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Lazer, Cinema e Trajetórias Socioespaciais de Cineastas Negras: Desvelando Estratégias para Enfrentar o Racismo/Sexismo

Authors:

Abstract

Este artigo objetiva investigar as intersecções de gênero/raça nas trajetórias socioespaciais de cineastas negras, tendo em vista compreender as estratégias por elas utilizadas para enfrentar o racismo e o sexismo, em seu fazer cinematográfico e em suas vivências de lazer. A pesquisa fundamenta-se nas contribuições do pensamento decolonial, do feminismo negro interseccional, dos estudos críticos do lazer e do cinema. A metodologia desta pesquisa qualitativa contou com estudo bibliográfico e entrevistas em profundidade com sete cineastas negras, as quais foram analisadas com o auxílio da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo-DSC. As principais estratégias que detém a potência de sentido para enfrentar o racismo e o sexismo no fazer cinematográfico e nas vivências de lazer das entrevistadas são as narrativas de si, a participação em associações de coletivos pretos e festivais de cinema com temática negra e a vivência de um "lazer diferenciado", que possa ser desfrutado criticamente, mesmo que seja necessário avançar no sentido de subverter a realidade social, cultural e política estabelecida em nosso contexto. Concluindo, as trajetórias socioespaciais de cineastas negras descortinam desigualdades visando romper com o imaginário social estereotipado, reafirmando a relevância de um "lazer insubmisso".
Revista do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - UFMG
, Belo Horizonte, v.23, n.3, set/2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2447-6218.2021.37728 262
LAZER, CINEMA E TRAJETÓRIAS SOCIOESPACIAIS DE CINEASTAS
NEGRAS: DESVELANDO ESTRATÉGIAS PARA ENFRENTAR O
RACISMO/SEXISMO
1
Recebido em: 11/10/2021
Aprovado em: 15/11/2021
Licença:
Iara Félix Pires Viana
2
Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE/MG)
Belo Horizonte MG Brasil
Christianne Luce Gomes
3
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Belo Horizonte MG Brasil
RESUMO: Este artigo objetiva investigar as intersecções de gênero/raça nas trajetórias
socioespaciais de cineastas negras, tendo em vista compreender as estratégias por elas
utilizadas para enfrentar o racismo e o sexismo, em seu fazer cinematográfico e em suas
vivências de lazer. A pesquisa fundamenta-se nas contribuições do pensamento
decolonial, do feminismo negro interseccional, dos estudos críticos do lazer e do
cinema. A metodologia desta pesquisa qualitativa contou com estudo bibliográfico e
entrevistas em profundidade com sete cineastas negras, as quais foram analisadas com o
auxílio da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo-DSC. As principais estratégias que
detém a potência de sentido para enfrentar o racismo e o sexismo no fazer
cinematográfico e nas vivências de lazer das entrevistadas são as narrativas de si, a
participação em associações de coletivos pretos e festivais de cinema com temática
negra e a vivência de um "lazer diferenciado", que possa ser desfrutado criticamente,
mesmo que seja necessário avançar no sentido de subverter a realidade social, cultural e
política estabelecida em nosso contexto. Concluindo, as trajetórias socioespaciais de
cineastas negras descortinam desigualdades visando romper com o imaginário social
estereotipado, reafirmando a relevância de um "lazer insubmisso".
PALAVRAS-CHAVE: Cineastas negras. Atividades de lazer. Racismo. Sexismo.
1
Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(FAPEMIG). Trata-se de um desdobramento da pesquisa de doutorado (VIANA, 2021) orientada pela
professora Christianne Luce Gomes, com quem foi partilhada a elaboração e a tessitura deste artigo.
2
Doutora em Estudos Interdisciplinares do Lazer pela (PPGIEL/ UFMG). Assessora Especial na
Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. Grupo de Pesquisa LUCE - Ludicidade, Cultura e
Educação (UFMG/CNPq). Grupo de Pesquisa ORICOLÉ - Laboratório de Pesquisa sobre Formação e
Atuação Profissional em Lazer (UFMG/CNPq). Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores
Negros (ABPN) e Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Estudos do Lazer (ANPEL).
3
Doutora em Educação com Pós-doutorado em Ciências Políticas e Sociais. Professora Titular da UFMG
e Pesquisadora do CNPq. Grupo de Pesquisa LUCE - Ludicidade, Cultura e Educação (UFMG/CNPq).
, Belo Horizonte, v.24, n.4, dez/2021.
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LEISURE, CINEMA AND SOCIO-SPACE TRAJECTORIES OF BLACK
FILMMAKERS: UNVEILING STRATEGIES TO FACE RACISM/SEXISM
ABSTRACT: This article aims to investigate the intersections of gender/race in the
socio-spatial trajectories of black filmmakers, with a view to understanding the
strategies they use to face racism and sexism, in their filmmaking and in their leisure
experiences. The research is based on the contributions of decolonial thought,
intersectional black feminism, critical studies of leisure and cinema. The methodology
of this qualitative research included a bibliographic study and in-depth interviews with
seven black filmmakers, which were analyzed using the Discourse of the Collective
Subject-DSC technique. The main strategies that have the power of meaning to face
racism and sexism in filmmaking and in the leisure experiences of the interviewees are
the narratives of themselves, participation in associations of black collectives and film
festivals with a black theme and the experience of a "differentiated leisure", which can
be critically enjoyed, even if it is necessary to advance towards subverting the social,
cultural and political reality established in our context. In conclusion, the socio-spatial
trajectories of black filmmakers unveil inequalities aiming to break with the stereotyped
social imaginary, reaffirming the relevance of an "unsubmissive leisure".
KEYWORDS: Black filmmakers. Leisure activities. Racism. Sexism.
Introdução
Quais estratégias as cineastas negras utilizam, em seu fazer cinematográfico e
em suas vivências de lazer, para enfrentar o racismo e o sexismo? Essa pergunta chave
guiou a elaboração do presente artigo.
Considera-se essencial discutir as lutas interseccionadas de cineastas negras
brasileiras por espaço no audiovisual e por representação. Pesquisas visando averiguar a
diversidade de gênero e “raça” no cinema, como a realizada pelo Grupo de Estudos
Multidisciplinares da Ação Afirmativa com 246 diretores/as (GEMAA, 2014),
constatou a ausência (0%) de mulheres pretas ou pardas exercendo funções de direção e
roteirização. Os homens pretos e pardos também são praticamente ausentes, ficando
cada categoria com apenas 1% da amostra. Já os homens brancos dominam com 84% do
total dos diretores, seguidos das mulheres brancas, com 13%.
Neste sentido identificamos, nos estudos do lazer, estas interseccionalidades
ainda carentes de investigação. Desde que o termo interseccionalidade foi formulado, há
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cerca de 30 anos, ele foi adotado em uma série de disciplinas acadêmicas nas Américas.
Entrou no discurso público como uma palavra da moda, na era da política de identidade,
mas adquire fundamentação epistêmica e metodológica no feminismo negro decolonial,
uma vez que a trajetória de uma mulher negra perpassa marcadores de opressão de raça,
gênero e classe, entre outros.
Para analisar o deslocamento da narrativa e o processo de produção de obras
cinematográficas que auxiliam a leitura histórica da problemática racial no audiovisual,
buscou-se, nesta pesquisa, entender como negras/os que atuam “por trás” das meras
de cinema, colocam, “dentro” das/nas telas e em suas experiências de lazer, temáticas
relevantes para a sociedade, em particular para a população negra. Neste contexto,
consideramos essencial discutir as lutas interseccionadas de cineastas negras brasileiras
por espaço no audiovisual, por representação e pela reafirmação do direito ao lazer.
Reconhecer o lazer como direito e como parte da experiência humana também
de corpos não brancos, é afirmar que esta pesquisa foi realizada nas fissuras do
conceito. Esta análise é interdependente dos processos histórico-culturais de cada
sujeito, legitimando a condição de tempo/espaço social do direito ao lazer. Tal
sapiência, não tendo sentido e significado únicos, adquire um viés para atribuir
visibilidade e ser pautado como uma ação afirmativa.
Pensar no cinema como uma possibilidade de lazer, como impulsionador de
novos sujeitos, novas formas de subjetividade e práticas de liberdade remete aos escritos
de Marcellino (2002), quando esclarece que o lazer é um fenômeno gerado
historicamente, que reveste-se de possibilidades para a vivência de valores que
contribuem para mudanças de ordem cultural.
Vale frisar que a sensação de não estarmos sozinhas e a urgência de se caminhar
do silêncio para a fala, a urgência de se erguer a voz, como é constantemente ressaltado
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por Hooks (2019), nos incita a erguer e a transformar silêncios que nos foram impostos
em ação e revolução.
se observa uma ampla produção acadêmica no sentido de mostrar a
relevância do cinema e do lazer na constituição social e cultural de cada
sujeito e de cada sociedade, o que nos autoriza a afirmar que ação de assistir
a um filme, ainda que seja como um entretenimento, não se trata de
banalidade do ponto de vista da formação humana. Afinal, as situações
prazerosas que se consubstanciam na relação do espectador com diferentes
aparatos de sons e de imagens em movimento que compõem as narrativas
fílmicas, despertam interesses e expectativas de fruição estética, podendo
fomentar diálogos e instigar reflexões sobre as “pautas” retratadas nas telas.
Daí a importância de compreender o cinema na perspectiva do lazer
(GOMES et al., 2017, p.1).
A citação acima, retirada do editorial Lazer e Cinema da a Revista Brasileira de
Estudos do Lazer, reforça a compreensão de lazer como uma necessidade humana e
como uma dimensão da cultura marcada por diversidades, dinamismos e
potencialidades (GOMES, 2014). Como concebe a autora, o lazer é constituído pela
vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço social, estabelecendo
relações dialógicas com vários campos da vida cotidiana a educação, a política, a
mídia e o cinema são alguns deles.
Assim, o objetivo deste artigo é investigar as intersecções de gênero/raça nas
trajetórias socioespaciais de cineastas negras, tendo em vista compreender as estratégias
por elas utilizadas para enfrentar o racismo e o sexismo, em seu fazer cinematográfico e
em suas vivências de lazer. Procuramos, dessa maneira, dar visibilidade a mulheres
negras comprometidas com o lazer cinematográfico, assumindo o desafio de erguer a
voz (HOOKS, 2019) de cada uma delas, como parte relevante de um coletivo.
Fundamentação Teórica
Havendo a necessidade de erguer a voz, partimos do pressuposto de que
vozes silenciadas. Neste percurso, ao tratarmos das escolhas que fundamentaram este
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estudo, buscamos descortinar alguns conceitos, para desvelar a estrutura que os
retroalimentam.
