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Felizmente há Chopin

Authors:
  • Conservatório de Música C. Gulbenkian, Braga, Portugal

Abstract

Sexo e música sempre foram componentes naturais da vida humana, daí que se tornassem mágicas e religiosas, sendo o meio para alcançar o transe. Um amigo italiano chamava a isso 'vibrato di cuore' e quando falta, não há música, só matemática soporífera; da mesma forma, sem sexo não há procriação, e a função criativa de deus fica esvaída.
Felizmente há Chopin
Acabo de publicar uma obra, Uto-
pias, que termina com um anda-
mento intitulado ‘Ser deus é huma-
no’. Nos tempos em que o poder da
Igreja era omnipresente e tudo se
lhe submetia – mesmo a música se
considerava da autoria de deus que
ele ditava aos humanos – essa fra-
se irreverente seria uma proposição
desarrazoadíssima, uma blasfémia,
que poria em perigo a vida do au-
tor. Afortunadamente para mim,
Nietzche já oficiou, no século XIX,
as exéquias daquele deus1, mas o
capitalismo tem instalado outros
no seu lugar que poderão levar-nos
à extinção da espécie.
- Da próxima vez, venha à
aula depois de ter feito amor.
- Perdão?
- Ouviu-me perfeitamente. O se-
nhor é rígido, mas não é surdo.
Quero-o descontraído. Venha de-
pois do amor.2
Esse diálogo, entre a Professora de
piano e o jovem aluno obstinado em
atingir o êxtase tocando Chopin, soa,
nos ouvidos puritanos, como um
despropósito obsceno, mas revela a
essência da mística a caminho de en-
trar em transe, “um olvido momen-
tâneo de si sob efeito de um agente
exterior”3.
O romance de Eric-Emmanuel Sch-
mitt mostra-nos algo tão manifesta-
mente evidente que nos surpreende
quando nos tornamos conscientes
do segredo que está a revelar-nos,
porque há segredos que não se
podem desvendar, mas sim fre-
quentar, e isso é o que a professora
transmite ao seu aluno.
Em todas as culturas, o sexo, deus e
a música estão interligados. Afrodite
era a deusa grega do amor, da beleza,
da fecundidade e tudo o relacionado
com as relações sexuais. Eros, Cupi-
do para os romanos, era o deus da
libido, do desejo ou impulso sexual,
e segundo a teogonia grega, foi o pri-
meiro dos deuses pois sem ele nada
podia nascer. Essa sexualidade como
cerimónia religiosa, mágica ou espi-
ritual foi reprimida pelo cristianismo
ao mesmo tempo que o sistema mu-
sical enarmónico, que acompanha-
va as orgias dionisíacas e utilizava
subtis intervalos de quartos de tom,
foi proibido e banido da cultura oci-
dental. Mas não era possível manter
a espécie sem relações sexuais e o
proibido intensicou o desejo. Para
contornar a censura da igreja, a se-
xualidade transformou-se em eufe-
mismo até alcançar o seu êxtase mís-
tico, que, com todas as justicações
retóricas que o explicam e dissimu-
lam, é uma sublimação amorosa do
inefável clímax sexual, assunto que
não é mencionável. Dâmaso Alonso4
refere que João da Cruz, padroeiro
dos místicos, para além da inspira-
ção bíblica, talvez a sua poesia espi-
ritual proceda da transformação de
temas provenientes de canções pro-
fanas populares.
A Professora pede ao impaciente
aluno para colher flores ao alvo-
recer, prestar atenção ao silêncio,
observar os efeitos do vento nas ár-
vores e nas ondas. Tudo isso exas-
pera o aluno, que já tem técnica su-
ficiente para tocar Chopin mas sem
atingir o prazer sublime da música.
O romance é uma deliciosa lição de
pedagogia musical que leva o aluno
à sublimidade, e para isso é preci-
so muito mais do que a técnica ou a
teoria. Só quando aprendeu a fazer
amor, pensando “nas gotas de or-
valho, nos círculos na água, nas fo-
lhas entre os ramos, numa voz mais
frágil que um cabelo…” e olhando
nos olhos da outra pessoa durante
pelo menos uma hora, é que soube
o que era a música. Sexo e música
sempre foram componentes natu-
rais da vida humana, daí que se tor-
nassem mágicas e religiosas, sendo
o meio para alcançar o transe.
Um amigo italiano chamava a isso
vibrato di cuore e quando falta, não
há música, só matemática soporífe-
ra; da mesma forma, sem sexo não
há procriação, e a função criativa de
deus ca esvaída.
Há quem faça música para conse-
guir fazer amor, mas prefiro quem
faça amor para conseguir criar mú-
sica porque me levará ao êxtase ou,
mesmo, induzir-me-á ao transe.
Ainda é muito difícil explicar isto
aos castos e puritanos mas “o tran-
se pode ser considerado um maxi-
-orgasmo, da mesma maneira que
o orgasmo pode ser visto como um
minitranse intenso”5.
- Está a tocar de forma encanta-
dora porque se abandona. Con-
sente na música como consente
no amor. Ei-lo capaz de abraçar
cada instante, cada nota, cada
inexão. Deixou de estar rígido.6
Felizmente há Chopin!
12JAN’22
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em Educação Artística
1 Nietzche, F.:
A Gaia Ciência
. 1982.
Aforismo 179.
2 Schmitt, E-E.:
A Professora Pylinska e
o segredo de Chopin
. Lisboa, Guerra
& Paz, 2021, p. 46.
3 Liebig, É.:
O sexo da música
. Lisboa,
Temas e Debates, 2020, p. 83.
4 Alonso, D.: La
poesía de San Juan de
la Cruz (desde esta ladera)
. Madrid ,
CSIC , 1942.
5 Liebig, É.: Op. cit. p. 84.
6 Schmitt, E-E.: Op. cit. p. 58.
FOTO: DR
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