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Monitoramento Territorial
Independente na Amazônia
Reexões sobre estratégias
e resultados
Ficha catalográca elaborada por: Cristiane de Oliveira CRB SP-008061/O
Biblioteca Karl A. Boedecker da Fundação Getulio Vargas - SP
Monitoramento territorial independente na Amazônia : reexões sobre estratégias e resultados /
organização, Daniela Gomes Pinto ... [et al.] - São Paulo : Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação
Getulio Vargas-FGVces, 2021. 152 p.
ISBN: 978-65-88512-22-7
1. Monitoramento ambiental – Amazônia. 2. Impacto ambiental – Avaliação. 3. Conservação da natureza.
4. Biodiversidade – Amazônia. I. Pinto, Daniela Gomes. II. Chaves, Kena Azevedo. III. Pena, Antonia do
Socorro. IV. Leão, Andréa. V. Herrera, José Antônio. VI. Fundação Getulio Vargas.
CDU 504.06
CDD 338.998115
**
Monitoramento Territorial Independente na Amazônia
Reexões sobre estratégias e resultados
Organização:
Daniela Gomes Pinto (Pinto, D. G.)
Kena Azevedo Chaves (Chaves, K. A.)
Antônia Socorro Pena da Gama (Gama, A. S. P.)
Andréa Simone Rente Leão (Leao, A. S. R.)
José Antônio Herrera (Herrera, J. A.)
Editoração:
Samir Luna de Almeida
Revisão:
Samir Luna de Almeida
Kena Azevedo Chaves
Revisão nal:
Katia Shimabukuro
Projeto gráco, diagramação e arte:
José Roosevelt Junior | Mediacts
Foto da capa:
Arthur Boccia, 2019
Contato:
Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas
Av. 9 de Julho, 2029 – 11º andar, CEP 01313-902 – São Paulo, SP - Brasil
(55 11) 3799-2488 | contato@redemti.org | www.redemti.org
Realização da publicação:
Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces)
Apoio:
Charles Stewart Mott Foundation
Expediente
*
*
Sumário
Apresentação
Introdução
Seção I | Monitoramento de grandes empreendimentos e de
pressões e ameaças sobre territórios
1. O monitoramento independente dos impactos das hidrelétricas
no rio Teles Pires: caminhos para o delineamento metodológico
2. Projetos de infraestura no Tapajós: pressões do agronegócio
3. Xingu, o rio que pulsa em nós: monitoramento independente
para registro de impactos da UHE Belo Monte no território e no
modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande do Xingu
4. A voz dos atingidos de Belo Monte: desaos e direitos
5. Monitoramento da condicionante deslocamento compulsório
em territórios afetados pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte,
rio Xingu, Pará
6. Nossa luta pela vida: monitoramento independente da Covid-19
entre povos indígenas no Brasil
Seção II | Monitoramento da sociobiodiversidade e dos bens
comuns
7. Monitoramento de Pesca realizado por comunidades do
Tapajós/Várzea do Amazonas
8. Aprendizagens da Rede Ciência Cidadã para a Amazônia
9. O biomonitoramento feito pelo povo Paiter Suruí
10. Contribuições do Projeto Monitoramento Participativo da
Biodiversidade em Unidades de Conservação na Amazônia
para a sociedade e conservação da biodiversidade com
integração de conhecimentos tradicionais e cientíco
11. Monitoramento territorial participativo no Médio Solimões:
diálogos entre o Instituto Mamirauá e as Comunidades das
Reservas Mamirauá e Amanã
12. Uma energia boa para salvar nosso rio: monitoramento do
potencial de energia solar no Tapajós
\10
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\18
\37
\47
\60
\70
\83
\94
\103
\114
\121
\133
\143
*
*
10 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Apresentação
O livro Monitoramento Territorial Inde-
pendente na Amazônia: reexões sobre
estratégias e resultados nasce de uma ar-
ticulação e esforço iniciais do FGVces,
GEPESA/UFOPA e LEDTAM/UFPA com
objetivo de contribuir para a sistematiza-
ção e visibilização de experiências de mo-
nitoramento territorial independente em
territórios amazônicos.
Com vistas a alcançar esse objetivo, a
Rede de Monitoramento Territorial Inde-
pendente (Rede MTI) propiciou a soma de
muitas mãos. O resultado nal é a parti-
cipação de mais de 70 autores, represen-
tando mais de 20 organizações sociais e
instituições de pesquisa, participantes da
Rede MTI, que se empenharam na escri-
ta de 12 capítulos. Cada capítulo reete
os esforços dos parceiros e sua atuação
nesse tema. O livro traz diversidade de
experiências, contextos e metodologias
empregadas para o monitoramento, bem
como importantes reexões sobre o uso
das informações para efetivação do cui-
dado com os territórios e modos de vida, e
os desaos e potência do monitoramento
territorial independente.
A publicação está organizada em duas se-
ções: Seção I – Monitoramento de grandes
empreendimentos e de pressões e ameaças
sobre territórios, que traz casos e reexões
sobre impactos sofridos com a instalação e
operação de empreendimentos e responsa-
bilização de atores em contextos de repara-
ção de danos; mas também casos de moni-
toramento de pressões, invasões e ameaças
diversas, destacando o monitoramento
como uma ferramenta de proteção dos ter-
ritórios; Seção II – Uso dos recursos naturais
e monitoramento das transformações ecos-
sistêmicas, nesta última parte do livro são
abordados casos em que o monitoramento
é empregado para gestão de recursos co-
munitários, orestais e pesqueiros, além
do registro das dinâmicas ecossistêmicas.
Como instituições de pesquisa e organi-
zadores deste livro, acreditamos que esta
compilação de reexões e relatos de caso,
além de registrar as ações e iniciativas
descritas, também subsidia as discussões
da Rede MTI e convida demais interessa-
dos ao debate sobre a importância do mo-
nitoramento independente para a prote-
ção dos territórios na Amazônia.
*
Daniela Gomes Pinto1
Kena Azevedo Chaves1
Antônia do Socorro Pena da Gama2
Andréa Simone Rente Leão2
José Antônio Herrera3
1 Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces).