O racismo é um destes conceitos que, em decorrência da própria estrutura social,
ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas,
jurídicas e até familiares, não pode ser visto como uma patologia social e nem um
desarranjo institucional. O racismo é estrutural (BONILLA-SILVA, 2006), mas isso não
significa dizer que tal problemática seja incontornável ou que ações e políticas
antirracistas sejam inúteis. O que queremos enfatizar, do ponto de vista teórico, é que o
racismo, como processo histórico e político, cria condições sociais para que, direta ou
indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma
sistemática. O propósito deste olhar mais complexo é afastar análises superficiais ou
reducionistas sobre a questão racial que, além de não contribuírem para o entendimento
do problema, dificultam em muito o combate ao racismo. Conforme nos alerta Sílvio
Almeida (2020), “pensar o racismo como parte da estrutura não retira a
responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para
racistas.” (ALMEIDA, 2018, p. 51).
Como o racismo é um sistema de racionalidade, forças opositoras precisam
operar, afinal, como ensina Kabengele Munanga (1999), preconceito não é um problema
de ignorância, mas de algo que tem sua racionalidade embutida na própria ideologia
(MUNANGA, 1999). Assim, desvelar a existência do racismo como marcador de
opressão ativo na construção da identidade de mulheres negras e identificar as ausências
e violências que o mesmo impõe, ressalta a importância dos estudos do feminismo
negro na esfera do ser/tornar-se mulher negra e cineasta, o que preenche uma importante
lacuna para instigar políticas sociais afirmativas nos estudos interdisciplinares do lazer.
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Como afirma Hall (2003; 2015), cada identidade é construída por meio das
diferenças, do corpo como diferença (GILMAN, 1985). O corpo é uma construção
modelada e remodelada pela intersecção de uma série de práticas discursivas
disciplinares. A medicina do século XIX foi uma das práticas discursivas que inscreveu
o corpo como lugar de significação de diferença. Patricia Collins (1986, 2019) vai mais
além na análise. Para a socióloga, em coro com Hazel Carby (1999), “estereotipar não
reflete ou representa a realidade, mas funciona para mascarar as relações sociais
objetivas, fazendo com que o racismo e o sexismo pareçam algo natural” e parte
inevitável da vida cotidiana de mulheres negras (COLLINS, 1986, p. 69).
Para esta discussão, é importante salientar que gênero difere da categoria sexo,
sendo esta última entendida como as condições objetivamente fisiológicas/filogenéticas
da espécie humana que diferenciam os indivíduos em dois grupos (macho/fêmea
4
). Tais
condições culminaram em explicações, pouco embasadas na realidade histórica e
cultural dos sujeitos humanos, que determinaram alguns impasses para o entendimento
ampliado do que hoje nomeamos como “homens” e “mulheres”, quando reduzimos o
conceito de gênero a um sistema binário de identidades.
É de autoria de Joan Scott (1988) o texto que marcou visivelmente a história da
produção acadêmica na qual se utiliza o conceito gênero para designar as relações
desiguais de poder em relação aos indivíduos pertencentes às classificações
“masculinas” e “femininas”, ou seja, para ela, as relações de gênero são inerentemente
permeadas por relações de poder. Scott (1988) elucida o caráter relacional, assimétrico e
desigual das relações de poder, demonstrando que gênero é um conceito que possibilita
a compreensão da hierarquia das práticas sociais.
4
Optou-se pela utilização dos termos macho/fêmea para fazer-se valer da diferença biológica entre
homens e mulheres, sendo que estes termos homem/mulher são considerados, aqui, como sendo
termos que representam e compreendem certos padrões culturalmente disseminados.
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Nessa direção, Maria Juracy Toneli (2012) aponta a relevância da
desconstrução da oposição binária igualdade/diferença, uma vez que oculta a
interdependência dos dois termos (a diferença não impede a igualdade e esta,
por sua vez, não significa a eliminação da diferença). A igualdade reside na
diferença, para Scott, e o discurso da diferença machofêmea oculta as
inúmeras diferenças entre as mulheres (e entre os homens). A autora defende,
portanto, a tese da diferença múltipla ao invés da diferença binária,
entendendo que mulheres entre si se diferenciam quanto à origem de classe,
raça/etnia, geração, comportamento, caráter, desejo, subjetividade,
sexualidade, experiência histórica (TONELI, 2012, p. 150).
Com o intuito de não hierarquizarmos opressões de gênero, de raça e de classe neste
estudo, tendo em vista seu caráter interdisciplinar, com auxílio de bases teóricas decolonizantes
e do feminismo negro interseccional, trazemos à tona Djamila Ribeiro, que reforça:
Pensar em feminismo negro interseccional é justamente romper com a cisão
criada numa sociedade desigual, logo, é pensar projetos que comunicam,
novos marcos civilizatórios para que pensemos em um novo modelo de
sociedade. Fora isso, é também divulgar a produção intelectual de mulheres
negras, colocando-as na condição de sujeitos e seres ativos que,
historicamente, vêm pensando em resistência e reexistências (RIBEIRO,
2017a, p. 14).
A necessidade emergente de dar visibilidade a produções de mulheres negras,
como nos provoca Ribeiro (2017a), nos fez dialogar com Tedesco (2012), ao enfatizar
que a presença das mulheres no cinema se deu em todo período do primeiro século de
existência desta arte, sobretudo na América Latina, mas de forma irregular,
estereotipada, objetificada, fragmentada e sem continuidade. Nesse percurso, destaca-se
a presença de atores e atrizes, ou uma tentativa de representação negra, em filmes
nacionais que ocorrem desde os princípios do cinema no Brasil, ou seja, desde o final do
século XIX.
De acordo com Carvalho (2011), encontramos representações do negro nos
primórdios do cinema no Brasil. No período do cinema mudo, negros(as) aparecem em
filmes como Dança de um baiano (1899), Dança de capoeira (1905), Carnaval na
Avenida Central (1906), Pela vitória dos clubes carnavalescos (1909) e O carnaval
cantado (1918). No entanto, trata-se de uma presença que reforçava limitadores
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enquadramentos identitários. Nos filmes mencionados por Carvalho (2011), é possível,
por meio dos títulos, ter uma ideia da contínua associação da população negra com
determinados espaços e manifestações da sociedade, como, por exemplo, a capoeira e o
carnaval. O problema não está na associação, mas na ausência de corpos negros em
posições centrais, em outros enredos cinematográficos daquele período, dado que, em
algumas das produções, é possível se ver, por alguns instantes, negros atuando como
figurantes ou interpretando personagens e papéis de menor importância.
Com o advento do som nos filmes, o sujeito negro também conquistou mais
espaço nas telas. Todavia, esta vitória veio acompanhada de uma configuração ainda
mais estereotipada de sua imagem, em que representações presentes no imaginário
social de séculos anteriores, marcados pela escravidão, eram reproduzidas e difundidas
também por meio do cinema, dado que o eram por meio de livros literários e
didáticos, jornais, revistas, peças teatrais e outros.
Neste sentido, Carvalho (2011) argumenta o seguinte:
Com o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, o negro foi posto no
centro da cena; não obstante, sua marginalização foi potencializada através
dos estereótipos raciais associados à sua imagem. Aqui, precisamos atentar
para o fato de que a edição competente de sons e imagens é uma poderosa
forma de imposição de sentido e possibilidades de exercitar o que os
sociólogos chamam de poder simbólico. A linguagem cinematográfica pode
(e o é raro que o faça) naturalizar uma ordem social e suas hierarquias
raciais (CARVALHO, 2011, p. 18).
Estamos vivenciando um momento de busca por respostas e pela construção de
novos conhecimentos, o qual se distancia do modelo dado atualmente que exclui os(as)
pensadores(as) africanos(as) e afro-brasileiros(as) da construção do saber de prestígio.
Neste contexto de colonialidade do poder e do saber (QUIJANO, 2005), as populações
subjugadas têm suas identidades submetidas à hegemonia eurocêntrica. Assim, o
imaginário construído ao longo da formação de um sistema colonial/moderno resulta na
mutilação epistemológica, a partir da dominação hegemônica do pensamento
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eurocêntrico, restringindo progressivamente a ecologia de saberes e estabelecendo
linhas abissais entre eles (SANTOS, 2010).
O universalismo e o racismo estrutural, ao cristalizar o negro na “zona do não
ser”, como discutido amplamente por Frantz Fanon (2008), retiram dos corpos negros a
sua humanidade e retiram deles a possibilidade de que façam parte de tudo o que seja
pensado para quem está na “zona do ser”. Questionar essa lógica hegemônica
excludente torna-se dever de toda sociedade antirracista, o que precisa ser tratado no
âmbito dos estudos do lazer.
Neste sentido, o pensamento decolonial orienta nossas análises, indica
epistemiologias negras para fundamentar as discussões racializadas e caminha na
direção da libertação acerca da colonialidade do saber, do poder e do ser que perpassam
os estudos do lazer (SANTOS, 2018). “Mesmo que pareça ser apenas uma abstração
neutra e imparcial, toda produção teórico-conceitual é política e ideológica, mas nem
sempre isso é assumido e explicitado abertamente” (GOMES, 2014, p. 6).
Neste artigo, nosso desafio tangenciou justamente o desafio de desvelar o "não
dito" sobre os corpos negros. Construir a partir da inexistência é desafiador e requer
evidências de que as percepções havidas estão na direção de uma nova compreensão
concorde com a realidade, sem a pretensão de ser um fim em si mesma. Neste contexto,
caminhamos para somar aos estudos do lazer uma reflexão interseccional comprometida
com o enfrentamento e a superação do racismo e do sexismo.
Metodologia
A metodologia desta pesquisa, de natureza qualitativa, foi desenvolvida por
meio de estudo bibliográfico e entrevistas em profundidade. Fundamentando-se em
abordagens de cunho feminista negro (MCHUGH; COSGROVE, 2004), o estudo
bibliográfico buscou aprofundar as temáticas centrais da pesquisa. Adotou-se a
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abordagem hermenêutica, valorizando a análise interpretativa das informações coletadas
(MARQUES, 2007; APPOLINARIO, 2004; SUDBRACK, 2006).
Para Duarte (2008), a entrevista é uma estratégia qualitativa que explora um
assunto a partir da busca de informações, percepções e experiências de informantes. O
emprego de entrevistas em profundidade com cineastas negras se configurou como
material fundamental na pesquisa, uma vez que desvelou símbolos, normas, sistemas de
valores, significados compartilhados por uma coletividade e representações de grupos,
de acordo com determinadas condições socioespaciais e socioeconômicas (MINAYO;
SANCHES, 1993).
A seleção das cineastas a serem entrevistadas levou em consideração os critérios
explicitados a seguir.
