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http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2021.3.40676
LETRAS DE HOJE
Studies and debates in linguistics, literature and Portuguese language
Letras de hoje Porto Alegre, v. 56, n. 3, p. 584-597, set.-dez. 2021
e-ISSN: 1984-7726 | ISSN-L: 0101-3335
Artigo está licenciado sob forma de uma licença
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
1 Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), São Paulo, SP, Brasil.
Soa Finguermann e
Fernandes1
orcid.org/000-0002-9979-671X
sfinguermann@gmail.com
Recebido em: 13 abr. 2021.
Aprovado em: 14 out. 2021.
Publicado em: 10 fev. 2022.
Resumo:
Este trabalho reete sobre a representação midiática de mulheres
presentes no cenário político brasileiro, a partir de uma análise dialógica discursiva
de reportagens de capa protagonizadas por guras públicas da política nacional
entre 2015 e 2019. Faz-se um paralelo entre o retrato de mulheres em posição de
protagonismo político, ou seja, governantes eleitas, e a representação daquelas
que ocupam papeis coadjuvantes no que tange à atuação política, como pri-
meiras-damas. Por serem estudados textos sincréticos da contemporaneidade,
o dialogismo do Círculo de Bakhtin (VOLÓCHINOV, 2017) aparece atrelado aos
estudos do verbo-visual (BRAIT, 2013). A hipótese apontada é de que, enquanto
protagonistas o fazer político, não raramente mulheres aparecem vilicadas pela
mídia e, sob avaliações de histerismo ou incompetência, o modelo que lhes
parece ser atribuído é o de bruxa má (DWORKIN, 1974). Por outro lado, quando
ocupam o papel de coadjuvantes, o retrato midiático as valoriza no que tange
ao padrão estético vigente e parece construir uma narrativa próxima às das
princesas de contos-de-fada. Considerando que todo enunciado é parte de uma
corrente discursiva ininterrupta e que está circunscrito, necessariamente, a um
sistema ideológico (BAKHTIN, 2003), propõe-se estudar as relações dialógicas,
contratuais ou polêmicas, que constituem as capas investigadas para, então,
reetir sobre os papeis sociais estraticados às mulheres, reetidos e reiterados
pelo fazer midiático.
Palavras-chave: Representação feminina. Dialogismo. Mídia impressa.
Abstract: This work reects on mediatic representation of women present in
Brazilian politics, from a discursive dialogical analysis of cover stories carried out
by public gures of national politics between 2015 and 2019. A parallel is made
between the portrait of women in political protagonism, elected government
ocials, and the representation of those who occupy supporting roles regarding
political performance, such as rst ladies. Once contemporary syncretic texts
are studied, the Bakhtin Circle dialogism (VOLÓCHINOV, 2017) appears linked
to the visual-verb studies (BRAIT, 2013). The hypothesis pointed out is that, as
protagonists of political practice, women are often vilied by media and, under
assessments of hysterics or incompetence, the model attributed to them is of
a bad witch (DWORKIN, 1974). On the other hand, when they play a supporting
actor’s role, the media portrait values according to the current aesthetic standard
and seems to build a narrative close to those of fairy tale princesses. Considering
that every statement is part of an uninterrupted discursive current and that is
necessarily limited to an ideological system (BAKHTIN, 2003), it is proposed to
study the dialogical relations which constitute the investigated covers, reecting
on the stratied social roles of women, reected, and reiterated by doing media.
Keywords: Female representation. Dialogism. Printed media.
Resumen:
Este estudio reexiona sobre la representación mediática de las mu-
jeres presentes en la política brasileña, a partir de un análisis dialógico discursivo
de artículos de portada realizadas por guras públicas de la política nacional entre
SEÇÃO: ESTUDOS BAKHTINIANOS CONTEMPORÂNEOS
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo
sociodiscursivo do discurso
Women, journalism, and politics: a sociodiscursive study
Mujer, prensa y política: un estudio sociodiscursivo
Sofia Finguermann e Fernandes
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo sociodiscursivo do discurso 585
2015 y 2019. Se hace un paralelismo entre el retrato de
mujeres em protagonismo político y la representación
de quienes ocupan roles secundarios en el desempeño
político, como las primeras damas. Una vez estudiados
los textos sincréticos contemporáneos, el dialogismo
del Círculo de Bakhtin (VOLÓCHINOV, 2017) aparece
ligado a los estudios do visual-verbo (BRAIT, 2013). La
hipótesis apuntada es que, como protagonistas de la
práctica política, las mujeres suelen ser vilipendia-
das por los medios y, bajo valoraciones de histeria o
incompetencia, el modelo que se les atribuye es el
de una mala bruja (DWORKIN, 1974). Por outro lado,
cuando interpretan um papel de actor secundario, el
retrato mediático se valora según el estândar estético
actual y parece construir una narrativa cercana a la de
las princesas de cuento de hadas. Considerando que
todo enunciado es parte de una corriente discursiva
ininterrumpida y que necesariamente se limita a un
sistema ideológico (BAKHTIN, 2003), se propone es-
tudiar las relaciones dialógicas que constituyen las
portadas investigadas, reexionando sobre los roles
sociales estraticados de las mujeres, reejado y rei-
terado por los medios.
Palabras clave:
Representación femenina. Dialogis-
mo. Medio impreso.
Introdução
A representação midiática da mulher brasi-
leira tem se transformado ao longo das últimas
décadas, muito em reexo às mudanças do cor-
po social do país, onde movimentos feministas
emergiram com força. Se no começo dos anos
2000 as guras femininas apareciam retratadas
pela mídia tradicional ora objeticadas, seminuas
e sexualizadas, ilustrando reportagens relativas
à moda, corpo, dietas e cotidiano doméstico, em
uma tentativa contínua de mantê-las restritas
ao espaço privado, publicações mais recentes,
apesar de não estarem completamente isentas
desse tipo de conteúdo, trazem mulheres prota-
gonizando reportagens sobre política, economia
e demais interesses da sociedade como um todo.