2 Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão Socioeconômica da Amazônia da Universidade Federal do Oeste do Pará (GEPESA/UFOPA)
3 Laboratório de Estudos das Dinâmicas Territoriais na Amazônia (LEDTAM/UFPA)
*
11 Rede de Mon itoramento Territorial Independente
* Introdução: Monitorar para
Proteger Territórios
O avanço de grandes empreendimentos
sobre a Amazônia coloca em evidência
disputas entre as diferentes perspectivas
sobre o desenvolvimento dos territórios.
Conceito polissêmico, o desenvolvimento
tem muitas possibilidades de interpreta-
ções e dimensões, que reetem diferentes
cosmologias e visões de mundo. Essas vi-
sões, por vezes antagônicas, estão no cen-
tro de conitos entre Estado, empresas,
povos e grupos sociais atingidos por gran-
des empreendimentos. Interesses econô-
micos e de exploração de recursos se cho-
cam com modos de vida e usos tradicionais
do território – relacionados à existência de
povos e conservação da natureza – e, nes-
sas disputas, desequilíbrios de poder são
evidenciados, e violações de direitos, falta
de informação e invisibilização dos grupos
sociais atingidos é ainda uma constante.
Na trajetória de choques entre grandes
empreendimentos e territórios amazôni-
cos, importantes estratégias vêm sendo
historicamente construídas por povos in-
dígenas, comunidades tradicionais, agri-
cultores familiares, dentre outros grupos
sociais, para defesa de seus territórios.
Entre elas, ferramentas de monitoramen-
to dos territórios têm ganhado força entre
comunidades, e têm sido utilizadas em
diferentes contextos: seja no (i) monitora-
mento de impactos e danos sofridos pela
instalação de empreendimentos; (ii) cuida-
do cotidiano com o território - sobretudo
na gestão de atividades produtivas -; (iii)
defesa dos territórios diante de invasões,
grilagem, desmatamento e garimpo; (iv)
acompanhamento do avanço do agronegó-
cio; ou ainda (v) monitoramento de trans-
formações ecossistêmicas, desencadeadas
por mudanças climáticas, por exemplo.
Entendido como o processo contínuo de
acompanhamento de transformações vi-
vidas nos territórios, o monitoramento ter-
ritorial é um processo poroso e dinâmico,
e, ao tomar como sujeitos da produção da
informação as próprias comunidades, ga-
nha dimensão autônoma e independente.
Com objetivos e metodologias variadas,
construídas pelas comunidades monito-
radoras, muitas vezes em parceria com
instituições de pesquisa ou organizações
da sociedade civil, o monitoramento ter-
ritorial é uma estratégia diversa e exível
que produz informações e registros sobre
Kena Azevedo Chaves1
Daniela Gomes Pinto²
1 Pesquisadora e gestora de projetos no Programa de Desenvolvimento Local - Centro de Estudos em Sustentabilidade da
FGV (FGVces).
2 Coordenadora do Programa de Desenvolvimento Local - Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV (FGVces).
*
12 Rede de Monitoramento Territorial Independente
os modos de vida e sobre as ameaças e
transformações vividas.
Apesar de avanços históricos na conso-
lidação de normativas e políticas para
promoção dos direitos especícos – como
resultado das lutas dos povos indígenas e
comunidades tradicionais nas últimas dé-
cadas –, o Brasil enfrenta nos dias atuais
riscos de fragilização das políticas indige-
nista e ambiental3. Nesse contexto, o mo-
nitoramento territorial independente ga-
nha redobrada importância, colocando-se
como instrumento para visibilização de
conitos e defesa dos territórios, muitas
vezes complementando ou preenchen-
do lacunas da ação do Estado e até, mais
drasticamente, em processo de defesa da
própria ação estatal.
CENTRALIDADE DA NARRATIVA
DOS POVOS
Produzir e registrar conhecimentos são
ações que fortalecem laços comunitários,
e podem apoiar a rearmação de identi-
dades e a organização de estratégias de
resistência diante de pressões e ameaças.
Como principais conhecedores de seu
território, e maiores interessados na ma-
nutenção de seu bem viver4, povos que
fazem monitoramento devem ter papel
central na construção das narrativas e
geração de conhecimento sobre seu terri-
tório e seu modo de vida.
A centralidade da narrativa dos povos
reposiciona papéis e tem potencial trans-
formador da hierarquia imposta entre os
conhecimentos tradicionais5 e o técnico-
-cientíco, de forma a valorizar os conhe-
cimentos construídos no cotidiano dos
povos e transmitidos entre as gerações,
uma abordagem transdisciplinar. Ao bus-
car promover relações de cooperação, abre
espaço para centralidade das experiências
vividas, para o conhecimento gerado pe-
los povos, e coloca o conhecimento técnico
como suporte dos conhecimentos tradi-
cionais. Nessa concepção, as organizações
e instituições parceiras das comunidades
monitoradoras têm papel importante no
apoio institucional, nanceiro e técni-
co, fortalecendo as estratégias e decisões
dos sujeitos centrais do monitoramento.
Os diferentes tipos de monitoramento
de territórios, bem como as informações
resultantes, estão apoiados em disputas
de narrativas, atravessados por interes-
ses econômicos e políticos, e, sendo as-
sim, coloca-se a relevância do adjetivo
“independente” e “autônomo”. Como tal,
queremos tratar do monitoramento con-
duzido pelas próprias comunidades, e que
incorporem as perspectivas e conheci-
mentos tradicionais, inclusive para de-
nição do que deve ser monitorado, como
o monitoramento deve acontecer, e como
interpretar as informações coletadas. As
narrativas, interesses e necessidades das
comunidades, seu conhecimento e inter-
pretação, devem orientar as metodologias
e estratégias, buscando a garantia de in-
dependência e autonomia em relação às
ações de monitoramento conduzidas pelo
Estado ou, no caso de territórios atingidos
por empreendimentos, por empreende-
3 Esses riscos de fragilização podem ser exemplicados em projetos de lei como o PL 490/2007, que pretende estabelecer “mar-
co temporal” para demarcações de terras indígenas; o PL 191/2020, que pretende regular mineração em terras indígenas; o PL
3729/2004, que exibiliza o licenciamento ambiental; ou ainda, o PL 510/2021, que facilita a regularização de terras griladas.