Momento: mapeamento de informações disponíveis em sites relacionados à
temática investigada, visando identificar cineastas negras que pudessem participar
voluntariamente da pesquisa por meio da concessão de entrevistas. Foram consultados
os seguintes sites: Mulheres Negras no Audiovisual Brasileiro; Associação dos
Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), programações virtuais das mostras da
Coletiva MALVA e Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE). Vale destacar que
esses sites se configuram como lugares socioespaciais de resistência negra no
audiovisual brasileiro. Muitas cineastas negras com representatividade no país acessam
e utilizam esses sites com objetivos diversos, tais como participação e organização de
seminários, mostras e escrita coletiva de projetos para concorrer a editais, dentre outras
possibilidades.
Momento: seleção e contato com mulheres cineastas cadastradas nos sites
http://mulheresnegrasavbr.com/apresentacao.html e/ou http://www.afroflix.com.br/, que
atenderam individualmente os seguintes critérios: ser autodeclarada negra; brasileiras,
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ter idade acima de 18 anos; ser formada em áreas afins ao cinema; ter experiência com
direção e/ou roteiro, apresentando no currículo ao menos um curta-metragem com
protagonista negro(a) ou temática étnico-racial; ter produção selecionada para alguma
mostra de cinema brasileiro entre os anos 2013 e 2019 (último ano em que a seleção de
possíveis voluntárias foi feita); participar de alguma rede social, sendo possível verificar
engajamento público com o coletivo feminista e/ou étnico-racial. Mediante esses
critérios foram identificadas nove cineastas, para as quais foi enviada uma carta-convite
explicitando os objetivos da pesquisa e convidando-as a contribuírem voluntariamente
com o estudo por meio da concessão de entrevista. Foi possível obter o retorno positivo
de sete cineastas negras.
Momento: realização de entrevistas. Após o aceite formal para participar
voluntariamente da pesquisa, as entrevistas individuais foram agendadas via WhatsApp,
sendo seis delas realizadas presencialmente, e uma entrevista desenvolvida virtualmente
em virtude da pandemia da Covid-19. Vale destacar que o protocolo da investigação e o
TCLE foram apreciados e aprovados pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG. As
entrevistas foram realizadas no período de setembro de 2019 a agosto de 2020 em São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia em dia/horário/local escolhido por cada
cineasta.
Todas as entrevistas foram gravadas, na íntegra, com a concordância das
entrevistadas. As identidades reais das cineastas são explicitadas na pesquisa com
concordância do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e por solicitação delas
próprias, com o propósito de engajamento da visibilidade cinematográfica: todas
estavam, no momento da entrevista, com uma obra autoral autônoma para ser lançada,
ou agraciadas com premiações amplamente divulgadas nas redes sociais. Assim, as sete
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cineastas negras selecionadas na pesquisa puderam discorrer sobre suas próprias
trajetórias socioespaciais:
Camila de Moraes, 34 anos, mulher cisgênera, de Porto Alegre, diretora do longa
documental O caso do homem errado. Esta obra audiovisual ganhou destaque
internacional ao integrar a lista nacional de 22 filmes que poderiam representar o Brasil
na disputa pelo Oscar, em 2019, na categoria de melhor filme estrangeiro.
cynthia rachel, 35 anos, do Rio de Janeiro, decidiu que escreveria desta forma
(tudo em minúsculas, inclusive o seu nome) depois que leu bell hooks. Destaca a autoria
desta escrita, que se apresenta com uma tentativa de desconstruir os padrões canônicos
impostos a nós. Escreve roteiros e auxilia a escrita afirmativa de outras cineastas negras.
Duca Caldeira, 22 anos, mulher transexual, de São Paulo, assinou direções,
produções e montagens ao longo dos últimos dois anos e hoje segue mergulhando nas
possibilidades de um audiovisual mais preto e não cisgênero. Produziu, roteirizou e
dirigiu o curta Clandestyna.
Issis Valenzuela, 36 anos, mulher cisgênera, de São Paulo, é formada no Curso
de Audiovisual da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade do Estado de
São Paulo (USP). Com possibilidades diversas em sua trajetória, Issis possui hoje sua
própria produtora, a Tabuleiro. Roteirizou e dirigiu o curta Receita de Caranguejo.
Naira Évine, 26 anos, mulher cisgênera, da Bahia, formada em Comunicação
(rádio e TV) pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Pesquisa sobre raça,
gênero e sexualidade no cinema contemporâneo, com foco no cinema lésbico negro. É
fotógrafa e editora há mais de 10 anos, sendo o documentário sua grande paixão.
Natalie Matos, 25 anos, não binária, de Minas Gerais, se apresenta como
cineasta social e é uma das idealizadoras da Renca Produções, produtora criada por
mulheres negras.
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Vaneza Oliveira, 31 anos, da Bahia, ganhou notoriedade ao interpretar a
personagem Joana Coelho na série da Netflix denominada 3%, que obteve sucesso em
mais de 190 países. Ela, que engravidou na adolescência, se arrisca no roteiro e direção
do próprio curta Mãe não chora.
Os depoimentos das cineastas entrevistadas foram tratados através do software
DSCSoft, sendo utilizada, na análise, a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo-DSC.
Esta ferramenta metodológica permitiu extrair das entrevistas as Ideias Centrais (IC) ou
Ancoragens (AC), e suas correspondentes Expressões Chave (ECH) (LEFEBVRE;
MARQUES, 2009).
O DSC é um discurso-síntese pautado nas ECHs que têm ICs ou ACs
semelhantes ou complementares. Partindo dos conceitos supracitados, esta pesquisa
utilizou-se do estudo das representações sociais para conhecer as percepções de
cineastas negras sobre como as intersecções de gênero e raça incidiam nas suas
trajetórias socioespaciais e em suas cinematografias, e identificar as estratégias elas
utilizam, em suas vivências de lazer e em seu fazer cinematográfico, para enfrentar o
racismo e o sexismo.
Estes conteúdos de mesmo sentido, reunidos num único discurso, por estarem
redigidos na primeira pessoa do singular, buscam produzir no leitor um efeito
de “coletividade falando”; além disso, dão lugar a um acréscimo de
densidade semântica nas representações sociais, fazendo com que uma ideia
ou posicionamento dos depoentes apareça de modo “encorpado”,
desenvolvido, enriquecido, desdobrado (LEFEBVRE, F; LEFEBVRE, AMC;
2009, p. 194).
Visando compreender o pensamento coletivo, foi constituído um painel de
representações sociais sob a forma de narrativas. Os discursos-síntese revelaram as
escrevivências coletivas (EVARISTO, 2008), realçando temas que perpassam as
histórias de vida dessas mulheres, sempre correlacionadas ao tornar-se profissional do
audiovisual. Os resultados deste processo serão apresentados e discutidos a seguir.
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Resultados e Discussão
Mais de três décadas compõem o intervalo estimado entre dois importantes
longas-metragens de ficção dirigidos exclusivamente por mulheres negras no Brasil. O
primeiro foi Amor Maldito, rodado em 1984 por Adélia Sampaio, realizadora pioneira
no cinema nacional. Já o segundo filme, O dia de Jerusa, foi lançado em 2018 por
Viviane Ferreira, cineasta baiana, única mulher entre os demais contemplados no edital
da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, em 2016, no âmbito das ações
afirmativas do audiovisual no Brasil (Edital Longa BO Afirmativo)
5
.
A distância temporal entre as duas produções simboliza a ausência de
representatividade que marca a história das mulheres negras brasileiras no setor do
audiovisual brasileiro, o que foi destacado pela entrevistada Camila de Moraes:
Eu, como realizadora de apenas um curta e alguns outros projetos, como
roteirista e/ou produtora, encarei o desafio com o propósito de alterar os
números históricos, das mulheres negras realizadoras, me tornando a primeira
mulher negra brasileira a lançar comercialmente nos cinemas nacionais um
longa-metragem que denunciava o assassinato de um homem negro pelas
forças policiais de Porto Alegre, em mais de trinta anos de total apagamento
(MORAES. Entrevista, 2020).
Camila de Moraes confirma a necessidade do movimento contemporâneo que, nas
fissuras do racismo estrutural, exige outra postura. Assim, pretende-se, mais do que
tornar-se cineasta, garantir visibilidade para o seu fazer cinematográfico, para uma
filmografia-denúncia, feita por uma mulher negra empenhada em superar os desafios
que interseccionam cotidianamente sua raça e seu gênero.
A cineasta Naira Evine, em um momento marcante da entrevista, apresentou-se
reverenciando sua ancestralidade, numa tentativa de desnaturalizar o lugar subjugado da
mulher negra e a banalização das religiões de matriz africana:
5
Informações sobre este edital podem ser encontradas no site do Ministério da Cultura. Disponível em:
<http://cultura.gov.br/longa-bo-afirmativo-resultado-final-da-fase-de-habilitacao/>. Acesso em: 27 de fev.
2021.
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Sou mulher negra. Sou de água, pisciana, guiada por Iemanjá, me entrego de
verdade. Minhas produções até o momento foram feitas de dentro pra fora.
Senti a necessidade de falar sobre racismo, identidade, cabelo e fiz O Lado de
cima da cabeça
6
. Precisava falar sobre como famílias como a minha lidam
com um membro neuroatípico e fiz Como Somos. Depois de anos sem
produzir nada, senti a necessidade de fazer algo sobre amor, desconstrução,
inadequação de uma lésbica negra nessa sociedade e fiz O dia que resolvi
voar. Estou fazendo um filme pra falar de ancestralidade com minha avó e
meu avô que são de um quilombo em Camamu-BA, assim como daquelas
pretas que me antecederam e morreram por mim. E isso está nascendo aos
poucos, enquanto vivo todas essas inquietações e desejos de resgatar minha
história e a história de tanta gente preta. Pretendo fazer um documentário
sobre uma associação de mulheres da agricultura familiar na minha cidade
que fazem um trabalho incrível, que inclui minha mãe. E, pra mim, tudo bem
estar no campo social, pois me toca de alguma forma, mesmo não tendo
ainda explicações lógicas para este sentimento. E eu sei que, se me toca, toca
muitas outras como eu, afinal, nossa verdadeira história esregistrada em
algum lugar ancestral (SOARES. Entrevista, 2019).
O conto Olhos d’água, de autoria de Evaristo (2016), a partir do trecho “[...]
entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais que, desde África, vinham arando
a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue” (EVARISTO, 2016, p.
18) trata desta ancestralidade reivindicada e demarcada no conto e no discurso de Naira
Evine. Reforça premissas de uma identidade sociológica que, segundo Hall (2015), vai
preencher um espaço entre o interior e o exterior, respectivamente simbolizados pelo
mundo pessoal e o público, que permitem nos projetarmos em identidades culturais que,
de alguma forma, consumimos e internalizamos, a fim de ocuparmos determinados
lugares no meio social e cultural. A identidade costura o sujeito à estrutura (HALL,
2015, p. 11). É justamente por se encontrar distante das mulheres antepassadas e, por
conseguinte, de referenciais identitários, que a cineasta precisa retornar às suas origens,
devido à necessidade angustiante de descobrir/relembrar as conexões possíveis a serem
feitas da sua identidade de mulher negra.