Essa representação, no entanto, não acontece
de maneira livre da hierarquia de gênero, tampou-
co é possível dizer que colabore para a equidade
entre os sexos. Em relação aos homens, guras
femininas que hoje ocupam esferas de poder
ainda aparecem em matérias jornalísticas como
incapazes, incompetentes ou mesmo histéricas;
e ainda parece raro que uma mulher na esfera
política protagonize uma capa de revista em que
seja exaltada sua competência enquanto sujeito
ativo do fazer político.
De acordo com Beard (2018), há signicativos
exemplos da política contemporânea global que
rearmam essa representação que prega a inca-
pacidade ou inadequação feminina em lidar com
a esfera pública; destacam-se casos como o de
Margaret Thatcher, que fez um curso para que
sua voz não fosse tão aguda em seus discursos;
além de, com frequência, muitas atuantes políti-
cas se vestirem de maneira desfeminilizada, fato
sobre o qual a pesquisadora levanta hipóteses:
[...] não temos modelo para a aparência de
uma mulher poderosa, a não ser que ela se
pareç a bastante com um homem. Os terninh os
regul ament ares, ou pelo menos as calças com-
pridas, usados por tantas líderes políticas no
Ocidente, de Angela Merkel a Hillary Clinton,
podem ser convenientes e práticos; mas são
também uma simples tática – como engrossar
o timbre da voz – para fa zer com que a mulher
pareça mais masculina e adequada ao papel
do poder (BEARD, 2018, p. 63).
Essa construção estigmatizada acerca da atu-
ação feminina na política não é recente. Segundo
Beard (2018), é preciso perceber de que maneira
a sociedade enxerga as mulheres no poder. Ao
longo da história brasileira, guras femininas que
ocuparam posições de destaque na política na-
cional foram retratadas de maneira muitas vezes
caricata. O historiador Rezzutti (2018, p. 133) cita
o processo de demonização de Carlota Joaqui-
na, constantemente descrita como uma mulher
horrorosa, semelhante a uma bruxa, poucas
vezes registrada por seus atributos intelectuais
e propriamente políticos. Segundo o autor,
[...] a vida de d. Carlota foi reduzida a uma ca-
ricatura por meio dos discursos históricos ao
longo dos anos, nos quais ela aparece como
uma personagem simiesca e malévola. Essa
imagem permeia até ho je o discurso ad otado,
quase que por osmose, em muitos livros de
história. Eles repetem a antiga construção
do discurso masculino, no qual a sociedade
patriarcal e sexista tenta colocar “no lugar”
aquela mulher que, em vez de ser modelo
de virtudes, se atreveu a jogar, de igual para
igual, os jogos de poder num ambiente majo-
ritariamente masculino. O discurso do poder
utilizado no caso de Carlota Joaquina é mas-
culino e refratário a qualquer ideia de que a
mulher venha a ter um protagonismo político
num espaço político ancestralmente ocupado
pelo homem (REZZUTTI, 2018, p. 137).
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Se uma mulher com uma postura mais acirrada
e assertiva era tida como cruel ou desequilibra-
da, aquelas de comportamento mais comum à
época, ou seja, mulheres da esfera pública que
tinham um discurso mais polido e dito apropriado,
foram tangenciadas ao longo da história, tendo
seus papeis sociais limitados a mães, amantes e
esposas, ainda que suas participações políticas
tenham sido muito mais incisivas do que sua
atuação na esfera doméstica.
É o caso de D. Leopoldina, a primeira imperatriz
brasileira e “a primeira [mulher] a participar ativa-
mente da política brasileira em nível nacional e a
governar diretamente o Brasil” (REZZUTTI, 2018,
p. 138). Além de ter substituído D. Pedro enquan-
to princesa regente e, posteriormente, como
imperatriz regente, a austríaca foi importante
articuladora no movimento de Independência do
país. Apesar desses feitos, a gura aparece muitas
vezes nos livros de história como a esposa traída
de D. Pedro I, ou como a mãe de D. Pedro II. Ao
compará-la à sogra, D. Carlota, o autor arma que
“ao contrário da rainha portuguesa, porém, ela não
impunha, sugeria, não fazia cara feia ou birra, mas
calava-se e esperava o momento certo de agir”
(REZZUTTI, 2018, p. 138). Esse comportamento
mais submisso e cativo absteve a personagem de
uma memória histórica de histerismo e descon-
trole, mas delimitou sua participação na história
a uma gura coadjuvante. O mesmo acontece
com Domitila de Castro, a marquesa de Santos,
que também teve seu papel subjugado na histo-
riograa brasileira, apresentada como amante de
D. Pedro, quando teve uma participação política
engajada, promovendo diversas contribuições
públicas, especialmente em São Paulo. Visto por
outro ângulo, os relatos sobre ambas salientam a
masculinidade do imperador Dom Pedro I.
Essa postura feminina mais dócil, tida como
mais aceita e adequada, parece ter inferido às
mulheres tal posto de coadjuvantes em oposição
ao protagonismo político, social e econômico
dos homens. Desta forma, ainda que importantes
referências históricas, quando não aparecem
retratadas como medusas maquiavélicas, as
mulheres no poder têm sua importância política
minimizada, como que a reiterar seu pertenci-
mento à esfera doméstica.
Tendo esboçado esse contexto, cabe denir
a metodologia utilizada para o desenvolvimento
deste artigo. Parte-se do princípio bakhtiniano de
que o dialogismo é comum a qualquer discurso:
A orientação dialógica é naturalmente um
fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se
da orientação natural de qualquer discurso
vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto,
em todas as direções, o discurso se encontra
com o discurso de outrem e não pode deixar
de participar, com ele, de uma interação viva
e tensa (BAKHTIN, 2003, p. 88).
