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Elephas

Authors:
  • Conservatório de Música C. Gulbenkian, Braga, Portugal

Abstract

"A perda de Deus marcou o início do modernismo e os pensamentos tornaram-se “as sombras dos nossos sentimentos – sempre mais escuros, mais vazios e mais simples” a crescerem de modo elefantíaco."
13 | 27 janeiro 2021
AS ARTES ENTRE AS LETRAS
CRÓNICA
Elephas
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
Tinha um amigo amante da patafísi-
ca1, muito sorridente e resolutivo que,
quando lhe perguntavam pelo signo
astrológico, sempre respondia que era
Elephas. A resposta era tão categórica
que desarmava os possíveis argumen-
tos uranoscópicos dos interlocutores.
A mística dos elefantes é geralmen-
te muito benévola. Uma amiga que
criava e colecionava pequenas figu-
ras destes paquidermes – sempre com
a tromba erguida, porque as percebia
como portadoras da boa sorte – olhan-
do pelo meu porvir, ofereceu-me um
simpático elefantito cor de rosa que,
pelo sim ou pelo não, ainda conservo.
A cor denota sensibilidades iniciáti-
cas duma zoomorfia esotérica alheia à
pigmentação natural da epiderme des-
tes mamíferos proboscídeos. Também
há elefantes brancos para inocular dis-
pendiosos ares de grandeza nos po-
bres de espírito, e que sempre se vêm a
revelar incomportáveis e de nulo pro-
veito.
No hinduísmo o elefante encarna a fi-
gura de Ganesha, deusa da ciência, a
beleza e a sabedoria, mas para os oci-
dentais representa o peso, a lentidão e
a falta de jeito. Duas leituras antagóni-
cas do mais corpulento mamífero ter-
restre da atualidade.
Desde que Nietzsche publicitara em
1882 a morte de Deus em A Gaia Ciên-
cia, a prazerosa volúpia do pecado es-
vaiu-se e o sentimento de culpa ficou
desprovido do conforto da contrição. É
certo que, quando se mata algo fictício,
nos estertores da morte multiplicam-
-se as aparições apocalípticas, num úl-
timo intento de amedrontar os ousa-
dos descrentes, mas os novos imagi-
nários acabam por se impor àquela de-
cadência moribunda. A perda de Deus
marcou o início do modernismo e os
pensamentos tornaram-se “as som-
bras dos nossos sentimentos – sempre
mais escuros, mais vazios e mais sim-
ples”2 a crescerem de modo elefantía-
co. Umas sombras que afundam mui-
tas pessoas na insignificância. Um te-
nebrismo que abate personagens bri-
lhantes. Uma culpa que queremos es-
conder ao resto do mundo.
Quando as teorias religiosas iniciaram
o seu declínio, os manuais de medici-
na de finais do século XIX começaram
a admitir um termo que, só após a se-
gunda grande guerra, se vai transfor-
mar em doença. Aquilo que antes era
obra do diabo ou mesmo um castigo
divino que se tratava com preces, la-
dainhas, cilícios, ou exorcismos, vai-se
transformando em diversos desassos-
segos mentais comummente conheci-
dos por depressão. E como deus já su-
cumbira ao embate da ciência, as me-
táforas tornaram-se profanas e os ele-
phantes entram nas vidas de porcela-
na.
A literatura sempre tratou desses gran-
des vácuos do quotidiano com o cui-
dado minucioso dos ourives e preen-
chia-os de deuses ou santos de estima-
ção. Aquele tédio agora é ocupado por
zoomorfologias múltiplas com ten-
dência para os de maior porte, como
os paquidermes – dado que os dinos-
sauros há tempo que foram extingui-
dos – e os armários, esses móveis com-
partimentados onde se arrumam as
coisas da vida, começaram a povoar-
-se de elefantes. Teresa Moure teve
de criar uma nova linha de Sopas New
Campbell3 para dar saída ao exceso de
carne produzida por Um elefante no ar-
mário4. Leituras altamente gratifican-
tes pela preciosidade da escrita e que
nos fazem refletir sobre esse armário
que cada um de nós transporta na so-
lidão de uma tumultuosa existência.
Elephas era a metáfora zodiacal que
povoava o armário do meu sorridente
amigo patafísico, mas, como bem con-
clui Teresa Moure, os elefantes meta-
fóricos não se comem.
O Bardo na Brêtema
1 Termo cunhado em 1898 por Alfred Jarry na sua
obra ‘neocientícaGestes et opinions du docteur
Faustroll, pataphysicien. Foi publicada, após a morte
do autor, em 1911 e está disponível em
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k113964m
2 Nietzche, F. (1882). A Gaia Ciência. Aforismo 179.
3 Moure, T. (2020). Sopas New Campbell.
Arzúa (Galiza): Cuarto de inverno.
4 Moure, T. (2017). Um elefante no armário.
Santiago (Galiza): Através editora.
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