Fontes: <https://www.camara.leg.br/> e <https://www12.senado.leg.br/>
4 Acosta, 2016. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
5 Cunha, 2017. Cultura com Aspas e outros ensaios.
*
13 Rede de Monitorame nto Territorial Independente
dores. Nesse contexto, o monitoramento
pode potencialmente fazer frente às in-
formações levantadas por outros atores,
seja pela confrontação, seja pela comple-
mentaridade, seja pela inuência para
uma maior e mais holística abordagem e
abrangência das ações.
PROTEÇÃO DOS TERRITÓRIOS E DOS
MODOS DE VIDA
Os territórios são base da existência e da
vida social5 e estão intimamente conecta-
dos à reprodução dos modos de vida dos
diferentes grupos sociais, que o signi-
cam material e imaterialmente. Ao prote-
ger os territórios, protegem-se os modos
de vida que os constituem.
No contexto da instalação e operação de
empreendimentos, o monitoramento ter-
ritorial independente e autônomo assume
importante papel para scalização, acom-
panhamento e controle social nos proces-
sos do licenciamento ambiental, além de
gerar informações sobre as transforma-
ções vividas. Na identicação de impactos
e danos, o monitoramento pode contribuir
para averiguação da gravidade deles, a efe-
tividade de reparação integral, bem como
identicar novos impactos que surgirem,
gerando informações que podem contra-
por laudos e estudos, apontando para a
construção de bases para a justa reparação
dos povos atingidos. O monitoramento de
invasões ou outras ameaças ganha ainda
mais importância em contextos de ataques
frequentes vividos por povos indígenas e
comunidades tradicionais, sendo seus ter-
ritórios alvo do interesse de grileiros, ga-
rimpeiros, madeireiros, pesca e caça pre-
datórias, dentre outras ações.
O monitoramento pode servir também
como um instrumento de gestão e manejo
das cadeias produtivas, fortalecendo e vi-
sibilizando as relações dos povos com seu
território. Ao registrar os modos de vida
e signicações, potencializa ações de re-
conhecimento e manutenção dos direitos
territoriais, além de fortalecer laços iden-
titários e comunitários.
REDE DE MONITORAMENTO
TERRITORIAL INDEPENDENTE
(REDE MTI)
A proposta de construção desta Rede sur-
ge da conuência de interesses de algumas
instituições, com o objetivo de fortalecer as
experiências de monitoramento territorial
independente na Amazônia. Entendendo
o monitoramento como estratégia de defe-
sa dos territórios, os parceiros neste pro-
jeto apostam na aproximação e troca de
experiências e metodologias entre as co-
munidades monitoradoras, como caminho
para ampliar sua capacidade de monitorar,
potencializar o uso das informações ge-
radas, e tensionar para inuência dessas
informações sobre processos de decisão e
responsabilização de atores nos contextos
de conitos e pressões.
Tendo como eixos estratégicos de ação
(i) o fortalecimento das organizações; (ii)
a incidência sobre Estado, nanciadores
e empreendedores; e (iii) a comunicação
e produção de Conhecimento, a Rede de
Monitoramento Territorial Independente
(Rede MTI) tem como objetivo a proteção
dos territórios e dos modos de vida, apos-
tando, sobretudo, na articulação de atores
e fomento a parcerias para construção de
estratégias de ação conjunta.
5 Santos, 2004. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
*
14 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Por meio da Rede pretende-se potencia-
lizar a identicação de demandas, bem
como ampliação da visibilidade e uso de
informações produzidas pelas comunida-
des, além da sistematização de aprendiza-
dos das organizações – desde estruturação
das comunidades para monitorar, estra-
tégias de coleta e análise dos dados, uso da
informação, parcerias estabelecidas, de-
mandas e avanços apontados pelas comu-
nidades. Finalmente, a Rede poderá ser
um veículo para a discussão de melhorias
das políticas públicas, garantia de direitos
territoriais dos povos, proteção dos terri-
tórios e fortalecimento da participação das
comunidades nas decisões estratégicas
que interferem nos seus modos de vida.
Este livro compila alguns casos, metodo-
logias e reexões sobre o monitoramento
territorial independente, e que surge do
esforço dos organizadores e autores em
sistematizar e conectar experiências de
monitoramento de organizações parti-
cipantes da Rede MTI. Para englobar as
diferentes estratégias e contextos em que
o monitoramento territorial é realizado,
a publicação está organizada em duas se-
ções: Seção I - “Monitoramento de Grandes
Empreendimentos e de Pressões e Ameaças
sobre Territórios”, que traz casos e ree-
xões sobre riscos e impactos sofridos com
a instalação e operação de empreendi-
mentos e responsabilização de atores em
contextos de reparação integral de danos,
e também casos de monitoramento de
pressões, invasões e ameaças diversas,
destacando o monitoramento como uma
ferramenta de proteção dos territórios;
Seção II - “Uso dos Recursos nat urais e Mo-
nitoramento das Transformações Ecossis-
têmicas”, em que são abordados casos em
que o monitoramento é empregado para
gestão de recursos comunitários, ores-
Incidência sobre
Financiadores,
Estado e Empresas
Comunicação
e Produção
de Conhecimento
Fortalecimento
das Organizações
Proteção
de Territórios
e Modos de Vida
*
15 Rede de Monitoramento Territorial Independente
tais e pesqueiros, além do registro das di-
nâmicas ecossistêmicas.
O livro conta ao todo com 12 capítulos, di-
vididos entre relatos de caso e ensaios. Os
relatos de caso apresentam as metodolo-
gias empregadas, uso dos resultados e de-
saos para monitorar, e os ensaios trazem
reexões sobre o monitoramento terri-
torial independente e sobre as pressões
que territórios amazônicos vivenciam no
atual momento. Para construção dessa
publicação foram engajadas 23 organiza-
ções vinculadas à Rede MTI, com mais de
70 autores assinando os trabalhos.
Assinado a muitas mãos e instituições,
o primeiro capítulo aponta caminhos
metodológicos para o monitoramento
independente, construídos por Karla
Sessin-Dilascio, Simone Athayde, Allan
Gomes, Brent Millikan, Caio Mota, Elia-
no Waro Munduruku, João Andrade e
Juliana Pesqueira a partir da análise do
caso de monitoramento de impactos da
UHE Teles Pires.