A partir de então, este artigo investiga algumas
produções midiáticas – capas de revista –, em
sua relação com enunciados anteriores, em suas
consonâncias e tensões discursivas, bem como
observa o contexto sócio-histórico de produção
e difusão das revistas, a m de apreender as
intenções e estratégias linguístico-discursivas
empregadas. Considerando o enunciado “ape-
nas um elo na cadeia ininterrupta de discursos
verbais” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 184), não pode
haver uma ruptura entre o estudo da língua e
seu conteúdo ideológico. Objetiva-se, portanto,
a partir da análise dialógica discursiva, investi-
gar quais caminhos estão sendo traçados, pela
mídia, para as mulheres brasileiras que atuam
na esfera política.
Considerando que são investigados textos
sincréticos, a análise não pode se limitar à in-
vestigação dos signos linguísticos. Logo, para
o seu desenvolvimento, este estudo emprega
a articulação entre o estudo do verbo-visual e o
dialogismo bakhtiniano. Segundo Brait (2013, p.
46), há obras de Bakhtin e do Círculo que pos-
sibilitam uma chave de leitura verbo-visual. A
autora reforça que a teoria bakhtiniana não está
restrita ao campo do verbal, uma vez que a teoria
abraça a linguagem como um todo.
Dentre as obras apontadas pela autora nesse
sentido, encontra-se Marxismo e Filosoa da
Linguagem, em que Volóchinov, ao defender a
lógica da consciência, que é necessariamente
alimentada pelos signos, dene-a como “a lógica
da comunicação ideológica, da interação semió-
Sofia Finguermann e Fernandes
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo sociodiscursivo do discurso 587
tica de um grupo social” (VOLÓCHINOV, 2017, p.
107). Desta forma, já é traçada uma possibilidade
de leitura para além do fazer verbal, levando
em conta aspectos semiótico-ideológicos do
discurso.
Brait ressalta, ainda, a possibilidade de uma
leitura verbo-visual estudar a articulação entre
esses dois campos para a produção de efeitos
de sentido, uma vez que, em textos sincréticos,
o ver e o ler acontecem simultaneamente (BRAIT,
2013, p. 44). Assim, o estudo da verbo-visualidade
busca explicar a construção de sentidos por meio
do verbal e do visual estruturados em apenas um
enunciado, em um único plano da expressão,
combinados de forma a construir o sentido do
texto. É esse o caso, por exemplo, das capas de
revista observadas por este artigo.
As análises e reexões que se seguem, por-
tanto, amparam-se na teoria bakhtiniana, uma
vez que aprofundam as relações dialógicas,
contratuais ou polêmicas, presentes nos textos
estudados. Tendo em vista que este estudo se
debruça sobre capas de revistas compostas
em grande parte pelo não-verbal, o método
bakhtiniano se conecta às teorizações de Brait
(2013) sobre a construção de sentido em textos
verbo-visuais.
Aparecem atrelados aos estudos do discurso
alguns conceitos feministas sobre a represen-
tação feminina na sociedade, em especial as
considerações de Andrea Dworkin sobre contos
de fadas. Para Dworkin (1974, p. 26), essas pro-
duções fazem parte da construção primária da
psique, uma vez que fazem parte das primeiras
informações culturais apreendidas. Assim, os
contos de fadas disponibilizariam determinados
papeis e valores que, reproduzidos socialmen-
te, incidem na vivência de mulheres reais. Este
2 Essas classificações dispostas por Dworkin remetem à noção junguiana de arquétipo, trabalhada em obras como Os arquétipos e o
inconsciente coletivo (JUNG, 2003).
3 O conceito de histeria, cunhado por Freud/Breuer, foi amplamente discutido por pensadoras feministas como Beauvoir (2016) e Mit-
chell (1979). A palavra tem sua origem do grego hystéra, que significa útero.
artigo se debruça particularmente sobre dois
modelos dos contos infantis, investigando sua
aparição na mídia tradicional brasileira: o de
princesa encantada e o de bruxa má.
2
A primeira
personagem, essencialmente boa e indefesa; a
segunda, maliciosa e cruel, que aterroriza mesmo
homens adultos.
Em suma, as análises objetivam revelar, a
partir das relações dialógicas e da constituição
interna dos textos, quais efeitos de sentido em
relação às mulheres na esfera política são, ainda
hoje, propagados pela mídia tradicional; também
investigar quais estratégias discursivas se fazem
presentes na construção da gura da mulher
brasileira e como essa concepção, muitas vezes
carregada de estigmas e estereótipos, corrobora
com o afastamento das guras femininas às mais
variadas esferas de poder e reete os limites de-
mocráticos das mulheres brasileiras. Para tanto,
foram selecionadas publicações impressas que
circularam no país entre os anos de 2015 e 2019,
protagonizadas por mulheres da esfera política
nacional.
Representações da mulher atuante
Casos semelhantes àqueles mencionados
por Beard (2018) e Rezzutti (2018) permeiam o
fazer político de mulheres brasileiras. Mesmo os
modelos dos contos de fadas não parecem tão
distantes das nossas representações midiáticas. A
título de exemplo, Dilma Rousse e Carmen Lucia,
guras atuantes na esfera pública à época das
reportagens estudadas, constantemente foram
caracterizadas pela mídia tradicional sob aspec-
tos de histeria
3
ou frigidez, como mostram as
duas primeiras capas selecionadas para análise:
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Figuras 1 e 2 – Capas da IstoÉ, protagonizadas por Dilma Rousse e Carmen Lucia4
Fonte: IstoÉ (2016, 2018a).
4 Publicação nº 2417, de 6 de abril de 2016; publicação nº 2517, de 16 de março de 2018. Plataforma digital da IstoÉ. Disponíveis em:
https://istoe.com.br/edicoes. Acesso em: 20 out. 2018.
