesquisa possibilitou compreender como empresas-plataforma se
utilizam de estratégias que geram, entre os entregadores de merca-
dorias, padrões de comportamento aderente, tolerante, resistente
e intolerante.
Se, por um lado, o discurso engodado das empresas-platafor-
ma ludibria alguns dos seus trabalhadores, por outro, essa pesquisa
mostra que alguns deles se mostram insatisfeitos e, por vezes, de-
sobedientes ao sistema imposto. Ora, faz-se necessário compre-
ender que a desobediência não surge com o intuito de prejudicar
outrem, mas ocorre no interior de um sistema de superexploração,
que se benecia do desenvolvimento tecnológico para concentrar
renda e precarizar o trabalho dos indivíduos na ponta do processo.
Daí a importância do debate no âmbito nacional e internacional
do tema, pois trata-se de uma prática que, sob o escudo da moder-
nização, da liberdade e do empreendedorismo, tende a se espraiar
por diversos outros setores prossionais.
Estão postas aí as mutações do trabalho dos entregadores de
mercadorias que, utilizando formas de expressão que podem nos
causar estranhamento, reivindicam e tentam achar por si próprios,
um caminho para, como um deles armara, “compensar de algu-
ma forma a injustiça toda”.
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Informações sobre os autores:
Raoni Rocha
Universidade Federal de Ouro Preto, Escola de Minas, Campus
Morro do Cruzeiro s/n
35400-000 Ouro Preto, MG, Brasil
E-mail: raoni@ufop.edu.br
Leonardo Pistolato
E-mail: leonardo_pistolato@hotmail.com
Eugênio Paceli Hatem Diniz
E-mail: eugenio.diniz@fundacentro.gov.br
... Metropolitan Region (MR) of Belo Horizonte with delivery workers using motorcycles and bicycles, Rocha, Pistolato, and Diniz (2021) corroborate and complement the phenomenon of Uberization and precarization of the drivers in Rio de Janeiro interviewed by André, Silva, and Nascimento (2019). Based on the workers' accounts, we can see that, like Uber and 99 drivers, they had also received punitive measures (blocked on the platform) for refusing a route and/or ride (service requested by the user via the app) assigned to them by the platform. ...
... In another interview, a delivery worker disclosed that he hadn't logged a food delivery accurately on the app since he had eaten the intended delivery for being hungry during his shift and could not take a break to eat. The authors interpret this strategy as an attempt by workers to compensate for the injustices they suffer daily (Rocha, Pistolato, and Diniz, 2021). ...
... They feel productive because, without this work, they would not be generating income. Therefore, disguised as a modernization of labor (Rocha, Pistolato, and Diniz, 2021), there is also a perverse mechanism in the discourse of platform companies, through which workers develop psychological strategies to deal with the violence imposed by these companies, fueling the relationship of subordination and superexploitation imposed by them. ...
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In view of the economic, political, and technological changes in the world of work within the urban territory, nowadays we are facing new informalities that increase the precariousness of work relationships and conditions in a global level. This essay aims to reflect critically on new subjectivations and on psychosocial risks related to the uberization of work, analyzing their impacts on territorial dynamics. We highlight platform companies that offer taxi and delivery services, and we provide a panorama that shifts from the international to the national scenario. Uberized workers face unique episodes of violence committed by platform companies and urban violence, which intensify psychosocial risks and harm workers' dignity, health, and quality of life. The practices of platform companies, as well as their management and contradictions, reveal a deprivation of the right to the city and the capture of workers' subjectivity.
... Em outra entrevista, o entregador revelou não ter feito o registro correto de uma entrega de comida no aplicativo, tendo consumido os alimentos porque tinha fome durante sua jornada de trabalho e não podia parar para alimentar-se. Os autores leem essa estratégia como uma busca dos trabalhadores de compensarem as injustiças que sofrem cotidianamente (Rocha, Pistolato e Diniz, 2021). ...
... Sentem-se assim produtivos, pois, sem esse trabalho, não estariam gerando renda. Portanto, travestido de modernização do trabalho (Rocha, Pistolato e Diniz, 2021), há também um mecanismo perverso no discurso das empresas-plataforma, a partir do qual os trabalhadores desenvolvem estratégias psicológicas para lidar com as violências das empresas, alimentando a relação de subordinação e superexploração por elas imposta. ...
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Resumo Diante das mudanças econômicas, políticas e tecnológicas do mundo do trabalho no território urbano, enfrentamos hoje novas informalidades que precarizam as relações e condições de trabalho de forma global. O objetivo deste ensaio é tecer reflexões críticas sobre os processos de novas subjetivações e riscos psicossociais da uberização do trabalho e seus impactos nas dinâmicas territoriais, destacando as empresas-plataforma que oferecem serviços de táxi e entrega, fazendo um panorama que desloca do cenário internacional para o nacional. Os trabalhadores uberizados enfrentam situações singulares de violências das empresas-plataforma e urbana, agravando os riscos psicossociais, a dignidade, a saúde e a qualidade de vida dos trabalhadores. As práticas, gestão e contradições dessas empresas denotam a privação do direito à cidade e a captura da subjetividade dos trabalhadores.
