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O CAPITAL FINANCEIRO NO
ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
(1990-2018)
Allan Kenji Seki
Allan Kenji Seki
Doutor em Educação pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), sob
orientação da Profa. Olinda Evangelista,
tendo realizado estágio no Centre
d’Economie de l’Université Paris Nord,
CEPN, da Universidade Paris XIII (França)
sob orientação do Prof. François Chesnais
e supervisão do Prof. Laurent Baronian.
É pesquisador do Grupo de Investigação
sobre Política Educacional (GIPE-MARX).
E-mail: allanknj@gmail.com
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018) Allan Kenji Seki
Outros lançamentos de 2021
Formação política e projeto
histórico de classe: a trajetória
do 13 de Maio NEP
Cyntia de Oliveira e Silva
Conhecer, pensar, viver…
A losoa na sala de aula
Antônio José Lopes Alves
Sabina Maura Silva
A produção da arte
na forma social do capital
Marília Carbonari
Políticas de memória no Brasil e
na Argentina: lembranças
do nunca mais
Rachel Tomás dos Santos Abrão
Classe e sexo: crítica da
ordem patriarcal de gênero
de Heleieth Safoti
Joana das Neves Calado
A teoria do fetichismo em
Karl Marx e a educação
Juliane Zacharias Bueno
Trabalho, experiência de classe e
reestruturação produtiva na
indústria de conservas de Pelotas
Laura Senna Ferreira
Neste livro, Allan Kenji Seki examina a formação
dos oligopólios de Ensino Superior no Brasil,
tomando-os como expressões de concentração
e centralização de capitais em relação com
capitais nanceiros. Esse processo perpassa
as alterações legais e transferências de fundos
públicos para o fundo de acumulação de
capitais. Destaca-se nessa seara o papel do
Estado no direcionamento da mercantilização e
da privatização da educação nacional. O autor
discute o modo pelo qual programas como o
FIES e o Prouni foram combinados para forjar
uma política estruturada de transferências de
riquezas para os capitais e, inclusive, criar as
condições sociais necessárias para a entrada,
nessas corporações, dos fundos e bancos de
investimentos – que, a partir de 1998, passaram
a fazer parte da dinâmica do Ensino Superior.
O CAPITAL FINANCEIRO
NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
(1990-2018)
Allan Kenji Seki
UFSC
Florianópolis
2021
Elaborada pelo bibliotecário Fabrício Silva Assumpção – CRB-14/1673
Todos os direitos reservados a
Editoria Em Debate
Campus Universitário da UFSC – Trindade
Centro de Filosoa e Ciências Humanas (CFH)
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O projeto de extensão Editoria Em Debate conta com o apoio de recursos do
acordo entre Middlebury College (Vermont – USA) e UFSC.
Copyright © 2021 Allan Kenji Seki
Coordenação de edição
Carmen Garcez
Projeto gráco e editoração eletrônica
5050com / Caiacanga Editoria
Capa
5050com / Caiacanga Editoria
Imagem: Olinda Evangelista, “Pôr abaixo os capitais de ensino”,
bordado livre, 2021 (detalhe). Foto de Allan Kenji Seki
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária
da Universidade Federal de Santa Catarina
S463c Seki, Allan Kenji
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018) [recurso
eletrônico] / Allan Kenji Seki. – Florianópolis : Editoria Em Debate/UFSC,
2021.
556 p. : il.
E-book (PDF)
ISBN: 978-65-87206-89-9
1. Ensino superior – Aspectos econômicos. 2. Privatização na
educação – Brasil. 3. Educação e Estado. 4. Universidades e faculdades
– Aspectos econômicos. I. Título.
CDU: 378(81)
NOTA EDITORIAL
Muito do que se produz na universidade não é publicado por
falta de oportunidades editoriais, tanto nas editoras comer-
ciais como nas editoras universitárias, cuja limitação orçamentária
não acompanha a demanda existente, em contradição, portanto,
com essa demanda e a produção acadêmica exigida. As consequên-
cias dessa carência são várias, mas, principalmente, a diculdade de
acesso aos novos conhecimentos por parte de estudantes, pesquisa-
dores e leitores em geral. De outro lado, há prejuízo também para
os autores, frente à tendência de se valorizar a produção intelectual
conforme as publicações, em uma difícil relação entre quantidade e
qualidade.
Constata-se, ainda, a velocidade crescente e em escala cada vez
maior da utilização de recursos informacionais, que permitem a divulga-
ção e a democratização do acesso às publicações. Dentre outras formas,
destacam-se os e-books, artigos full text, base de dados, diretórios e
documentos em formato eletrônico, inovações amplamente utilizadas
para consulta às referências cientícas e como ferramentas formativas e
facilitadoras nas atividades de ensino e extensão.
Documentos, periódicos e livros continuam sendo produzidos e
impressos, e continuarão em vigência, conforme opinam estudiosos do
assunto. Entretanto, as inovações técnicas podem contribuir de forma
complementar e oferecer maior facilidade de acesso, barateamento de
custos e outros recursos que a obra impressa não permite, como a inte-
ratividade e a elaboração de conteúdos inter e transdisciplinares.
Portanto, é necessário que os laboratórios e núcleos de pesquisa e
ensino, que agregam professores, técnicos educacionais e estudantes na
produção de conhecimento, possam, de forma convergente, suprir suas
demandas de publicação também como forma de extensão universitá-
ria, por meio de edições eletrônicas com custos reduzidos e em divulga-
ção aberta e gratuita em redes de computadores. Essas características,
sem dúvida, possibilitam à universidade pública cumprir de forma mais
ecaz suas funções sociais.
Dessa perspectiva, a editoração na universidade pode ser descen-
tralizada, permitindo que várias iniciativas realizem essa convergência
com autonomia e responsabilidade acadêmica, editando livros e perió-
dicos de divulgação cientíca, conforme as peculiaridades de cada área
de conhecimento no que diz respeito à sua forma e conteúdo.
Por meio dos esforços do Laboratório de Sociologia do Trabalho
(Lastro), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – que conta
com a participação de professores, técnicos e estudantes de graduação
e pós-graduação –, e por iniciativa e empenho do prof. Fernando Ponte
de Sousa, a Editoria Em Debate (ED) completa dez anos de realizações,
sempre com o apoio do Middlebury College/Vermont, que acreditou
no projeto. Criada com o objetivo de desenvolver e aplicar recursos
de publicação eletrônica para revistas, cadernos, coleções e livros que
possibilitem o acesso irrestrito e gratuito dos trabalhos de autoria dos
membros dos núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa da UFSC e ou-
tras instituições, conveniadas ou não, sob orientação e acompanhamen-
to de uma Comissão Editorial, a ED já publicou 68 livros desde 2011.
Os editores
Coordenador
Jacques Mick
Conselho Editorial
Adir Valdemar Garcia
Eduardo Vilar Bonaldi
Iraldo Alberto Alves Matias
Jocemara Triches
José Carlos Mendonça
Laura Senna Ferreira
Luiz Gustavo da Cunha de Souza
Maria Soledad Etcheverry Orchard
Marília Carbonari
Michel Goulart da Silva
Samuel Pantoja Lima
Aos meus pais, Cristina e Sergio,
por todo amor.
A todos aqueles que lutam em defesa
da universidade pública.
Nós somos os homens vazios
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada.
Ai de nós!
[...]
E assim termina o mundo,
não com um estrondo,
Mas com um lamento.
(Thomas ElioT, “The hollow men”)
SUMÁRIO
Prefácio
Por Lalo Watanabe Minto ..................................................................... 13
Apresentação
Por Olinda Evangelista ......................................................................... 19
Introdução ............................................................................................. 23
Tópicos sobre o problema de pesquisa ........................................ 31
Questões sobre o conceito de nanceirização............................. 51
Apontamentos sobre o trabalho de investigação empírica ........ 58
A organização do texto ................................................................... 63
1
O Ensino Superior privado na passagem para os
anos 2000 ........................................................................................ 67
O sentido da crise no Ensino Superior privado ............................ 68
Dualidade do Ensino Superior particular ...................................... 79
Entrelaçamentos da relação política das IES privadas ................. 87
2
Raízes da expansão do Ensino Superior privado:
elementos para a compreensão do tema .................................. 97
A transformação das escolas e cursinhos em IES ......................... 98
A UNIP, o Pitágoras e a Estácio de Sá ......................................... 102
Uma trilha se abre .......................................................................... 105
As articulações das IES privadas no âmbito do Estado
ditatorial (1964-1988) .................................................................... 108
Indicações sobre o associativismo burguês no
Ensino Superior .............................................................................. 119
3
Desonerações tributárias e nanciamento estatal:
a disputa dos capitais de ensino em torno do
fundo público ................................................................................ 147
Programa Especial de Crédito, CREDUC, FIES e FGEDUC:
a captura do fundo público pelo nanciamento
das mensalidades no Ensino Superior ......................................... 150
Prouni, PANF e BNDES: captura do fundo público por
meio da conversão de dívidas e tributos em bolsas
de estudos ...................................................................................... 174
4
Direcionamento do Estado no processo de
mercantilização e privatização do Ensino Superior ............... 203
A preparação do ambiente de negócios .................................... 212
A entrada dos fundos de investimentos no
Ensino Superior brasileiro ............................................................. 218
5
Das joint ventures às IPOS, algumas estratégias
da nanceirização do Ensino Superior ..................................... 235
Um novo momento da oligopolização no Ensino Superior:
a fusão entre Kroton e Anhanguera ............................................ 255
6
Elementos sobre o modo de operação da nança
no Ensino Superior ....................................................................... 289
O caso da fusão Kroton-Estácio ................................................... 311
A ilusão da concorrência na era dos oligopólios de ensino ...... 335
Considerações nais .......................................................................... 365
Referências bibliográcas e documentais ..................................... 381
Lista de guras ................................................................................... 525
Lista de tabelas .................................................................................. 529
Lista de siglas ..................................................................................... 531
Apêndices ............................................................................................ 547
13
PREFÁCIO
Não é tarefa simples denir o que foi este ano de 2020. A experiên-
cia da pandemia da Covid-19 se torna ainda mais traumática
porque se desenrola em um contexto de ampla desagregação social,
de desmonte em políticas públicas fundamentais e de fragilização
das possibilidades de resistência. Noutras palavras, o trauma é po-
tencializado pela conjuntura brasileira atual, premida pela fascisti-
zação da vida social, cujo principal vetor são os “ajustes” em benefí-
cio do capital global, sobretudo nas suas formas ctícias, operando
assim a função de socializar a violência que o capital emprega contra
o trabalho para o conjunto das relações sociais.
Por essa razão são tão desiguais os impactos da pandemia: por
um lado, potencializando problemas já existentes, como as deciências
da saúde pública e as condições sanitárias gerais; por outro lado, ins-
tituindo tendência de aceleração daqueles mesmos processos que nos
trouxeram até essa encruzilhada histórica. Não é diferente na educação,
cujo atendimento vem se agravando com as medidas adotadas pelo
poder público em todas as suas esferas, oscilando entre o negacionis-
mo e os oportunismos eleitoreiros deste 2020. Para alguns segmentos
da educação, contudo, a tragédia também mobiliza interesses e vem
acelerando ações no sentido de tirar proveito da situação emergencial.
O bordão utilizado foi o de que esta seria uma “janela de oportunida-
des”. São segmentos para os quais, na prática, os milhares de vidas
ceifadas pela pandemia são “externalidades”, tão inevitáveis quanto as
suas demissões em massa, as substituições precarizantes da força de
trabalho mais qualicada, o uso de “inteligência articial” para aumen-
14
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
tar os lucros em detrimento da qualidade do ensino, a adoção acrítica
das chamadas atividades remotas. Enm, são inovações.
O caso da educação superior talvez seja um dos mais expressi-
vos desse processo, pois os efeitos do distanciamento social e da crise
decorrente da pandemia afetaram (e afetam) profundamente o setor,
ao mesmo tempo em que a sua fatia mais volumosa – aquela com ns
lucrativos – viu uma grande oportunidade de ampliar seus ganhos, via-
bilizados pelos processos de substituição tecnológica, pela precariza-
ção das atividades acadêmicas, pela expectativa de uma exibilização
nos padrões exigidos para regulação e funcionamento do setor. O livro
apresentado por Allan Kenji Seki, fruto de sua pesquisa de doutoramen-
to, é uma peça obrigatória para a compreensão de tudo isso: o que é
novo e o que não é; as tendências que foram construídas ao longo das
últimas décadas; e, sobretudo, as mudanças substantivas e estruturais
que aconteceram na educação superior à medida que foi sendo do-
minada pela chamada nanceirização. Ao tomar contato com os resul-
tados desse vigoroso trabalho de pesquisa, tem-se uma dimensão do
que é e do que se tornou a educação superior no Brasil, quais foram os
sujeitos e políticas cruciais para tal reconguração, as formas como se
organizam, em que contexto ocorreram.
Mas as leitoras e leitores que se aventurarem pelas páginas a se-
guir, se certicarão de que este não é apenas um livro para “conhecer” a
educação superior no Brasil: é uma obra que alia rigor cientíco de alto
nível e um indisfarçável posicionamento ético-político. Trata-se de uma
verdadeira “peça de combate”, para lembrar do modo como Florestan
Fernandes se referiu às suas elaborações sobre a “reforma universitária”
no período mais violento da Ditadura (1964-1985). Creio não exagerar
ao armar que estamos diante de um dos mais completos estudos sobre
a dinâmica das transformações contemporâneas da educação superior
no Brasil. Apesar de ter como objeto mais visível o setor privado, o autor
não o analisa de modo isolado de uma totalidade de relações e deter-
minações, por isso, é um estudo que nos convoca a reetir sobre os im-
15
Prefácio
pactos que toda a educação superior sofre nesse período, imbricações
profundas que, por vezes disfarçadas pela aparência ou pelo cinismo de
seus agentes, compõem um conjunto novo de determinações.
Em tempos em que os interesses das corporações privadas e da
nança global se colocam acima de tudo, com o capital tendo que se
apropriar de todos os espaços possíveis de acumulação e realização
de valor, para fazer frente à crise, o que vivenciamos é um processo de
violência crescente e extrema. Por um lado, operado pelo Estado, que
aperfeiçoa suas tecnologias de tratamento da pobreza e das formas de
manifestação da “questão social” sob a ótica da criminalização; por outro
lado, desencadeada pelos vários processos violentos de reestruturação
em que as contradições do próprio desenvolvimento capitalista passam
a ser decididas ao sabor dos interesses voláteis do capital nanceirizado,
caso da famigerada Emenda Constitucional 95/2016. No núcleo mais
denso deste livro, o autor nos mostra de forma vigorosa o que ocorre
quando essa razão passa a ser também a razão dominante na educação
superior, deslocando para o seu âmbito toda a violência da acumulação
capitalista, para lembrar agora do livro III d’O Capital de Marx.
Não poderia deixar de mencionar outra qualidade expressa do
início ao m do texto, que é a sua generosidade. Pode soar estranho
referir-se a um texto dessa maneira, mas, seja na linguagem adotada
pelo autor seja na forma como lida com as suas referências, revela-se um
cuidado louvável em fazer-se compreender pelo público mais amplo,
como quem se recusa a escrever apenas para entendidos. Diria que,
somado a isso, o estudo também é generoso para com o campo de
pesquisas sobre a educação superior, pois se institui como fonte para
novos estudos e avanços. Isso se deve à amplitude das fontes pesqui-
sadas, que são apresentadas de forma minuciosa, contextualizadas; à
explicitação dos problemas e escolhas metodológicas que se zeram
necessárias, e, quando oportuno, indicando as limitações de certas fon-
tes. Esse é um mérito inegável numa época de tanto estímulo à “Salami
Science” e à aceleração produtivista.
16
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
Quanto ao núcleo mais decisivo dos processos analisados, penso
que a riqueza da contribuição trazida por Allan está em ter conseguido
articular um conjunto de determinações essenciais para a explicitação
do que é o campo da educação superior no Brasil contemporâneo.
E o fez, como já indicado, amparado por um vasto, denso e variado
acervo de pesquisa, incluindo aí centenas de documentos dos grupos
privados da educação superior com atuação em bolsas (Kroton/Cog-
na, Estácio, Ser Educacional e Ânima), microdados de órgãos estatais
ligados à educação, materiais da imprensa, as tradicionais referências
bibliográcas, para citar apenas algumas. Desse exaustivo trabalho
com as fontes destaca-se a maestria de não ter se rendido ao sentido
fenomênico expresso por elas, submetendo-as ao crivo da análise his-
tórica e da dialética, isto é, das tendências e forças que caracterizam
momentos decisivos da totalidade.
Sem ter qualquer pretensão de abarcar toda essa contribuição,
chamaria a atenção para três delas em especial:
1ª) o conceito de privatização é trabalhado como processo com-
plexo e construído ao longo de um grande período, de modo algum
limitado a governos e mudanças pontuais na legislação educacional
ou, mesmo, nos dados estatísticos. Nesta análise, destaca-se a forma
rigorosa com a qual se apresenta o papel do Estado na conformação
dos processos (íntimos) de oligopolização e nanceirização da educa-
ção superior, não vistos aqui sob a ótica idealizada de um Estado contra
o privado. Mostra, também, as formas de organização dos aparelhos
privados de hegemonia e sua interseção com o poder estatal e que, por
isso, todo processo de privatização não é apenas avanço de um setor
(privado, empresarial) contra outros (estatal, público, lantrópico), mas
antes de mais nada a reorganização das relações entre eles, que, por
sua vez, tampouco são lineares ou harmônicas. O avanço privado na
educação superior não tem nada de fatalidade.
2) sobre a questão da nanceirização, tema hoje bastante recor-
rente em estudos da área, mas não raro trabalhado de forma genérica
17
Prefácio
e até “agregativa”, isto é, quando a nanceirização não é analisada na
sua processualidade concreta no campo da educação, mas apenas men-
cionada ou agregada às análises mais ou menos dadas sobre o campo
educacional. Allan também enfrentou, com sucesso, o desao de tra-
tar de temas por vezes bastante herméticos – como aqueles ligados
ao mundo das nanças – apresentando-os ao público de modo mais
palatável. Neste sentido, é que nanceirização e privatização são te-
máticas indissociáveis, pois uma vez que se avança para essa fase atual,
modica-se também o conjunto das atividades do setor e de sua relação
com o Estado, não sendo uma mudança restrita a algumas instituições
“nanceirizadas”. Na obra se explora com profundidade essa lógica de
mudança em que, parafraseando o autor, a forma social do capital por-
tador de juros e de rentabilização dos capitais ctícios se espraia e se
alonga, produzindo efeitos em toda a educação superior.
3) outra grande contribuição refere-se à questão da educação
superior e sua especicidade no capitalismo brasileiro (dependente),
o que normalmente as pesquisas da área têm diculdade em fazer. Por
essa razão não é raro consumirmos acriticamente as sempre renovadas
e últimas novidades dos estudos acadêmicos internacionais, aliás, nu-
ma conjuntura em que a produção acadêmica dominante opera numa
espécie (grotesca) de quanto mais internacional, melhor. Por meio da
apreensão das particularidades do capitalismo brasileiro e da congu-
ração das lutas de classes como base para o estudo do complexo da
educação superior, escapa-se de um certo generalismo que faz pare-
cer muito homogênea a “nanceirização”. Com isso, abre-se caminho
para a sua compreensão e explicação sob a forma que esse processo
assume aqui, especialmente violento com relação ao aprofundamento
das contradições e desigualdades já patentes em nosso sistema de
Ensino Superior.
A (in)feliz coincidência de vir a público em meio à pandemia da
Covid-19 estende ainda mais a potencialidade dessa contribuição como
peça de combate. Tudo indica que as disputas mais quentes sobre o
18
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
futuro da educação superior já estão e passarão a orbitar cada vez mais
a esfera do “mundo digital” e, com ela, de fortalecimento das tendên-
cias hoje dominantes nesse nível de ensino, precisamente as questões
mais trabalhadas na obra. Visto assim, o livro de Allan também é uma
espécie de antídoto contra as forças conservadoras e reducionistas que
advogam que a pesquisa só é relevante quando produzida para atender
às regras que o próprio meio acadêmico validou ou, pior, a uma con-
cepção de ciência que se pretende utilitária, inovadora, mercantilizável,
indiferente aos problemas sociais. É uma afronta aos oportunismos que
vêm a celebrar e reivindicar a adaptação ao que, no senso comum, se
está denominando de “novo normal”.