5 Fotografia de Sérgio Lima/Folhapress. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/dilma-rousseff-foi-vitima-de-ma-
chismo-diz-historiadora-britanica-em-livro. Acesso em: 13 abr. 2021.
Cada uma dessas publicações apresenta parti-
cularidades a serem esmiuçadas separadamente.
No entanto, cabe primeiro levantar os pontos
em comum entre as duas capas que motivaram
a escolha do corpus: ambas carregam efeitos
de sentido negativos de desequilíbrio ou de
perversidade, com maior ou menor ênfase, as-
sim como, de forma mais ou menos explicitada,
esses enunciados são exemplos de outros tantos
que reetem a hierarquia social imposta pelo
sistema de sexo-gênero. Ainda em uma leitura
supercial, é possível armar que, se fosse em
um conto de fadas, as personalidades tais como
aparecem nessas reportagens não seriam as
princesas encantadas.
As capas de Dilma Rousseff
Essa vilania da mulher atuante não é arbitrá-
ria, mas parece dialogar com a maneira como
o discurso feminino foi construído e moldado
pela cultura Ocidental (BEARD, 2018). A autora
traz como exemplo a constante comparação de
Dilma Rousse e Hillary Clinton à gura mitológica
Medusa. A título de exemplo, ganhou destaque
a fotograa de Sérgio Lima, na ocasião da aber-
tura de uma exposição de Caravaggio no Brasil
em 2012, em que Rousse aprecia uma pintura
do artista e, em um jogo imagético, a gura da
governante parece ser um reexo da górgona.
Figura 3 – Fotograa de Dilma em comparação à
Medusa5
Fonte: Sérgio Lima/Folhapress (2012).
Sofia Finguermann e Fernandes
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo sociodiscursivo do discurso 589
Apesar de essa representação poder ser ampa-
rada em uma justicativa de insatisfação política,
faz-se importante destacar que essa estratégia
discursiva não é exclusivamente direcionada
a Rousse ou Clinton, mas a várias mulheres
atuantes na esfera política. Em uma breve pes-
quisa, é possível encontrar outras governantes
comparadas à Medusa, como Margaret Thatcher
e Theresa May. Nesse sentido, não parece su-
ciente argumentar que a comparação é oriunda
de uma insatisfação no campo político, pois,
ainda que o seja, tal estratégia se fundamenta
em uma misoginia reiterada desde a mitologia
grega. Ainda traçando um paralelo entre as pro-
duções clássicas e as vivências atuais, Beard
(2018) considera que a decapitação de Medusa
por Perseu seja uma decapitação simbólica da
atuação dessas mulheres na política.
Tais construções discursivas se estendem por
diversas outras representações midiáticas, como
é o caso da reportagem “As explosões nervosas
da presidente” ora analisada, publicada no dia
6 de abril de 2016, em que a gura estridente
de Rousse, acompanhada da manchete que
6 Publicação nº 2113, de 12 de maio de 2010; publicação nº 2417, de 6 de abril de 2016. Disponíveis em: https://istoe.com.br/edicoes.
Acesso em: 20 out. 2018.
intitula a matéria, faz notória a tentativa verbo-
-visual de transmitir desequilíbrio emocional de
Dilma, então posta como uma gura autoritária
e descontrolada, de maneira caricata (Figura 5).
A imagem da presidente exaltada aparece
acompanhada de um notório contraste de cores,
uma vez que o título da revista é grafado em um
amarelo forte, os olhos e cabelos de Rousse
escurecidos quase por completo, em contraste
aos dentes e pele brancos. Essa oposição de es-
curo e claro parece contribuir para a construção
do efeito de sentido de um discurso inamado,
em consonância aos elementos verbais da capa.
Comparemos este texto, então, com uma re-
portagem de capa anterior, na Figura 4:
publicada
em maio de 2010, pouco tempo após a primeira
eleição da presidente no país, a reportagem
“Dilma por Dilma” trata a presidente pelo primeiro
nome, trazendo um efeito de aproximação. Os
recursos não-verbais, por sua vez, trabalham prin-
cipalmente com cores frias, em tons de branco
e azul, dialogando com as reportagens sobre as
primeiras-damas posteriormente analisadas no
tópico seguinte.
Figuras 4 e 5 – Capas da IstoÉ protagonizadas por Dilma6
Fonte: IstoÉ (2010, 2016).
590 Letras de hoje Porto Alegre, v. 56, n. 3, p. 584-597, set.-dez. 2021 | e-40676
As marcas de expressão da governante apare-
cem suavizadas quando comparadas à segunda
publicação, transmitindo jovialidade e delicadeza.
A maquiagem leve e os acessórios corroboram
com a noção de uma feminilidade dócil.
É certo que as duas publicações circularam em
contextos sócio-históricos relativamente diferentes
e os cenários poderiam se distinguir com facilida-
de entre aquele de expectativas positivas para o
governo Dilma e o de frustração que antecedeu
o golpe de 2016. No entanto, parece insuciente
amparar essas diferenças discursivas em insatisfa-
ção política. Tampouco bastaria dizer que a relação
dialógica entre as duas capas é polêmica. O que
concerne este estudo é ponderar a misoginia
enquanto ferramenta de manifestação desse des-
contentamento. Pensemos, então, a feminilidade
e jovialidade exacerbadas enquanto dispositivos
de exaltação e as marcas da idade e expressões
faciais, por exemplo, enquanto uma ferramenta de
deslegitimação do discurso feminino, ainda que a
aparência de uma mulher em nada se relacione
à sua capacidade de fazer política.
Nesse sentido, pensemos, ainda, a capa de
abril de 2016, protagonizada por Rousse, em
relação dialógica com esta que se segue, com a
imagem do presidente Jair Bolsonaro na Figura 6:
Figura 6 – Capa da IstoÉ protagonizada por
Bolsonaro7
Fonte: IstoÉ (2019).