6
“Rito de passagem no Candomblé, religião de matriz africana, onde raspagem total de cabelos,
simbolizando o nascimento e são feitas as curas, para preparar o corpo e cabeça da pessoa para receber a
energia do orixá, bem como o seu kelê, ou seja, o "colar" usado pelo iniciado na religião. Confeccionado
com "miçangas", fio de conta, intercalado com firmas de porcelana, pedras tipo ágata e cristal, terracota,
búzios, lagdba, até mesmo sementes. Sua cor varia de acordo com o orixá de cada iniciado na feitura de
santo”. Fonte: GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
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Bell hooks (2008), apoiando-se em Toni Morrison, explica: “agora as pessoas
escolhem suas identidades. Agora as pessoas escolhem ser negras” (HOOKS, 2008, p.
153). O momento histórico coaduna com o compartilhar de pessoas negras, de toda a
diáspora, tanto da dor da opressão e da exploração, quanto da dor que vem da
resistência e da luta. Aquilo que nos iguala é o manto da opressão racial, portanto, o que
é feito para contrapor a supremacia branca reverbera em todas as mulheres negras
oprimidas. É nossa responsabilidade, como pessoas não brancas comprometidas em
acabar com a supremacia branca, ajudarmos umas às outras a se conectarem com as que
nos antecederam. É nossa responsabilidade coletiva educar para uma consciência crítica,
sem ter medo das subjetividades marcadas, registradas em nós” (HOOKS, 2008, p.
153).
A filósofa e feminista norte-americana Angela Davis, em seu livro Mulheres,
raça e classe (2016), enfatiza outro fator importante quando analisa a trajetória que
constituiu a luta de poder entre os gêneros, apontando as questões étnico-raciais e de
classe como pautas a serem colocadas como égide de análise dos temas que envolvem
gênero. O diálogo da temática gênero com as pautas raça/etnia e classe social traz a
perspectiva da interseccionalidade, que concorre para a desconstrução da ideia de uma
mulher universal em contraposição a um homem universal.
A interseccionalidade, então, emerge nesta pesquisa, em meio à autodeclaração
das entrevistadas acerca da sua cor/raça e das suas identidades de gênero. Neste
contexto, aparece como uma categoria de análise para levar em conta as múltiplas fontes
da identidade, embora não tenha a pretensão de propor uma nova teoria globalizante da
identidade, como ressalta Crenshaw (1994). A autora propõe a subdivisão em duas
categorias: a) interseccionalidade estrutural, que demarca a posição das mulheres de
cor na intersecção da raça e do gênero e as consequências sobre a experiência da
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violência conjugal, do estupro e das formas de resposta a tais violências; e b)
interseccionalidade política, que engloba políticas feministas e políticas antirracistas
que têm como consequência a marginalização da questão da violência em relação às
mulheres de cor (CRENSHAW, 1994).
Sobre esta reflexão, uma das entrevistadas afirma:
Ser uma mulher preta no cinema sempre foi e sempre vai ser difícil enquanto
homens cis e brancos liderarem cadeiras de poder - como críticos e
avaliadores na aprovação de projetos e por vai. Esse ato acontece desde
entrevistas de emprego quando analisam meu currículo e se assustam com
minha cor de pele e minha capacidade, até quando me apresento enquanto
uma das idealizadoras da Renca Produções. São tantas avaliações pejorativas
que me atravessam nestes momentos que, de fato, não tem como falarmos das
nossas histórias se não tratarmos das interseccionalidades que atravessam os
corpos de mulheres negras (MOURA. Entrevista, 2020).
Este relato corrobora o entendimento de que o fator biológico da cor sempre foi
um dos aspectos determinantes para a hierarquização que fez com que povos não
brancos fossem considerados inferiores no que diz respeito ao trabalho, ao seu lugar na
sociedade, dentre outros fatores (QUIJANO, 2005). Porém, o gênero, além da diferença
de raça, também aparece como marca nesse sistema de hierarquias impostas pelos
colonizadores aos povos colonizados. No que se refere à posição da mulher negra na
pirâmide social e ao seu lugar no Brasil, podemos observar a sua posição na base -
abaixo do homem negro, da mulher branca e do homem branco -, faz com que ocupe um
lugar ainda mais subalterno na sociedade que o seu irmão negro (GONZALEZ, 1988b).
Toneli (2012), ao trazer o conceito da diferença múltipla, salienta a relevância
de mulheres verbalizarem sobre as suas diferenças. A cineasta Naira Evini, ao nos
apresentar a linha do tempo de sua trajetória socioespacial, se conecta ao entendimento
da autora, quando relata:
Na faculdade me descobri enquanto uma mulher negra, politicamente
falando. Fiz parte de um grupo chamado "A coisa ficando preta" onde
fazíamos muitos trabalhos através da educação e do audiovisual voltado para
políticas públicas raciais em Itabuna e Ilhéus. Me descobri lésbica também.
Como eu trabalhava muito em casamentos, os assédios racistas e
lesbofóbicos passaram a ser cada vez mais incômodos. Eu voltava do
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trabalho aos prantos muitas vezes. Não aguentava mais engolir tudo aquilo.
Então no final de 2015, pouco depois da minha formatura, decidi me mudar
para Maceió para morar com minha então namorada. Foi um período em que
tive que enfrentar muita lesbofobia na Bahia, mas muito racismo em Maceió.
Tive que recomeçar do zero minha carreira. Em Maceió consegui um
emprego de professora de computação gráfica numa faculdade particular. Ali
me apaixonei pela Educação e passei a seguir carreira acadêmica. Fiz, em
2016, uma Especialização em Cinema. Em 2017, nos mudamos para o Rio de
Janeiro, pois minha mulher foi chamada para um concurso. Aqui conheci um
outro Brasil. Fiz disciplinas no mestrado em Relações Étnico-Raciais, em
2017 e em 2018, depois de três tentativas em outros programas, consegui
entrar no mestrado em Cinema da UFF. eu desenvolvo uma pesquisa
sobre cinema lésbico negro no Brasil. Aqui no RJ passei também a trabalhar
mais em sets majoritariamente negro/feminino/lésbico e isso tem me formado
mais ainda enquanto uma cineasta lésbica negra (SOARES. Entrevista,
2019).
O relato de Naira revela um torna-se negra e cineasta em meio a vários desafios
e enfrentamentos. No entanto, fica perceptível o resultado positivo desta construção
identitária ao longo de sua trajetória, em especial, quando a cineasta assina com
satisfação o seu discurso. Ela o faz com propriedade, como cineasta negra e lésbica,
além de registrar que não constituirá os números de lésbicas assassinadas e/ou
estupradas no Atlas da Violência
7
, mas estará com mais uma atuante como educadora
do audiovisual.
Quando Naira nomeia os territórios que mais sofreu homofobia, é preciso
compreender que a cidade se organiza por meio de discursos, de violência e de medo em
torno do que é considerado “normal”, baseado na heterocisnormatividade
8
, em
detrimento do que, ao não se enquadrar nessa dita normalidade, é apenas diferente. Há
uma teia de poderes que estruturam esse espaço, estabelecendo o que é e o que não é
aceito. E esse espaço nos é interditado de diversas formas. É como se a cidade gritasse,
por meio do medo, que as pessoas LGBTI+ não são bem-vindas ali. Somos ensinados a
7
Dados do Relatório Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, do Grupo Gay da Bahia,
mostram que, a cada 36 horas, um LGBT brasileiro morre, vítima da homotransfobia. Assim, o Brasil é o
país que mais comete crimes contra as minorias sexuais: em 2020, 237 pessoas LGBT+ tiveram morte
violenta (224 homicídios e 13 suicídios).
8
Heterocisnormatividade é a aglutinação das palavras heteronormatividade e cisgeneridade que indica o
estabelecimento de um padrão social de comportamento baseado tanto na heterossexualidade - orientação
sexual dirigida para o "sexo" oposto - como na cisgeneridade - "congruência" entre o "sexo biológico"
determinado ao nascer e o gênero com o qual uma pessoa se identifica - como únicas formas possíveis e
inteligíveis de se viver os afetos, os desejos e os gêneros.
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aceitar a heterocisnormatividade como normal e a homossexualidade como uma falta de
respeito à família.
Essas violências foram mencionadas por Duca Caldeira, quando discorreu sobre
o seu lazer:
Como a rua me oprime e me violenta, eu já tive muito medo de transitar. Mas
é na rua que sinto a liberdade das amarras que estão postas no meu corpo
travesti, desde a escravidão com meus antepassados, vivo na carne a
subjugação. Mas me refiz atrevida e vou rompendo a solidão, provocada pelo
racismo e pelo sexismo transfóbico, pra ser feliz, e ser feliz pra gente é uma
afronta! Adoro shows com sentido político e ia rolar o Crespo Festival com
show da Liniker, lá na Urca. Isso tudo aconteceu em 2018. Não tinha dinheiro
para as entradas, mas queríamos estar nesse show, afinal, era quase um
levante de travestis, apoiando a maravilhosa Liniker. Comecei a me
movimentar, entrei em contato com a banda dela solicitando as entradas e
explicando o quanto seria importante pra gente estar ali. A banda confirmou a
autorização de entrada, nos respondendo por e-mail e disse que nossos nomes
estavam na lista. Chegando lá, no grande dia, os nossos nomes tinham
desaparecido da lista: não tava na lista da banda, não tava na lista da
produção, um tumulto só, acompanhando de constrangimentos, claro. Mas
romper as barreiras para curtir aquele show era mais do que uma noite na
curtição, era o prazer de exercer a sororidade, porque a Liniker, travesti preta,
era um pedaço de cada uma de nós numa ascensão, ou seja, tínhamos que
estar ali segurando a mão dela e ela a nossa para nos puxar (CALDEIRA.
Entrevista, 2019).
Duca pondera sobre algo defendido por bell hooks (2019): a justiça social que
advém do movimento feminista muda todas as vidas. A cineasta nos instiga e vai além,
ao nos mostrar que o sentimento pode ser transformado em ação, ao colocar o exercício
da felicidade em ação e ao exercitar a sororidade com a cantora Liniker. Quebrar a
aliança possível entre as mulheres é um compromisso e um projeto da sociedade
patriarcal. “Toda solidariedade política e afetiva entre mulheres sempre enfraquece o
sexismo e prepara o caminho para derrubar o patriarcado” (HOOKS, 2019, p. 39).