Se o futuro da educação superior está em aberto, este livro é uma
arma para que nos posicionemos frente a ele, agindo para sua cons-
trução. Allan pode estar certo de que está deixando uma contribuição
essencial para o campo dos estudos nessa área e para as lutas tão ne-
cessárias que virão. Quanto mais bem-sucedidas forem essas lutas, me-
nos teremos que nos preocupar com aquilo que foi seu principal objeto
de estudo. Por isso, ironicamente, este é um livro ao qual podemos
desejar que se torne obsoleto o quanto antes, pois se isso acontecer,
muito provavelmente terá sido em benefício de uma educação superior
ao serviço dos interesses das maiorias, da classe trabalhadora, das na-
lidades formativas almejadas em projetos societais para além do capital.
Até lá, não há dúvida de que este livro reúne as qualidades para se
tornar uma referência fundamental. Uma leitura obrigatória!
Lalo Watanabe Minto
Campinas, julho de 2021
19
APRESENTAÇÃO
Sei que ainda não acabou o banquete
da miséria... Mas acabará...
(Nâzým hikmET, 1945)
Descobri a vossa intenção:
decepar as minhas raízes mais profundas,
obrigar-me à cerimônia das palavras mortas.
(mia CouTo, 1981)
A
primorosa obra que está em suas mãos lhe trará muita indig-
nação. O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-
2018), de Allan Kenji Seki, ao pôr em discussão parte da história
do Ensino Superior no país, dá indefectíveis motivos para isso. O
primeiro deles refere-se, certamente, ao fato da paulatina, mas con-
tundente, subordinação do conceito “Universidade” ao de Ensino
Superior, processo pelo qual esvaíram-se, nas gretas do segundo, a
pesquisa, a extensão e, quiçá, o ensino. Nos defrontamos, neste tex-
to, com o feroz movimento de frações do capital local e internacional
que reconverteu a formação humana juvenil, congurando-a como
“mercadoria” negociável nas bolsas de valores. Além de dominarem
as matrículas nas grandes empresas de Ensino Superior, está em seu
horizonte a destruição do que restou da Universidade pública e o
avanço sobre a Educação Básica.
Entre os anos de 1960, último momento em que a esfera públi-
ca hegemonizou as matrículas, e os de 2010, o crescimento da esfera
privada foi exponencial, alcançando em meados da década de 2000
20
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
a oligopolização. Nesse momento, setores do “capitalismo em crise”
auferiram margens inimagináveis de lucro às expensas não apenas dos
fundos públicos e da exploração de trabalhadores, mas também à cus-
ta da extração do fundo de existência juvenil e do seu endividamen-
to precoce. Esse movimento histórico resultou da entrada de grandes
bancos e fundos de investimentos nesse nível de ensino, propiciada por
formas “legais” – a exemplo da Constituição Federal de 1988 e da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 –, bem como pela
ausência de formas inibitivas – caso dos limites ao capital estrangeiro
nas empresas educacionais brasileiras.
O crescimento do Ensino Superior privado no Brasil, contraface
do encolhimento da Universidade pública que detêm apenas 25% das
matrículas, ca evidente dada a paciente coleta, sistematização e aná-
lise de um conjunto imenso de fontes feita por Seki, recolhidas inclusi-
ve para cobrir a ausência de dados ociais conáveis. Documentos da
Comissão de Valores Mobiliários, de empresas de consultoria, legisla-
ção, fontes bibliográcas, materiais derivados dos grupos de ensino,
matérias da Folha de S.Paulo e Valor Econômico, sites de Aparelhos
Privados de Hegemonia, Sinopses do Censo da Educação Superior, Mi-
crodados dos Censos da Educação Superior produzidos pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira foram es-
crutinados. As severas diculdades na coleta de dados ociais sobre as
grandes empresas de ensino levaram Seki a perguntar: “não seria essa
ausência o sinal de uma política articulada e deliberada em favor da
mercantilização do ensino e da transformação das IES em plataformas
de rentabilização do capital nanceiro?”
O que se procurava ocultar? Ocultava-se a avassaladora oligopo-
lização das instituições estudadas – Anhanguera, Kroton/Cogna, Está-
cio de Sá, Ser Educacional e Ânima – que impactou todos os níveis e
modalidades de ensino, pois responde às determinações mais gerais
da nanceirização. Tais instituições oresceram como “plataformas de
rentabilizações de capitais monetários disponíveis unicamente para co-
21
Apresentação
locações nanceiras”. Associado ao recuo no nanciamento das Univer-
sidades públicas, o modelo privado penetra em suas relações internas
e as subordina às demandas do capital. Exemplo cristalino é a submis-
são das instituições públicas às plataformas internacionais para realiza-
ção de atividades remotas. Esses capitais estiveram sempre à espreita;
encontraram um momento propício de amplicação na crise sanitária
disparada pela Covid-19 e pela incúria estatal no seu combate, levando-
-nos à profunda tristeza da perda de mais de 180 mil vidas.
Procurava-se ocultar, ademais, sob o slogan da “democratização
do acesso”, brandido pelos governos de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2003) e de Lula da Silva (2003-2011), que essas grandes empresas
saíram da crise movidas pela sustentação que o Estado lhe ofereceu,
pela compra e venda de certicados em larga escala, pela exploração
dos seus trabalhadores e pela sucção dos fundos de existência dos jo-
vens ou de suas famílias, todos subsumidos aos capitais que dominam o
Ensino Superior. Obscureceu-se que nas entranhas desses monopólios
vivem grandes bancos: BTG Pactual, Itaú BBA, Bank of America Mer-
ril Lynch, Bradesco BBI, Citi, Morgan Stanley, Santander, BNP Paribas,
Goldman Sachs, Rothschild & Co, ABC Brasil, Banco Fator, BB Banco
de Investimento, Credit Suisse Group, Rabobank. Suas intervenções pa-
dronizaram a gestão e os recursos pedagógicos, tornando prioritárias as
“remunerações aos seus acionistas”; de outro lado orientaram as fusões
e aquisições aceleradas que originaram os oligopólios.
Também se ocultava que o crescimento do capital de Ensino Supe-
rior produzia a erosão do trabalho docente e que, em suas aparas, cres-
ceram a padronização de ações pedagógicas; a priorização dos lucros;
a gravação de aulas para viabilizar demissões; a contratação de parapro-
fessores e pessoal especializado em mídias; as provas e correções im-
plementadas por fora da ação docente; a robotização do ensino, entre
outros absurdos. A degradação referida, pelo número de matrículas que
concentra – 75% do total –, seria um problema alheio à Universidade
pública. Entretanto, trata-se da formação da juventude brasileira e das
22
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
relações de trabalho nessas instituições, e para além delas. Diz respeito
a todos nós, pois está em jogo o abandono da produção de ciência, o
cerceamento do pensamento crítico e a obstaculização da solidarieda-
de política organizada em centros acadêmicos e sindicatos. Causa funda
indignação o fato político e econômico de que, nessas instituições, tra-
balhadores e estudantes valham apenas como “massa a ser explorada”
e os últimos sejam apenas itens de portfólio a ser negociado; causa
revolta o fato de que essa derrisão seja sustentada pelo Estado. No caso
dos estudantes, em 2017, as cinco maiores escolas – Kroton, Estácio,
Unip, Laureate e Cruzeiro do Sul – contavam com mais alunos do que
toda a esfera pública, 2.121,4, sendo a Kroton a maior delas (841,3).
Seria difícil nos alegrarmos com as conclusões de Seki ao descor-
tinar o cenário do Ensino Superior, público e privado, no país. Contudo,
há motivos para isso! As evidências oferecidas em relação à privatização
de recursos públicos, ao movimento do capital contra os trabalhadores
e estudantes, nos levam a um estado de alerta. Nesse sentido, aceder
ao conhecimento cientíco produzido e aqui magistralmente articulado
é razão para contentamento. Abrir novas sendas para a compreensão
objetiva da materialidade histórica é fundamental para nossa interven-
ção política organizada. Ademais, brotam nessas instituições contradi-
ções derivadas de sua oligopolização e das perdas de direitos sociais
que podem, talvez, gerar alguma forma de combate. Não há como não
nos sentirmos instados à crítica, posto que o livro em suas mãos é um
instrumento cristalino da contenda que se apresenta. Todos os que de-
fendemos a educação pública em todos os níveis – seu caráter universal,
seu papel primordial na apropriação do conhecimento e da experiência
humana pelos trabalhadores, sua posição seminal no desenvolvimento
do saber artístico, cientíco e losóco – temos o compromisso inesca-
pável de conhecer seus descaminhos e, conhecendo-os, construir for-
mas de luta contra eles e contra os desígnios do capital.
Olinda Evangelista
Londrina, julho de 2021
23
INTRODUÇÃO
Eu não me interessei pela educação e nem acho
que eu seja uma pessoa muito interessada em
educação. Eu sou interessado na Estácio de Sá, isso
é que é importante. Estou interessado no Brasil?
Não, não estou interessado no Brasil. Na cidadania?
Também não. Na solidariedade? Também não. Estou
interessado na Estácio de Sá.
(João Uchôa cavalcanti netto,
fundador da Estácio de Sá1)
Nosso objeto de estudos são as transformações ocorridas no Ensino
Superior2 brasileiro com a entrada de grandes bancos e fundos de
investimentos no setor3. Esse processo avança a partir de meados dos
1 Trecho extraído de entrevista para a Folha Dirigida (2001, s. p.).
2 A tese incorpora a distinção demarcada, entre outros, por Vale (2011), segundo a
qual a educação deve ser compreendida como um processo social mais amplo do que
o ensino, remetendo para um conjunto muito maior de mediações, através da pesqui-
sa ou da extensão, por exemplo. Educação, em nossa concepção, tem a ver não so-
mente com a socialização do conhecimento social e historicamente produzido, mas
também com sua sistematização e a produção de novos saberes. Como destacado por
Vale (2011, p. 21), o que a maior parte das instituições de Ensino Superior privadas faz
é, quando muito, “reduzir a Educação Superior a processos de ensino”, subsumindo a
educação à sua forma mercantil.
3 Além de outros investidores institucionais. Para efeito de análise, não segmentamos
os diversos tipos de fundos de investimentos, nem mesmo os fundos de pensão. Em-
bora essa distinção seja importante, sobretudo quando se procura analisar fatores de
risco e a privatização de direitos sociais, consideramos mais pertinente igualar nessa
oportunidade os fundos em uma classicação genérica. Tratamos aqui os investido-
res prossionais (pessoas físicas ou jurídicas) com volumes superiores de movimenta-
ções de capitais monetários nos mercados nanceiros como investidores institucio-
nais. Como veremos ao longo do trabalho, a distinção entre esse tipo de investidor e
os demais investidores institucionais não é relevante para a análise pretendida. De tal
24
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
anos 2000, mas tem raízes históricas profundas. Situa-se, nesse sentido,
como legatário dos programas de estímulos à expansão privada do ensi-
no no período da ditadura empresarial-militar dos anos 1960, entenden-
do que essas políticas foram incorporadas numa posição estatal em favor
da mercantilização e privatização da Educação Superior. Nessa esteira,
como ponto nodal, temos a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996), na qual as disputas em torno da forma
social desses processos (mercantilização, privatização e oligopolização)
deixaram alguns traços que evidenciam, hoje, como essa política de Es-
tado estava sendo preparada em largos passos nos sucessivos governos.
O tema tem relação com nossos estudos de mestrado (Seki,
2014), realizados no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e com os debates
realizados no Grupo de Investigação em Políticas Educacionais (GIPE-
-MARX) do Centro de Ciências da Educação (CED/UFSC), nos quais
buscávamos compreender as articulações burguesas em torno da edu-
cação nacional. Muitas das reexões aqui tratadas resultam também
do período de estágio doutoral no Centre d’Economie de l’Université
Paris Nord (CEPN), Université Paris 13, de fevereiro de 2019 até feve-
reiro de 2020, período no qual realizamos uma parte da pesquisa4 sob
a supervisão do Prof. Dr. Laurent Baronian e sob a orientação do Prof.
Dr. François Chesnais. Naquela oportunidade aprofundamos estudos
e discutimos de modo sistemático as questões relacionadas à leitura
e interpretação de O Capital, de Karl Marx, com especial atenção aos
volumes II e III, além de entrarmos em contato com as principais ver-
tentes contemporâneas que discutem o processo de nanceirização5.
forma que, para efeito didático, procuramos simplicar as denominações, evitando a
adição de casos e suas respectivas exceções sempre que possível.
4 Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 (Processo:
88881.361943/2019-01). Agradecemos à CAPES pela bolsa de doutorado-sanduíche
no exterior (agosto de 2019 a janeiro de 2020) e pela bolsa CAPES-DS (2016-2019).
5 Pelos limites apresentados neste trabalho evitamos reconstituir todos esses debates
nesta oportunidade. Porém, é importante fazer o registro sobre a valorosa contribui-
25
Introdução
Durante o mestrado estudamos a proposta de lei da reforma do
Ensino Superior do governo Lula da Silva (2003-2010) e, mais especi-
camente, os interesses do capital expressos nas posições do chamado
Sistema Indústria, ou seja, a conjugação da Confederação Nacional da
Indústria (CNI) e suas federadas, do Serviço Social da Indústria (SESI),
do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e do Instituto
Euvaldo Lodi (IEL). Considerávamos essas entidades importantes apare-
lhos privados de hegemonia vinculados à burguesia industrial interna e
foi da análise de suas proposições sobre o anteprojeto de lei da reforma
da Educação Superior do governo Lula que conhecemos os registros de
divergências imediatas entre os industriais e as mantenedoras de ensino
privadas6, especialmente dos segmentos vinculados à Associação Brasi-
leira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) e ao Fórum da Livre
Iniciativa no Ensino Superior.
Procurávamos, então, compreender o sentido da reforma no inte-
rior de uma gramática de relações que não tinham espaço apenas no
ideário de governo, mas também no espaço de relações mais largo que
se constitui no Estado. Este, longe de se constituir como espaço autô-
nomo às lutas intestinas da sociedade civil, é o resultado dessas lutas
em processo e, portanto, não exclui as estreitas articulações e embates
de interesses das classes. Como hipótese delineávamos a possibilidade
de que as divergências entre o empresariado industrial e o de Ensino
Superior só poderiam encontrar uma solução provisória na história atra-
vés da acomodação do essencial de suas agendas especícas em um
acordo estatal. O principal deste acordo perpassava necessariamente:
(a) concessão aos empresários industriais no que dizia respeito às am-
pliação de cursos, vagas e matrículas em cursos de engenharias e áreas
técnicas (prossionalizantes) nas universidades federais; (b) remodela-
gem e expansão da rede federal de ensino técnico e tecnológico pela
ção desses professores e do estágio de doutorado-sanduíche para o enriquecimento
teórico e metodológico que realizamos nesse período.
6 Tema elaborado no campo educacional por Rodrigues (2006, 2007a, 2007b) e Tró-
pia (2008, 2009).
26
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
transformação da maioria dos Centros Federais de Educação Tecnoló-
gica (CEFET) em instituições de Ensino Superior (com largas atribuições
na graduação tecnológica, nas licenciaturas e na pós-graduação) com o
consequente atrelamento desses às demandas de formação dos capitais
(lidas, num grau de generalidade maior, como se fossem necessidades
do “mercado de trabalho”); (c) ampliação das concessões às indústrias
da utilização da infraestrutura cientíca e tecnológica instalada em la-
boratórios e institutos de pesquisas das Instituições Federais de Ensino
Superior (IFES). Por outro lado, para o setor de ensino particular, os pri-
vilégios decorreram principalmente de (d) regulamentações favoráveis
às IES privadas, principalmente no caso das particulares (ensino privado
com ns lucrativos), no que diz respeito às avaliações, aos credencia-
mentos e aos recredenciamentos de cursos e à abertura de vagas; além,
da (e) mercantilização em massa de matrículas, especialmente no caso
das licenciaturas, cuja expansão fora sensivelmente reduzida nas IES
públicas quando em comparação aos estímulos recebidos pelo ensino
privado na formação de professores.
Naquela pesquisa, percebíamos certas nuances que anunciavam
modos pelos quais o chamado setor de serviços cobria, na realidade,
uma extensa gama de capitais em setores como o de comunicação,
educação, saúde, previdência, logística, transporte e etc. e que progres-
sivamente são capitalizados pelo Estado e disponibilizados ao mercado.
Notávamos de maneira muito preliminar que esses capitais monetários,
mobilizando extensas redes bancárias, fundos de investimentos, fundos
de pensões, seguradoras e empresas de consultorias, entrelaçavam-
-se cada dia mais com os capitais industriais, o que estabelecia novas
fronteiras para as formas de organização e de luta dessas frações pro-
dutivas e, inclusive, novas contradições na organização da base pro-
dutiva. Na presente pesquisa, contudo, o que se percebe está além:
esse movimento combina simultaneamente a privatização da riqueza
administrada no âmbito do Estado – bem como aqueles campos que
consideramos pertencentes aos direitos sociais e resultantes das lutas
dos trabalhadores – com a disponibilização desses direitos sociais como
27
Introdução
espaços ou plataformas7 de rentabilização ou de valorização de capi-
tais monetários. Esses últimos, altamente concentrados e centralizados,
oriundos dos diversos setores da economia, se entrelaçam e combinam
nas mãos de uma miríade de agentes nanceiros, tais como bancos,
fundos de investimentos, fundos de pensão, seguradoras etc., sempre
em busca de espaços de colocação de seus capitais.
Assim, ao menos em torno da reforma da Educação Superior do
governo Lula, nem as frações industriais se comportavam como indús-
tria nem o setor de serviços era de serviços. Essa aparência nos pare-
ceu verdadeira, pois não percebíamos algo que só foi possível com o
aprofundamento dos estudos: a combinação de dois movimentos au-
tônomos, porém, combinados. Por um lado, aquilo que parecia uma
“agenda desindustrializante” era na realidade uma modicação muito
mais substantiva na base produtiva nacional, cujos os da história con-
duzem necessariamente à desconstituição fabril – ao menos em seu
sentido clássico – da economia interna em favor de uma industrialização
de novo tipo, motivada pelas inversões diretas de capital estrangeiro e
pela consequente reordenação do padrão de acumulação capitalista-
-dependente brasileiro. Por outro lado, o entrelaçamento de capitais
no “setor de serviços” operava em favor de outro movimento, o de
industrialização da educação brasileira.
Ainda que com os limites apresentados, a pesquisa no mestrado
serviu para nos alertar para o fato de que ao lado das principais entida-
des representativas dos interesses do capital de ensino e das frações
industriais internas estavam grandes operadores de capitais nanceiros
(bancos, fundos, seguradoras e outros tipos de investidores institucio-
nais). Essa pista nos motivou a caracterizar a situação do Ensino Superior
7 Chamamos de plataformas capitais existentes sob a forma de empresas e que se
conguram quase que exclusivamente com o objetivo de captar colocações de ca-
pitais monetários e rentabilizá-los sob a forma de juros e dividendos distribuídos aos
seus proprietários; ao mesmo tempo em que, a um custo cada vez maior para os tra-
balhadores, todas relações de pulsão de mais-valor são empregadas assegurando aos
capitalistas as garantias de liquidez.
28
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
privado em seus grandes números e a investigar as relações de proprie-
dades sobre capitais no emaranhado de pessoas jurídicas (mantenedo-
ras, instituições de ensino, consultoras, seguradoras, bancos, agências
de nanciamento, fundos).
A emergência dos grandes bancos, fundos de investimentos e
investidores prossionais (e outros investidores institucionais) como
principais articuladores dos processos de captação e direção da nança
no Ensino Superior brasileiro tem início nos últimos anos da década de
1990. Em meados dos anos 2000, o aumento do volume de capitais
oriundos dos países centrais inundou a economia brasileira em busca de
valorização nos mercados nanceiros e, concomitantemente, grandes
grupos educacionais deram entrada nas praças nanceiras nacionais e
internacionais (Anhanguera, Kroton/Cogna Educação, Estácio de Sá, Ser
Educacional, Ânima Holding). Tal movimento do capitalismo em crise
encontrou, em diversos setores da atividade estatal (seguridade social,
saúde, emprego, saneamento, habitação, reforma agrária, segurança),
largos espaços para a colocação de seus capitais monetários sedentos
por rentabilização sob a forma de juros e dividendos.