7 Reportagem de capa da IstoÉ, nº 2601, veiculada em 01/11/2019. Disponível em: https://istoe.com.br/edicoes. Acesso em: 3 abr. 2021.
8 Publicação nº 2517, de 16 de março de 2018. Disponível em: https://istoe.com.br/edicoes. Acesso em: 20 out. 2018.
Enquanto a reportagem sobre Rousse rela-
cionava a governante à histeria e descontrole
emocional, Bolsonaro aparece em uma com
-
paração animalesca ao rei da selva. Mesmo a
fonte escolhida para a manchete faz menção ao
clássico da Disney, o lme “O Rei Leão”. O adjetivo
empregado para descrevê-lo é “destemperado”,
diferentemente do “descontrole” da matéria sobre
Rousse. A representação do político pode ser
assustadora e animalesca, mas não remete a
desequilíbrio emocional.
Carmen Lucia e Marielle Franco
Já a capa protagonizada pela então presiden-
te do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lucia
(Figura 7), traz como principal temática a prisão
do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva cuja
condenação, na época, havia sido determinada
em segunda instância pelo Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, em 24 de janeiro de 2018.
Intitulada “Os desabafos de Carmen Lucia”, a
reportagem traz na capa o rosto da então pre-
sidente do Supremo, além de citações diretas
da ministra. Destaca-se, em letras garrafais, a
frase “Nunca o STF esteve tão tenso”. O texto
da matéria discorre sobre a pressão que o STF
estaria sofrendo após a condenação de Lula em
segunda instância.
Figura 7 – Capa da IstoÉ protagonizada por Carmen
Lucia8
Fonte: IstoÉ, 2018a.
Sofia Finguermann e Fernandes
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo sociodiscursivo do discurso 591
Destacam-se na capa as cores sóbrias, em
especial a oposição entre escuro e claro. Carmen
Lucia, que aparece com um semblante preocu-
pado e as marcas de expressão evidentes, ocupa
quase toda a página ao lado de seus “desabafos”.
Marielle Franco, dois dias após seu assassinato,
aparece às margens da capa – o assunto principal
continuava sendo a prisão de Lula.
Esse tema já havia sido abordado pela IstoÉ em
fevereiro daquele ano, em matéria intitulada “O
novo tom da justiça”, publicada pouco tempo após
a condenação do presidente, em que Carmen
Lucia aparece acompanhada dos outros ministros,
em postura heroica (Figura 8). Percebe-se forte
dialogismo entre as duas capas, portanto, ambas
são investigadas no presente estudo, a m de
levantar suas relações dialógicas, tanto entre si,
quanto em relação a outros textos:
Figura 8 – Capa da IstoÉ protagonizada pelos mi-
nistros do STF9
Fonte: IstoÉ (2018b).
De forma análoga à teoria de Dworkin (1974)
sobre os contos-de-fadas no imaginário social, a
capa acima parece dialogar com lmes de super-
-heróis, em especial o “Liga da Justiça” (Figura 9):
9 Revista IstoÉ edição nº 2511, de 2 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://istoe.com.br/edicoes. Acesso em: 20 out. 2018.
10 Imagem de divulgação do filme “Liga da justiça”, disponível em https://www.facebook.com/LigadaJusticaFilme. Acesso em: 12 abr.
2021.
11 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, Art. 16, Parágrafo único: “Receberão o tratamento de Excelência, conservando o
título e as honras correspondentes, mesmo após a aposentadoria, e usarão vestes talares, nas sessões solenes, e capas, nas sessões
ordinárias ou extraordinárias”.
Figura 9 – Banner de divulgação “Liga da justiça”10
Fonte: Página do Facebook Liga da Justiça Filme
(2018).
Observemos que o dialogismo entre a capa da
IstoÉ e a imagem de divulgação do lme não se
dá não apenas por meio do posicionamento das
personagens, em que os grupos aparecem arranja-
dos de maneira muito semelhante, como por meio
dos textos verbais propostos: a escolha lexical da
reportagem traz a palavra “justiça”, que também
compõe o título do lme; da mesma maneira, a
fonte empregada no título da publicação se asse-
melha à do nome da produção cinematográca.
Assim, a capa parece empregar aos ministros do
STF uma postura heroica em relação à condenação
de Lula. Nesse sentido, assim como as princesas
e as bruxas dos contos-de-fadas, cabe reetir se
o fazer midiático de grande circulação também
apresenta heróis e vilões, de acordo com os efeitos
de sentido almejados.
A publicação mais antiga traz todo o grupo de
ministros, que aparecem liderados por Carmen
Lucia, trajando capa, à frente de seus companhei-
ros. O traje é estipulado pelo Regimento Interno
do STF,11 que dispõe que os ministros usem a
peça em sessões ordinárias ou extraordinárias.
É uma medida simbólica, que provoca um efeito
de sentido de autoridade e de caráter imparcial
desses prossionais. O adereço também reitera a
relação dialógica com super-heróis, sendo mais
um elemento que contribui para construção de
uma imagem de que os ministros, sob a presi-
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dência de Carmen Lucia, na posição simbólica de
Mulher-Maravilha, exerciam a função de salvado-
res e justiceiros – palavra que também aparece
na manchete.
Ambas protagonizadas pela ministra, as pu-
blicações de fevereiro e de março dispõem de
diversos elementos dialógicos, como escolhas
cromáticas similares, mesma temática central e
algumas escolhas lexicais convergentes. Naquele
momento, a representação que aparece na gura
de Carmen Lucia é de uma super-heroína incle-
mente e mesmo ameaçadora. No entanto, enquan-
to na publicação mais antiga a ministra aparece
amparada por seus colegas quase todos homens,
trajando capa, sobre dizeres como “o Supremo não
se dobra às pressões”, na publicação de março,
Carmen Lucia protagoniza a reportagem sozinha,
sem as vestes talares, com feição preocupada e
marcas de expressão em destaque, ao lado dos
dizeres sobre a tensão no STF.