No segundo capítulo, sobre pressões na
Bacia do Tapajós, Andréa Leão, Sandro
Leão, Antônia do Socorro Pena e Wandi-
cleia Lopes de Sousa, do Grupo de Estu-
dos, Pesquisa e Extensão Socioeconômica
da Amazônia (GEPESA/UFOPA), tratam
das pressões e ameaças aos territórios de
povos tradicionais e destacam o monito-
ramento antecipado e mobilizações em
defesa dos direitos como fundamentais.
Thais Mantovanelli, do Instituto Socioam-
biental (ISA), relata no terceiro capítulo a
experiência de monitoramento realizado
pelo povo Juruna (Yudjá) na Volta Gran-
de do Xingu, trazendo reexões impor-
tantes sobre o uso dessa ferramenta para
discussão dos impactos gerados pela UHE
Belo Monte ao modo de vida do povo.
O quarto capítulo, assinado por Antônia
Martins, da Fundação Viver Produzir e
Preservar (FVPP) traz as percepções dos
atingidos pela UHE Belo Monte sobre as
condições de vida nos Reassentamentos
Urbanos Coletivos, construídos pelo em-
preendedor em Altamira/PA. O quinto
capítulo, escrito por pesquisadores do
Laboratório de Estudos sobre as Dinâmi-
cas de Desenvolvimento na Amazônia
(LEDTAM/UFPA), aporta um panorama
da situação dos grupos deslocados com-
pulsoriamente pela UHE Belo Monte,
além de apresentarem suas estratégias de
monitoramento da situação.
Ao nal da primeira seção, o sexto capítu-
lo, assinado por integrantes da Articula-
ção dos Povos Indígenas do Brasil (APIB),
apresenta os resultados do monitoramen-
to dos casos de Covid-19 entre povos indí-
genas, trazendo para o debate a urgência
causada pela pandemia e importância do
monitoramento na construção de estraté-
gias para proteção da saúde dos povos.
Abrindo a segunda seção do livro, o séti-
mo capítulo, com autoria de Poliane Ba-
tista da Silva, Antônio José Mota Bentes,
Antônia do Socorro Pena da Gama, Da-
vid Gibbs McGrath e Wandicleia Lopes
de Sousa, apresenta o caso de monitora-
mento de pesca artesanal em comunida-
des no Baixo Amazonas, apontando seu
papel na gestão dos estoques pesqueiros,
e construção de acordos de pesca para en-
gajamento político das comunidades. Em
seguida, o oitavo capítulo, assinado por
Gina Leite e Marina Varese, relata tra-
jetória de construção e aprendizados da
Rede de Ciência Cidadã para Amazônia,
*
16 Rede de Monitorame nto Territorial Independente
que através do monitoramento de pei-
xes migratórios, conecta comunidades e
pesquisadores em toda a bacia. No nono
capítulo, Luan Suruí, Israel Corrêa, Alex-
sander Santa Rosa Gomes e Ivaneide Car-
dozo, relatam a experiência do biomoni-
toramento da biodiversidade, conduzido
pelo povo Paiter Suruí, reetindo sobre a
importância do engajamento de pesquisa-
dores indígenas para condução das ações,
e os resultados positivos, tanto para ges-
tão dos recursos comunitários, como para
a fortalecimento dos conhecimentos tra-
dicionais do povo.
Escrito a muitas mãos, o décimo capítu-
lo traz a experiência de pesquisadores do
Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) na
construção das ações de monitoramento
participativo da biodiversidade em uni-
dades de conservação na Amazônia, e
explora uma importante dimensão do
monitoramento independente que é de-
sao da integração entre conhecimentos
tradicionais e cientícos.
No penúltimo capítulo do livro, pesqui-
sadores do Instituto Mamirauá (IDSM),
relatam estratégias de monitoramento
participativo no Médio Solimões, compar-
tilhando reexões sobre as ações que co-
nectam proteção territorial, engajamento
e fortalecimento de lideranças, e expe-
riências de turismo de base comunitária.
Para fechar o livro, lideranças e pesquisa-
dores que integram o Movimento Tapajós
Vivo Para Sempre, tratam do monitora-
mento da produção de energia solar em
comunidades na Bacia do Tapajós, usan-
do essa energia como alternativa às fon-
tes poluentes comumente empregadas. O
capítulo faz importante problematização
sobre as contradições entre crescimen-
to econômico e desenvolvimento social,
apresentando resultados do projeto de
geração de energia solar em comunidades
como um contraponto às propostas de ge-
ração hidrelétrica na bacia.
Convidamos à leitura e à reexão proposta
pelos autores e pela Rede MTI, acreditando
que o monitoramento territorial indepen-
dente é um processo inclusivo, democráti-
co e autônomo que contribui para a busca
de garantia de direitos de povos indígenas,
comunidades tradicionais, dentre outros
grupos sociais historicamente minoriza-
dos, e cuja ação política, estratégia econô-
mica, riqueza cultural e luta histórica, de-
senha a Amazônia que queremos.
*
18 Rede de Monitoramento Territorial Independente
O monitoramento independente
dos impactos das hidrelétricas
no rio Teles Pires: caminhos
para o delineamento metodológico
INTRODUÇÃO
Em termos acadêmicos, pode-se defi-
nir monitoramento como a avaliação
sistemática e contínua de um determi-
nado processo em um período deter-
minado, destinado a avaliar mudan-
ças. O monitoramento convencional
é conduzido por metodologias cientí-
ficas e operacionalizado por indica-
dores, caracterizado por um processo
sistemático e contínuo de coleta e aná-
lise de dados que varia de acordo com
a dimensão ou subsistema em foco e
os objetivos estabelecidos previamen-
te (CASLEY; KUMAR, 1987; GOSLING;
EDWARDS, 2003).