Quando a escritora nos fala de como o movimento feminista revestiu a sororidade de
uma ideia de solidariedade política, ela está nos dizendo que não existem saídas
individuais, e sim coletivas. A união entre mulheres move a realidade, a partir da
percepção dos sofrimentos de todas elas, atentando-nos aqui aos recortes de gênero e
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raça. Por isso, a sororidade se torna uma ação contra-hegemônica e, ao mesmo tempo,
ameaçadora para as estruturas colonialistas, racistas e sexistas.
Duca Caldeira aponta para um futuro possível e para permanecermos vivendo e
não sobrevivendo em meio a situações de opressões, discriminações e violências.
Contudo, na prática, as barreiras são enormes. A cineasta prossegue:
Eu me recordo: estava com um cabelo black rosa, um vestidinho de costas de
fora, uma sandalinha top, e minha amiga Bruna, de cabelão elegantérrima, ou
seja, a gente se arrumou neste dia, sabe?!! Então, a gente, já incrédula com a
informação de que nosso nome não estava ali, mas entendendo o que
estava acontecendo, óbvio, afinal o Morro da Urca é zona sul, o porre do Rio
de Janeiro. Então, recuperei no celular o e-mail que tinha encaminhado,
printei e mostrei a autorização. Não desistimos e conseguimos, é sempre
assim [risos]. Nosso show da vida começa antes do show da artista que
vamos assistir, isso é cotidiano [risos]. Não acabou, nega, chegamos na parte
de “revista” e o segurança me pergunta “você é do sexo masculino ou do
sexo feminino?”. Eu respondi a ele “o que você acha?”. Ele responde “não
interessa, mas quem vai te revistar sou eu”. ele começou... pá… pá... pá.
Minha filha, você sai da revista toda dolorida, ele me pegou, me apalpou
inteira, sem constrangimento e olhando no olho inclusive. Quase dei uma
titubeada, fiquei meio mal, mas uma coisa é fato: quando uma mulher preta
sai de casa para curtir, ela tem um propósito: “ninguém vai me tirar isso,
me tiram tantas coisas no meio do caminho, que vou até o fim”.
Pois bem, ainda não acabou [risos]... Enfim, dentro do show, chamei minha
amiga Bruna pra irmos ao banheiro, quando estou no banheiro, chega uma
mulher que trabalhava no espaço e diz: “Senhor, vou ter que pedir para que
saia do banheiro, são ordens do meu supervisor”. Eu até levei isso para o meu
filme Clandestina, até cagando! E aí saímos do banheiro, refletindo o quanto
é preciso se atrever, afrontar e ter sua identidade fortalecida para dar conta e
não deixar as microviolências te matarem aos poucos. Imagina você, tudo
isso num show de uma travesti preta como eu! Nesse mundo, as pessoas não
sabem nada de nós. Fazendo cinema, consigo apresentar quem somos e como
queremos também viver, sabe. Ah! Subi no palco neste dia e tirei a roupa em
protesto, mas mantive a calcinha [risos]. E fiz o que fui ali para fazer, dei as
mãos para a Liniker! Até no camarim nós fomos. Fui acolhida pela Liniker e
me perguntei se eu faria tudo de novo… [risos] Sim, faria tudo outra vez e
farei todas as vezes em que tentarem me impedir de ser feliz e de ser quem
sou (CALDEIRA. Entrevista, 2019).
Duca, com seu discurso, ultrapassou o plano individual e estabeleceu uma
espécie de “chamado coletivo” para um movimento de atuação implicada. Ela
comprovou sua existência na “margem”, mas não se intimidou e nos convidou a
entender como e com quais estratégias ela combateu/combate ao racismo e ao sexismo
em suas experiências de vida e de lazer. Ao exercer o direito de escolha, quando diz
“mas uma coisa é fato, quando uma mulher preta sai de casa para curtir, ela tem um
propósito ‘ninguém vai me tirar isso, já me tiram tantas coisas no meio do caminho, que
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vou até o fim’”, ou quando afirma que “ser feliz pra gente é uma afronta!”
(CALDEIRA, 2019), coletividade na sua voz, construção, ação e insubmissão
diante de epistemes colonizadoras, estruturalistas, que acreditavam estar definindo o ser
e o estar no mundo de mulheres negras, resumindo-as ao lugar de opressão e
subalternidade.
Entre outras coisas, o que nos chama a atenção na narrativa da cineasta não está
concentrado no episódio por ela escolhido para discorrer sobre o lazer, mas na forma e
naquilo que Duca imputa na ação de usufruí-lo. Torna-se poderosa a forma como ela
despersonifica o lazer e atribui a ele novos sentidos e significados politicamente
racializados. O discurso coletivo de Duca, que encontra coro em uma sociedade negra
descolonizada, nos convoca a refletir sobre a necessidade de discussão da raiz
ontológica do lazer da humanidade negra, ou seja, as possíveis linearidades que
submetem discursos, teorias e conceitos.
uma atribuição de sentido e significado para os lazeres vivenciados pelas
mulheres negras: as trajetórias socioespaciais das cineastas negras aqui entrevistadas e
seus discursos coletivos apresentam a luta para desfrutar o lazer criticamente, mesmo
que seja necessário subverter a realidade e ir além da ideia de que ele é apenas uma
válvula de escape. Este entendimento pode ser localizado no discurso coletivo de Naira
Évine:
Eu sou [parte do] público, quando paro para curtir um cineminha. Adoro ver
coisas produzidas pelas companheiras. Gosto de estar em espaços que me
lembre quem sou, seja no samba, no funk, no candomblé ou com minha
família, fora isso, até acompanho amigos, mas gosto de entender essa
separação crítica que faço. Assisto a filmes diversos e sou crítica quando é
algo que fere a minha humanidade, dignidade… caso contrário, eu sou
espectadora! Choro, dou gargalhadas, faço caras e bocas [risos] sou
admiradora das produções principalmente das marginais, quando sai alguma
me sinto como se estivesse indo assistir ao Pantera Negra [risos] (SOARES.
Entrevista, 2019).
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O lazer, aqui concebido enquanto necessidade humana e artefato cultural,
encontra eco em relatos das entrevistas quando elas afirmam que suas experiências
nesse âmbito são carregadas de intencionalidades. O lazer de várias pessoas negras, por
anos, busca ser construído, desenvolvido e praticado numa perspectiva de engajamento
político/cultural/social que evidencia as marcas de uma ancestralidade negra de
resistência ao processo escravista e/ou escravocrata. Desse modo, o lazer é um
fenômeno que opera para fortalecer a existência da nossa realidade enquanto humanos.
A atuação, na perspectiva do lazer, tem se constituído, para esta parcela da população,
com condicionantes que se entrelaçam a fatores étnico-raciais e se encontram eivados
das cisões, das marcas e das cicatrizes deixadas pelo racismo de nossa sociedade.
Na pesquisa, foi evidenciado que as pessoas negras que conseguem exercem o
seu direito de circular por espaços de lazer escolhidos, preferidos, selecionados e
denominados objetivamente, evidenciam algumas características que vão ao encontro
dos anseios políticos/sociais/culturais de uma considerável parcela da população,
comprometida com a superação do racismo e do sexismo, das desigualdades e
violências verificadas em nossa sociedade. A opção por determinados vídeos, livros,
clubes, casa de shows, eventos, encontros, livros, salões de beleza, etc., é comumente
feita em função de estas coisas apresentarem ou sinalizarem uma conexão ao
engajamento político do coexistir de negros e negras em condições menos vulnerável.
Enfim, ao usufruirmos práticas de lazer que remetem ao universo da
ancestralidade africana, estamos na contramão de determinadas compreensões que,
lamentavelmente, não nos contemplam, não acolhem a atuação e nem concebem nossa
condição de sujeitos históricos, sociais e culturais. Entre elas, podem ser citadas as
visões de lazer que o reduzem ao oposto do trabalho, como se o primeiro fosse
encarregado de aliviar o estresse, promover o esquecimento de problemas e a fuga da
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realidade. Compreensões como essas negligenciam que o lazer é um direito humano
fundamental que possibilita a produção cultural por meio de diferentes vivências
lúdicas.
A experiência de mulheres negras interseccionais produzirem o que
denominamos de lazer cinematográfico, ou seja, a produção de obras audiovisuais que
possam ser assistidas e usufruídas pelas pessoas interessadas, diz respeito à experiência
humana de grande complexidade. Ela é marcada pela “fruição subjetiva, lúdica e
intencional no mundo” (VILLAVERDE, 2003, p. 55). Contudo, tratando-se de corpos
negros, é preciso reavaliar o quesito “vida humana”, tendo como lente os estudos do
antropólogo Kabengele Munanga:
A negritude nasce de um sentimento de frustração dos intelectuais negros por
não terem encontrado no humanismo ocidental todas as dimensões de sua
personalidade. Nesse sentido, é uma reação, uma defesa do perfil cultural do
negro(a) (…) uma recusa da assimilação colonial, uma rejeição política, um
conjunto de valores do mundo negro, que devem ser reencontrados,
defendidos e mesmo repensados. Resumindo, trata-se primeiro de proclamar
a originalidade da organização sociocultural dos negros, para depois defender
sua unidade através de uma política de contra-aculturação, ou seja,
desalienação autêntica (MUNANGA, 2009, p. 63).
Segundo Teixeira (2012), Raymond Bellour esclarece em seu ensaio
Autorretratos, que foi a partir dos anos de 1970 que se começou a discutir um cinema
subjetivo e autobiográfico, e que o sujeito da contemporaneidade irá se aproximar do
cinema para construir narrativas próprias, voltadas para o “eu” (BELLOUR apud
TEIXEIRA, 2012, p. 265).
Cabe destacar que, no Brasil, a experiência com as narrativas de si está
diretamente ligada ao barateamento e à acessibilidade de equipamentos digitais, em
meados dos anos 2000, como também aos diversos cursos de capacitação audiovisual
que foram surgindo especialmente nas periferias pelo país afora. Como exemplo, podem
ser citados os Pontos de Cultura e os Núcleos de Produção Digital, criados no governo
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do então presidente Luís Inácio Lula da Silva. Iniciativas como essas foram ressaltadas
por Vaneza Oliveira:
Tentei entrar na Escola de Teatro da USP, por meio do exame de seleção de
candidatos ao Curso de Formação de Atores. Foram duas tentativas
frustradas, infelizmente não passei. O meu processo de escolarização não foi
tão linear, pela minha falta de estrutura e em função da maternidade precoce.