Cabe observar, assim, as estratégias discursivas
que incidem nessas duas publicações da revista
IstoÉ. Ainda que de maneira minuciosa, quando
o contexto próximo à publicação era de maior
conança e rmeza sobre o tema – condenação
em segunda instância do ex-presidente Lula, a
então presidente do STF aparece na reportagem
de capa em uma perspectiva exaltada, como quem
comanda um time, sendo apoiada e resguardada
pelos demais ministros – um grupo majoritaria-
mente masculino. Por outro lado, quando apare-
cem no horizonte social questões mais tensas,
que questionam o posicionamento da equipe
do STF, Carmen Lucia protagoniza a reportagem
sozinha, com feição preocupada, ao lado de frases
estampadas com seus ditos “desabafos”.
O que se destaca, nesse caso, é a sanção posi-
tiva que Lucia divide com os outros membros do
STF na publicação mais antiga (Figura 8), em um
dialogismo visível com super-heróis, em compa-
ração à sanção negativa, Figura 7, que a mulher
recebe sozinha. Entre as duas aparecem, ainda,
diferenças na representação feminina. Em nenhu-
ma das publicações Carmen Lucia aparece como
a princesa dos contos infantis, anal, não faz o
papel de vítima indefesa. No entanto, enquanto
na Figura 8 ela aparece aproximada de uma gura
poderosa e heroica, ainda que com elementos
sóbrios e anuviados, a segunda parece evidenciar
sua vilania e carregar certa hostilidade; não ne-
cessariamente remete à gura de “bruxa má”, mas
talvez de uma madrasta antipática e aborrecida.
Destaca-se, ainda, a notícia sobre o assassinato
de Marielle Franco, tangenciada às bordas da
página da publicação de 16 de março de 2018.
No caso da vereadora, mulher negra, bissexual,
atuante de um partido de esquerda e que se
posicionava a favor de minorias estruturais, a
problemática transcende em muito a representa-
ção tendenciosa, sendo necessário questionar a
violência que permeia o fazer político da brasileira
negra. Se no caso de atuantes políticas brancas,
como Rousse e Carmen Lucia, a representação
é caricata e carregada de estereótipos, direcio-
na-se à vereadora carioca o apagamento, tanto
nas produções midiáticas em geral, como em seu
exercer da cidadania, impedido pela violência
assassina. Essa questão denuncia o fato de que
a luta pelo acesso ao fazer político não se realiza
em páreo de igualdade entre brancas e negras,
sendo estas mais afetadas pelo sistema patriar-
cal que atende a dinâmicas racistas. Ainda que
veiculada dois dias após o crime político que a
matou, a marca optou por priorizar a discussão,
ora em pauta, sobre a condenação de Lula.
Rousse e Carmen Lucia aparecem nas repor-
tagens de capa investigadas de maneira caricata.
As publicações são compostas por tons escuros
e semblantes marcados. Salientam-se marcas de
expressão, cabelos brancos e feições severas,
destacando a idade avançada das políticas como
se esse fosse um fator signicativo para suas atu-
ações na esfera pública. Essas representações,
conforme explorado, parecem advindas das his-
tórias infantis. Segundo Dworkin (1974), os contos
de fadas, que possuem informações primárias da
cultura, são absorvidos pela realidade cotidiana,
impondo determinados papeis sociais. Assim, se
Sofia Finguermann e Fernandes
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo sociodiscursivo do discurso 593
uma mulher não é passiva, inocente e indefesa,
ela é, ativamente, uma gura má, como exem-
plicam as capas anteriormente apresentadas.
O retrato da primeira-dama
Por outro lado, quando aparecem na mídia
tradicional mulheres em posição de coadjuvantes
12 Revista Veja, nº 2511, de 4 de janeiro de 2017; Revista IstoÉ edição nº 2553, de 23 de novembro de 2018. Disponíveis em: https://veja.
abril.com.br/edicoes-veja/ e https://istoe.com.br/edicoes. Acesso em: 3 dez. 2018.
no cenário político, como Marcela Temer e Mi-
chelle Bolsonaro nas reportagens que se seguem,
nota-se que são frequentemente retratadas de
forma delicada, jovial, com a feminilidade enal-
tecida e exaltando padrões estéticos vigentes
na sociedade brasileira:
Figuras 10 e 11 – Capas da Veja e IstoÉ, protagonizadas por Marcela Temer e Michelle Bolsonaro, respec-
tivamente12
Fonte: Veja (2017); IstoÉ (2018c).
Apesar de as duas publicações contarem com
um distanciamento temporal de quase dois anos,
bem como terem sido veiculadas por marcas
distintas, a relação dialógica harmônica entre as
duas se realiza de forma tão presente que as re
-
portagens poderiam ser facilmente confundidas.
Ambas veiculadas durante o período de posse
de seus maridos, parecem propor uma mesma
valorização de governos, ainda incertos para a
população, a partir da gura feminina delicada.
As imagens de Temer e de Bolsonaro parecem
ser respaldadas a partir de suas esposas, que
aparecem sob o nome de casadas e parecem
trazer mais sociabilidade e polidez para guras
masculinas tidas como polêmicas.
As duas mulheres, que contam com certa
semelhança física, apresentam um padrão de
beleza exaltado no país: brancas de olhos claros,
cabelos longos e loiros, jovens e magras. Com
uma maquiagem discreta, ambas aparecem de
perl, como que a olhar para frente. Retomando
a relação estabelecida por Dworkin (1974) entre
a realidade contemporânea e os contos de fada,
o efeito de sentido produzido por essas duas
publicações aproxima as personagens brasileiras
de princesas encantadas. Assim, enquanto belas
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princesas das histórias infantis, essas mulheres
aparecem jovens e delicadas, representadas sob
um espectro de passividade.
Tal fazer discursivo parece reiterar a ideologia de
gênero que dene as mulheres como responsáveis
pela afetuosidade e delicadeza em contraponto
à racionalidade e até mesmo rudeza masculina.