Alguns autores têm criticado o monito-
ramento convencional, por ser estrita-
mente focado nos resultados, em vez de
valorizar processos e temporalidades que
permitam o uso de dados para solucionar
problemas reais que acometem sistemas
socioecológicos, bem como propiciar uma
maior participação de atores locais nas
atividades de monitoramento (BELLAMY
et al., 2001; PLUMMER; ARMITAGE,
2007). A massiva produção de indicado-
res, alto investimento logístico, nancei-
ro e de recursos humanos qualicados,
por longos períodos tornam as práticas
de monitoramento convencional custo-
sas e muitas vezes inviáveis a longo pra-
zo (MAHANTY et al., 2007). Nas últimas
1.
Karla Sessin-Dilascio1,2
Simone Athayde3
Allan Gomes2
Brent Millikan2,4
Caio Mota2
Eliano Waro Munduruku2,5
Laureci Muo Munduruku2,5
João Andrade2,6
Juliana Pesqueira2
1 Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais da Universidade de São Paulo (Procam-USP).
2 Fórum Teles Pires e Coletivo Proteja Amazônia.
3 Department of Global and Sociocultural Studies e Kimberly Green Latin American and Caribbean Center, Florida
International University.
4 International Rivers -Brasil.
5 Associação Indígena Dace.
6 Instituto Centro de Vida.
1.
19 Rede de Monitoramento Territorial Independente
décadas, experiências de monitoramento
em várias partes do mundo envolvendo
recursos naturais usados e manejados por
grupos sociais e comunidades, como o-
restas, rios e peixes, originaram aborda-
gens participativas para monitoramentos
socioecológicos. Essas abordagens podem
incluir, em maior ou menor intensidade
e de acordo com os objetivos do monito-
ramento, a participação de atores sociais
na coleta sistemática de dados e informa-
ções, na análise de dados, e na sistema-
tização e disponibilização de resultados
(EVANS; GUARIGUATA; BRANCALION,
2018; VILLASENOR et al., 2016). Expe-
riências nacionais e internacionais de
monitoramento participativo de recursos
naturais demonstram que esses processos
têm o potencial de catalisar movimentos
de aprendizagem entre ciência e socieda-
de que podem levar a tomada de decisão
mais rápida a nível local, incentivando
o compartilhamento de informações e
conhecimentos, fortalecendo as capaci-
dades e empoderamento de atores locais
(DANIELSEN et al., 2009; DE ARAU-
JO LIMA CONSTANTINO et al., 2012;
EVANS; GUARIGUATA; BRANCALION,
2018). No entanto, o monitoramento par-
ticipativo não deve ser visto como uma
panaceia em processos de monitoramento
comunitário de recursos naturais. Atores
sociais podem se utilizar da designação
“monitoramento participativo” de forma
puramente cosmética, sem incluir uma
efetiva participação e empoderamento
das comunidades envolvidas (ATHAYDE,
2014). Questões relativas a quem dene os
objetivos e foco do monitoramento, bem
como diferenças de poder na produção
e apropriação das informações e seu uso
necessitam ser endereçados nesses pro-
cessos (EVANS; GUARIGUATA; BRAN-
CALION, 2018; VILLASENOR et al., 2016).
Os problemas se agravam em casos de
monitoramento de obras de infraestrutu-
ra na Amazônia e dos impactos aos povos
indígenas e outras comunidades afetadas
(ATHAYDE, 2014; FTP, 2017). Na Ama-
zônia, tem-se observado que processos de
automonitoramento de grandes projetos,
conduzido por empreendedores, muitas
vezes utilizam de estratégias de subdimen-
sionamento ou mesmo invisibilização de
impactos socioambientais, em contextos
de prevalência de interesses econômicos
privados, associadas à omissão e mesmo à
subserviência de órgãos governamentais,
contribuindo assim para o agravamento
de danos, incluindo violações dos direi-
tos de populações atingidas (FTP, 2017;
ALARCON; MILLIKAN; TORRES, 2016).
A magnitude dos impactos impulsiona-
dos pela construção e operação de usinas
hidrelétricas nos rios amazônicos vem
acompanhada de inúmeras violações aos
direitos de povos indígenas e outras po-
pulações locais, como comunidades afro-
descendentes (no Brasil, quilombolas) e
ribeirinhas, entre outras, gerando um am-
biente de insegurança territorial, alimen-
tar e econômica, impactos na organização
social e cultural, repercutindo na ameaça
à perpetuação de seus usos e costumes
(ALARCON; MILLIKAN; TORRES, 2016;
ATHAYDE et al., 2019). Essa constatação,
comum a várias terras indígenas afetadas
por barragens, tem sido um fator moti-
vador importante para o surgimento de
experiências de monitoramento partici-
pativo e independente dos impactos, como
o apresentado nesta publicação. Diante
desses desaos, coloca-se a pergunta sobre
como criar um processo de monitoramen-
to independente, robusto e de longo prazo,
considerando custos e arranjos institucio-
nais disponíveis para atender as necessi-
1.
20 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dades dos povos indígenas e outros grupos
atingidos quanto aos impactos iminentes
da instalação de hidrelétricas?
Este artigo apresenta o relato de caso do
processo de monitoramento independen-
te protoganizado pelo Fórum Teles Pires
(FTP), uma rede coletiva de movimentos
sociais e outras entidades da sociedade
civil que atua, desde 2010, na defesa dos
direitos de povos e comunidades atingidas
e/ ou ameaçadas por hidrelétricas e outros
grandes empreendimentos no rio Teles
Pires. Dentro do Fórum, o monitoramen-
to independente tem sido liderado pelo
Coletivo Proteja Amazônia e pela Associa-
ção Indígena Munduruku Dace, do povo
Munduruku da Terra Indígena Kayabi
(MT), apoiados diretamente pelo Instituto
Centro de Vida (ICV) e pelo Instituto Clima
e Sociedade (ICS), em parceria com a In-
ternational Rivers – Brasil. Espera-se que
experiências como estas contribuam para
inspirar novos arranjos que superem os
gargalos do monitoramento convencional
e, ao mesmo tempo, empoderem comuni-
dades locais e povos indígenas para que
possam conduzir os seus próprios proces-
sos de monitoramento territorial de forma
autônoma e independente dos monitora-
mentos conduzidos pelas empresas.