A educação foi atingida em cheio por esse movimento e nenhum
de seus níveis (da creche à pós-graduação e ao sistema cientíco nacio-
nal) escapou à sorte geral das políticas sociais no capitalismo dependen-
te brasileiro dos anos 2000. No Ensino Superior, os avançados proces-
sos de mercantilização e mercadorização da educação, expressões do
movimento mais amplo da privatização, orquestrada desde pelo menos
os anos 1960, combinaram-se para transformar suas instituições em ver-
dadeiras plataformas de rentabilizações de capitais monetários disponí-
veis unicamente para colocações nanceiras. Então, a privatização dei-
xou para trás sua velha pele e se transgurou, assumindo um novo ethos
que cumula a todas as contradições criadas anteriormente uma forma
extremamente complexa de emaranhamento do poder econômico. O
Ensino Superior privado no Brasil se transformou quase que por inteiro
e vivemos hoje sua fase de oligopólios e a consequente participação
29
Introdução
destes nas políticas para toda a educação (das instituições privadas às
públicas, da creche às universidades).
O uxo crescente de capitais monetários captados pelas institui-
ções de ensino, convertidas agora em holdings internacionais, no mer-
cado nanceiro – seja através de grandes somas de empréstimos, da
oferta pública de ações nas grandes praças nanceiras no Brasil e no
exterior (principalmente em Nova York) ou de aportes diretos dos fun-
dos de investimentos –, teve como consequência imediata a alteração
substancial das formas de propriedades dessas empresas de ensino.
Suas estruturas corporativas, seus aparelhos informacionais, seus sis-
temas de comunicação e toda a tecnologia disponível são orientadas
diretamente à maximização dos resultados líquidos da companhia, isto
é, exponenciam-se as somas pagas às acionistas sob a forma de juros e
dividendos. A forma social do capital portador de juros mostra, então,
toda a sua força no fetiche do capital ctício.
A mercantilização e a mercadorização da educação não desapa-
receram como processos de privatização e, portanto, conservam-se em
seus modos de expropriações suplementares. Porém, suas modalidades
de intervenção foram entrelaçadas e se reorientam, nessa fase, sob no-
vos contornos. A apropriação sobre as riquezas produzidas socialmente,
as quais são bens ou direitos sociais comuns de toda a sociedade – co-
mo a escola ou a universidade –, tem impacto sobre seus modos de ser
e sobre o próprio sentido dessas instituições sociais. Novas orientações
da ordem da empresa capitalista subssumem suas vidas institucionais,
suas expressões de cultura e as tradições que lhes são próprias. Toda
a gramática de relações se transforma, a começar por um vocabulário
estranho às comunidades educacionais: ativos, ações, units, lucro líqui-
do, juros, dividendos, holding. A conjugação temporal substitui os ca-
lendários letivos, operando na lógica da nança com seus calendários
trimestrais de resultados contábeis. Aceleram-se os ajustes de gestão,
que passa a submeter os fundamentos organizativos e pedagógicos às
necessidades imediatas de resultados. Assim, o conhecimento, a tecno-
30
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
logia e o saber desaparecem gradualmente do primeiro plano. A força
dessa operação na educação nacional é de largo espectro e pela políti-
ca, pela práxis e pela coerção levam esse modo de operação até mes-
mo para as instituições públicas.
Essa capacidade de colocar o problema educacional brasileiro
no esquadro dos métodos burgueses de conceber a formação advém,
dentre outros fatores, da organização e do entrelaçamento dos capitais
que têm se caracterizado cada vez mais por uma unidade interna (pro-
porcionada pelos bancos e fundos de investimentos que concentram
em suas carteiras capitais de uma miríade de empresas de todos os se-
tores econômicos, nacionais e estrangeiros) e externa (a associatividade
burguesa que se expressa na criação de incontáveis organizações cor-
porativas, federações e sindicatos patronais que, combinadas, estabe-
lecem – contra aqueles que defendem a educação pública – um poder
político e econômico com dimensões muitas vezes mais largas que nas
décadas precedentes).
É notável o modo como, ao mesmo tempo em que se expandem
as redes de associações corporativas dos capitais de ensino, suas man-
tenedoras e os capitais monetários disponíveis à colocação nessas em-
presas de ensino, cresce também a capilaridade dos investidores insti-
tucionais nos diversos setores da economia e da vida social. O efeito
imediato é a elevação do poder político e econômico desses agentes
em seus embates frente ao campo do trabalho e em suas modalida-
des de socialização. Esses agentes passam a condensar, sempre mais,
em suas carteiras, acesso ao conhecimento sobre o funcionamento mi-
nucioso dos livros contábeis de dezenas ou centenas de empresas es-
palhadas nos diversos departamentos da economia nacional. Não se
trata de lobby (controverso conceito que procura explicar apenas uma
pequena fração da relação entre capital e os agentes políticos), nem da
união direta entre funcionários do Estado e de empresas de ensino: a
forma social do capital portador de juros e de rentabilização dos capitais
ctícios se espraia e se alonga exponencialmente, ao ponto de que seus
31
Introdução
métodos tendem a englobar por todos os lados o campo da produção
e da reprodução social.
Por detrás dessas teias profundas de relações capitalistas estão os
muito concretos e nada ctícios processos de exploração do trabalho
que subjazem às instituições de Ensino Superior cujas consequências
são de largo alcance para as formas de consciência, de socialização do
conhecimento e para o futuro das novas gerações. O trabalho não de-
saparece, ao contrário. Por todos os lados, encontramos a força de tra-
balho espraiada e estirada no funcionamento desses capitais de ensino:
o que muda são as formas de existência tradicionais desse trabalho. Em
lugar do professor e das categorias clássicas, uma miríade de funções os
vem substituir: técnicos de ensino, comissionados de vendas, agentes
de retenção de alunos, auxiliares educacionais, tutores, avaliadores, apli-
cadores de testes, programadores, técnicos de infraestrutura de redes,
engenheiros de redes e sistemas, estatísticos – a lista é interminável.
Trata-se de uma massa signicativa de trabalhadores premida pela mas-
sicação, planicação e padronização da educação. Sua transformação
em atividade fabril. Em suma, pela subsunção real de suas atividades
aos capitais que agora dominam o Ensino Superior.
Tópicos sobre o problema de pesquisa
As decorrências da nanceirização do Ensino Superior são notáveis
no trabalho docente: a padronização das atividades diminui custos e
oferece aos acionistas a previsibilidade sobre os resultados líquidos da
empresa capitalista; e a introdução dos sistemas pedagógicos – produ-
zidos e vendidos por algum setor ou empresa da holding – aumenta a
eciência e força o professor a se tornar polivalente. As aulas gravadas
(assíncronas) dispensam cada vez um maior número de professores e
introduzem novos agentes pedagógicos em seu lugar: tutores, profes-
sores-atores, redatores, técnicos de audiovisual, editores, câmeras, téc-
nicos de som, cenógrafos e assim por diante. O professor não elabora
32
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
mais as provas, não as corrige, não acompanha o desenvolvimento indi-
vidual dos seus estudantes, não pode reprová-los e nem os orientar de
modo apropriado. Os trabalhos de conclusão de curso são organizados
em blocos, como se enturmados – o que quase sempre signica turmas
inteiras para os professores daquelas disciplinas, designados para assi-
nar como orientadores dos trabalhos de conclusão de curso. Em meio
a essa catástrofe silenciosa da formação intelectual nas instituições das
mais importantes para a ciência e a cultura, alguns trabalhadores são
aturdidos pela profusão ideológica e chegam a se orgulhar da produti-
vidade e defendem até mesmo os famigerados planos de remuneração
por resultados.
Na organização político-pedagógica de todas as instituições ad-
quiridas pelos oligopólios desapareceram quase que por completo
quaisquer órgãos que se assemelhassem aos antigos colegiados. Na
maioria dessas instituições, o debate educacional é substituído por um
sistema pedagógico empacotado, modular e prontamente disponível
para a implementação. Sistematizados pelas grandes corporações de
ensino e pelas agências de consultoria, esses sistemas são padronizados
e, então, mensurados e mais bem organizados no tempo e no espaço
desse novo ethos de formação.
Os sistemas informatizados determinam o ritmo segundo o qual
centenas ou milhares de estudantes deverão passar pelas disciplinas,
aulas, materiais pedagógicos e provas avaliativas. Mensuram-se assim
seus rendimentos, o rendimento dos professores e tutores encarrega-
dos e o das dezenas de prossionais de novo tipo: vendedores, correto-
res, avalistas de riscos, técnicos de retenção de alunos, representantes
comerciais, consultores pedagógicos, avalistas de nanciamentos estu-
dantis – a lista é inndável. Dessa forma, os rendimentos podem ser
geridos eletronicamente e à distância. A matriz localizada em São Paulo,
Rio de Janeiro, Minas Gerais ou, até mesmo, na Califórnia (EUA) pode
acompanhar em tempo real a evolução dos grandes números de suas -
liais, especialmente, seus rendimentos e a eciência de suas colocações
33
Introdução
de capitais. Frequentemente são as matrizes das IES que asseguram tal
gerenciamento e não cabe às liais (e seus corpos docentes) elaborar
quaisquer considerações a esse respeito.
As avaliações de aprendizagem também são substituídas. Traba-
lhos acadêmicos tornam o professor muito menos produtivo e a razão
entre o tempo de aplicação e correção custa muito mais caro para a
empresa. Dessa forma, o calendário de provas e exames é padronizado
e escalado pelas matrizes. Frequentemente esses grandes grupos de
ensino constituem sistemas informatizados que funcionam como ban-
cos de provas e questões. Para a empresa de ensino, esses instrumen-
tos têm a vantagem de se assemelharem ao máximo possível às provas
aplicadas nas avaliações de larga escala, tais como o Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes (ENADE) e, dessa forma, os estudantes
podem desde o primeiro semestre serem adestrados para que apren-
dam a responder a esses instrumentos e lhes garantam notas melhores,
que serão estampadas em anúncios e outdoors como se atestassem re-
almente algo sobre a qualidade da mercadoria que se dispõe nas gôn-
dolas do mercado. Mas, além da publicidade, essas notas são material
essencial: são elas que asseguram, na lógica concorrencial agenciada
pelo Ministério da Educação (MEC), quais IES terão autorização para a
abertura de novas vagas, turmas e unidades de ensino.
Essas provas podem ser geradas automaticamente a partir de um
banco de questões que os professores ou terceirizados são frequen-
temente obrigados a construir (geralmente na fase de implementação
desses sistemas) ou podem, até mesmo, ser meras reproduções de pro-
vas do ENADE. Quando em pleno funcionamento, esses bancos de pro-
vas dispensam os professores da tarefa pedagógica de construção dos
instrumentos de avaliação da aprendizagem e de suas correções. Dessa
forma, apartados da dimensão avaliativa, mais tarde os próprios docen-
tes são nalmente confrontados com a avaliação de ensino e passam a
ser avaliados pelo rendimento de seus estudantes. Se uma turma tem
uma média muito baixa, seus empregos poderão ao longo de poucos
34
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
semestres estar em risco. Aliás, a perda do emprego é um perigo que
ronda constantemente os docentes e demais trabalhadores dessas ins-
tituições e uma marca constitutiva do modo de ser do magistério em
tempos de oligopolização nanceira do Ensino Superior.
Como denunciado pelo Sindicato dos Professores de São Paulo
(SIMPRO-SP), em junho de 2018,
[...] a Anhembi Morumbi demitiu quase 100 professores, a
FAM cortou 70 – o que corresponde à metade do corpo do-
cente. Na FMU, foram despedidos 66. Os cortes são ainda
mais preocupantes se os considerarmos como continuida-
de de um processo de demissão em grande escala iniciada
em 2017 e que deve se repetir no nal do ano (SIMPRO-SP,
2018, p. 1).
Em 2017, as demissões em massa espreitavam todas as faculda-
des e universidades no cardápio dos oligopólios de ensino. A Estácio
de Sá (UNESA), por exemplo, anunciou que realizaria a demissão de
1.200 professores num processo de reposição de quadros, ou seja, as
demissões seriam seguidas da imediata contratação de igual número
de docentes. O objetivo era quebrar o plano de carreira da própria
companhia, demitindo professores com maior tempo de permanência
na empresa e maiores titulações e contratando novos professores com
menor titulação e, consequentemente, menor salário. À época a Estácio
alegou que existiam muitos professores em seu quadro de pessoal com
título de doutorado e que precisaria reduzir esse número para manter
a sustentabilidade econômica da empresa. A folha de pagamentos re-
presentava 40% de sua receita, muito próxima da média do setor (41%),
mas muito distante da empresa que é tida mundialmente como a refe-
rência de eciência, a Kroton (atualmente denominada Cogna Educa-
ção), que em 2017 alocava apenas 19,8% de sua receita com salários
(Amorin, 2017). O mesmo foi realizado por outras empresas, como a
Anhembi que, em dezembro de 2018, anunciou que demitiria todos
os professores mais antigos das suas instituições de ensino para iniciar
2019 com uma folha de salários reduzida (SIMPRO-SP, 2018).
35
Introdução
Nota-se, portanto, como a situação dos docentes no Ensino Supe-
rior privado se deteriorou muito com a formação dos oligopólios, situa-
ção sensivelmente mais grave nas grandes cidades do país. Nos dias
que correm, tornou-se fator de risco para os professores o simples fato
de conquistar uma maior titulação acadêmica, levando alguns a evitar
a pós-graduação stricto sensu ou, ainda, a realizá-la em razão de seus
íntimos interesses no estudo e na pesquisa, e esconder das instituições
nas quais trabalham devido ao temor de que seus nomes logo venham a
gurar nas listas de demissão de trabalhadores. Evidentemente, a situa-
ção é extremamente vantajosa para os capitais de ensino que podem
contar com professores com maior titulação e anos de estudos, sem com
isso ter que aumentar suas remunerações. Para o professor, os sacrifícios
são gigantescos. A formação oculta implica defender teses e disserta-
ções sem afastamento do trabalho e, uma vez conquistados os títulos,
verem negados os proporcionais e devidos incrementos remuneratórios.
Os efeitos dessa política podem ser facilmente notados na com-
paração entre a formação acadêmica informada pelas IES privadas e
pelas públicas no Censo da Educação Superior (Brasil, 2018g) (Figura 1),
no qual nota-se a concentração de professores com especialização ou
mestrado no ensino mercantil8.
Entretanto, nem o sacrifício da formação ou o da remuneração (que
ocorrem quando o professor realiza o doutorado e esconde o título da
instituição que o emprega) são capazes de afastar outros perigos implí-
citos ao magistério privado. Como os planos de cargos e remunerações
dos grandes grupos de ensino elevam a remuneração salarial dos pro-
fessores de acordo com o período de permanência no emprego, pro-
porcionalmente ao tempo de casa cresce o risco de que sejam conside-
rados prossionais onerosos e que outros professores sejam contratados
em seus lugares apenas para reduzir salários. A instabilidade advinda
8 Esses dados devem ser considerados com cautela, visto que nas IES privadas as fun-
ções administrativas ou de pesquisa aparecem frequentemente separadas e exercidas
por trabalhadores distintos, enquanto nas IES públicas o ensino, a pesquisa, a extensão
e algumas funções da administração universitária são exercidas em regra pelo professor.
36
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
dos perigosos departamentos de gestão de pessoas dessas companhias
apenas acresce àquela de expressar controvérsias e críticas ao modelo
político-pedagógico, ao trabalho ou, até mesmo, de realizar o exercício
da crítica intrínseca ao fazer docente. Esses professores são, então, con-
siderados como aqueles que “não vestem a camisa da empresa”. Esse
risco aumenta consideravelmente quando expressa qualquer tipo de
aproximação com os sindicatos. Quanto mais próximo se está das por-
tas de qualquer entidade do gênero, mais próximo da “porta da rua”.
O que vale igualmente para todos os demais funcionários desses gran-
des capitais, sempre que a oferta de força de trabalho é regionalmente
abundante o suciente para torná-los facilmente descartáveis9.
Figura 1 – Número de professores por títulos acadêmicos nas
IES públicas e privadas – Brasil, 2017-2018
Fonte: Elaboração própria, com dados do Censo da Educação Superior (Brasil, 2018g).
9 Nesse sentido, os professores das IES privadas no interior do país encontram circuns-
tâncias que podem ser consideradas muito menos precárias que seus pares nas gran-
des cidades. Essa situação, contudo, tende a ser atacada pelos oligopólios pela expan-
são que eles mesmos vêm promovendo, com dinheiro público, nos cursos de pós-gra-
duação nas regiões interioranas ou com políticas de expansão do ensino à distância em
cursos de graduação e pós-graduação. Nossa hipótese é a de que estamos em um pe-
ríodo de transição e a monopolização do Ensino Superior privado tende crescentemen-
te a ampliar e a equalizar as precariedades das relações de trabalho por todo o sistema.
37
Introdução
Não por acaso, o mercado nanceiro e as entidades representati-
vas do Ensino Superior privado caram extremamente entusiasmadas
com a reforma trabalhista levada a termo pelo governo Michel Temer
(2016-2018), bem como com a reforma da previdência social, aprovada
no governo Jair Bolsonaro (2019-2022). Entre os aspectos mais saluta-
res, estavam em jogo justamente a desoneração das obrigações traba-
lhistas, a regulamentação da contratação de professores por meio de
contratos de prestação de serviços de pessoas jurídicas individuais e a
quase total desoneração dos custos das demissões.
A análise dos dados sobre a docência no Ensino Superior brasileiro
permite perceber alguns dos efeitos desses movimentos nos capitais de
ensino sobre o trabalho nas IES e as perspectivas colocadas para o magis-
tério superior nacional. Enquanto a relação aluno-professor nas IES pú-
blicas, em 2018, foi de 11 alunos para cada professores, em suas congê-
neres privadas essa taxa sobe para 30 alunos para cada professor (Brasil,
2018g). Esses números são graves para aqueles familiarizados com esse
tipo de estatística na educação10. A docência no Ensino Superior possui
atribuições administrativas, de pesquisa e de extensão que consomem
parte importante do tempo de trabalho. Além disso, diferente das uni-
versidades dos países de capitalismo central, no Brasil os docentes não
se vinculam (na prática prossional) diretamente a outros trabalhadores
e não são assistidos de forma imediata, seja por auxiliares de ensino, se-
cretários ou técnicos. Assim, todas as atividades relacionadas ao ensino
são tarefas designadas individualmente aos professores. Nossa tradição
conformou, ainda, um estilo de trabalho muito mais orientado aos alunos
individualmente ou em pequenos grupos, o que se percebe na maio-
ria das universidades públicas, apesar da intencionalidade explícita das
reformas que desde o nal dos anos 1980 visam destroncar essas tradi-
ções em nome de uma maior eciência11. Isso signica que mais de uma
10 Esse dado é geral e não reete as desigualdades regionais, entre as áreas de conhe-
cimentos ou as modalidades de ensino (presencial e EaD), por exemplo.
11 Entre elas vale destacar o Programa Universidade Para Todos (Prouni), no governo
Lula da Silva (2003-2010). Aspectos relativos ao trabalho docente e às repercussões
38
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
avaliação é normalmente aplicada aos estudantes durante o ciclo de es-
tudos e o magistério preocupa-se em acompanhar o amadurecimento
individual da capacidade de expressão da razão e do conhecimento de
cada um dos alunos matriculados em seus cursos. As provas, portanto,
não são padronizadas ou eletrônicas, nem são aplicadas por técnicos em
massa (como nos famosos calendários unicados de exames comuns nas
universidades europeias e estadunidenses, por exemplo). Além disso, o
mesmo professor que preside os cursos organizados nas disciplinas dos
cursos de graduação incumbe-se da orientação dos estudantes e de cur-
sos na pós-graduação. É, ainda, o mesmo docente o responsável pela
orientação de estágios, pelos quais, nas universidades brasileiras, pas-
sam quase todos os estudantes dos cursos aplicados. Por essas razões,
uma taxa de 11 alunos para professor existente nas IES públicas deve ser
considerada muito alta para a média geral (das universidades aos institu-
tos tecnológicos); uma taxa superior a 30/1 é praticamente a sentença à
precariedade na relação de trabalho.
Esse quadro é reforçado quando observamos que os professores
dessas instituições estão sujeitos a regimes de horas de trabalho que não
possibilitam sua dedicação exclusiva à docência: 72% dos professores
das IES privadas estão contratados sob regimes parciais ou são horistas
– um exército de 152,7 mil professores nessas duas condições (Figura 2).
Nenhum professor individualmente tem importância quando con-
siderado em seu fazer formativo; assim como nenhum estudante, se sin-
gularmente considerado seu processo de aprendizagem, tem relevância
para esses capitais. O que importa é o professor como componente da
massa de força de trabalho e o estudante como massa pagadora de
mensalidades e nanciamentos estudantis. O que realmente tem lugar
nos corações e mentes dos dirigentes dessas empresas são os relatórios
contábeis das companhias apresentados trimestralmente aos proprietá-
do debate sobre a reforma universitárias foram discutidas no GIPE-MARX, em espe-
cial, no trabalho de Santos (2020) defendido no Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da UFSC (PPGE/UFSC), intitulado: As universidades federais e a estratégia de-
mocrático-popular: heteronomia a serviço do capital (2003-2010).