Optei então por cursos livres e gratuitos, somados aos múltiplos aprendizados
nos coletivos de mulheres negras. Mas foi no Teatro Oficina, que é uma
importante companhia de teatro no Brasil, aqui em São Paulo no bairro do
Bexiga, que eu consegui me dedicar por dois anos com uma densidade muito
bacana e engajada. Neste curso eu fui descoberta (fiz 3% , série que estourou
na Netflix) e aqui começou também meu contato com os Sete de Filmagens,
observando bastante as técnicas de gravação, os roteiros, olhares atentos e
críticos para tudo que eu não queria fazer, assim esse mundo foi me
envolvendo (OLIVEIRA. Entrevista, 2020).
Assim como as Organizações não governamentais, as ONGs e projetos, como o
Vídeo nas Aldeias, a Central Única de Favelas (CUFA), as próprias cotas universitárias,
resultado da histórica luta do Movimento Negro
9
no Brasil pelo acesso à educação,
permitiram a entrada de jovens da periferia e negros, como Vaneza, em cursos de
cinema e audiovisual. Políticas públicas afirmativas como estas alteram as estatísticas e,
somadas ao trabalho intenso dos movimentos sociais, transformam concepções e
paradigmas que também interferem no lazer. Isso foi salientado por uma entrevistada
quando ela relembrou o discurso de uma companheira do coletivo audiovisual negro:
Lembro como se fosse hoje, tenho até isso anotado no meu caderninho; ela
falou mais ou menos assim: nossos antepassados, forçadamente, trabalharam
de graça e vocês não precisam fazer isso. Valorizem-se! Ninguém está
fazendo favor ao te chamar pra uma sala de roteiro. As suas experiências de
vida e cultural imprimem originalidade nas narrativas, então, façam-se ouvir.
Identificação com o que se assiste é reconfortante, não acham? É um “lazer
diferenciado”. Inspirem-se em pretas e inspirem pretas! Nunca se esqueçam
de onde vieram, é o único jeito de honrar todo o passado do nosso povo, das
nossas ancestrais, das que foram escravizadas para que estivéssemos aqui
9
“Em 1931, é fundada a Frente Negra Brasileira. Esse movimento viria a se transformar em partido
político, extinto com os demais na criação do Estado Novo. Após o Estado Novo, esses grupos começam
a se organizar, formando entidades importantes na história pelo direito dos negros, tendo como exemplo a
União dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro. na década de 60, a caminhada dos
grupos no Brasil ganha novas influências e referências, como o Movimento dos Direitos Civis nos EUA e
a luta africana contra a segregação racial e libertação de colônias. Destacam-se personalidades como Rosa
Parks, Martin Luther King, Nelson Mandela e Abdias Nascimento. Assim como influências advindas do
movimento conhecido como ‘Black is beautiful’”. Disponível em:
<https://guiadoestudante.abril.com.br/blog/atualidades-vestibular/conheca-a-historia-do-movimento-
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, Belo Horizonte, v.24, n.4, dez/2021.
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hoje. Fiquei anestesiada com essa fala e levo para a vida (OLIVEIRA.
Entrevista, 2019).
Vaneza Oliveira, em seu discurso, nos possibilita compreender a importância de
cineastas negros se aproximarem das associações de coletivos pretos, de festivais de
cinema com temática negra para alcançar um "lazer diferenciado", e valorizarem os
aprendizados possíveis no Movimento Negro educador (LINO GOMES, 2017). Ao
enxergar estes espaços como um apoio para seguir racializando as obras brancas, além
de conseguir paulatinamente identificar toda a operação do mercado e das produções, a
cineasta apreende que cinema descortina possibilidades de fazer parcerias, de estudar e
ter uma consciência política e racial sobre o mercado e sobre o lazer de pessoas e
comunidades negras que apreciam o cinema.
Em função do movimento contemporâneo vigente, diversas mostras
intituladas como cinema negro em todo o país, com novas narrativas e em um espaço
periférico, narrativas também conhecidas como cinema de periferia ou cinema de
quebrada (ZANETTI, 2008). Tais contranarrativas aparecem para lutar por uma
representação desligada do estereótipo negativo, disseminado historicamente pelo
racismo institucional e estrutural, triste herança do período escravocrata brasileiro.
As produções das cineastas negras entrevistadas procuram realizar fissuras nas
cinematografias que representam o discurso hegemônico. Isto é determinante para que
se possa falar numa especificidade de lazer a partir do qual torna-se possível pensar na
enunciação de diferenças que se contrapõem à hegemonia do discurso racista presente
na sociedade brasileira. Fanon (2008) salienta, no sistema colonialista, a produção de
estereótipos negativos que se revelariam como o apagamento do eu enunciador. Por
outro lado, BhaBha (2013), ao referir-se sobre o discurso colonial como legitimador de
estratégias de dominação, aponta para as possibilidades de contestação deste discurso a
partir de produções discursivas desestabilizadoras da homogeneidade da nação.
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Sobre as possibilidades nas fissuras e o atuar na margem, Natalie Matos explica:
Temos a Renca Produções renca, no sentido de renca de filhos, família
estendida [risos]. Então a gente vinha de um período bastante fértil e
produtivo, com uma agenda movimentada de trabalhos, mas a pandemia
mudou tudo. Tanto os projetos autorais quanto as prestações de serviços
tiveram de ser adiados. As restrições do momento também prejudicaram a
gravação de um média-metragem sobre o congado no Morro do Papagaio.
Mas sobre esse fazer cinema, não só na periferia, mas, de uma maneira geral,
para fazer audiovisual, você precisa estar perto, em contato. Nós queremos
contar histórias de amor, a maioria das pessoas brancas acham que a gente
não conhece o amor, quero falar dessas desconstruções. Mas não poder estar
nas ruas nos limita muito. Um outro obstáculo para quem faz cinema nas
periferias do país é o acesso aos grandes festivais, sempre muito concorridos.
Conseguir ter visibilidade driblando o preconceito (menor, mas ainda
existente) e o olhar distorcido que persiste muitas vezes em relação à
periferia é um desafio a ser rompido: Isso tem mudado um pouco, mas eu
penso que é porque estamos atuando no nosso terreno, se fortalecendo, para
depois chegar, chegando nos festivais elitizados, pode parecer estranho ou
incoerente, mas a gente quer tá lá também (MOURA. Entrevista, 2020).
A busca pela humanidade que, social e historicamente foi destituída da
existência de sujeitos negros e negras, tem sido a pauta da luta empreendida por toda
uma comunidade negra que ainda não tem seus aspectos identitários respeitados,
considerados e incorporados em nossa sociedade. Assim, ir além da historiografia de
pessoas negras e seus agenciamentos programados, nos diferentes contextos e épocas
históricas, é também uma recusa assumida às condições de privilégio, de poder e de
violência, como atributo do polo racial branco.
É preciso que as pessoas negras, em especial, retomem os espaços de
agenciamento, no interior dos quais podemos tanto interrogar o olhar do outro quanto
olhar para trás e para nós mesmos, nomeando e ressignificando o que vemos.
Salientamos que o olhar foi e é um lugar de resistência para o povo negro colonizado ao
redor do mundo e deve sempre possuir um rigor epistemológico e político. Parece-nos
evidente que foi o olhar opositivo/opositor que respondeu a estas relações do olhar,
principalmente para o corpo negro, ao desenvolver o cinema negro independente
(HOOKS, 1992, p. 116).
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Neste contexto, os debates sobre a corporeidade negra se fazem fundamentais,
pois, em virtude do conflito social vivenciado na pele, a comunidade negra toma o
corpo negro como espaço de expressão identitária, de transgressão e de emancipação
para combater a invisibilidade social (GOMES, 2017).
Filmes de ficção ou documentários vêm se configurando como espaços de
agenciamento e de diálogos e se consolidam em meio às estratégias de luta e de
formação continuada no Movimento Negro Educador. Isso é fortemente apontado como
uma importante dimensão formativa para as construções narrativas das cineastas
entrevistadas. Como exemplos desse poder de agência no audiovisual, podem ser
citados filmes como Elekô (2015), do Coletivo Mulheres de Pedra; Kbela (2015), de
Yasmim Thayná; Receita de Carangueijo (2020), de Issis Valenzuela; Clandestyna
(2019), de Duca Caldeira; Mãe não chora (2019), de Vaneza Oliveira; Como Somos
(2015), de Naira Evine; Quijauá (2016), do Coletivo Revisitando Zózimo
Bulbul/Mulheres de Pedra.
Camila de Moraes localiza a origem do seu poder de agência e do quanto esse
locus a orienta para os sentidos e significados da vida.
Ainda nesse navegar sem saber ao certo aonde iríamos chegar, chegamos, em
agosto de 2018, na lista nacional de 22 filmes que poderiam representar o
Brasil na disputa ao Oscar em 2019, na categoria de filme estrangeiro. Outro
marco para a cinematografia brasileira, e um grande incentivo para as
produções negras também chegarem nesse patamar, se assim desejarem, e
quem sabe um dia representar o Brasil na maior disputa mundial do cinema.
O caminho foi difícil, árduo, mas não impossível. Lembro do dia que saiu o
resultado do filme brasileiro que iria representar o Brasil, 11 de setembro de
2018. Estava em viagem indo do Rio de Janeiro para Porto Alegre e toda
hora atualizava o celular para saber das notícias. Embarquei sem saber do
resultado e ao pousar as mensagens começaram a chegar e o nosso filme não
havia sido selecionado. Registrei a informação, mas, ao sair no desembarque,
estava o Bonde do Documentário aguardando com faixa e fazendo festa.
Até parecia que éramos nós o representante do Brasil. Ao ver todas aquelas
pessoas, lembro de abraçar a minha mãe e falar “não deu” e começar a chorar
copiosamente. Enquanto isso, o Bonde do Documentário só dizia “deu sim”.
É estranho falar de lazer contando esse momento, mas essa é a minha
resposta, vivo a intensidade das lutas raciais desde a infância, essa adrenalina
faz parte da minha formação identitária e atualmente compreende o que quero
ofertar como entretenimento fílmico e viver esse “fazer” é o meu maior
prazer, justamente porque o Movimento Negro sempre se fez presente na
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trajetória deste filme e de tantos outros que farei (MORAES. Entrevista,
2020).
Os movimentos sociais negros, em suas diferentes dimensões de lutas, e
organizações coletivas (quilombolas; congada; capoeira; rodas de samba; religiões de
matriz africana e outras), comemoram processos de memórias, histórias, sociabilidades
e partilhas que nos aproximaram das tradições e da ancestralidade africana. Com o uso
de lentes decoloniais, sabemos que jamais renderam-se às violências nas quais foram
submetidas. É exatamente neste solo fértil que se deu a trajetória da Camila de Moraes,
e de outras cineastas negras entrevistadas na pesquisa.
Tal aproximação tem sido experienciada por mulheres negras cineastas em seu
fazer artístico. Em seu relato sobre a construção da produção, Duca Caldeira adotou
uma perspectiva ímpar de questionamentos e de concepções do meio sociocultural que
cada sujeito possui de si.