CONTEXTUALIZAÇÃO
Características do Planejamento,
Licenciamento Ambiental e
Implantação de Usinas Hidrelétricas no
rio Teles Pires
Os estados de Mato Grosso e Pará têm
sido palco para a implantação de uma sé-
rie de usinas hidrelétricas que concentra
boa parte das violações de direitos huma-
nos e ambientais provocadas por grandes
empreendimentos na Amazônia. Ao longo
do rio Teles Pires, auente do rio Tapajós,
cinco grandes usinas hidrelétricas (UHEs)
foram cogitadas inicialmente em estudos
de inventário, sendo que quatro passaram
a ser construídas em ritmo acelerado e en-
traram em operação entre os anos de 2011
e 2017. O Complexo de Usinas Hidrelétri-
cas do rio Teles Pires é composto pelas hi-
drelétricas de Sinop e Colíder, médio Teles
Pires, e as UHE Teles Pires e São Manoel,
no baixo Teles Pires (Figura 1). Estas últi-
mas foram contruídas nas imediações da
Terra Indígena (TI) Kayabi onde habitam
três etnias (Kayabi, Apiaká e Munduruku),
estando a UHE São Manoel a apenas 400
metros a montante desta TI.
Os processos de planejamento, licenciamen-
to ambiental e a implantação das quatro
UHEs no rio Teles Pires, foram marcados
pelas seguintes características (FTP, 2017):
• subdimensionamento e/ou desconside-
ração de impactos e riscos socio-am-
bientais, inclusive cumulativos, na fase
preliminar de estudos de inventário da
sub-bacia do Teles Pires, conduzidos
pelo setor elétrico e empreiteiras pri-
vadas. Nesta etapa foram tomadas de-
cisões políticas sobre a construção de
hidrelétricas, utilizando essencialmente
como critério único a identicação de
quedas com maior potencial de gera-
ção de energia (ALARCON; MILLIKAN;
TORRES, 2016, 111-142p.);
• ausência de processos de consulta e
consentimento prévio, livre e infor-
mado junto aos povos indígenas, con-
forme determinado pela legislação
brasileira e acordos internacionais
dos quais o Brasil faz parte, como a
Declaração sobre os Direitos dos Po-
vos Indígenas da ONU, a Convenção
1.
22 Rede de Monitoramento Territorial Independente
169 da OIT, e o Sistema Interamerica-
no de Direitos Humanos (CIMI, 2011);
• dispersão de responsabilidades pelo li-
cenciamento ambiental entre o órgão es-
tadual de meio ambiente de Mato Grosso
(SEMA-MT), que assumiu o licenciamen-
to das UHEs Sinop e Colider, e o IBAMA,
responsável pelo licenciamento das UHEs
Teles Pires e São Manoel (FTP, 2017);
• na fase de Estudos de Impacto Ambien-
tal (EIA), conduzidos pelo setor elétrico
do governo e empresas privadas, a per-
sistência de falhas e omissões na avalia-
ção de impactos e riscos socioambien-
tais, especialmente no tocante aos povos
indígenas e seus territórios, em que o
chamado “estudo de componente indí-
gena” (ECI) foi tratado de forma desar-
ticulada do restante do EIA (FTP, 2017);
• a concessão de Licenças Prévias (LPs)
pelo IBAMA e SEMA-MT para os em-
preendimentos, apesar de estudos in-
completos do EIA – frequentemente con-
trariando pareceres técnicos dos órgãos
licenciadores e órgãos intervenientes
(FUNAI, IPHAN); levando a tentativas
equivocadas de transformar pendências
da fase do EIA em condicionantes da LP
(FTP, 2017);
• a concessão de Licenças de Instalação
(LI) sem o cumprimento de condicio-
nantes da LP, destacando-se a ausên-
cia de planejamento executivo para a
mitigação e compensação de impactos
socioambientais, no âmbito do Plano
Básico Ambiental – PBA, devidamen-
te analisado e aprovado pelos órgãos
competentes (JUSTIÇA GLOBAL, 2012).
Tal atropelo foi especialmente grave no
caso do componente indígena do PBA
(conhecido como PBA-CI e/ ou PBAI).
Elaborados pelos empreendedores sem
participação efetiva dos indígenas, os
PBAIs de ambos os empreendimentos
foram tratados de forma desarticulada
do restante dos PBAs e entre si sofrendo
repetidos atrasos quanto a sua prepara-
ção, análise e aprovação pela FUNAI. Em
grande medida, os PBAIs tornaram-se
listas de obras, equipamentos, material
de consumo e cursos (p. ex. informática,
GPS), bem como uma série de atividades
de “monitoramento” conduzidos pelo
empreendedor2, em contraste com o ca-
ráter previsto para o PBA na legislação
ambiental como planos destinados às
medidas de mitigação e compensação de
impactos socioambientais (FTP, 2017);3
• nas fases de implantação e operação, a
ausência de um monitoramento robus-
to de impactos e efetividade de condi-
cionantes como ferramenta de gestão
de empreendimentos4. Em contraste, o
que tem predominado é o “automonito-
ramento” realizado pelos empreendedo-
res, menosprezando questões de coni-
to de interesse, assim como um precário
acompanhamento por parte da SEMA-
1 O EIA/RIMA dos quatro empreendimentos foi elaborado separadamente dicultando a mensuração dos impactos cumula-
tivos e sinérgicos da bacia. A sequência de reservatórios modicou a característica do rio Teles Pires, os cursos à montante
dos reservatórios passou a funcionar como um grande lago liforme que drena para baixo, perdendo sua característica de
rio e passando a ter características lacustres. Conforme descrito na Ação Civil Pública no. 005891-81.2012.4.01.3600, no caso
da UHE Teles Pires, chegou-se ao extremo de aceitar o componente indígena do EIA-RIMA, elaborado para as UHEs São
Manoel e Foz de Apiakás, como proxy para o estudo obrigatório deste empreendimento, negando a existência de impactos
especícos (ex. destruição das corredeiras de Sete Quedas, local sagrado para os povos indígenas, de fundamental importân-
cia para a reprodução de peixes; implicações do barramento do rio Tele Pires para peixes migratórios de grande importância
para a biodiversidade e meios de vida dos povos indígenas e outras populações locais (MPF, 2012)).