39
Introdução
rios de seus títulos, não importando nem mesmo se qualquer um de seus
docentes tem ou não contribuições cientícas, losócas ou artísticas re-
levantes ou imprescindíveis para a comunidade acadêmica e a sociedade
brasileira. Nada do que é humano conta, a não ser como massa a ser
explorada (sejam os professores que vendem suas forças de trabalho ou
os estudantes e suas famílias que pagam pelas mensalidades). O único
sujeito que interessa nessas companhias é o proprietário dos títulos so-
bre o capital, justamente esse que demanda a cada trimestre a elevação
da precicação de seus ativos na bolsa de valores e a maior distribuição
possível dos lucros sob a forma de juros e dividendos. É justamente esse
o principal objetivo que fecunda o espírito dos conselhos de administra-
ção dessas empresas no capitalismo do nosso tempo.
Figura 2 – Regime de contratação de professores das IES privadas –
Brasil, 2017-2018
Fonte: Elaboração própria, com dados do Censo da Educação Superior (Brasil, 2018g).
Nos conselhos de administração encontramos os dirigentes, os
fundos de investimentos, auditores e representantes ociais dos gran-
des acionistas. Por detrás de suas posições, estão os grandes bancos
nacionais e internacionais que forjam as linhas gerais das estratégias do
mercado no curto e médio prazo: BTG Pactual, Itaú BBA, Bank of Ame-
rica Merril Lynch, Bradesco BBI, Citi, Morgan Stanley, Santander, BNP
40
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
Paribas, Goldman Sachs, Rothschild & Co, ABC Brasil, Banco Fator, BB
Banco de Investimento, Credit Suisse Group, Rabobank. Suas logomar-
cas estampam frequentemente os documentos distribuídos pelas em-
presas de ensino nas principais praças nanceiras onde negociam seus
títulos de propriedade. São essas instituições bancárias que centralizam
a emissão e a formação do preço dos ativos, as estimativas a prazo e
que asseguram a qualidade das mercadorias bursáteis – ao menos en-
quanto exista liquidez no mercado nanceiro. Revezam-se também nas
grandes fusões e aquisições: operacionalizam, agenciam e assessoram
a compra e venda das empresas; asseguram o uxo de créditos, atra-
vés da captação, renegociação, rolagem e titrização, além de coorde-
narem projetos nanceiros dessas companhias. As consequências desse
processo podem ser vistas nas transformações ocorridas nas formas de
propriedades das empresas de ensino, no processo de padronização
da gestão e dos recursos pedagógicos e na gradual transmutação das
prioridades desses grupos, dirigidas para a produção de remuneração
aos seus acionistas às expensas dos recursos públicos e da exploração
cada vez mais intensa da força de trabalho.
A partir dos anos 2000, com a transformação das faculdades e uni-
versidades privadas em instituições de direito privado com ns lucrativos
– categoria do direito civil que representa no Brasil uma das formas jurídi-
cas passíveis de serem adotadas por essas instituições a partir do quadro
normativo e jurisdicional implementado nos anos 1990, nos marcos da
ascensão neoliberal no Brasil – sobreveio um vertiginoso processo de
fusões e aquisições, estabelecendo uma nova fase marcada pelos oli-
gopólios. É o caso da Kroton, transformada em 2019 na holding Cogna
Educação, empresa nascida em Minas Gerais (MG) como um pequeno
curso pré-vestibular para estudantes do ensino médio e que foi alçada à
condição de uma das maiores empresas educacionais do mundo – muito
à frente, inclusive, do processo de nanceirização do Ensino Superior
em países de industrialização avançada, como nos Estados Unidos. Pa-
ra se ter uma ideia mais precisa do signicado desse processo de con-
centração e centralização de capitais de ensino, uma das empresas de
41
Introdução
consultoria especializada mais importantes do setor, a Hoper Educação,
apontou que as dez maiores empresas concentraram no Brasil 2.622.900
matrículas em um mercado cuja receita líquida foi estimada em R$ 54,5
bilhões em 2017 (Hoper, 2017). De outro ângulo: em 2017, somados os
estudantes inscritos apenas nos cinco maiores grupos – Kroton (841,3),
Estácio (441,7), UNIP (417,4), Laureate (271,2) e Cruzeiro do Sul (149,8)
–, suas IES acumularam mais estudantes do que todas as instituições
públicas (universidades, faculdades e institutos) em todas as esferas da
federação (federal, estadual, municipal). Esses números são certamente
alarmantes para todos aqueles que defendem a educação pública como
parte de um projeto democrático de pretensões universais em relação
ao conhecimento e à experiência humana, bem como o seu papel no
desenvolvimento dos saberes artísticos, cientícos e losócos. Enm,
para todos aqueles que veem a educação como parte essencial da expe-
riência de socialização da razão e do conhecimento.
As raízes desse processo têm longa data na história brasileira e se
entrelaçam com a própria história da república brasileira, mas é a partir
da década de 1960 que notamos uma armação da primazia das IES
privadas sobre as públicas: elas ultrapassam pela primeira vez o total
de estudantes matriculados destas últimas e representam o avanço da
mercantilização do ensino quase sem qualquer percalço até o tempo
presente. Por certo, a coincidência desse estiramento de novas vagas
e o projeto autocrático empresarial-militar em curso naquele momento
não coexistem somente por coincidência temporal. Os empresários de
ensino participaram articuladamente do regime e lograram imprimir às
políticas nacionais seus interesses particulares. O m do regime ditato-
rial, contudo, não deixa ilusões quanto à capacidade de reorganização
política dessa fração burguesa. Esse empresariado não sai de cena, ape-
nas transmuta seu modo de operação, integrando o período da Nova
República a partir de estratégias de novo calibre.
Uma larga teia de associações empresariais se amarra por todos os
lados da vida estatal, lançando campos de articulação de novo tipo. Es-
42
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
ses não necessariamente extinguem as antigas artimanhas políticas, mas
em muitos casos coexistem com o objetivo de assegurar a regulamenta-
ção de acordo com os interesses dos grandes capitais e a transferência
massiva – e sempre mais ampliada – de recursos do fundo público para a
acumulação de capitais. Não por acaso, a partir de 1985-1988 temos um
novo ritmo de expansão das matrículas e do número total de IES priva-
das. Essa aceleração, mesmo em períodos de crise internacional do capi-
talismo, demonstra a capacidade desse empresariado de se constituir e
articular como classe, atualizando a forma e o conteúdo da educação en-
quanto modicações no padrão de acumulação capitalista se sucedem.
O cenário do Ensino Superior, que discutiremos adiante, congura
uma crise. Em sentido um pouco mais estrito, essa crise tem a ver com as
consequências da privatização do interesse público que expressa parte
das tensões provocadas pelo avanço dos interesses capitalistas contra
os trabalhadores e as rarefeitas conquistas de direitos por eles alcança-
das. Mas as contradições oriundas da diluição dos direitos sociais aos
interesses da acumulação capitalista são muito acentuadas na fase dos
monopólios porque enquanto o poder político da classe trabalhadora,
os seus instrumentos e as suas estratégias de luta, estão limitados (em
particular daquelas frações da classe que transformaram o reformismo
fraco em sua máxima expressão programática), cresce do outro lado o
poder concentrado do capital e seus tentáculos pelos setores políticos
e econômicos da sociedade brasileira. Isso não signica de modo algum
que as lutas intercapitalistas foram extintas. A fase dos monopólios não
signica uma relação social intercapitalista isenta de dissensos e contra-
dições. Ao contrário, seu anseio por ampliar suas fronteiras de valoriza-
ção do valor, em todas as direções, cria tensões cada vez mais agudas.
Esses capitais, como veremos no caso do Ensino Superior, lutam
avidamente por cada mínimo espaço de valorização ou rentabilização
de capitais. Os grandes grupos de ensino estão em luta constante e
permanente contra as IES de menor porte, assim como estão inseri-
dos em ferozes combates concorrenciais enquanto existam oligopólios
43
Introdução
partilhando o mercado, algo que se percebe das lutas intestinas por
matrículas e pelo fundo público, por exemplo. Contudo, hoje, nenhu-
ma dessas disputas cria oportunidade de aproximação entre as neces-
sidades históricas da classe trabalhadora e qualquer segmento desses
capitalistas. Isso vale independentemente se considerados os grandes
oligopólios ou as menores IES: atualmente, até mesmo o menor e mais
açoitado dos pequenos empresários de ensino situa seus interesses e o
seu destino em oposição radical às necessidades educacionais da classe
trabalhadora em busca de sua emancipação.
A tendência que identicamos é de coexistência de grandes grupos
de ensino que expressam e se conguram como oligopólios capitalistas.
Eles dominam as instituições de ensino, suas mantenedoras, os cursos e
o número de estudantes matriculados. Individualmente, perseguem co-
mo objetivo o pleno domínio desse mercado e seu espraiamento como
forma social para toda a educação formal de crianças, jovens e adultos.
Por isso, cada qual persegue como objetivo o monopólio e tem, como
limites, os interesses comunitários da classe trabalhadora e suas formas
de lutas, sejam elas ofensivas ou de resistência. Tal coexistência persiste
porquanto bancos e fundos de investimentos não parecem, hoje, en-
sejar uma ofensiva para a monopolização absoluta desse mercado, e
tem sido particularmente lucrativo que existam grandes competidores,
gigantes de ensino como a Cogna Educação, Estácio de Sá, Universida-
de Paulista (UNIP), Ser Educacional, Devry, Laureate, Cruzeiro do Sul e
Ânima Holding. Resta saber até quando essa tendência permanecerá
como está e os métodos pelos quais o monopólio se armará.
Como argumentamos ao longo do trabalho, essa competição não
expressa necessariamente uma concorrência real, uma vez que os gran-
des investidores institucionais estão presentes em um ou mais grupos
e, em alguns casos, inclusive de maneira simultânea. Mas a coexistência
entre os grandes capitais de ensino enseja uma articulação que se jus-
tapõe às empresas educacionais menores e proporciona um uxo per-
manente de novas IES e mantenedoras para a fome canibal e insaciável
44
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
dos oligopólios. Rera-se, ademais, à composição de aparelhos priva-
dos de hegemonia que lhes são próprios, como é o caso da Associação
Brasileira para o Desenvolvimento da Educação Superior (ABRAES) que
representa os interesses tão somente dos oligopólios de ensino com
títulos negociados na bolsa de valores de São Paulo (B3).
Nossa hipótese é a de que o Ensino Superior brasileiro passa por
uma completa redenição de seu sentido e de seu alcance estratégico
na Educação Superior – com largo campo de consequências também
para todos os demais níveis e modalidades de ensino e de socialização
da cultura. Esse movimento foi dominado e determinado pela nanceiri-
zação nos grandes capitais de ensino, processo no qual o elemento de-
terminante é a presença dos bancos e fundos de investimentos (e outros
tipos de investidores institucionais), principalmente no que diz respeito
às fusões e aquisições. É assim que se congurou, nos anos 2000, o qua-
dro a seguir (Figura 3), que apresenta o gigantismo das instituições que
examinamos neste trabalho; justamente os movimentos subjacentes a
esse cenário de oligopolização que procuramos compreender.
A concentração de matrículas que a Figura 3 apresenta decorre de
mais de uma década de completa redenição do cenário da educação
privada, com particular peso nas relações entre as corporações, as man-
tenedoras e as IES mantidas. Entre essas relações, a principal se deu no
crescimento que chamamos de inorgânico, ou seja, aquele que decorre
da incorporação, da compra ou da fusão entre empresas educacionais.
Esse processo ocorreu em ritmo acelerado a partir do nal dos anos 1990
e, a partir da metade dos anos 2000, predominou como modalidade de
expansão da atividade capitalista no Ensino Superior brasileiro. Segundo
os dados da KPMG (2017)12, ocorreram 257 operações desse tipo, entre
2008 e 2017, na educação brasileira, em todos os níveis (Figura 4).
12 A KPMG é uma empresa de prestação de serviços de auditoria contábil, taxações,
consultoria de gestão estratégica, nanceira e assessoramento para fusões, aquisi-
ções, reestruturações e terceirizações. A empresa publica trimestralmente um relató-
rio de monitoramento das fusões e aquisições no Brasil e desde 2008 monitora o mer-
cado educacional.
45
Introdução
Figura 3 – Número de matrículas dos 10 maiores grupos educacionais
– Brasil, 2017
Fonte: Elaboração própria, com dados da Hoper Educação (Hoper, 2017).
Figura 4 – Total de fusões e aquisições no setor educacional, em todos
os níveis de ensino – Brasil, 2008-2017
Fonte: Elaboração própria, com dados da KPMG (2017, p. 19).
Os dados da KPMG são alarmantes para aqueles que se ocupam
da construção de uma educação da e para a classe trabalhadora. Po-
46
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
rém, nossa investigação13, que se deteve sobre os documentos apresen-
tados por quatro (Figura 5) das grandes corporações de ensino atuantes
no Brasil depositados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), cons-
tatou que esses dados ainda estão extremamente subcontabilizados.
Os quatro grupos foram responsáveis por 77 e não 72 aquisições, entre
2007 e 2017. Isso representa uma movimentação equivalente a cerca de
R$ 7,52 bilhões14 (Figura 5).
Figura 5 – Total acumulado de fusões e aquisições realizadas pela Kro-
ton, Estácio de Sá, Ser Educacional e Ânima Holding – Brasil, 2007-2017
Fonte: Elaboração própria, com documentos da Kroton Educacional S. A., Estácio de
Sá Participações S. A., Ser Educacional S. A. e Ânima Holding S. A. entregues à CVM
(2003-2017).
13 A análise compreende os documentos entregues pela Kroton S. A., Estácio de Sá
Participações S. A., Ser Educacional S. A. e Ânima Holding S. A. para a CVM, no pe-
ríodo de 2003 a 2017. No total foram reunidos 2.939 documentos: 1.044 da Kroton
(2003-2017), 1.103 da Estácio de Sá Participações S. A. (2007-2017), 396 da Ser Edu-
cacional S. A. (2013-2017) e 396 da Ânima Holding S. A. (2013-2017). Desse conjunto,
1.481 documentos serviram de base para as análises sobre as fusões e aquisições das
companhias e para as discussões nos capítulos 2, 3 e 4.
14 Em valores de março de 2018, corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Con-
sumidor Amplo Especial (IPCA-E). É importante destacar que cerca de 4% das opera-
ções de fusões e aquisições não tiveram seus valores revelados nos documentos en-
tregues à CVM.
47
Introdução
Ainda que considerando a defasagem dos dados da KPMG, o gi-
gantismo dos quatro grandes grupos ca patente. Eles foram responsá-
veis por aproximadamente 30% do total geral de fusões e aquisições15
na educação nacional no período de 2008 a 2017 (Figura 6). O dado é
alarmante. Isso permite ter uma noção muito mais precisa da importân-
cia dessa modalidade de concentração e centralização de capitais no
Ensino Superior no contexto econômico da educação nacional.
Figura 6 – Distribuição das F&A gerais na educação brasileira em
comparação com os dados de F&A da Kroton, Estácio de Sá,
Ser Educacional e Ânima Holding – Brasil, 2008-201716
Fonte: Elaboração própria, com documentos da Kroton Educacional S. A., Estácio de
Sá Participações S. A., Ser Educacional S. A. e Ânima Holding S. A. entregues à CVM
(2003-2017) e KPMG (2017, p. 19).
O período compreendido entre 2008 e 2015 corresponde ao de
maior intensidade nas fusões e aquisições. Na Tabela 1 é possível veri-
car o número de fusões e aquisições realizados pelos quatro grupos
controladores das mantenedoras de Ensino Superior no Brasil com
ações negociadas na BM&FBovespa.
15 Mergers And Acquisitions (M&A), em inglês.
16 Os dados apresentados nesse gráco correspondem aos dados sistematizados pela
KPMG. Em nossa investigação, registramos 77 e não 72 fusões e aquisições pelos qua-
tro grupos.
48
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
Tabela 1 – Número de fusões e aquisições pelos grupos controladores
com ativos negociados na BM&FBOVESPA – Brasil, 2007-2017
Total Kroton Estácio
de Sá Ser Edu-
cacional Ânima
Holding
2007 54100
2008 19 9 10 0 0
2009 10100
2010 31200
2011 74300
2012 12 7 5 0 0
2013 41300
2014 13 0 3 7 3
2015 60231
2016 60105
2017 11000
77 27 31 10 9
Fonte: Elaboração própria, com dados disponibilizados pelas companhias à CVM
(2007-2017).
O resultado desse processo pode ser percebido na enorme concen-
tração de matrículas. Segundo os dados do Censo da Educação Superior
(INEP, 2017), os dez maiores grupos controladores são: Kroton, Estácio de
Sá, Universidade Paulista (UNIP), Laureate, Ser Educacional, Universidade
Nove de Julho (Uninove), Cruzeiro do Sul, Ânima Holding, Devry e Centro
Universitário de Maringá (Unicesumar). Os dez maiores grupos de ensino
concentram 2.560.920 estudantes matriculados, ou seja, 42,3% das matrí-
culas no Ensino Superior privado. Com base nesses dados verica-se o al-
to grau de concentração das matrículas privadas em poucos grupos con-
troladores, e, mesmo entre eles, a preponderância dos maiores capitais
(Kroton/Cogna Educação, Estácio de Sá e UNIP), como mostra a Figura 7.
49
Introdução
Figura 7 – Proporção de matrículas detidas pelos 10 maiores grupos
de Ensino Superior em relação ao total de matrículas
privadas – Brasil, 2016
Fonte: Elaboração própria, com dados do Censo da Educação Superior (INEP, 2017).
Um dos argumentos mais difundidos pela imprensa, pelas orga-
nizações não governamentais (ONGs) e por outros aparelhos privados
de hegemonia conta que esse crescimento vertiginoso das corporações
de ensino deve-se ao fato de que algumas delas, como é o caso da
Kroton, foram no passado grandes escolas, colégios ou cursinhos pré-
-vestibulares. Utilizam, assim, a mitologia do empreendedorismo para,
supostamente, explicar o surgimento desses grandes capitais como
uma espécie de “raio em céu azul”. Essas narrativas se constroem, in-
clusive, sobre as guras pessoais – verdadeiras personas – dos executi-
vos mais fortemente associados às marcas dessas empresas. Alguns de
seus principais executivos, inclusive, fazem como seus congêneres nos
Estados Unidos e dividem o papel na apresentação e na administração
da companhia com a redação de livros e em palestras e conferências de
naturezas motivacionais. Essas histórias lembram uma espécie de mo-
nomito da aventura do herói de Campbell (2003): vencendo inúmeros
estágios de diculdades e tendo que construir a empresa com as pró-
prias mãos, executivos empreendedores lutaram contra o preconceito,
50
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
as resistências internas às mudanças empreendedoras, o tradicionalis-
mo e a falta de visão de seus pares para perseguir seus sonhos de se
tornarem grandes educadores e mudarem o destino do país.
Procuramos argumentar neste trabalho que, longe de ser um raio
em céu azul, essas histórias envolvem uma ativa e persistente associação
desses capitais no Estado. Em particular as vantagens obtidas das regu-
lamentações criadas para favorecer a transformação das escolas de en-
sino médio ou cursinhos em empresas de Ensino Superior e, destas, em
grandes conglomerados nos quais os capitais nanceiros encontraram
terreno fértil para suas rentabilizações. Regulamentações e normativas,
até mesmo ao nível das regulações de constitucionalidade, acorreram e
favoreceram esses capitais nas diversas etapas de seu desenvolvimento
histórico até a fase atual dos oligopólios. Processo, aliás, que por vezes
dependeu da criação de regulamentações legais ou normativas, enquan-
to noutras ocasiões deu-se até pela inexistência de regulamentos sobre
aspectos da maior importância. É esse o caso, por exemplo, da inexistên-
cia (até hoje) de determinação legal que impeça o controle ilimitado dos
capitais estrangeiros nas mantenedoras e instituições de ensino.
Esse nível da articulação capitalista, oculta sob o manto daquilo so-
bre o qual não se legisla, contribuiu vantajosamente para a oligopoliza-
ção do Ensino Superior, ascendendo a participação dos bancos e fundos
de investimentos estrangeiros na educação nacional. Mas é sobretudo o
fundo público o principal espaço de relações no qual esses empresários
muito empreendedores encontraram mesa posta e farta para todos os
tipos de relações de promiscuidade no âmbito do Estado, inclusive pela
união pessoal entre agentes públicos e gestores de capitais.