Mana, a primeira frase que me veio à cabeça para a direção do curta
Clandestyna foi: Nós somos “a puta que nos pariu”. Tinha em mãos um
roteiro imagético que tem o corpo enquanto poesia. O curta foi concebido e
parido por corpos de pretas como eu. Olho pra ele hoje como um
experimento audiovisual performático. É uma forma de materializar o que
aprendemos nos coletivos. O repertório funcionou de forma cíclica, enquanto
as atrizes estavam ali na filmagem fazendo sua primeira cena, dando os seus
primeiros passos, os seus/nossos corpos complementam essa narrativa com
ações físicas repetitivas, com o silêncio, com a dor e com a celebração dessa
nova vida dentro da tela (CALDEIRA. Entrevista, 2019).
O que denota a singularidade no discurso da Duca não é a obra elaborada, mas
quem a elabora e por meio de quais circunstâncias se escolhe elaborá-la, além de decidir
tornar sua obra um pensamento coletivo. Assim, a ideia de autorrepresentação surge
quando as pessoas querem se representar, e não mais serem representadas. A percepção
da cineasta, diante do sexismo, da transfobia e do racismo, a posiciona em um lugar
criativo, com a possibilidade de “rasgar o verbo” e construir narrativas para se
autoapresentar, autorrepresentar-se e representar outras mulheres travestis e negras.
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Desse modo, as temáticas levantadas por tais narrativas partem do pessoal e
transcendem-nas, alcançando o coletivo.
Além disso, as mulheres negras cineastas acenam, em suas narrativas, que não
querem mais estar submetidas e subordinadas às pautas “gerais”, quer do Movimento
Negro, quer do Movimento Feminista. Elas almejam criar referências, tornarem-se
porta-vozes de suas próprias ideias para que possam entrar ao lado dos homens negros e
brancos e das mulheres brancas em posição de igualdade na luta contra a opressão. Para
tal, a partir desta discussão, coadunamos com bell hooks (2019) que expressa que
mulheres negras devem separar o feminismo como uma agenda política das mulheres
brancas para que possam perceber como o machismo afeta as comunidades negras. A
autora nos alerta que as práticas feministas são fundamentais para “o processo de
autorrecuperação das mulheres negras, na qual a transformação da comunidade e da
sociedade se torna a tarefa mais básica que as feministas negras devem focar
confrontando o machismo, o racismo e o sexismo” (p. 369).
Assim, ampliar e aprofundar a compreensão sobre a experiência negra e de
gênero, reivindicando o direito de mulheres negras ao lazer crítico e à participação no
processo de formação de uma teoria/prática feminista negra, significa garantir uma
segurança para falarmos, para nos representarmos e para nos autorrepresentarmos nos
espaços possíveis para tais discussões. Entre representação e autorrepresentação, o
cinema pode ser utilizado como um dispositivo possível para tais reivindicações.
Sobre a produção cinematográfica das sete mulheres negras entrevistadas, a
pesquisa evidenciou que se trata de uma produção opositiva, onde o diálogo com o
mundo − sobretudo, entre si e para si − cria nelas os espaços de agenciamentos, aqueles
iniciados pelas negras escravizadas, dos quais nos fala bell hooks em O olhar opositivo:
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os subordinados em relações de poder aprendem com a experiência que existe um olhar
crítico, que olha para documentar, que é opositivo.
Retomamos novamente o discurso da Vaneza Oliveira, quando ressalta a
importância do “lazer diferenciado”, onde todo o contexto evidencia o pensamento de
bell hooks (2019) e sua proposta de “olhar opositor”. Como visto, vai a fundo na ideia
de que é preciso entender o contexto histórico e sociocultural vivenciado pelas mulheres
negras para compreender a construção do olhar e do prazer visual no cinema, de estar no
cinema e permanecer nele (COSTA, 2003). Nesta perspectiva, compreende-se o olhar
como um importante e fundamental instrumento de poder, que pode ser utilizado para
não confrontar o entretenimento visual, mas também para desenvolver o deleite de
contestar sua própria existência por meio do cinema (FERREIRA, 2016).
Finalizando, as estratégias de sobrevivência de negros e negras foram e ainda
têm sido a capacidade de reesistência (SOUZA, 2011) e aquela de imbricar
conhecimentos diversos, mesmo em meio aos destroços que o colonialismo fez de nós e
da diáspora africana, imprimindo-os nas experiências de lazer cinematográfico aqui
destacadas. Trazer o olhar para trás e assegurar-se nas lembranças são ações que
funcionam como pontos de reflexão e de possibilidades para um viver digno que traz as
experiências de um povo que sobreviveu e sobrevive, apesar das frequentes violações e
desumanização que lhe foram submetidas no processo escravista e nos dias atuais.
Assim, nossos lazeres podem contribuir para reconectar-nos às práticas organizativas
baseadas em uma historiografia decolonial, desafiando-nos a superar a episteme e as
práticas eurocêntricas que subtraíram a identidade de um povo pelo rapto e pela
violência colonial.
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Considerações Finais: Por um Lazer Insubmisso
Buscou-se investigar, neste artigo, as intersecções de gênero/raça nas trajetórias
socioespaciais de cineastas negras, tendo em vista compreender as estratégias por elas
utilizadas para enfrentar o racismo e o sexismo, em seu fazer cinematográfico e em suas
vivências de lazer. Considerando-se o papel do cinema como produto e produtor de
imaginários, verificou-se, na análise dos discursos dos sujeitos coletivos, os trânsitos e
deslocamentos espaciais, sociais e simbólicos que convocam essas mulheres,
cotidianamente, a reescreverem suas histórias para serem vistas. Elas recorrem a
estratégias criativas de reexistência na construção narrativa e nos elementos da
linguagem audiovisual, destacando o entrecruzamento do racismo, do sexismo e da
desigualdade social.
Nessa perspectiva, as narrativas de si são uma estratégia que detém a potência de
sentido para enfrentar o racismo e o sexismo no fazer cinematográfico e nas vivências
de lazer das entrevistadas. Tais narrativas possibilitam às cineastas se autoapresentarem,
representando a si e a todas as mulheres negras, dando-lhes voz e visibilidade. Como
visto, há coletividade na voz dessas mulheres, há construção, ação e insubmissão diante
de epistemes colonizadoras.
Entendemos que o gosto e a autoapresentação que compõem a escolha estética
das produções cinematográficas de mulheres negras estão crivados de códigos e
significados que, por vezes, estarão fora da técnica, mas politicamente ancorados nos
saberes que demarcam um lugar no audiovisual brasileiro, hoje nomeado de cinema
negro. Em um país como o Brasil, onde se elogia a diferença mas, raramente, se discute
o tema criticamente, desvelar relações de subalternidade permite quebrar o
silenciamento dessas mulheres negras em espaços de criação e produção audiovisual,
bem como em suas experiências de lazer.
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Outra estratégia que as cineastas negras entrevistadas lançam mão, diz respeito à
relevância de participar de associações de coletivos pretos e de festivais de cinema com
temática negra para alcançar um "lazer diferenciado", bem como de valorizar os
aprendizados decorrentes desses processos. Essas iniciativas ampliam as possibilidades
para racializar as obras audiovisuais brancas e as nossas experiências cotidianas de
lazer. Assim, descortinam-se possibilidades de fazer parcerias, de estudar e ter uma
consciência política e racial sobre o mercado audiovisual, sobre o lazer de pessoas e
comunidades negras, e de nossas sociedades como um todo.
Nesse âmbito, as contranarrativas destacadas pelas entrevistadas aparecem como
oportunidade de empreender lutas por uma representação desligada do estereótipo
negativo comumente atribuído às pessoas negras, disseminado historicamente pelo
racismo institucional e estrutural ainda vigente em nosso meio.
Uma estratégia identificada nas trajetórias socioespaciais das cineastas negras
aqui entrevistadas se concretiza no cuidado em desfrutar o lazer criticamente, mesmo
que seja necessário avançar no sentido de subverter a realidade social, cultural e política
estabelecida em nosso contexto, superando assim a ideia de que ele deve ser visto
apenas como uma válvula de escape para as tensões e pressões cotidianas.
Pelo que foi exposto, considera-se que as cineastas negras entrevistadas têm suas
existências marcadas por sua relação e cumplicidade com outros sujeitos no fazer
cinematográfico em suas experiências de lazer. Isso evidenciou o desafio de construir
um movimento aqui nomeado de "lazer insubmisso", vislumbrado como um conceito
que acolhe os corpos negros como humanos (VIANA, 2021). Assim, a
multidimensionalidade do lazer cinematográfico produzido e, sobretudo, vivido, se
configura como dialógica, com enredo político, ético e afirmativo.
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Portanto, reafirmamos uma intencionalidade política ao evidenciar o imperativo
epistêmico de se apresentar uma nova concepção que possa ser acolhida como
suplemento, como valor agregado, às perspectivas contra-hegemônicas do lazer,
apontadas por autores que adotam um posicionamento crítico acerca do fenômeno. As
discussões empreendidas neste texto evidenciam que o lazer precisa ter uma dimensão
social étnica afirmativa, para que as práticas de lazer dos sujeitos negros sejam
consideradas como direito, onde as sociabilidades cotidianas, especialmente aquelas
com propósitos lúdicos militantes, sejam consideradas e abarcadas em tal conceito.
Se concordamos que outras epistemologias sistematizadas por autoras(es) não
hegemônicos(as) são possíveis, espera-se que o lazer seja apreendido como uma ação
insubmissa, como uma desalienação, advinda de uma luta afirmativa pela humanidade
negra. E ainda pode ser considerado como um ato de reparação, já que, nesta concepção,
o sujeito negro recria a si mesmo, empoderado. Suas identidades deixam de ser forjadas
no racismo e se reconstroem na humanidade do corpo negro.
Neste sentido, esta ação pode ser vista como uma atividade criativa e insurgente,
pela qual as cineastas entrevistadas criam estratégias encarregadas de enfrentar/superar,
em suas vivências de lazer e em seu fazer cinematográfico, os racismos e sexismos
cotidianos. Avançamos, então, para o exercício crucial e consciente sobre as pautas
epistemológicas negras: nomear
10
para existir, como ato de “autorrecuperação, pela
autodeterminação, como forma de reconhecer a força vital em toda experiência de
cinema e de lazer. Nomear tem relação direta com empoderamento” (HOOKS, 2019,
p.336). Assim, o adjetivo insubmisso intenta expandir a “margem”, se constituindo em
uma ação que reveste novas intencionalidades ao lazer. Este invoca uma
10
“O nome sempre suscitou uma questão ontológica, quer dizer, uma questão de existência. Nomear era
considerado como pressupor a existência de algo. Essa noção surgiu com Platão (2001). Ao analisar a
relação dos nomes com o estado de coisas no mundo, ele formula o problema ontológico dos nomes: se há
um nome é porque o que é nomeado” (PLATÃO, 2001, p.102) Fonte: PLATÃO. Diálogos. Teeteto
Crátilo. 3. ed. Belém: UFPA, 2001.