2 Aparentemente, da tentativa de transformar pendências da fase do EIA em condicionantes de licenças ambientais.
3 A empresa de consultoria JGP foi responsável pela elaboração dos PBAIs das UHEs Teles Pires e São Manoel, adotando pro-
cedimentos semelhantes.
4 O monitoramento da ictiofauna e limnológico, condicionantes do licenciamento ambiental da UHE Teles Pires, e dois dos
programas do PBAI do referido empreendimento, foram nalizados em 2015. Não houve qualquer tipo de monitoramento da
ictiofauna na TI até maio de 2017.
1.
23 Rede de Monitoramento Territorial Independente
-MT, IBAMA, FUNAI e outros órgãos
públicos (FIOCRUZ, [s.d.]);
• a concessão de Licenças de Operação
sem o cumprimento efetivo e integral
das condicionantes da LI ou mesmo de
avaliação da efetividade de resultados
e indicadores dos planos de mitigação e
compensação de impactos socioambien-
tais (AMAZÔNIA REAL, 2017);
• na fase de operação, a desconsideração
de impactos socioambientais a jusante
das barragens, associados a oscilações re-
pentinas no uxo de águas (FTP, 2017);
• a utilização da Suspensão de Segurança,
instrumento criado na ditadura militar,
para inviabilizar decisões judiciais sobre
ações ajuizadas pelo Ministério Público,
frente a violações da legislação ambien-
tal e dos direitos humanos (OLIVEIRA;
VIEIRA, 2016).
Como resultado da natureza dos barra-
mentos no rio Teles Pires e desse conjunto
de atropelos e problemas no planejamen-
to, licenciamento, implantação e operação
dos empreendimentos, os povos indíge-
nas, pescadores tradicionais, agricultores
familiares e outras populações locais têm
sentido graves consequências negativas do
conjunto das quatro hidrelétricas recém-
-instaladas no rio. Os povos indígenas,
que têm sua subsistência e cosmologia
vinculados aos rios e às orestas, sofrem
diretamente com os impactos no rio Te-
les Pires, especialmente em relação ao
comprometimento da qualidade de água;
degradação de ambientes de inundação
periódica essenciais para a alimentação e
reprodução de peixes e quelônios; e a des-
truição de lugares sagrados; com gravíssi-
mas consequências para a sua soberania
alimentar, a saúde e a sua sobrevivência
sociocultural (FTP, 2017).
A METODOLOGIA DE
MONITORAMENTO INDEPENDENTE
DO FTP
O Fórum Teles Pires (FTP)5 iniciou o tra-
balho de monitoramento independente
junto aos povos indígenas e outros grupos
atingidos por obras de infraestrutura des-
ta sub-bacia, buscando apoiá-los na garan-
tia de direitos e ações de mitigação e com-
pensação frente aos impactos destas obras.
O Fórum é uma rede composta por movi-
mentos sociais, entidades socioambientais,
coletivos de comunicadores e instituições
de ensino, que perseguem um objetivo
comum: “A luta pelos direitos dos povos e
comunidades atingidas pelo complexo de
barragens na bacia do Teles Pires”.
O trabalho coletivo e a cocriação de so-
luções para problemas socioambientais
locais gerados por grandes empreendi-
mentos de infraestrutura na sub-bacia
do rio Teles Pires guiam as estratégias e
ações desenvolvidas no âmbito da rede
do FTP. Desse grande esforço de arti-
culação, foi organizada a primeira oci-
na de direitos indígenas que aconteceu
nas aldeias Kururuzinho (povo Kaya-
bi) e Teles Pires (povo Munduruku), em
5 O Fórum Teles Pires é composto por uma gama de instituições que trabalham em rede guiadas pelo objetivo comum de
garantir a luta pelo direito dos povos e comunidades tradicionais atingidas pelo Complexo de barragens do rio Teles Pires.
A rede é composta por: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), organizações locais representativas dos assentados da reforma agrária, povos indígenas organizados em associações
ou independentes, ribeirinhos e pescadores; entidades parceiras da sociedade civil como a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), Coletivo Proteja Amazônia, Centro Popular do Audiovisual (CPA), Instituto Centro de Vida (ICV); International
Rivers – Brasil (IR), e pesquisadores vinculados a instituições públicas de pesquisa e ensino, nacionais e internacionais,
como a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), o Instituto
Federal de Mato Grosso, a Universidade da Flórida e pesquisadores autônomos (FTP, 2017).
1.
24 Rede de Monitoramento Territorial Independente
2014, com a participação de promo-
tores (MPF e MPE), pesquisadores, advo-
gados, movimentos sociais e associações
de pescadores. Em 2015, o Fórum con-
seguiu reunir lideranças das três etnias
(Kayabi, Munduruku e Apiaká) na aldeia
Teles Pires, em um esforço de articulação
de alianças para a criação de arranjos de
monitoramento (ICV, 2015). Em 2016, o
trabalho se robusteceu com a ocina de
monitoramento independente coorgani-
zado pela Rede Internacional de Pesquisa
em Barragens Amazônicas6 (RBA) em par-
ceria com o FTP, em Alta Floresta. Esse foi
o primeiro momento em que stakeholders
e atingidos por barragens de diferentes
regiões da Amazônia se reuniram para
discutir e trocar estratégias de monitora-
mento de impactos socioambientais (ME-
DEIROS, ATHAYDE, SILVA, 2016) (Figura
2). Nessa ocina, realizou-se o exercício de
construção coletiva do conceito de moni-
toramento independente. Foi também a
partir dessa ocina, que o FTP iniciou o
processo de alinhamento e reexão sobre
as possíveis estratégias de monitoramento
que seriam conduzidas pela rede.