As histórias de vários desses capitais revelam como foram suas
vinculações ao bloco de poder do regime empresarial-militar dos anos
1960, aquilo que assegurou grande parte das condições necessárias pa-
ra a ampliação dos colégios e dos cursinhos. Foram essas condições que
lhes permitiram, mais tarde, transformar esses negócios em faculdades
e universidades sem ns lucrativos (beneciadas por imunidades tribu-
51
Introdução
tárias) e, nalmente, em instituições propriamente mercantis. Saídos
dessa fase de atrelamento ao regime, ingressaram imediatamente nas
políticas de alianças da Nova República. Sob essa história, construíram
as formas de lutas sociais que lhes assegurou vantagens nanceiras e tri-
butárias quando convertidas nas formas jurídicas de empresas lucrativas
(de sociedades limitadas ou, até mesmo, sociedades anônimas).
A esse respeito, vale lembrar que os grandes capitais de ensino
nunca assumiram, mas também nunca conseguiram esconder totalmen-
te, o modo como a repressão e a violência estatal da ditadura foi impres-
cindível para formar as raízes de seu poder político e econômico atual.
Dessa forma, puderam produzir articulações no sentido de organizar um
quadro regulatório que lhes permitiu ampliar os níveis de privatização,
mercantilização e mercadorização do ensino, além de se apropriarem
de largas parcelas de recursos públicos e de gozarem de largas vanta-
gens em termos de imunidades tributárias. Todos esses aspectos estão
na base daquilo que chamamos de nanceirização do Ensino Superior.
O desnudamento desse processo e sua exposição são, portanto, o foco
principal de nosso trabalho e, assim acreditamos, têm além do mais a
vantagem de contribuir para descontruir o mito de que a nança capi-
talista não tenha, em todos os tempos verbais nos quais se conjugue,
veios íntimos com os processos de expropriações sociais violentas, além
de toda a sorte de relações pornográcas17 no âmbito da exploração,
criação e recriação crescentes de força de trabalho.
Questões sobre o conceito de nanceirização
A nanceirização se tornou uma noção bastante usual, em particu-
lar desde a crise de 2007/2008, porém seus diversos usos estabeleceram
uma polissemia que exige algumas considerações preliminares para que
17 Emprestamos aqui o uso do termo utilizado por Virgínia Fontes (2010) para se re-
ferir a união pornográca de capitais que se faz lógica e concretamente presente em
sua categoria do capital-imperialismo.
52
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
a categoria possa ser aqui utilizada sem equívocos. O termo é frequen-
temente utilizado como sinônimo da circulação de ativos nas grandes
praças de negociação de títulos de propriedades, as bolsas de valores.
Também é comum encontrar o conceito sendo utilizado para distinguir
capitais de natureza rentista, não produtiva, dos capitais produtivos, os
que participariam diretamente da produção social da riqueza. No primei-
ro caso, o termo nanceirização aparece retirado de seu contexto mais
amplo e complexo, limitando-se sensivelmente e perdendo a maior par-
cela de sua capacidade explicativa. Essa forma de deni-la desconsidera,
por exemplo, que a emissão de títulos é apenas um momento da con-
centração e centralização de capitais e, ainda, que esse processo não é
necessariamente uma deliberação autônoma e positivada das empresas.
Todo um sistema social se constitui em razão de organizar os uxos de
capitais monetários socialmente disponíveis para tanto, além de concen-
trá-los, centralizá-los e colocá-los nos espaços de valorização do valor.
No segundo caso, essa antinomia entre capitais rentistas e capitais pro-
dutivos, embora possa parecer elucidativa em um primeiro momento,
acaba por produzir confusões de grandes proporções. O que dizer, por
exemplo, das indústrias automobilísticas que mobilizam em suas tesou-
rarias cada vez um volume maior de capitais monetários e funções cada
vez mais especulativas? Ou, ainda, como discutiremos neste trabalho,
do enraizamento crescente dos bancos e fundos de investimentos nas
empresas e seus diferentes estratos internos (conselho de administração,
matrizes, liais e, até mesmo, concorrentes) e externos (se espalhando
quase sem limites em direção a todos os setores e departamentos das
economias em nível mundial)? Mas, sobretudo, surge daí o risco de que
se perca de vista que a existência da burguesia como classe depende es-
sencialmente da capacidade de fazer puncionar mais-valor. A separação
entre capitais funcionantes e capitais monetários socialmente disponíveis
para colocações, para além de um método didático, é inexistente e não
é dotada de signicado econômico.
Hoje, a maioria dos debates heterodoxos sobre as formas con-
temporâneas de organização dos capitais têm como ponto de partida
53
Introdução
a armação de que a nança (e a nanceirização, portanto) seria o
traço distintivo da atual fase capitalista. No entanto, não existe con-
senso sobre o que seria a nanceirização. Essa indistinção serve em
frequentes oportunidades, como para encobrir ferrenhas diferenças
teórico-metodológicas – grande parte delas em oposição radical face
ao pensamento marxista. Nós consideramos, como Chesnais (2016),
que a nanceirização tem relação com os processos descritos por
Marx na quinta seção do tomo III de O Capital (2017), a qual trata
sobre o capital monetário e, em especial, sobre o capital portador
de juros. Em nossa concepção, a nanceirização deve ser considerada
como um processo social no qual a centralização de capitais monetá-
rios disponíveis para a rentabilização por meio de colocações (inves-
timentos, ativos nanceiros, empréstimos etc.) se torna importante o
bastante para centralizar tendencialmente todas as formas de relações
sociais no nível da reprodução global do capital. Isto é, a nanceiriza-
ção envolve simultaneamente a produção, a circulação do valor e a sua
repartição sob a forma de lucro, juros e renda da terra entre todos os
setores e departamentos da economia burguesa.
O capital monetário tem existência efêmera, seu único destino viá-
vel ao capitalista que o detém é assumir uma forma concreta e ser valo-
rizado. Nenhum capitalista, como diz Marx, em condições normais, de-
seja manter seu capital sob a forma de tesouro. Surge, em decorrência
da acumulação, todo um sistema de produção de liquidez, ou seja, de
concentração e centralização de capitais monetários disponíveis para a
colocação sob a forma de investimentos, empréstimos, nanciamentos,
debêntures, apostas, títulos etc. Frequentemente esses capitais mone-
tários assumem a forma de capitais portadores de juros, numa relação
que lhes permite adentrar no terreno da produção (e não permanecer
exterior a esta). Esses capitais criam uma aparência, que é a de que
são capazes de valorizar a si mesmos sem sair da esfera monetária ou
da circulação do dinheiro. Essa aparência se sustenta, segundo Marx,
na suposição de que o dinheiro (D) valoriza a si mesmo (D’) com mero
transcurso de tempo (T):
54
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
D – D’
T – T’
O segredo, como demonstrado exaustivamente por Marx, está no
processo real e efetivo da produção, na realização do valor de uso da
força de trabalho. Tal processo pode ser sintetizado de inúmeras formas
conforme aquilo que se queira demonstrar com maior ênfase, e aqui
consideramos:
D – Capital monetário (capitais portadores de juros e ctícios);
d – capital monetário, agora sob controle do capitalista funcionante;
Mp – meios de produção (instrumentos de trabalho e meios de
trabalho, matérias-primas e matérias naturais);
Ft – força de trabalho;
d’ – massa de capital monetário convertida das mercadorias ao
nal do ciclo de produção na qual está presente o mais-valor;
D’ – Capital monetário acrescido de juros ou de remunerações di-
versas sobre capitais monetários adiantados.
O processo é formalizado, então, como:
D – {d – (Mp + Ft) – d’} – D’
O signicado desse processo é o de que a forma social aparente
do capital portador de juros (D – D’) fomenta a ilusão de autonomia em
relação à valorização do capital, mas, na verdade, sua dependência da
produção é intrínseca e todas as formas existentes de títulos de proprie-
dades sobre capitais dependem necessariamente de que a produção
social se realize para que dela se possa extrair juros, dividendos e rendas
diferenciais. Na realidade, essa dependência é tão importante e, até
mesmo, imprescindível para os capitais portadores de juros e ctícios,
que eles realizam por todos os meios um controle muito próximo e sis-
temático da produção capitalista. A confrontação empírica não deixa
qualquer dúvida a esse respeito. Vale lembrar como os capitais funcio-
nantes, sob a forma de empresas e companhias, têm em seus conse-
55
Introdução
lhos administrativos a presença persistente de funcionários dos bancos
e fundos de investimentos detentores de parcelas desses capitais sob a
forma de inúmeras modalidades de colocações nanceiras. E, aos seus
lados, ainda se constitui um universo de consultorias especializadas, em-
presas de auditorias contábeis, seguradoras, bancos e capitais auxiliares,
que realizam intensas e permanentes mediações entre os detentores do
capital monetário adiantado e o capital funcionante. Os grandes bancos
são os principais agentes de mediações; detêm o conhecimento íntimo
das entranhas das empresas, de diversas delas (seja no mesmo ramo da
produção, seja nos diferentes setores e departamentos econômicos).
Dessa forma, essas instituições aglutinam um uxo incalculável, e quase
em tempo real, de informações sobre a economia nacional e internacio-
nal. Monitoram, portanto, cada minúsculo aspecto do funcionamento e
das engrenagens da extração de mais-valor.
Esse movimento foi muito corretamente percebido por Hilferding
(1985) que compreendeu o elevado grau de especialização dessas ins-
tituições em seu entrelaçamento com os capitais industriais. Hilferding
percorre com rigor os caminhos apontados por Marx sobre a análise do
capital portador de juros e localiza precisamente suas análises na esteira
da tendência à queda das taxas de lucros. Seus estudos são as primei-
ras indicações rigorosas no campo marxista de uma reconguração dos
capitais em relação às contradições oriundas da própria dinâmica capi-
talista, cujas tendências à concentração e centralização de capitais se
chocam permanentemente com as pressões internas à queda da taxa
de lucro. No mesmo sentido, Lenin (2004) e Bukarin (1988) dão sequên-
cia às análises sobre o capital nanceiro. É conhecida a formulação leni-
niana de que o capital nanceiro seria a união entre os capitais bancários
e industriais. Escapa ao objetivo deste trabalho um exame detalhado
das diversas posições desses autores, bem como uma revisão da pro-
fícua literatura contemporânea em relação às linhas gerais apontadas
por Marx em seus estudos sobre a dinâmica das sociedades capitalistas.
Entretanto, é importante localizar aqui, ainda que de modo preliminar,
que não consideramos os capitais nanceiros (capitais portadores de
56
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
juros e ctícios em associação aos capitais funcionantes) em exteriorida-
de à produção. Ao contrário, esses dependem interiormente dela; não
existe nenhuma condição social de realização desses capitais fora da
produção, sua exterioridade é meramente aparente e parece se nutrir
de que se realize sempre por contratos (ativos nanceiros, contratos de
empréstimos, debêntures, acordos de investimentos etc.).
Outra precisão que nos parece pertinente é a de que nenhuma evi-
dência empírica corrobora a hipótese segundo a qual o decrescimento
das taxas de lucro dos capitais produtivos (funcionantes) teria levado os
capitais a serem concentrados e centralizados sob a forma monetária e,
em consequência, pressionado pela formação de uma alta esfera nan-
ceira em oposição aos capitais realmente funcionantes. Essa hipótese
parece desconsiderar um dos elementos mais importantes que difere a
crítica marxista da economia política dos autores liberais. Marx percebe
e expõe de modo sistemático, nas primeiras seções do tomo III de O
Capital, como opera a lei da equalização das taxas de lucro em todos
os setores e departamentos econômicos, independentemente da forma
social assumida por seus capitais. Se as taxas de retorno dos capitais
portadores de juros fossem imensamente superiores à média geral dos
capitais funcionantes, todos os capitais migrariam para essa forma de
existência social e, como consequência, a taxa de lucro cairia nesses
setores; esses capitais, então, se veriam obrigados a retornar a seus se-
tores de origem, dos quais haviam migrado, a m de recompor suas
taxas de lucro ao nível da concorrência intercapitalista. Esse erro parece
decorrer de dois fatos: (1) a inexistência de uma taxa média natural de
juros e que (2) as taxas de juros não são incorporadas normalmente na
contabilização das taxas médias de lucro.
Ora, a autonomia relativa das taxas de juros não as torna absoluta-
mente independentes dos resultados da economia geral. Como vimos, se
o capital funcionante não realiza a valorização do valor, o capital monetá-
rio adiantado (capital portador de juros) também não se realiza. A relação
econômica, portanto, existe e é o fato primeiro que determina a existên-
57
Introdução
cia dos juros. A autonomia relativa na formação da taxa de retorno sobre
o capital portador de juros não deixa (e nem poderia) de corresponder ao
resultado geral da produção e à repartição da riqueza capitalista.
Quanto ao segundo fato, vale mencionar que, muito embora as ta-
xas de juros não sejam usualmente contabilizadas na formação da taxa
média de lucro, elas poderiam perfeitamente ser assim analisadas. Isso
apenas indicaria um fato que é, de todo, evidente à crítica da economia
política: as taxas médias de lucro seriam ainda menores em face ao ca-
pital total adiantado pelos capitalistas.
Esses dois aspectos mencionados receberam uma resposta nas
análises de Marx e devem ser considerados como um importante ar-
gumento para prevenir concepções estranhas à tradição marxista na
análise do capital monetário e, portanto, de qualquer forma do capital
nanceiro, se quisermos adotá-lo como categoria:
Com o progresso da produção capitalista, que anda de mãos
dadas com a aceleração da acumulação, uma parte do ca-
pital só pode ser calculada e empregada como capital por-
tador de juros. Não no sentido de que todo capitalista que
empresta capital contenta-se com receber os juros sobre o
empréstimo, enquanto o capitalista industrial embolsa o lu-
cro do empresário. Isso não afeta em nada o nível da taxa
geral de lucro, pois para ela o lucro é = juro + lucro de todo
tipo + renda fundiária, e a distribuição entre essas catego-
rias particulares é indiferente. Mas no sentido de que esses
capitais, apesar de investidos em grandes empresas produ-
tivas, depois de deduzidos todos os custos, geram apenas
juros grandes ou pequenos, os chamados dividendos. Por
exemplo, em ferrovias. Eles não entram, pois, na equalização
da taxa geral de lucro, porquanto geram uma taxa de lucro
menor que a taxa média. Se nele entrassem, essa taxa decli-
naria muito mais. Do ponto de vista teórico, eles poderiam
ser incluídos nesse cálculo, o que geraria uma taxa de lucro
menor que a aparentemente existente e que de fato vigora
nas operações dos capitalistas, pois é justo nessas empresas
que o capital constante apresenta maiores proporções em
relação ao capital variável (Marx, 2017, p. 279).
58
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
No presente trabalho não nos interessa localizar a distinção entre a
natureza do capital funcionante e a dos capitais monetários (portadores
de juros e ctícios), mas (1) a distinção de suas formas sociais e (2) o ca-
ráter de íntima associação entre eles. Em particular, o segundo aspecto
é o mais relevante para compreender o arco de consequências políticas
e econômicas que recaem hoje sobre a educação brasileira. Analisando
o Ensino Superior, encontramos uma enorme constelação de capitais
(bancos, fundos de investimentos, seguradoras e outros investidores
institucionais) cuja associação com indústrias e comércios de todos os
tipos, além de suas atuações em diversos países da economia mundial,
colocam interrogações completamente novas no plano de reexões so-
bre a força social da burguesia na determinação dos rumos e do sentido
da educação face à classe trabalhadora. Não é por outra razão que ar-
mamos que as pressões pela conversão da Educação Superior (e todos
os demais níveis educacionais, como é evidente pelo espraiamento pro-
gressivo dessas empresas na Educação Básica, prossional e assim por
diante) localizam-se hoje em um novo nível de ofensiva: tratam-se agora
de adversários cujo grau de organização e associação seria inimaginável
duas décadas atrás, embora as raízes históricas de suas atuais forças
retrocedam àquele tempo. É que seu poder decorre precisamente da
centralização e concentração de capitais que dirigem os processos de
fusões e aquisições, dando origem à formação dos oligopólios que nos
confrontam hoje com imensas magnitudes e novas modalidades de or-
ganização empresarial cujas consequências serão sentidas certamente
no presente e ao longo das próximas décadas.
Apontamentos sobre o trabalho de investigação empírica
Com objetivo de caracterizar a situação atual do Ensino Supe-
rior brasileiro assumimos que seria necessário levantar diversas fontes
empíricas. As primeiras aproximações para caracterizar a situação de
oligopolização exigiram a análise dos dados sistematizados nas sinop-
ses do Censo da Educação Superior, disponibilizados anualmente pelo
59
Introdução
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP). Esses dados possibilitam vericar a concentração regional das
IES, cursos e matrículas, tipos de instituições e áreas de conhecimentos
nas quais o setor privado está atuando. Porém, não permite analisar os
dados de cada um dos grupos capitalistas de ensino separadamente.
Por essa razão, tivemos que utilizar o conjunto completo das tabelas
dos Microdados do Censo da Educação Superior. Ao todo, foram sele-
cionados 22 conjuntos de tabelas, de 1995 até 2017.
Existem diculdades imediatas relacionadas a esses dados e duas
devem ser mencionadas. A primeira é que não existe nenhuma forma de
extrair os dados de cada companhia, o que deixaria às vistas a formação
dos oligopólios. E, a segunda, diz respeito às inconsistências de dados
de um ano para o outro, o que inviabiliza um grau maior de automação
na análise de grandes massas de dados quantitativos. Essas inconsistên-
cias estão localizadas nas mudanças de variáveis nos dicionários de ca-
tegorias que são coletadas no Censo, mas não expressam apenas ques-
tões técnicas. Existe intencionalidade em qualquer mudança categorial,
como por exemplo, quando se denem categorias como “privadas”,
“particulares”, “com ns lucrativos” ou “sem ns lucrativos”.
A princípio, o INEP disponibiliza um dicionário de variáveis e enor-
mes conjuntos de notas explicativas que indicam alterações de um ano
para o outro. Contudo, esse fator que poderia minimizar os obstáculos
criados em cima de dados públicos gera uma maior diculdade para
a análise das políticas educacionais. São questões como essa que tor-
nam o trabalho de pesquisa, que já seria árduo se os bancos de dados
fossem mais bem organizados, em um imenso trabalho manual de cor-
relação das informações para viabilizar a visualização de tendências de
largo período. Ademais, não é por acaso que, apesar da disponibilidade
pública dos bancos de dados, o trabalho analítico continue sendo rea-
lizado como algo da ordem de uma atividade bastante especializada, o
que expressa uma contradição signicativamente antidemocrática.
Esses dois fatores talvez ajudem a explicar muitas das diculdades
60
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
do campo crítico em produzir pesquisas empíricas sobre a análise da
política de Ensino Superior brasileira. Há um enorme custo para traba-
lhar com as ferramentas de extração de dados e com a ausência quase
total de automatização na coleta, na organização e no cruzamento de
bancos de dados. Porém, sem esse esforço, percebemos que permane-
ceríamos reféns da disponibilização de informações dos órgãos ociais
que não prestam qualquer informação organizada sobre os grandes
capitais de ensino (Kroton/Cogna Educação, Estácio de Sá, Devry, Âni-
ma Holding, Ser Educacional, Cruzeiro do Sul, UNIP). Não é sem razão
questionar como o Ministério da Educação não mantém dados públicos
sobre a concentração de matrículas, as IES e as mantenedoras no En-
sino Superior brasileiro. Não seria essa ausência o sinal de uma política
articulada e deliberada em favor da mercantilização do ensino, da trans-
formação das IES em plataformas de rentabilização do capital nanceiro
e de sua consequente oligopolização?
Em termos metodológicos, a inexistência desses dados nos con-
duziu à necessidade de realizar um duplo mapeamento. Por um lado,
traçar as linhas que esboçariam uma visão sistemática sobre quais se-
riam as mantenedoras e as instituições de ensino detidas pelos oligo-
pólios e, por outro lado, reconstituir os percursos do capital monetário
que possibilitaram as fusões e aquisições em larga escala e que, ao m,
são os grandes beneciários das políticas que favorecem a expansão
privada da Educação Superior.
Esse mapeamento resultou em um diagrama de grande escala18
no qual apresentamos as informações sobre a Cogna Educação (Kro-
ton), Estácio de Sá, Ser Educacional e Ânima Holding – os quatro gru-
pos com ações negociadas na bolsa de valores de São Paulo (B3)19. A
18 Uma ilustração do mapa pode ser conferida no Apêndice C deste documento,
porém, recomendamos que seja utilizada a versão digital do arquivo que pode ser en-
contrada no link: bit.ly/2RtLp1S. Se preferir, o leitor também pode utilizar o QR Code
disponível no apêndice para acessar o link ou copiá-lo.