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responsabilidade individual que é também coletiva, pela realização de feitos que alterem
a realidade de vida de pessoas negras brasileiras, bem como de pesquisadores que
trabalham com recorte raça/cor nos estudos do lazer.
Em suma, concluímos que o lazer insubmisso pode ser desenvolvido por
sujeitos/sujeitas negros(as) e está conectado à capacidade de atuar e transformar, de agir
e construir estratégias para a vivência. Portanto, não é um lazer descomprometido, mas
uma prática de insubmissão, que deve ser racializada, contextualizada, contra-
hegemônica, criativa e crítica.
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potencialidades das experiências de lazer e aventura na natureza. 2003. Tese.
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ZANETTI, Daniela. Cenas da periferia: Auto-representação como luta por
reconhecimento. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação
em Comunicação, v.11, n.2, p. 1-16, maio/ago. 2008.
ZANETTI, Daniela. Cinema de Periferia: narrativas do cotidiano, visibilidade e
reconhecimento social. 2010. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura
Contemporâneas) - Salvador, UFBA, 2010.
Endereço das Autoras:
Iara Félix Pires Viana
Endereço Eletrônico: iara.flix@gmail.com
Christianne Luce Gomes
Endereço Eletrônico: chris@ufmg.br
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bell hooks relaciona as opressões veiculadas pela apologia ao inglês padrão com os usos das variantes da língua inglesa nos Estados Unidos. A autora discute o lugar da linguagem nas relações de poder, especificamente nas hierarquias raciais, e propõe a ressignificação dos usos lingüísticos para a emancipação dos oprimidos.bell hooks relates the oppressions, which are caused by the apology to the standard English, to the uses of the varieties from English language in the USA. The author discusses the place of language in the power relations, specifically in the racial hierarchies, and she proposes the resignification of the linguistic uses aiming at the emancipation of the oppressors.
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Este trabalho resume um debate metodológico em processo na Escola Nacional de Saúde Pública, Brasil, sobre as duas formas de abordagem mais correntes nas investigações da área de saúde: o método quantitativo e o método qualitativo. Os autores - uma antropóloga sanitarista e um bioestatístico - demonstram, com argumentações teóricas e práticas, que esses métodos são de natureza diferenciada, mas se complementam na compreensão da realidade social. Num mundo onde o que distingue o ser humano é a linguagem comunicativa, o acento deste debate recai sobre a possibilidade, o significado e os limites da linguagem matemática e da linguagem de uso comum na experiência cotidiana.This paper summarizes a methodological debate underway at the Brazilian National School of Public Health concerning the two major approaches for investigations in the field of health: the quantitative and qualitative methods. The authors - a public health anthropologist and a biostatistician - used theoretical and practical arguments to demonstrate that these methods are differentiated in nature, but that they complement each other in the understanding of social reality. In a world where human beings are distinguished by communicative language, this debate focuses on the possibility, meaning, and limits of both mathematical language and the language commonly used in everyday life.
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O cineasta e ator Zozimo Bulbul produziu e dirigiu filmes e videos documentarios de curta, media e longa metragem. Entre os quais Alma no olho (1973), Artesanato do samba (1974, em co-direcao com Vera de Figueiredo), Musicos brasileiros em Paris (1976), Dia de Alforria...(?) (1981), Abolicao (1988) e Pequena Africa (2001). A partir dos anos 1990 realizou videos sobre a historia do negro no Rio de Janeiro. Trabalhou ainda como cenografo, produtor e assistente de montagem. Mas ficou conhecido do publico como ator no cinema e teatro. Embora nao tenha uma obra quantitativamente grande como produtor e diretor de filmes, sua trajetoria permite apreender os dilemas da classe media negra que emergiu nos anos 1960 e reivindicou uma nova narrativa para a experiencia negra na America. Os seus filmes deram forma cinematografica a elas.
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Over the last two decades, women have organized against the almost routine violence that shapes their lives. Drawing from the strength of shared experience, women have recognized that the political demands of millions speak more powerfully than the pleas of a few isolated voices. This politicization in turn has transformed the way we understand violence against women. For example, battering and rape, once seen as private (family matters) and aberrational (errant sexual aggression), are now largely recognized as part of a broad-scale system of domination that affects women as a class. This process of recognizing as social and systemic what was formerly perceived as isolated and individual has also characterized the identity politics of people of color and gays and lesbians, among others. For all these groups, identity-based politics has been a source of strength, community, and intellectual development. The embrace of identity politics, however, has been in tension with dominant conceptions of social justice. Race, gender, and other identity categories are most often treated in mainstream liberal discourse as vestiges of bias or domination-that is, as intrinsically negative frameworks in which social power works to exclude or marginalize those who are different. According to this understanding, our liberatory objective should be to empty such categories of any social significance. Yet implicit in certain strands of feminist and racial liberation movements, for example, is the view that the social power in delineating difference need not be the power of domination; it can instead be the source of political empowerment and social reconstruction. The problem with identity politics is not that it fails to transcend difference, as some critics charge, but rather the opposite- that it frequently conflates or ignores intra group differences. In the context of violence against women, this elision of difference is problematic, fundamentally because the violence that many women experience is often shaped by other dimensions of their identities, such as race and class. Moreover, ignoring differences within groups frequently contributes to tension among groups, another problem of identity politics that frustrates efforts to politicize violence against women. Feminist efforts to politicize experiences of women and antiracist efforts to politicize experiences of people of color' have frequently proceeded as though the issues and experiences they each detail occur on mutually exclusive terrains. Al-though racism and sexism readily intersect in the lives of real people, they seldom do in feminist and antiracist practices. And so, when the practices expound identity as "woman" or "person of color" as an either/or proposition, they relegate the identity of women of color to a location that resists telling. My objective here is to advance the telling of that location by exploring the race and gender dimensions of violence against women of color. Contemporary feminist and antiracist discourses have failed to consider the intersections of racism and patriarchy. Focusing on two dimensions of male violence against women-battering and rape-I consider how the experiences of women of color are frequently the product of intersecting patterns of racism and sexism, and how these experiences tend not to be represented within the discourse of either feminism or antiracism... Language: en
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When Black Feminist Thought by Patricia Hill Collins was published in 1990, reviewers called it "remarkable," "rich and valuable," and proclaimed, "with the publication of this book, Black feminism has moved to a new level." Now, in Fighting Words, Collins expands and extends the discussion of the "outsider within" presented in her earlier work, investigating how effectively Black feminist thought confronts the injustices African American women currently face. Collins takes on a broad range of issues-poverty, mothering, white supremacy and Afrocentrism, the resegregation of American society by race and class, the ideas of Sojourner Truth and how they can serve as a springboard for more liberating social theory. Contrasting social theories that support unjust power relations of race, class, gender, and nation with those that challenge inequalities, Collins investigates why some ideas are granted the status of "theory" while others remain "thought." "It is not that elites produce theory while everyone else produces mere thought," she writes. "Rather, elites possess the power to legitimate the knowledge that they define as theory as being universal, normative, and ideal." Collins argues that because African American women and other historically oppressed groups seek economic and social justice, their social theories may emphasize themes and work from assumptions that are different from those of mainstream American society, generating new angles of vision on injustice. Collins also puts such oppositional social theory to the test: while the words of these theories may challenge injustice, do the ideas make a difference in the lives of the people they claim to represent? Throughout, Collins provides an essential understanding of how "outsiders" resist mainstream perspectives, and what the mainstream can learn from such "outsiders." Historically situated yet transcending the specific, Fighting Words provides a new interpretive framework for both thinking through and overcoming social injustice. "In her perceptive book, Fighting Words, Patricia Hill Collins, a leading scholar in critical theory, argues that intellectuals who break with conventional wisdom are more of a threat to the establishment than their numbers might suggest." Joe R. Feagin in The Chronicle of Higher Education "Fighting Words is a treatise, if you will, encouraging all black women to engage in dialogue and to reach out to each other, regardless of education, income, or class. Fighting Words is an amazing work in the way it seamlessly combines the histories of black women and feminism. Even more impressive is the way Collins blends her personal experiences as a black woman, educator, and sociologist. Collins is all about telling the truth, now. That is probably why Fighting Words is such a revelation." Black Issues Book Review "Fighting Words ably demonstrates that Collins is still our leading theorist. Those who understand black women in terms of reductionist categories and who need to read this book probably won't. But it gives the rest of us another sharp implement with which to saw at the ropes." Women's Review of Books "Collins argues that the political gains of black women's 'talking back' now must be measured against changes brought on by the postmodern criticism of social science and Afrocentricism. Collins calls for a critical social theory that not only encourages black women's full participation in social life but actually grounds its own authority in its ability to enable black women's full participation." American Journal of Sociology "Collins' exploration of the question, 'What is knowledge?' demonstrates the value of a perspective that brings together the complex interrelationships of race, gender and social ranking. The text is both counter-theoretical and practical­­a readable, persuasive and important source. Highly recommended." The Diversity Factor "Advances a much needed discussion, beyond feminism and identity politics for black women and, presumably, for women of color generally." National Women's Studies Association Journal "Hill Collins provides a refreshing new look at theory that is not mired in obscure language but purposely written in multiple languages to welcome a broader audience. By using accessible/inclusive language and drawing on many schools of intellectual thought, she informs and educates across disciplines ­ a unique characteristic in academia. She delivers a critical and passionate work that is inspiring to a new generation of scholars and renews the spirit of existing scholars." Gender and Society "Collins has offered an excellent text that helps us understand not only Black feminist thought and its relationship to Black women's experiences, but also how it may help those of us truly working for social justice." Feminist Collections "This book has many suggestive ideas and well-thought-through social theoretical analyses. In line with her earlier work, Collins continues to argue that group positions generate epistemological standpoints from which people ask and answer questions of social knowledge in different ways. She considers whether recent theories of Black women as having 'intersectional' positions is a better conceptualization of the specific standpoint of Black women. Collins's book offers much to think about and to discuss for those involved in struggles generated by encounters and events beyond theory." Hypatia "This is a work that is both theoretically rich and yet deeply personal in its expressive voice. Collins points us toward the construction of new critical theoretical approaches that can effectively advance the struggles for social justice. Fighting Words is a powerful and passionate work." --Manning Marable Patricia Hill Collins is Charles Phelps Taft Professor of Sociology in the Department of African American Studies at the University of Cincinnati.