Desta forma, parece ser a proposta desses veículos
transmitir para o público leitor um outro lado dos
mandatos, produzindo um efeito de sentido de
amabilidade e elegância. Também parece haver
certa relação com o conceito de “bela, recatada
e do lar”, desenvolvido em matéria da revista Veja
(LINHARES, [2016])13. Uma vez que esses atributos
foram dispostos positivamente na reportagem,
reitera-se o efeito de sentido de que uma mulher
submissa, voltada aos afazeres domésticos, é bo-
nita, correta, uma vez que está de acordo com a
hierarquia de gênero imposta, o que em muito dia-
loga com o proposto pelas capas aqui estudadas.
Mesmo a construção verbal da manchete pro-
tagonizada pela primeira-dama Bolsonaro parece
remeter a uma trajetória de contos de fadas:
encontram-se em oposição temática o passado
humilde de Michelle Bolsonaro na Ceilândia e
o futuro de ascensão social que aguardava a
primeira-dama. De acordo com a lide:
Reporta gem da IstoÉ reve la a vida humilde da
família da futura primeira-dama em Ceilândia,
cidad e pobre de Brasília onde ela nas ceu. Li xo
acumulado nos arredores e boca de fumo a 500
metros da residência do pai com põem um ce-
13 LINHARES, Juliana. Marcela Temer: bela, recatada e ‘do lar’ a quase primeira-dama, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco,
gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice. Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/
marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar. Acesso em: 30 jan. 2019.
14 Revista IstoÉ edição nº 2553, de 23 de novembro de 2018. Disponível em: https://istoe.com.br/edicoes. Acesso em: 20 dez. 2018.
nário que contrasta com a nova real idade que
sorrirá para ela a partir de janeiro (ISTOÉ, 2018).
Além da evidente meritocracia proposta pela
publicação, aparece no texto a ideia de ascensão
através do casamento heterossexual. Remete-se
à ideia da princesa encantada que, a partir de
seu encontro com o príncipe, alcança o nal
feliz. Ao contrário de Rousse e Carmen Lucia,
as primeiras-damas aparecem sorridentes, em
convergência com o texto verbal presente nas
reportagens. Assim, isentas de papel ativo na
política pública, Michelle Bolsonaro e Marcela
Temer ocupam a posição de coadjuvantes, en-
quanto esposas dos homens que de fato atuam
em funções governamentais.
Essa representação midiática exaltada e posi-
tiva, que em muito se difere daquelas destinadas
às brasileiras atuantes ora estudadas, parece di-
ferenciar os papeis sociais para os quais mulheres
brasileiras são consideradas aptas daqueles que,
de acordo com a cultura patriarcal, parecem ser
bem executados somente por homens.
Além dos muitos elementos visuais que apro-
ximam as capas das duas reportagens, como os
tons de azul que compõem o plano de fundo,
o olhar para o futuro das duas primeiras-da-
mas, as marcas de expressão eufemizadas e a
maquiagem bem-feita, as relações dialógicas
harmônicas existentes entre a representação
das duas personalidades continuam no corpo
da reportagem mais recente, conforme Figura 12:
Figura 12 – Corpo da reportagem protagonizada por Michelle Bolsonaro, IstoÉ14
Fonte: IstoÉ (2018c).
Sofia Finguermann e Fernandes
Mulheres, discurso jornalístico e política: um estudo sociodiscursivo do discurso 595
Acompanhadas da legenda “passando o bas-
tão”, Marcela Temer e Michelle Bolsonaro apare-
cem lado a lado, posando no Palácio, aquela com
os trajes pretos, esta vestindo rosa. A imagem
sugere que a relação dialógica entre as capas
não é arbitrária, mas que a representação ora feita
pela Veja, em “Marcela Temer, aposta do governo”
está em consonância com a publicação da IstoÉ,
“Os dois mundos de Michelle Bolsonaro” (Figuras
10 e 11). A antiga primeira-dama “passa o bastão”
para sua sucessora, sugerindo uma mesma fun-
ção social, além da clara semelhança física, das
duas personagens.
Discussão
É certo que o fazer midiático é moldado pelo
corpo social, como também molda a sociedade.
Desta forma, a insatisfação pública por parte dos
leitores de veículos como a Veja ou a IstoÉ sobre o
governo Dilma, por exemplo, incidem diretamente
sobre como ocorrem as representações na mídia.
No entanto, o que cabe discutir neste artigo são
as ferramentas, muitas vezes amparadas em
misoginia e machismo, que constroem os efeitos
de sentido nos textos. Anal, ainda que houvesse
uma insatisfação social sobre dado fazer político
masculino, como exemplica matéria de capa
protagonizada por Bolsonaro (Figura 6), dicil-
mente seus atributos físicos seriam utilizados
como uma forma de deslegitimá-lo, tampouco se
faria referência a um suposto descontrole emo-
cional. Para além disso, parece uma ferramenta
discursiva da mídia tradicional associar um fazer
político feminino desagradável à inadequação
aos padrões de beleza vigentes.
A maneira como se caracterizam pela mídia
as mulheres na política, de acordo com sua atu-
ação ou ausência dela, reetem quais espaços o
patriarcado pretende que sejam ocupados por
corpos femininos, bem como aqueles que não
devem ser alcançados por mulheres. Mesmo
aquelas que têm maior alcance em seu discurso,
as mulheres parecem ter seu fazer discursivo
limitado ao próprio universo feminino, tendo
credibilidade apenas em determinados nichos
e áreas (BEARD, 2018). Ainda não parece caber
ao gênero feminino discutir, com propriedade,
assuntos da sociedade como um todo, tampou-
co posicionar-se adequadamente em relação a
temáticas que, ao longo da história, foram pre-
dominantemente ocupadas por homens. Assim,
estabelece-se em nossa cultura que assuntos
como economia e política não são sucientemen-
te bem discutidos por mulheres – pelo menos,
não enquanto protagonistas.