19 Para a sistematização das informações utilizamos o software yEd, tipo de programa
multiplataforma desenvolvido pela yWork, empresa alemã que desenvolve programas
61
Introdução
escolha desses grupos tem a ver com a disponibilidade de informações:
por negociarem seus títulos de propriedade na bolsa de valores, essas
companhias são obrigadas a entregar certo número (ainda que muito
limitado) de informações aos seus acionistas, ao público e aos órgãos
de regulação do mercado nanceiro.
O conjunto de dados e elementos empíricos nessa fase da pesqui-
sa é relativamente extenso. De forma sintética podemos separar as fon-
tes em (a) 2.939 documentos coletados e analisados da Kroton, Estácio
de Sá, Ser Educacional e Ânima Holding entregues à Comissão de Va-
lores Mobiliários (CVM), os quais, após a leitura, resultaram na seleção20
de 1.481 documentos para o trabalho21. Além desses, incluímos (b) 23
documentos produzidos pelas empresas de consultoria que atuam arti-
culadamente às empresas de ensino privado. Os dados sobre a (c) co-
tação dos ativos na bolsa de valores foram extraídos dos microdados
através do uso de um software licenciado pela UFSC, o Economatica.
As informações sobre os (d) fundos de investimentos foram extraídas
do banco de dados da CVM. Todas essas informações foram, então,
cruzadas com os (e) dados disponíveis no Censo da Educação Superior
e das sinopses disponibilizadas pelo INEP.
Além dessas fontes, organizamos as (f) legislações que se relacio-
nam com a expansão do Ensino Superior privado, alcançando 149 do-
cumentos que se referem às políticas educacionais como legislações, re-
latórios, normativas e outros (referidos em uma seção especíca ao nal
do trabalho). Esses documentos contribuíram para denir o contexto de
crescimento da mercantilização do ensino e seus movimentos rumo ao
orientados para a pesquisa acadêmica.
20 Para o tratamento e a coleta de informações foram escritos pequenos programas
em Python que também auxiliaram na preparação do material para leitura e na orga-
nização das referências bibliográcas.
21 Foram selecionados os seguintes documentos entregues à CVM: Acordo de Acio-
nistas; Aviso aos Acionistas; Código de Conduta; Comunicado ao Mercado; Dados
Econômico-Financeiros; Estatuto Social; Fato Relevante; Política de Divulgação de
Ato ou Fato Relevante e Política de Negociação das Ações da Companhia. Eles se en-
contram referidos em seção própria ao nal da tese.
62
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
atual quadro de oligopólios. Para a remissão à história dos grupos de
ensino, foram consultadas (g) fontes bibliográcas22 e (h) materiais, sites
e memoriais produzidos pelos respectivos grupos de ensino. Além dis-
so, (i) realizamos uma busca intensiva em dois grandes jornais de ampla
circulação nacional, a Folha de S.Paulo e o Valor Econômico. Os artigos
encontrados foram, então, organizados de maneira cronológica, o que
nos permitiu extrair informações e conferir seus dados com relação à
literatura acadêmica e aos dados sistematizados no mapeamento refe-
ridos anteriormente (Apêndice C).
As informações sobre as organizações representativas do Ensino
Superior privado foram coletadas das IES em seus respectivos sites,
além de matérias da imprensa. Essa fase envolveu a coleta de informa-
ções sistematizadas e comparadas com os novos dados que produzi-
mos para cada entidade representativa23. As informações, organizadas
então em planilhas, foram comparadas com os dados constantes no
Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas da Receita Federal, com objeti-
vo de sinalizar os dados discrepantes, tais como entidades duplicadas.
Muitas dessas entidades têm vida curta, pois referem-se às disputas pe-
remptórias entre frações empresariais de ensino. Outras dessas entida-
des são fundidas ou extintas em favor de novas organizações com maior
capilaridade e poder organizativo. Dessa forma, consideramos que esse
mapeamento não deve ser considerado como um dado denitivo.
22 Foram encontrados 52 trabalhos acadêmicos no balanço de literatura, conjunto
composto por teses e dissertações defendidos em programas de pós-graduação na-
cionais; artigos publicados em revistas acadêmicas e trabalhos publicados em anais
das Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Edu-
cação (ANPEd). A discussão do balanço da literatura ocorrerá na próxima fase da pes-
quisa. Agradecemos ao colega Arestides Joaquim Macamo pelo auxílio na realização
da busca nas bases de dados, relatório e separação do material para a análise desta
pesquisa de doutorado.
23 As maiores diculdades nessa etapa estão relacionadas a ausência de informações
e transparência com relação às entidades, algumas das quais tiveram maior atividade
em períodos nos quais a internet não era ainda um meio de comunicação tão difundi-
do e devido ao fato de que algumas entidades se transmutaram, foram fundidas, fra-
cionadas ou deixaram de existir sem que exista um registro objetivo desses processos.
63
Introdução
A organização do texto
A oligopolização do Ensino Superior e sua vultosa expansão, que
abocanham a maioria dos jovens que se forma nesse nível da edu-
cação nacional, têm longas raízes históricas e políticas. Na grande
imprensa proprietária nacional, impera a armação de que o setor
privado de ensino estava em grave crise durante os anos 1990, ani-
mando as propagandas empresariais no sentido de que sem políticas
que favorecessem as instituições de ensino e suas mantenedoras, elas
fechariam as portas e dezenas de milhares de estudantes cariam sem
acesso aos bancos de faculdades e universidades. Nossa hipótese é a
de que essa crise precisa necessariamente ser reinterpretada diante
dos desdobramentos vistos no agigantamento do setor. Como discu-
timos no primeiro capítulo, “O Ensino Superior privado na passagem
para os anos 2000”, a crise é mais bem compreendida quando perce-
bemos que seus efeitos econômicos e políticos não são os mesmos
para as grandes e as pequenas IES. Estas constituem dois grupos e
atravessam essa década rumo aos anos 2000 sob circunstâncias bas-
tante diferentes.
O que explica essa separação e, até mesmo, oposição entre es-
sas instituições? Em parte, como argumentamos no segundo capítulo,
“Raízes da expansão do Ensino Superior privado”, está uma escolha
preparada e expressa no âmbito do Estado, em sentido amplo, na
qual os grandes grupos foram alçados ao lugar de vanguarda na ex-
pansão de vagas no Ensino Superior. Esse direcionamento tem como
expressão as articulações políticas entre essas instituições e agentes
de governos, e também a construção de extenso aparato represen-
tativo dos interesses dessa fração de capitalistas que se constitui sob
os pilares da mercantilização e da privatização da educação, ou seja,
do ajustamento da educação ao padrão de acumulação capitalista-de-
pendente brasileiro e o seu lugar na divisão internacional do trabalho.
No contexto mais amplo nacional, o que temos é a intensiva articula-
ção entre os empresários de ensino e o regime empresarial-militar ins-
64
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
taurado com o golpe de 1964, que persiste, renova-se e, até mesmo,
se amplia com a Nova República – a partir de 1985.
No capítulo 3, “Desonerações tributárias e nanciamento esta-
tal: a disputa das IES privadas pelo fundo público”, procuramos ar-
gumentar que a própria Constituição federal de 1988 e suas regula-
mentações especícas, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN), positivam esse direcionamento estatal na organiza-
ção e no crescimento das IES privadas e suas mantenedoras. As dis-
putas colocadas naquele momento são reveladoras de uma espécie
de “cozinha da política”: dela emergem regulamentos, leis e decretos
que dão indícios cada dia mais nítidos de que as principais barrei-
ras que impediam os bancos e fundos de investimentos de aboca-
nharem a educação nacional estavam ali em disputa, ainda que de
forma germinal. Alguns sujeitos parecem ter tido a consciência disso e
assumiram a vanguarda nessa direção, entre os quais o então ministro
da Educação, Paulo Renato Souza. Esse movimento procuramos des-
crever preenchendo algumas das inúmeras lacunas na historiograa
dos conitos capitalistas no Ensino Superior. Apesar das diculdades
encontradas com as fontes, o resultado desse debate está sintetizado
no capítulo 4, “Direcionamento do Estado no processo de mercantili-
zação e privatização do Ensino Superior”.
Nos capítulos 5, “Das Joint Ventures às IPOs: estratégias da -
nanceirização do Ensino Superior”, e 6, “Sobre o modo de operação
da nança no Ensino Superior”, discutimos como as fusões e aquisi-
ções foram o principal instrumento de crescimento dos grandes gru-
pos de ensino, formando corporações capitalistas de enormes propor-
ções em termos de matrículas, instituições e mantenedoras. De outro
lado, e indissociavelmente, tornaram-se grandes centros de coloca-
ções de capitais nanceiros disponíveis para a rentabilização. Nessa
parte do trabalho procuramos argumentar como os bancos e fundos
de investimentos alteram a natureza das empresas educacionais, ele-
vando à máxima potência as contradições uma vez existentes em rela-
65
Introdução
ção à privatização e acrescentando novas contradições que certamen-
te marcarão gerações de jovens e adultos e a educação nacional como
um todo, se não obstaculizadas por forças radicalmente sensíveis aos
temas da educação, do conhecimento e da formação cultural nacional
no campo da classe trabalhadora.
67
O ENSINO SUPERIOR PRIVADO NA
PASSAGEM PARA OS ANOS 2000
Essa fragmentação do capital social total em muitos
capitais individuais ou a repulsão mútua entre seus
fragmentos é contraposta por sua atração.
Essa já não é a concentração simples, idêntica à
acumulação, de meios de produção e de comando
sobre o trabalho. É concentração de capitais
já constituídos, supressão [Aufhebung] de sua
independência individual, expropriação de capitalista
por capitalista, conversão de muitos capitais menores
em poucos capitais maiores. [...] Se aqui o capital cresce
nas mãos de um homem até atingir grandes massas, é
porque acolá ele se perde nas mãos de muitos outros
homens. Trata-se da centralização propriamente dita,
que se distingue da acumulação e da concentração
(Karl Marx1).
Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, o momento era de
crescimento vertiginoso para algumas poucas instituições de
Ensino Superior (IES). Esse foi o caso da carioca Estácio de Sá que
aumentou naquele período o número de estudantes matriculados de
23,6 mil para 34 mil. Porém, para a maior parte das IES, lantrópicas e
confessionais de menor porte, o cenário era de austeridade e de com-
pressão dos salários das famílias, resultado de mais de uma década de
políticas de ajustes neoliberais. Naquela virada, se instaurou uma crise
1 Citação extraída da obra O Capital (Marx, 2013, p. 701-702).
1
68
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
no Ensino Superior privado que levaria muitas das instituições educa-
tivas à beira da bancarrota, centenas delas estavam à venda no início
dos anos 2000. Essa massa de instituições constituiu a base material
sobre a qual os grandes grupos educacionais puderam realizar seu
crescimento inorgânico por meio das fusões e aquisições. As raízes
desse complexo processo encontram-se nas políticas econômicas, nas
formas particulares de organização do setor, nos mecanismos de nan-
ciamento que concentraram capitais monetários em busca de valori-
zação nanceira, e também nos elos políticos e nas articulações que
envolveram o alto escalão dos governos naquele período com a fração
capitalista em ascenso.
O sentido da crise no Ensino Superior privado
Em 2001, a Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, institui-
ção confessional mantida pela Ordem das Ursulinas, deixou de pagar
nove meses de salários dos seus professores alegando falta de caixa.
Em situação semelhante, as universidades Gama Filho, Castelo Bran-
co, Veiga de Almeida e Cândido Mendes atrasaram salários e gratica-
ções, além de paralisarem quase completamente a expansão de suas
infraestruturas (Gois, 2002). Em algumas das IES, a inadimplência dos
estudantes com relação às mensalidades chegou a 35% do alunado
(Gois, 2002) e as mantenedoras armavam que a situação inviabilizou
a continuidade das atividades acadêmicas. Os dirigentes dessas ins-
tituições armavam que o quadro era grave, sistêmico e sinalizava o
risco de cancelamento generalizado das matrículas. As situações das
IES mencionadas não foram apenas casos isolados. No início dos anos
2000, vários dirigentes de instituições superiores privadas apelaram
aos grandes jornais para alertar sobre a situação lastimável criada pela
concorrência no setor: “Foram criadas mais de mil instituições priva-
das de Ensino Superior de 1996 a 2004, e as mensalidades caíram em
média 15% nos últimos quatro anos – quem car parado corre o risco
de morrer” (Prado, 2006, p. 1).
69
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
Em larga medida, a expansão das IES privadas no período anterior
havia desfrutado da conjuntura de constrição do orçamento estatal des-
tinado às universidades públicas federais e estaduais. Tal contingencia-
mento de recursos foi particularmente intensivo nos dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso (FHC), especialmente a partir das políticas
de Desvinculação das Receitas da União (DRU) e dos ajustes scais que
direcionavam os recursos orçamentários para o pagamento da dívida
pública e às políticas monetárias de controle da inação. Essas medidas
inviabilizaram a reposição das vagas para docentes (em virtude de apo-
sentadorias, afastamentos e outras vacâncias), bem como a ampliação
de estruturas físicas, de tal modo que as universidades públicas não pu-
deram expandir suas vagas enquanto o número de estudantes forma-
dos no ensino médio crescia.
O aumento da população vivendo nos grandes centros urbanos
foi signicativo nos anos 1990. Naquele contexto, a pressão por vagas
no Ensino Superior tornou-se um dos pontos de tensão social, afetando
principalmente as famílias pertencentes aos estratos médios de renda.
As IES privadas aproveitaram a situação, investindo pesadamente na
ampliação de suas estruturas físicas e nas estratégias de mercado para a
aumentar seu alunado, ambas as ações exigiram forte apelo ao crédito
bancário. No nal dos anos 1990, a taxa de procura por vagas no Ensino
Superior privado chegou a 25% dos vestibulandos, mas no início dos
anos 2000 caiu para menos de 2%2.
Durante aquele período de expansão da procura por vagas, as
IES aumentaram consideravelmente suas estruturas físicas e operacio-
2 Poder-se-ia argumentar que o número de candidatos por vaga no Ensino Superior pri-
vado é muito inferior à 1:1, porém, é necessário ter clareza de que as IES privadas man-
têm números de vagas ociais muito superior à demanda por razões técnicas: os diri-
gentes solicitam ao Ministério da Educação a autorização para um número de vagas
consideravelmente mais alto do que as que serão vendidas aos estudantes para obte-
rem uma margem de crescimento efetivo antes de terem que solicitar uma nova amplia-
ção, processo que pode ser custoso e demorado. Esse método confere vantagens adi-
cionais aos dirigentes nos atos de fusões e aquisições, sendo o número de vagas auto-
rizadas pelo Estado um dos componentes para a valoração da instituição, por exemplo.
70
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
nais, muitas das quais por meio da contratação de créditos bancários.
Quando a capacidade de solvência das famílias impossibilitou o pa-
gamento das mensalidades em dia, a margem de lucro líquido das
IES despencou. O atraso no dia3 chegou ao patamar de 44% e 27%
ao nal do ciclo de mensalidade. A Hoper Educacional (Prado, 2006),
importante consultora no setor educativo, estimou que a taxa de lucro
média entre as IES chegou a 18%, no melhor período, e caiu para abai-
xo de 7,7% no início dos anos 2000 – num mercado que movimentava
aproximadamente R$ 15 bilhões por ano. Essa situação parecia exigir
profundas alterações nas estratégias das IES em busca de sobrevivên-
cia, sendo as fusões e aquisições a principal delas:
[A tendência] no caso das instituições de Ensino Superior de
médio a grande porte (mais de 5.000 alunos), é que realizem
fusões entre si, na tentativa de reduzir custos, ou [que] sejam
incorporadas por outros grupos. [...] “O momento é de conso-
lidação do mercado, com fusões e aquisições. Isso já aconte-
ceu em outros segmentos, como na indústria têxtil. São seto-
res que cresceram muito, por haver uma demanda reprimida,
e que depois caram saturados” (Prado, 2006, p. 1).
Empresas de consultoria no setor educacional repercutiram em
uníssono previsões como essa. A Hoper Educacional, por exemplo,
considerava que as IES privadas tinham dois caminhos a percorrer nes-
se período: o setor deveria (a) cortar custos, especialmente salários, e
ampliar suas unidades no interior do país – nas regiões nas quais o mer-
cado não estaria ainda saturado – ou (b) viabilizar aporte de fundos de
investimentos estrangeiros interessados em entrar no país ou colocar as
IES à venda para os grandes grupos educacionais capazes de mobilizar
3 Os índices de inadimplência são calculados como atraso no dia e inadimplência. Por
convenção, o primeiro implica na ausência do pagamento de um título de cobrança no
primeiro dia útil subsequente ao vencimento. A inadimplência é o atraso do pagamento
do título após o fechamento de um determinado período de tempo, um mês na maioria
dos casos. Essa divisão responde à administração nanceira dessas instituições: o grau
de atraso no dia indica o nível das vantagens adicionais às mensalidades, às multas e aos
juros – que podem facilmente ultrapassar 10% do total devido; a inadimplência é um in-
dicador de custos de risco da atividade econômica das IES e de custos de cobrança, que
implica em pessoal administrativo, dossiês, pessoal jurídico, processos escriturários etc.
71
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
maior colocação de capital nanceiro. Posições como essa foram muito
frequentes na imprensa onde se armava de maneira categórica:
A maior parte das universidades, faculdades e centros uni-
versitários, entretanto, não tem a sorte de ver capital estran-
geiro entrando para resolver seus problemas. [...] em três
anos 400 instituições de Ensino Superior de pequeno porte
(as que têm menos de 500 alunos e representam a maior
parte do mercado) fecharão as portas por causa do excesso
de oferta de vagas para uma demanda não tão aquecida.
Atualmente, a procura por cursos superiores cresce 2% ao
ano – até o nal dos anos 90, de acordo com consultores, a
taxa chegava a 25% (Prado, 2006, p. 1, grifo nosso).
Porém, a crise alardeada não nos parece se coadunar com as mos-
tras de crescimento signicativo do número de estudantes inscritos nos
processos seletivos das IES privadas entre 1990 e 2005, período no qual
a crise do ensino privado ganhava cada vez mais espaço no discurso
dos consultores e nos grandes jornais de circulação nacional. O gráco
a seguir (Figura 8) é uma amostra da evolução desses números nas IES
privadas, comprovando que o crescimento da procura por vagas au-
mentou signicativamente (169%) num período de 15 anos.
Figura 8 – Número de candidatos inscritos nos processos seletivos das
IES privadas – Brasil, 1990-2005
Fonte: Elaboração própria, com dados do Ministério da Educação (Brasil, 1990, 1992,
1995, 1998, 2002, 2003, 2005).
72
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
Há apenas dois períodos de baixa na procura por vagas nas IES pri-
vadas na década de 1990. O primeiro em 1991 e 1992 e o segundo entre
1995 e 1998. Esses períodos expressam taxas menores de estudantes
efetivamente matriculados, consoantes às crises econômicas atravessa-
das pelo país na passagem dos anos 1980 para 1990 e na segunda me-
tade dos anos 1990. Mas, apesar desses períodos curtos de baixas no
alunado, o total de matrículas em 1998 ainda era muito alto se compara-
do ao dos anos de 1990 e 1992. Ou seja, de forma geral, a tendência de
crescimento do número total de estudantes se conrma e os períodos
muito curtos de baixa não justicam os discursos empresariais.
Isso não quer dizer que algum movimento mais profundo na base
de relações entre as famílias e as instituições de ensino não ocorresse. Es-
tudos sobre a renda do trabalho no Brasil (Amorim, 2003; Antunes, 2006;
Baltar, 1996; Pochmann, 2012, 2015) ajudam a entender o modo particu-
larmente sensível com o qual a maioria das famílias responde à degrada-
ção das condições econômicas gerais. Como a maior parte da população
brasileira subsiste em condições de renda bastante degradadas em re-
lação à reprodução normal da força de trabalho, inexiste espaço para a
poupança. A regra, aliás, é a do subconsumo. Assim, tão logo a situação
geral da economia brasileira encontra-se novamente em crise, as famílias
respondem imediatamente cessando o consumo, até mesmo dos bens e
serviços considerados mais importantes (saúde, educação, moradia) para
garantir a compra dos insumos absolutamente indispensáveis: comida.