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Organizations have suffered from the socioeconomic impacts of the global crisis scenario caused by the COVID-19 pandemic. In this context, it is essential to adopt objective measures to minimize harmful effects on organizational management. This study sought to identify the main strategies for reducing the impacts of COVID-19 on Brazilian organizations. It is a theoretical essay based on a literature review of articles from national and international databases, covering COVID-19, experiences in previous pandemics, as well as Brazilian legislation in force during the pandemic period. Considering this scenario of uncertainties, it is suggested to adopt strategies to minimize unfavorable impacts on corporate activities, such as efficient communication, work planning, digital enhancement, teleworking, and adoption of measures aimed at the welfare of workers. The need for emergency planning to face the pandemic was identified, with measures including empathic policies, provision of support for telework, and actions for adaptation and organizational maintenance during the crisis.
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Esta pesquisa teve o objetivo de identificar os impactos da pandemia da COVID-19 nas condições de trabalho dos entregadores via plataforma digital. Participaram 298 trabalhadores em 29 cidades, que responderam questionário on-line por meio da ferramenta Google Forms. Para a disseminação do questionário foi utilizado o método “bola de neve”, em que integrantes de diferentes redes sociais respondem ao questionário e o encaminham para outras redes. Os resultados revelados apontam para a manutenção de longos tempos de trabalho, associado à queda da remuneração desses trabalhadores que hoje arriscam sua saúde e a de suas famílias, no desempenho de um serviço essencial para a população brasileira, ao contribuírem para a implementação e a manutenção do isolamento social no contexto da pandemia. Em relação às medidas de proteção, os trabalhadores as vêm tomando e as custeando por conta própria. A grande maioria dos entrevistados afirmou adotar uma ou mais medidas de proteção na execução de seu trabalho, enquanto as medidas adotadas pelas empresas concentram-se na prestação de orientações.
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Resumo O avanço das forças produtivas apropriadas pelo capital, aliado ao contexto de transformação das relações socioculturais que abarcam as esferas da produção e do consumo, tem possibilitado a ascensão do fenômeno da uberização do trabalho, termo derivado da forma de organização da empresa Uber. Esse fenômeno tem sido usualmente associado aos negócios da denominada economia de compartilhamento e abre o debate acerca das especificidades das categorias estruturantes da acumulação capitalista que abarcam relações de trabalho virtualizadas. Neste artigo, buscamos lançar as bases teóricas para a defesa do seguinte argumento: a uberização do trabalho representa um modo particular de acumulação capitalista ao produzir uma nova forma de mediação da subsunção do trabalhador, o qual assume a responsabilidade pelos principais meios de produção da atividade produtiva. Partindo do aporte teórico marxiano, traçamos uma análise crítica acerca do fenômeno da uberização, que está intrinsecamente relacionado às inovadoras formas de gestão, enquanto, por outro lado, intensifica a precarização do trabalho.
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Introdução: a organização do trabalho não deve ser vista somente como a estrutura organizacional, mas deve considerar também a dinâmica configurada pelas interações entre os trabalhadores. Objetivo: apresentar os tipos de regulações desenvolvidas coletivamente por operadores de uma indústria de bebidas e desvelar como elas contribuem para a redução da carga de trabalho. Métodos: intervenção ergonômica realizada em ambiente industrial. Os procedimentos adotados foram qualitativos, combinando observações da atividade, entrevistas e técnicas de confrontação. Resultados: as principais estratégias dos trabalhadores para lidar com a sobrecarga de trabalho foram modificar a rotação de postos de trabalho, adotar um conjunto de regulações que buscam reduzir o tempo de trabalho nas tarefas consideradas mais penosas, cooperar com os colegas e buscar períodos de pausa na atividade. Conclusão: uma atividade coletiva pode ser considerada como uma articulação entre regulações quentes - ou as estratégias desenvolvidas pelos operadores na situação de trabalho - e regulações frias - ou a produção de regras e ferramentas de gestão pelos gestores da empresa. Por meio de um caso prático, foi possível verificar a necessidade de se partir das práticas de trabalho para estabelecer regras pertinentes, e não o inverso.
Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado
  • L C Abílio
Abílio, L. C. (2019). Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Revista Psicoperspectivas, 18(3). https://doi. org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado
  • R Antunes
Antunes, R. (2020). Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo.
O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital
  • R Antunes
Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.