Sabendo da relação direta existente entre a
produção discursiva e o fazer social, torna-se
evidente que existe um movimento contínuo
de afastamento das mulheres aos espaços ins-
titucionais, corroborado pela mídia tradicional,
ainda que de maneira menos incisiva do que
nas décadas anteriores. Segundo Biroli (2017, p.
172), não são apenas entraves formais que preju-
dicam a ação feminina na política brasileira, mas
“obstáculos materiais, simbólicos e institucionais
erigem barreiras que dicultam a atuação das
mulheres e alimentam os circuitos da exclusão”.
Essa exclusão perpassa e correlaciona desde as
relações pessoais até a divisão sexual do traba-
lho e a participação na política, e não incide de
maneira semelhante sobre todas as mulheres,
visto que a hierarquia de gênero atende a uma
dinâmica de classes e tem sua estrutura fundada
em origens racistas e colonialistas.
No que tange às diferenças de performance en-
tre as personagens retratadas, é certo que mulheres
não devem car presas à feminilidade como se essa
fosse inerente ao sexo. É de suma importância para
a luta feminista desnaturalizar a feminilidade como
característica intrínseca ao sexo feminino, mesmo
porque é uma das ferramentas de submissão das
mulheres. No entanto, uma aproximação aos este-
reótipos masculinos, como fazer cursos para que a
entonação da voz seja mais grossa, como Margaret
Tatcher, não parecem estar distantes de regimes
antigos que obrigavam mulheres a se disfarçarem
de homens para que pudessem atuar politicamente.
Conforme Beard, ainda hoje “não temos modelo
para a aparência de uma mulher poderosa, a não
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ser que ela se pareça bastante com um homem”
(BEARD, 2018, p. 68).
Desta forma, ainda que deixar de performar a
feminilidade imposta seja um ato libertador, o que
parece acontecer na esfera política é a ideia de
incapacidade intelectual de mulheres. Quando apa-
recem feminilizadas, esses atributos parecem ser
relacionados à submissão e à passividade, assim,
não é pouco comum que optem por performances
tidas como masculinas, numa tentativa frequen-
temente fracassada de impedir a objeticação ou
desqualicação e atingir condições de atuação
equalitárias. Aquelas que não performam femini-
lidade, por sua vez, não parecem atingir o patamar
social dos homens, sendo apenas ridicularizadas
de outra maneira.
Quando guras públicas femininas se posicio-
nam de maneira mais rme e pouco submissa, ou
seja, quando são protagonistas do fazer político,
as características físicas destacadas pela mídia
parecem ser aquelas que vão de encontro ao
padrão de beleza vigente. Atributos típicos de
mulheres mais velhas (cabelos brancos, marcas
de expressão evidentes), por exemplo, parecem
servir de munição para descredibilizar ou ridicu-
larizar o fazer político, contribuindo para o efeito
de sentido, comumente propagado pela estética
normativa, de que a gura feminina deve parecer
sempre o mais jovem possível. A mulher incisiva,
atuante politicamente, tem sua gura discursiva
aproximada da bruxa dos contos infantis.
Por outro lado, quando coadjuvantes, aspectos
estéticos dentro do padrão são exaltados: cabelos
longos, magreza, maquiagem e traços delicados,
com poucas ou nenhuma marca de expressão,
aparecem como uma forma de valorizar a perso-
nagem feminina. Essa representação, em muito
relacionada às mulheres que se dedicam ao ca-
samento e demais interesses particulares, não é
arbitrária. Ao serem atribuídas às mulheres missões
de corpos perfeitos, uma estética inalcançável e
a responsabilidade sobre os cuidados com o lar
e a família, o sexo feminino tem seu pensamen-
to direcionado a essas preocupações. Pensa-se,
assim, que “o segundo sexo” é essencialmente
vaidoso, delicado e até mesmo fútil, bem como
naturalmente direcionado ao âmbito doméstico.
No entanto, considerando que a consciência
individual se dá por meio das práticas discursivas
(VOLÓCHINOV, 2017), pode-se concluir que esses e
outros comportamentos tidos como naturalmente
femininos são, na verdade, atribuídos a essa classe
de indivíduos de maneira contínua e duradoura,
por meio do discurso, desde a mais tenra idade.
Considerações finais
Apesar das conquistas sociais e políticas do
feminismo ao longo da história, especialmente nas
últimas décadas, a gura feminina continua sendo
representada na mídia e nas mais diversas cama-
das da sociedade com traços de submissão ou
por meio de estereótipos caricatos, muitas vezes
mascarados por um discurso que se propõe obje-
tivo e imparcial, mas que alimenta o preconceito.
Ainda que as representações da mulher não
se realizem hoje, com a mesma frequência de
outros tempos, de maneira explicitamente se-
xualizada ou subjugada, percebe-se na mídia
tradicional estratégias discursivas que ainda
reetem e reiteram limitações em sua atuação
democrática. As bruxas e as princesas tão cari-
catamente difundidas pela mídia são mulheres
do mundo real que têm seu acesso à cidadania
restringido e direcionado com o apoio desses
fazeres discursivos. Também o são aquelas com
-
pletamente excluídas por esses veículos, uma
vez que o silenciamento é também uma arma
poderosa para a manutenção da hierarquia de
gênero com suas implicações de raça e classe.
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Sofia Finguermann e Fernandes
Mestre em Letras, com ênfase em Análise do Discurso,
pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM),
em São Paulo, SP, Brasil; doutoranda em Letras pela
mesma instituição.
Endereço para correspondência
Soa Finguermann e Fernandes
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua Piauí, 143
Higienópolis, 01302-000
São Paulo, SP, Brasil
Os textos deste artigo foram revisados pela Poá
Comunicação e submetidos para validação da autora
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