Ainda assim, e apesar dos efeitos drásticos das crises que atingi-
ram a América Latina nos anos 1990, em especial, a crise do México em
1995 e a crise asiática na passagem para os anos 2000, as taxas efeti-
vas de crescimento do alunado matriculado nas IES privadas brasileiras
apresentou índices elevados, em média de 8,32% ao ano (Figura 9).
Nos anos 1990, há apenas dois registros negativos, -0,22% em
1991 e -5,54% em 1992, mas essas taxas foram compensadas: entre
1990 e 2000, as IES privadas acresceram 6,38% ao ano (a.a.). Portanto,
apesar do repetido discurso sobre a crise do Ensino Superior privado no
73
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
Brasil daqueles anos, vimos que as matrículas seguiram com taxas anuais
de crescimento bastante elevadas a partir de 1993: entre 1994 e 1997,
com taxa média anual de 5,6% e, entre 1998 e 2005, de 13,5%. De mo-
do geral, as crises de que acumularam na América Latina tiveram efeitos
menos rigorosos nos grandes números das IES. Poder-se-ia argumentar
que tal crise resultaria dos índices negativos registrados nos anos 1980,
a chamada “década perdida”, marcada pela crise das dívidas dos países
latino-americanos e por outros fatores estruturais internos que deter-
minaram a situação econômica e política naquele período. Nesse caso,
dados de crescimento negativos acumulados nos anos 1980 poderiam
estar na causa da crise da qual queixavam-se os representantes das IES
privadas no nal da década seguinte. Assim, a análise dos dados de
crescimento das matrículas nos anos 1990 talvez não expressasse ade-
quadamente a situação do setor educacional.
Figura 9 – Taxa de crescimento anual de matrículas das IES privadas
– Brasil, 1990-2005
Fonte: Elaboração própria, com microdados do Censo da Educação Superior; Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) – 1990-2005 e
com dados tabulados por Minto (2006), INEP (1999) e Sampaio (1991).
Contra esse argumento, a análise longitudinal dessas taxas desde
os anos 1960 (Figura 10) mostra uma situação bastante diversa. Apesar
de os índices serem mais baixos do que a média histórica do setor, entre
74
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
1980 e 1990 as IES privadas aumentaram o número de estudantes em
média 1,66% a.a., os baixos números do início daquele período, portan-
to, foram mais do que compensados pela média.
Figura 10 – Taxa de crescimento das matrículas em IES privadas
– Brasil, 1960-2018
Fonte: Elaboração própria, com microdados do Censo da Educação Superior; Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) – 2000-2018 e
com dados tabulados por Minto (2006), INEP (1999) e Sampaio (1991).
Há dois períodos de maior expansão das matrículas privadas no
Brasil. O primeiro corresponde ao período da ditadura empresarial-mili-
tar (1964-1988); essa fase chegou ao seu ponto mais elevado a partir das
reformas educacionais realizadas pelo Estado no contexto dos acordos
MEC-USAID e da Reforma Universitária de 1968. O segundo período
tem início próximo a 1995, com o governo expressamente neoliberal
de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB); chegou ao seu ponto mais agudo em 2011 – com o im-
pulso das políticas que tiveram por efeito a indução da expansão privada
pelo governo Dilma Rousseff (2011-2016), do Partido dos Trabalhadores
(PT). Os dados absolutos de evolução no número de matrículas das IES
privadas evidenciam a amplitude das duas fases de maior expansão do
alunado dessas instituições. A Figura 11, a seguir, apresenta o resultado
das taxas de crescimento em números absolutos desde 1960.
75
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
Figura 11 – Número absoluto de matrículas nas IES privadas
– Brasil, 1960-2018 (em milhões de alunos)
Fonte: Elaboração própria, com dados do Censo da Educação Superior; Instituto Na-
cional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) – 2000-2018 (Bra-
sil, 2000o, 2001n, 2002d, 2003f, 2004f, 2005d, 2006f, 2007e, 2008d, 2009d, 2010h,
2011e, 2012f, 2013c, 2014f, 2015c, 2016g, 2017f, 2018g) e informações complemen-
tares obtidas em INEP (1999), Sampaio (1991) e Minto (2006).
As maiores taxas de crescimento são registradas a partir do nal
dos anos 1960 e se mantêm estáveis de 1980 a 1995, quando os países
latino-americanos atravessam um turbulento ciclo econômico e a crise
das dívidas públicas. A partir de meados da década de 1990, no go-
verno FHC, as taxas de crescimento são aceleradas, mantendo-se, com
igual ou maior vigor, nos períodos posteriores. Dessa forma, a perspec-
tiva neoliberal que marcou aquele governo deu o sentido dessa política
nos governos subsequentes.
Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) – de Lula da Silva
(2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) –, cuja retórica política desde
sua fundação denia-se por um discurso antiprivatista na educação, não
obstaculizou a concentração das matrículas nas IES privadas e, ao con-
trário, em seus governos o setor privado se expandiu com enorme for-
ça. Ainda em meados de 2007, após quatro anos do primeiro mandato
do ex-presidente Lula da Silva, o 3º Congresso Nacional do Partido dos
Trabalhadores denunciava o caráter privatizante das políticas no Ensino
76
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
Superior: “O Ensino Superior foi largamente privatizado – comprome-
tendo sua qualidade e se distanciando da tarefa principal do Estado
brasileiro, de oferecer educação pública, gratuita e de qualidade para
todos” (Congresso Nacional do PT, 2007, p. 30). Nos documentos do
congresso, todavia, não consta nenhuma análise crítica sobre o fato de
que, durante o primeiro mandato (2003-2006), o número de alunos das
privadas tenha crescido aproximadamente 43% em relação ao último
ano do governo FHC. Nos dez anos seguintes, as inscrições do alunado
nas privadas cresceram cerca de 75%. Essa lógica não encontrou termo
nem sequer durante o processo político de 2014-2016, que resultou
no impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 31 de agosto de
2016. Após o golpe, o governo instaurado pelo então vice-presidente,
Michel Temer (2016-2018), expressou a sustentação da trajetória de
crescimento dos governos precedentes.
Portanto, parece-nos possível caracterizar um sentido de unida-
de nos governos pós-1988 no que diz respeito ao impulsionamento
da expansão privada na educação – ainda que a retórica e alguns ele-
mentos de mediações em termos globais possam ter diferenças. Divi-
dimos então os períodos em duas fases, sendo a primeira aquela do
período da ditadura empresarial-militar (décadas de 1960-1970) e, a
segunda, o período neoliberal (pós-1995). Em ambos, ocorreu inten-
so investimento na aquisição de edicações, terrenos, equipamentos,
sistemas e força de trabalho para sustentar tais expansões. Números
sobre a autorização de IES dão suporte ao movimento que buscamos
descrever (Figura 12).
O número de instituições privadas cresceu acentuadamente de
1999 até 2006 e, então, manteve-se constante, em nossa hipótese,
devido basicamente a dois fatores principais. O primeiro foi o elevado
número de fusões e aquisições, ou seja, na medida em que eram cria-
das novas IES, outras eram fundidas ou adquiridas e absorvidas pelos
grandes grupos educacionais. O outro fator foi o crescimento do Ensino
a Distância (EaD) que, a partir dos anos 2000, explode em termos do
77
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
número de matrículas, como discutiremos adiante. Assim, as IES pude-
ram ampliar o território comercial em que atuavam abrindo novos polos
de ensino em âmbitos regionais, evitando a necessidade de abertura de
novas faculdades, centros de ensino ou universidades4.
Figura 12 – Número absoluto de IES privadas – Brasil, 1999-2018
Fonte: Elaboração própria, com dados da Sinopse do Censo do Ensino Superior rea-
lizado pelo INEP (Brasil, 1999k, 1999k, 2000q, 2001o, 2002e, 2003g, 2004g, 2005e,
2006g, 2007f, 2008e, 2009e, 2010i, 2011h, 2012g, 2013d, 2014g, 2015d, 2016h,
2017a, 2018g).
Em termos de tipos de instituição, constata-se que, no período
de 1999 até 2006, o número de IES aumentou 124%, sendo composto
principalmente por faculdades. O gráco a seguir (Figura 13) expõe a
distribuição.
4 Por razões como essas, o quantitativo de IES não tem maior signicado estatístico
no que diz respeito ao debate sobre a ampliação do setor privado de ensino no Bra-
sil. A compreensão da trajetória do setor exige um maior número de mediações para
sua correta compreensão, tal como as determinações conjunturais nas políticas públi-
cas e a inuência legal ou normativas no âmbito do Ministério da Educação (MEC) – ou
até mesmo de fundações e autarquias, federais ou estaduais, que formam um univer-
so infralegal a ser examinado. Assim, dados sobre quantitativo de IES, seja nas análi-
ses contextuais ou nas comparações internacionais, devem sempre ser analisados com
cautela pelos pesquisadores.
78
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
Figura 13 – Distribuição das IES privadas por tipo de instituição
– Brasil, 1999-2018
Fonte: Elaboração própria, com dados da Sinopse do Censo do Ensino Superior rea-
lizado pelo INEP (Brasil, 1999k, 1999k, 2000q, 2001o, 2002e, 2003g, 2004g, 2005e,
2006g, 2007f, 2008e, 2009e, 2010i, 2011h, 2012g, 2013d, 2014g, 2015d, 2016h,
2017a, 2018g).
Existiam 783 faculdades privadas em 1999, número que saltou pa-
ra 1.863 em 2009 e para 1929 em 2018 – um crescimento próximo de
146%. Os centros universitários passaram de 39 (1999) para 217 (2019),
crescimento de 456%; e as universidades, de 83 (1999) para 92 (2019),
elevação de apenas 11%. Assim, na contramão do discurso da crise di-
fundida por alguns dirigentes das IES, Constantino e Gois (2003, p. 1)
chamaram atenção para o fato de que, entre 2001 e 2002,
[...] a média foi de quase um estabelecimento particular
novo a cada dia. [...] as instituições privadas aumentaram
45% – 544 foram autorizadas a funcionar, ou seja, um esta-
belecimento a cada 1,2 dia. Entre 1998 e 2001, essa média
era de uma instituição privada a cada 2,5 dias. De 1995 a
1998, cava em uma a cada 13,7 dias.
A série de dados que apresentamos choca-se com o cenário de
crise anteriormente apontado. Como seria possível um crescimento
79
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
acelerado de matrículas, com investimentos pesados em termos de
infraestrutura por parte das mantenedoras e, ao mesmo tempo, uma
crise severa e distribuída no setor? Esse aparente contrassenso entre
os dados e a situação de muitas IES com diculdades nanceiras é, em
nossa hipótese, o resultado histórico da existência de uma forma de
dualidade no Ensino Superior privado e que se condensa no início dos
anos 2000 dando origem às novas contradições com as quais hoje nos
deparamos. Enquanto algumas IES, as maiores naquele período, co-
mo a Universidade Bandeirantes (Uniban), Estácio de Sá (UNESA), Uni-
versidade Paulista (UNIP) e Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU),
cresceram de modo arrebatador, entre o nal dos anos 1990 e o início
dos anos 2000, outras IES de menor porte – ou seja, a maioria das
IES no universo das privadas – deparavam-se com inúmeras e graves
adversidades, tais como o aumento da inadimplência dos estudantes,
o custo do crédito bancário, o aumento dos preços dos imóveis e ter-
renos em decorrência da especulação imobiliária e o adensamento da
ocupação urbana nas grandes cidades, o endividamento crescente pa-
ra nanciar suas expansões de matrículas e outras mazelas. Cabe-nos,
então, analisar detidamente essa tese da dualidade.
Dualidade do Ensino Superior particular
Ao nal de 2001, Gois (2001, grifo nosso) chamava atenção para
a reviravolta nos dados do Censo da Educação Superior, no qual “três
instituições particulares que nem sequer apareciam no ranking das 20
maiores do país em 1991” apresentaram-se como as maiores: “são ver-
dadeiros conglomerados de ensino surgidos em menos de uma déca-
da”. Segundo Gois (2001, p. 1),
No início da década de 90, quase ninguém ouvia falar da
Unip (Universidade Paulista), da Universidade Estácio de Sá
e da Ulbra (Universidade Luterana Brasileira). Segundo o
censo de 2000, elas agora ocupam o primeiro, o terceiro
e o quarto lugar, respectivamente, em número de alunos
80
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
de graduação do país. A USP (Universidade de São Paulo)
cou em segundo lugar.
As grandes IES puderam concentrar investimentos nanceiros, cré-
dito bancário e recorrer às praças nanceiras oferecendo plataformas
de valorização nanceira e garantias patrimoniais que as IES de menor
porte, muitas das quais confessionais ou comunitárias, não poderiam.
Essa dualidade no conjunto das privadas naquele período constituiu a
base sob a qual o processo de fusões e aquisições dos anos 2000-2010
se organizou. Assim, as grandes IES puderam concentrar volumes cres-
centes de capital monetário destinado à ampliação de suas estruturas
físicas instaladas, à expansão regional de suas instituições de ensino, à
diversicação das modalidades educacionais, ao nível de representação
comercial e jurídico em âmbitos municipais, estaduais ou federal, além
de se colocarem de modo privilegiado nas fases de retração dos ciclos
da economia brasileira.
As IES de menor porte, muitas delas pesadamente oneradas pela
remuneração da renda da terra, não dispondo dos terrenos e edifícios
nos quais mantinham suas operações e, portanto, sem maiores condi-
ções de oferecer garantias ao recorrer ao sistema de crédito5, atraves-
saram os ciclos de crises com estratégias de mercado completamente
distintas dos grandes grupos educacionais. Assim, a cada adversidade
tornaram-se mais suscetíveis à colocação para a venda de unidades ou
instituições inteiras para os grandes grupos, aproveitando-se unicamen-
te das vantagens de que dispunham: (a) a autorização formal de fun-
cionamento pelo Estado – que determinava o número de vagas e as
áreas de ensino nas quais poderiam formalmente operar no comércio
de matrículas e certicação, (b) um quadro docente disponível e (c) um
alunado constituído.
Dessa forma, as crises econômicas foram o fator determinante pa-
ra, progressivamente, favorecer o desenvolvimento da expansão inor-
5 Isso não signica necessariamente a escassez do crédito, mas certamente o estabe-
lecimento de taxas de juros muito mais altas contra as IES de pequeno porte.
81
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
gânica das IES de grande porte, isto é, favorecer o crescimento e a con-
centração de instituições por meio de aquisições, fusões, incorporações
ou combinações de negócios.
Esconder a forma desigual com a qual as crises incidiram sobre o
Ensino Superior naquele período signica incorrer no risco de obliterar
quase por inteiro as condições concretas que possibilitaram a formação
dos oligopólios e contribuir para vivicar mitos, entre os quais aqueles
que procuram enobrecer a atividade comercial de certos sujeitos no
Ensino Superior privado brasileiro. Por essa razão, consideramos impor-
tante constituir uma crítica radical contra o discurso empresarial difun-
dido naquele período e até os dias atuais, no qual a face empresarial
alimenta a misticação de um processo violento de lutas concorrenciais.
Escondem-se sob o manto de noções vagas como oportunidade
ou empreendedorismo a ação direta, consciente e planejada de articula-
ção dos interesses privados no âmbito do Estado e o proveito do poder
político no franco exercício da privatização contra o direito à educação
de toda a juventude. Evidentemente as crises não interessam nem aos
trabalhadores nem aos capitalistas, mas somente estes últimos estão
em condições materiais de tirar algumas vantagens destas. E na medida
em que favoreceram mecanismos de concentração e centralização de
capitais – principalmente, pela bancarrota das menores instituições e
suas aquisições pelas grandes – as crises atravessadas pelo setor dife-
renciou as frações internas a esse grupo de capitalistas, aumentou as
tensões que lhes eram próprias e possibilitou uma modalidade de solu-
ção que, ainda que provisoriamente, formou o atual danoso cenário pa-
ra os trabalhadores no qual a Educação Superior nacional se encontra.
Sob a luz do atual processo de concentração e centralização de
capitais que encontramos hoje no Ensino Superior no Brasil, é preciso
reinterpretar parte da história das instituições privadas. A grita geral so-
bre a crise do setor de Ensino Superior diz respeito, em larga medida, às
estratégias de mercado dos grandes grupos no âmbito do Estado com
objetivo de efetivar suas demandas particulares e apresentá-las como
82
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
se fossem as de toda a sociedade brasileira. Não se trata, por isso, da
construção de uma narrativa, mas da justicação das disputas econômi-
cas e políticas em torno de uma regulamentação para o Ensino Superior
brasileiro capaz de alinhar os interesses de concentração e centralização
dos grandes capitais. Para isso, era preciso organizar os interesses di-
fusos em torno da mercadorização e comodicação da educação, am-
pliando os limites semânticos e os horizontes de valorização dos capitais
no campo dos direitos sociais.
Corbucci (apud Gois, 2001)6 indicava, na transição para os anos
2000, que os limites de demanda efetiva pelo Ensino Superior priva-
do no Brasil estariam “mais próximos do que se poderia supor”. Ele
observou que a dinâmica das instituições de ensino era difusa, isto é,
atestava a existência de um número muito grande de matrículas distri-
buídas num universo relativamente grande de instituições educativas.
Em razão disso, “o simples aumento da oferta de vagas nesse setor”
não ajudaria a resolver “o problema do acesso ao Ensino Superior” (p.
1), propondo como solução efetiva o estabelecimento de uma política
pública consistente e expressiva de ampliação dos programas de nan-
ciamento estudantil.
O discurso técnico do principal instituto de assessoramento econô-
mico vinculado à Presidência da República expressou à época uma das
pautas centrais das IES privadas: o nanciamento estatal das matrículas
e mensalidades. E assim era cimentado o caminho para a complexica-
ção da agenda do setor que incluía demandas como a regulamentação
e a autorização de cursos na modalidade de ensino a distância, ou seja,
uma maior diversicação institucional – exigência que se contrapunha
frontalmente ao modelo universitário presente na Constituição federal
(CF) (Brasil, 1988a).
Tal complexicação pode ser mais bem compreendida em relação
aquilo que ela se justapôs. Vale lembrar que o modelo de universidade
6 Paulo Roberto Cobucci é técnico de planejamento e pesquisa da Diretoria de Polí-
ticas e Estudos Setoriais (Disoc) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
83
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
consolidado na CF de 1988 baseou-se em dois elementos-chave7. O pri-
meiro deles assegurava às universidades a autonomia administrativa, di-
dática e de gestão, patrimonial e nanceira. A autonomia formal buscava
prevenir, mesmo que parcialmente, a recorrência de episódios recentes
e devastadores da história brasileira8. A violência sistemática e organi-
zada do regime nas universidades estabeleceu forte controle sobre a
instituição, implantando dispositivos e entidades cujo principal objetivo
era vigiar os trabalhadores e estudantes, além de deliberar a censura,
instituir suas entidades representativas e perseguir, expulsar, torturar e
assassinar professores e estudantes. O segundo elemento foi o princípio
da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, que procurava
delimitar um modelo institucional para a universidade no Brasil.
Assim, a forma institucional das universidades brasileiras resul-
ta de um complexo histórico que é atravessado desde seus primeiros
momentos pelo lugar que o Brasil ocupa no mercado mundial, quando
sua integração tem as marcas do colonialismo, como foi muito bem de-
monstrado por Cunha (1988, 2007a, 2007b). A despeito do contrapon-
to do movimento estudantil brasileiro, de forte inspiração na Revolta de
Córdoba, na Argentina, de 1918; da formação de uma geração de inte-
lectuais de grande porte, como Florestan Fernandes, Ruy Mauro Mari-
ni, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Álvaro Vieira Pinto, entre outros, que
punham na ordem do dia o debate sobre a questão universitária; de
iniciativas de reformas importantes, tal como o projeto da Universidade
7 Como se lê no art. 207, “As universidades gozam de autonomia didático-cientíca,
administrativa e de gestão nanceira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de in-
dissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (Brasil, 1988a).
8 Entre os diversos episódios, relembramos o Massacre de Manguinhos, de abril de
1970, quando perseguiram professores e pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz
(hoje, Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz); as sucessivas invasões militares sofridas pela
UnB, como a de 29 de agosto de 1968, bem como por outras instituições universitá-
rias; além da nomeação de interventores, da cassação e da prisão de professores, do
sequestro ou do assassinato de trabalhadores e estudantes dessas instituições ocor-
ridas durante o regime empresarial-militar. Um quadro detalhado, ainda que parcial
desse período, pode ser consultado no Relatório da Comissão Nacional da Verdade
(CNV) (Brasil, 2014h), bem como nas comissões da verdade criadas nas seções locais
das universidades públicas federais e estaduais por todo o país.
84
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
de Brasília (UnB), de 1962, dirigido principalmente por Darcy Ribeiro e
Anísio Teixeira, a universidade brasileira permaneceu caracterizada pe-
las contradições decorrentes de seu nascimento tardio e “sua estrutura
interna presa às faculdades isoladas do século XIX” (Cunha, 2007b, p.
13), além das ofensivas repressoras dos regimes políticos9.
As sucessivas reformas, determinadas pelos interesses particularis-
tas das frações das classes dominantes em associação com os capitais
internacionais (preponderantemente os capitais americanos que exer-
ceram franca inuência no modelo de universidade e na estrutura da
ciência e tecnologia brasileiras), moldaram a instituição em conformi-
dade com as necessidades conjunturais, de tal modo que é agrante
a fragmentação formal encarnada pela universidade brasileira. Assim,
tal indissociabilidade (entre ensino, pesquisa e extensão) terminou por
gurar-se como o principal marcador na diferenciação entre as universi-
dades e as faculdades. Estas últimas foram dispensadas da obrigatorie-
dade da pesquisa e da extensão e vocacionadas para o ensino.
Ainda assim, a precária denição constitucional do modelo de uni-
versidade imediatamente levantou contra si todo o fervor dos dirigen-
tes de IES privadas. Interessava-lhes que a autonomia administrativa,
principalmente para a denição dos cursos, números de vagas ofertadas
e participação regional no ensino, não fosse exclusiva das universida-
des. A vinculação entre ensino, pesquisa e extensão custava caro às IES
particulares porque exigia a instalação de laboratórios, núcleos de pes-
quisa e inserção nas comunidades e se contrapunha à lógica da eciên-
cia máxima do resultado econômico que lhes é própria. Não por acaso,
a imensa maioria das IES são faculdades, dedicadas exclusivamente às
diferentes modalidades de comercialização de ensino e sujeitas à autori-
9 O Estatuto de 1931 não resolveu o problema da criação de universidades por agre-
gação de faculdades e institutos pré-existentes, problema bastante discutido nos anos
de 1920. A primeira instituição integralmente criada após essa norma foi a Universida-
de do Distrito Federal (UDF), por Anísio Teixeira, em 1935, encerrada em 1938, devi-
do a disputas entre interesses públicos e privados, marcadamente católicos, pelo do-
mínio da Educação Superior no país (Evangelista, 2002).
85
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
zação do MEC para a concessão de vagas, criação de campi, ampliação
das unidades e assim por diante.
As posições do empresário brasileiro João Carlos Di Genio pare-
cem corroborar essa tese. Em entrevista para a Folha de S.Paulo (2001a),
ainda no período eleitoral de 2002, no qual o ex-presidente Lula foi elei-
to no segundo turno, o sócio-fundador do curso e colégio Objetivo e da
UNIP armou que o número de brasileiros que considerava como aptos
a comprar as matrículas no Ensino Superior estava chegando ao limite.
Como o Plano Nacional de Educação (PNE)10, de 2001, havia determina-
do o aumento da taxa líquida de matrículas no Ensino Superior, a única
alternativa seria que os governos investissem tanto quanto possível nas
IES particulares, as instituições “mais dinâmicas” entre as privadas. O
grupo educacional controlado por Di Genio reunia à época 400 mil es-
tudantes, distribuídos entre suas instituições de Educação Básica, cursos
preparatórios e Ensino Superior. Em 2018, entre as empresas de Di Ge-
nio, a UNIP possuía, sozinha, 530 mil estudantes, sendo o terceiro maior
grupo de Ensino Superior no Brasil e disputando o segundo lugar com
a Estácio de Sá, que contava com 546 mil estudantes (Koike, 2018). Nas
palavras do empresário:
[...] a inadimplência, hoje, já passa dos 25% [...] o número
de alunos que podem pagar uma escola particular no Bra-
sil é, na melhor das hipóteses, 1,8 milhão. Não vejo como
esse número possa crescer. Em 2010, haverá sete milhões
de alunos na faixa de 18 a 24 anos aptos para o Ensino
Superior, mais dois milhões fora dessa faixa etária. Dos três
milhões existentes hoje, teremos nove milhões. Mas só 1,8
milhão podem pagar escola. Como foi cortado o aumento
de vagas na escola pública, como é que esses alunos vão
fazer? (Caversan, 2002, p. 1).
Assim, a situação nanceira das pequenas IES serviu como pretex-
to para que as grandes, que se beneciavam e cresciam na virada da
década de 2000, investissem na conformação de uma agenda comum
10 Instituído pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001 (Brasil, 201l).
86
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
para o setor que atendia seus interesses particulares. O nanciamento
estudantil a ser subsidiado e securitizado pelo Estado, baseado parcial-
mente no modelo americano, passou à pauta central da agenda. Como
propostas para o “impasse” da Educação Superior, Di Genio propôs,
entre outras medidas, (a) a regulamentação dos cursos sequenciais de
até dois anos de duração que, em sua opinião, “poderia absorver o ex-
cedente que virá da escola pública”. Além disso, (b) a regulamentação
do ensino a distância: em 2002, a legislação permitia que até 20% da
carga horária dos currículos fosse realizada a distância, na visão do em-
presário “talvez se possa ir até 40%” sem prejuízos11. Em terceiro lugar,
propunha (c) que fossem criadas barreiras para desestimular a abertura
de novos centros universitários, pois “ninguém mais quis abrir universi-
dade [...], não precisa fazer pesquisa e nem precisa ter um terço dos pro-
fessores em tempo integral”. Por m, Di Genio defendeu enfaticamente
(d) o nanciamento público para as IES particulares:
Nenhum candidato está discutindo a educação. A questão
do nanciamento, por exemplo. O aumento de vagas na
rede universitária foi vetado, não tem jeito. E os alunos que
sairão das escolas públicas e não tiverem dinheiro, o que
acontecerá com eles? Vai ter que haver nanciamento (Ca-
versan, 2002, p. 1).
Di Genio é um dos personagens mais representativos do Ensino
Superior privado no Brasil, sendo emblemática sua participação pessoal
na política nacional de educação. Suas posições explicitam o modo co-
mo uma parcela do empresariado, representante dos maiores capitais
de ensino, buscou construir um discurso que revestia seus interesses
particulares e os apresentava como se fossem interesses de todo o setor
em crise e como se fossem os interesses gerais da sociedade brasileira.
Agregue-se que se colocava como defensor do direito à educação das
parcelas mais pobres da juventude oriunda das escolas públicas. Dessa
11 O governo Temer, no dia 28 de dezembro de 2018, deixou de presente ao futuro go-
verno a Portaria no 1.428 (Brasil, 2018) que permite às IES oferecerem até 40% da carga
horária dos cursos de graduação presenciais na modalidade de EaD (Brasil, 2018h).
87
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
forma, instrumentalizava os anseios populares ao mesmo tempo em que
promovia todas as modalidades de óbices às instituições públicas e suas
expansões. Portanto, como se a privatização da educação e a oligopo-
lização do Ensino Superior não signicassem um duro golpe contra a
socialização do conhecimento para a classe trabalhadora. Assim, capi-
tais como a UNIP, a Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban), o
Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e o
Centro Universitário da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) desfruta-
ram cada vez mais da conjuntura de crise do Ensino Superior.
Entrelaçamentos da relação política das IES privadas
Di Genio, da UNIP, não escondeu as amizades com políticos in-
uentes. Foi amigo íntimo de Ulysses Guimarães12 desde o período
da Constituinte (1987-1988)13, “padrinho de casamento de duas lhas
do deputado Luís Eduardo Magalhães” e mantenedor de fortes víncu-
los com o ex-senador Antônio Carlos Magalhães14 (Folha de S.Paulo,
12 Ulysses Silveira Guimarães (1916-1992) foi um advogado e político brasileiro. Depu-
tado estadual em São Paulo (1974-1951), deputado federal por São Paulo por 11 man-
datos (1951-1992), presidente da Câmara dos Deputados (1985-1989) e ministro do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil (1961-1962), durante o man-
dato do ex-presidente João Goulart. Foi candidato à Presidência da República (1973
e 1989). Inicialmente apoiou o golpe empresarial-militar, passando posteriormente à
oposição e liando-se ao MDB/PMDB/MDB. Participou do movimento Diretas Já. Foi
presidente da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988).
13 A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 foi instalada no Congresso Na-
cional, em Brasília (DF), no dia 1º de fevereiro de 1987, para a elaboração do texto
constitucional, após 21 anos sob regime militar. Os trabalhos da Constituinte foram
encerrados em 22 de setembro de 1988, após a votação e aprovação do texto nal da
nova Constituição brasileira.
14 Antônio Carlos Peixoto de Magalhães (1927-2007) foi um quadro político brasilei-
ro, liado ao Democratas (DEM). Foi governador do estado da Bahia em três oportu-
nidades, das quais duas quando nomeado interventor pelo Regime Militar. Foi eleito
duas vezes Senador da República, em 1994 e 2002. Participou da União Democráti-
ca Nacional (UDN), da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), do Partido Democrá-
tico Social (PDS) e do Partido da Frente Liberal (PFL), posteriormente transformado
no Democratas (DEM).
88
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
2001a, p. 1). Tanto Ulysses Guimarães como Luís Eduardo Magalhães15
matricularam lhos nas escolas de Di Genio. Em 2000, a Folha de
S.Paulo publicou uma matéria na qual o empresário Fábio Monteiro
de Barros Filho – um dos acusados de ser responsável pelo superfa-
turamento da obra do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo
(TRT/SP) – acusou Di Genio de nanciar privadamente todas as contas
de Antônio Carlos Magalhães em São Paulo, desde o custeio de um
escritório do político em São Paulo até a disponibilização de um jato
particular para uso exclusivo do ex-senador.
A UNIP também se notabilizou pelos relacionamentos políticos
de seus dirigentes e pela interpenetração de relações no âmbito do
Estado. Em novembro de 2000, por exemplo, surgiram denúncias de
que as campanhas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso te-
riam sido parcialmente nanciadas mediante a prática de Caixa 216. O
principal articulador teria sido o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Perei-
ra, o mais importante dirigente do comitê nanceiro de FHC nas duas
campanhas presidenciais (1994 e 1998) e posteriormente o Ministro
da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). Entre os no-
mes das empresas encontrados nas planilhas com supostas doações
estava a UNIP.
Independente das denúncias, que não tiveram repercussão jurí-
dico-penal, Edson Franco, ex-presidente da Associação Brasileira de
Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), declarou em entrevista
que algumas das maiores universidades particulares haviam sido atraí-
15 Luís Eduardo Maron Magalhães (1955-1998) foi um quadro político brasileiro, lho
do ex-senador Antônio Carlos Magalhães e considerado seu provável sucessor polí-
tico. Foi Deputado Federal durante a ditadura empresarial-militar, de 1979 a 1987, e
Deputado Federal de 1987 até 1998, tendo ocupado a presidência da Câmara dos
Deputados no biênio de 1995 a 1997. Faleceu durante sua campanha para o cargo de
governador do estado da Bahia pelo Partido da Frente Liberal (PFL).
16 A prática de Caixa 2 no Brasil faz referência ao acobertamento de recursos nancei-
ros para ns ilícitos. No contexto eleitoral trata-se mais comumente do acobertamen-
to de doações, poupanças ou pagamentos não declarados aos órgãos competentes
de modo a acobertar doações realizadas sob a expectativa de favorecimentos ilegais
caso o político seja eleito.
89
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
das para a campanha de FHC diretamente por Bresser-Pereira. Franco
informou que foi “procurado pelo ex-ministro Bresser-Pereira” e sabia
que várias IES tinham atendido aos pedidos de doações para a campa-
nha, entre as quais a Anhembi Morumbi e a UNIP (Michael; Gramacho,
2000). A UNIP foi denunciada frequentemente na imprensa brasileira
pelo favorecimento nas decisões do órgão de Estado. Segundo notícia
da Folha de S. Paulo (2001), Di Genio teria se utilizado abundantemen-
te de suas vinculações com políticos para obter benefícios e prejudicar
a concorrência, “chegando a interferir, por exemplo, em decisões re-
centes do CNE”.
O Conselho Nacional de Educação (CNE), composto por duas
câmaras, a de Educação Básica e a de Ensino Superior, detém atribui-
ções normativas e assessora o MEC emitindo pareceres sobre assuntos
de Estado na área educacional. Seus conselheiros são nomeados pelo
Presidente da República. À época, o sócio de Di Genio na UNIP e vice-
-reitor dessa instituição, Yogu Okida, foi indicado por FHC para ocupar
o cargo de conselheiro na Câmara de Ensino Superior, o que contribuiu
para levantar suspeitas sobre a participação direta de Di Genio.
Em 2001, os conitos concorrenciais entre a UNIP e a Uniban
se tornaram públicos, ocupando inclusive páginas de jornais. As duas
universidades disputavam a abertura de um campus fora de sede, por
iniciativa da Uniban, no município de Osasco, região metropolitana
de São Paulo. A sede, localizada nas proximidades da UNIP, foi veta-
da pelo CNE e a Uniban apontou a inuência da UNIP nessa decisão
do conselho (Folha, 2001b). As duas universidades eram as maiores
concorrentes à época na cidade de São Paulo. Entre 1995 e 2001, a
UNIP havia crescido 209% e a Uniban 150%17 (Schwartsman, 2001).
As tensões se elevaram e o reitor da Uniban, Heitor Pinto Filho, foi
às páginas dos jornais paulistas para denunciar Yogu Okida: “O vice-
-reitor de uma universidade que é nossa concorrente e que depende
17 No mesmo período a Universidade de São Paulo (USP) cresceu 15,5% em núme-
ro de matrículas.
90
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
da densidade demográca de Osasco para existir é conselheiro do
CNE” (Folha de S.Paulo, 2000, s.p.)18.
Foram incontáveis polêmicas em torno da participação de Oki-
da como conselheiro do CNE. Em outro episódio, o empresário teria
sido parcialmente responsável pela autorização da abertura de cursos
do Centro de Ensino Superior de Maringá (Cesumar). O Cesumar tinha
como sócios os empresários Cândido Garcia, Oswaldo Pereira Barbosa
e Jorge Brihy. Brihy também era sócio de Di Genio e Okida, à época,
no Grupo Objetivo. Por sua vez, Barbosa era cunhado de Di Genio.
Na Associação Paraibana de Ensino Renovado, de João Pessoa, Brihy e
Barbosa eram sócios de Emiliane Kubo, sobrinha do conselheiro Okida.
Brihy também era sócio na Sociedade de Desenvolvimento Cultural do
Amazonas, que recebeu autorização do CNE para abertura de novos
cursos, e na Associação de Ensino Superior Diplomata, na qual aparecia
como sócio junto com José Augusto Nasr (que, por sua vez, era sócio
do Grupo Objetivo). Os conitos de interesses em torno do CNE eram
patentes e não se limitavam apenas à pessoa de Okida. A UNIP também
foi denunciada como a responsável pela colocação de outra conselheira
vinculada à instituição no CNE: Marília Anacona-Lopez, que foi nomea-
da pelo ex-presidente FHC, na gestão do ministro da Educação, Paulo
Renato Souza. A nomeação, em 2002, ocorreu enquanto Anacona-Lo-
pez era ainda diretora do instituto de Ciências Humanas da UNIP:
A indicação de Marília foi criticada por uma das diretorias
da Ana (Associação Nacional de Faculdades e Institutos
Superiores). Segundo notas publicadas em jornais por essa
diretoria, haveria um “esquema de tráco de inuência no
conselho que beneciaria as universidades e faculdades li-
18 A Uniban abriu uma disputa judicial contra a decisão do CNE e obteve ganho de
causa, sendo a ela concedida a abertura do curso fora de sede. Como resposta, Di
Genio ameaçou a concorrente com a abertura de vinte campi fora de sede na região
metropolitana de São Paulo: “Estamos convencidos de que a Uniban não agiu correta-
mente ao instalar o campus de Osasco sem a devida autorização do CNE, mas o fato
de ela poder regularizá-lo não deixa a UNIP contrariada. Ao contrário, nossa universi-
dade somente terá a ganhar porque poderá abrir mais de 20 campi na região metro-
politana de São Paulo” (Folha de S.Paulo, 2001b, s.p.).
91
O ensino superior privado na passagem para os anos 2000
gadas a Di Gênio”, que estaria “preparando um esquema
para conseguir nomear Marília para a vaga de [Yugo] Oki-
da” (Universia, 2002, p. 1).
As relações do ministro da Educação com as grandes empresas de
Ensino Superior eram notórias. Após seu período como ministro, Paulo
Renato Souza criou uma empresa de consultoria especializada para es-
ses grupos. Durante sua gestão, em 2001, o ex-presidente FHC publi-
cou o Decreto nº 3.860, de 9 de julho de 2001 (Brasil, 2001m), que dis-
punha sobre a organização do Ensino Superior no Brasil e as avaliações
dos cursos de graduação e das instituições de ensino. Esse decreto reti-
rou do CNE o poder de autorizar a abertura ou o fechamento de cursos,
centralizando esse papel no Ministério da Educação, o que deslocou as
disputas intestinas das IES privadas para o Ministério.
A sobressalência das negociatas tornou-se tão escancarada que
abriu ssuras e dissidências, inclusive, nos círculos da direção estatal. A
então conselheira Eunice Durham, intelectual muito próxima de FHC,
criticou abertamente o ministro Paulo Renato Souza, responsabilizando-
-o pessoalmente pela política de abertura desenfreada de cursos e IES
privadas. Os atritos entre a conselheira e o ministro foram marcados pela
disputa entre a UNIP e a Uniban em Osasco (SP), caso no qual Durham
foi relatora no CNE em 2001. Em razão desses conitos, Durham renun-
ciou ao cargo no CNE da mesma forma que seu predecessor, Arthur
Giannotti que, em 1997, havia deixado o cargo denunciando as pres-
sões que levaram ao reconhecimento indevido da Anhembi Morumbi
como universidade, concedendo à instituição a autonomia para a aber-
tura de cursos e vagas.
O objetivo do ministro Paulo Renato Souza era dirigir uma políti-
ca incisiva e ativa de privatização do Ensino Superior, favorecendo os
grandes capitais de ensino. Apenas quatro meses após o Decreto nº
3.830/2001, o MEC editou uma portaria autorizando faculdades, ins-
titutos e escolas superiores a aumentarem em até 50% o número de
vagas sem a necessidade da revisão prévia dos pedidos pelo Ministério.
92
O capital nanceiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018)
A medida cou condicionada unicamente aos resultados desses cursos
nas avaliações de larga escala implementadas no governo FHC; era o
surgimento do Exame Nacional de Cursos, o Provão, como cou conhe-
cido. De acordo com o MEC, o objetivo dessas políticas seria
[...] desburocratizar o processo de ampliação de ofer-
ta para essas instituições, que, ao contrário das grandes
universidades públicas e particulares, ainda não tinham
essa autonomia e dependiam de processos burocráticos
(Suwwan, 2001).
Além da UNIP, a Estácio de Sá, do empresário João Uchôa Ca-
valcanti, também manteve inuência notória sobre o CNE. Lauro Ribas
Zimmer, ex-reitor da Estácio de Sá, foi conselheiro do CNE e interveio
na abertura de cursos da Sociedade de Ensino Superior do Ceará, entre
1998 e 1999, pertencente à Estácio (Dieguez, 2001). Zimmer foi eleito
para o CNE com os votos da Academia Brasileira de Educação (ABE).
Seu lho, Lauro Cavallazzi Zimmer, juntamente com Rafael Bornhausen,
lho do senador catarinense Jorge Bornhausen, conseguiram “junto
ao Ministério da Previdência o título de entidade lantrópica” para a
Universidade Gama Filho, Estácio de Sá e Cesgranrio. Assim, “as três
universidades deixaram de recolher a contribuição patronal de 20% ao
INSS” (Dieguez, 2001, p. 1).
À época, o ministro da Educação manifestava-se com indigna-
ção, dizia que era “o m da picada elas serem consideradas lantrópi-
cas”, mas seu Ministério não interveio no sentido contrário. Dieguez
(2001) identicou que a esteira de relações pessoais entre o CNE e as
IES privadas não se limitou ao conselho. No MEC, o chefe de gabinete
do ministro Paulo Renato Souza, Edson Machado, havia sido membro
do Conselho Federal de Educação (CFE), extinto em 1994 pelo ex-
-presidente Itamar Franco (1992-1994) por suspeitas de corrupção na
negociação de autorizações de funcionamento. Naquela época, Ma-
chado havia sido consultor da Faculdade da Cidade, no Rio de Janei-
ro, enquanto ela pleiteava no CFE sua transformação em universidade.
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