A metodologia de monitoramento inde-
pendente, delineada no âmbito da oci-
na do FTP (Figura 3), se estruturou nos
seguintes princípios: a) suas atividades
deveriam ser desenvolvidas com as lide-
ranças das comunidades e grupos sociais
associados; b) o processo de coleta, análise
e produção de relatório deveria ser inde-
pendente do monitoramento realizado
pelas empresas; c) a metodologia poderá
variar de acordo com a necessidade da
comunidade quanto ao que desejam mo-
nitorar. O FTP concluiu que diferente
dos monitoramentos comumente desig-
nados como participativos pelas empre-
sas, em que as comunidades são cha-
madas a participar da coleta de dados a
partir de uma estrutura predenida ex-
traterritorialmente e de cima para baixo,
o monitoramento independente do FTP
deveria ser coconstruído com as comuni-
dades e stakeholders locais desde o início
do processo. Neste sentido, acordou-se
que a denição dos esforços de coleta de
dados deve ser denida pela comunidade,
a partir de suas necessidades locais. Ao
FTP caberia a mediação entre comuni-
dade, especialistas e cientistas, que cria-
rão as bases para a coleta de dados; além
da organização dos dados coletados pela
comunidade, a análise e criação de rela-
tórios técnicos que seriam utilizados nas
estratégias de advocacy e litigância, além
da criação das peças de comunicação que
sustentavam as campanhas midiáticas.
A amplitude dos territórios atingidos
pelo complexo de usinas do Teles Pires,
a diversidade das partes interessadas e
grupos atingidos, bem como a limitação
de recursos e equipe, direcionaram a es-
tratégia do Fórum para núcleos de ação
responsáveis por diferentes territórios e
grupos sociais. Dessa maneira, dividiram-
-se as equipes por região: a) o núcleo de
Sinop, liderado pelo MAB, com foco nos
assentados e colônias de pescadores; b)
o núcleo de Alta Floresta, conduzido
pelo Coletivo Proteja Amazônia, respon-
sabilizou-se por trabalhos direcionados
aos povos indígenas da TI Kayabi; c) o
grupo de Brasília, conduzido pela Interna-
6 A Rede Internacional de Pesquisa em Barragens Amazônicas / Amazon Dams International Research Network/ Red
Internacional de Investigación en Represas Amazónicas (RBA/AND/RIRA) é uma rede transdisciplinar formada por
pesquisadores, estudantes, técnicos, comunidades indígenas, pescadores, tomadores de decisão e outros atores, que tem por
missão estudar e propor soluções para os impactos socioecológicos causados pela implementação de barragens hidrelétricas
em várias bacias Amazônicas. Mais informações: www.amazondamsnetwork.org.
1.
25 Rede de Monitoramento Territorial Independente
tional Rivers e o Instituto Centro de Vida,
apoiava ações de advocacy e articulação
junto aos órgãos federais. Os núcleos do
FTP se reuniam semestralmente para
alinhar estratégias, ações e compartilhar
resultados. Além desses encontros, havia
o diálogo constante entre os núcleos que
compartilhavam nanciamento, recursos
humanos, e desenvolviam outras ativida-
des coletivas quando necessário (Figuras
3.a e 3.b).
A metodologia de monitoramento in-
dependente proposta no âmbito das
ações do FTP-núcleo de Alta Floresta e
apresentada neste artigo é resultado do
processo de cocriação liderada pelo Co-
letivo Proteja Amazônia e a Associação
Indígena DAce do povo Munduruku do
rio Teles Pires, com o apoio de outras
instituições parceiras. A metodologia
foi desenvolvida entre os anos de 2014-
2018, ano em que houve a consolidação
do processo de monitoramento inde-
pendente e o lançamento do aplicativo
Proteja Amazônia7. As ações coletivas
tiveram como premissa a emergência da
realidade imediata do povo Munduruku,
frente aos impactos cotidianos a que es-
tavam submetidos. Da articulação entre
as necessidades e interesses dos povos
indígenas, emergiram processos intrin-
secamente ligados à realidade local, que
exploraram caminhos para soluções de
problemas reais, aliando conhecimento
tradicional e cientíco. A complexidade e
o dinamismo dessa realidade exigiram a
abertura do Fórum e a presença dos indí-
genas para trajetórias de aprendizagem
social e linhas de ação experimentais,
guiadas pelo o condutor do monitora-
mento independente. O monitoramento
7 O aplicativo Proteja Amazônia é uma ferramenta que auxilia comunidades atingidas por barragens a repassar informações
e dados de forma segura e organizada ao grupo de analistas do FTP (PROTEJA AMAZÔNIA, 2019).
Figura 2. Painel visual elaborado a partir das discussões dos participantes do Fórum Teles Pires na Ocina de Monitoramento
Participativo, realizada em Alta Floresta, no ano de 2016 (Fonte: FTP, 2016). 1.
26 Rede de Monitoramento Territorial Independente
independente apoiou-se nos seguintes
objetivos: a) construção de processos co-
letivos em rede; b) aprendizagem social
para a cocriação de soluções inovadoras
a partir da emergência da realidade lo-
cal; c) a necessidade de revisitação contí-
nua dos objetivos do trabalho, discutidos
coletivamente; d) a inserção de cursos
de ação que promovessem processos
autônomos de gestão territorial, econô-
mica e política dos povos indígenas.
O trabalho em campo foi o motivador
dos primeiros passos para a consolida-
ção do monitoramento independente.
Os trabalhos foram desenvolvidos em
torno de expedições semestrais a campo,
chamadas de Caravanas de monitora-
mento independente. Foram ao todo oito
Caravanas durante o período citado. As
Caravanas emergiram frente às limita-
ções de recurso, tempo de trabalho, exi-
gências logísticas e diculdade de aces-
so às aldeias. Elas agregavam grupos de
especialistas selecionados pelo FTP que
viajavam às aldeias para desenvolver
trabalhos de coleta de dados, aprendiza-
gem e articulação política, em um perío-
do mínimo de 15 dias. O contato perió-
dico e sistemático de acompanhamento
dos impactos, por meio das Caravanas,
gerou o contexto para a intensicação
do comprometimento da rede FTP com a
realidade do povo Munduruku. Ao mes-
mo tempo, as exigências atreladas às Ca-
ravanas obrigavam o FTP a vislumbrar
o momento de redução da frequência
das atividades de campo. As Caravanas
se estruturavam da seguinte maneira:
I. Pré-campo: revisão das atividades reali-
zadas na última Caravana com objetivo de
Figura 3a. Encontro da Aliança dos Povos da TI Kayabi na TI Kayabi, em 2015 (Fonte: ICV, 2015 e FTP, 2016).
1.
27 Rede de Monitoramento Territorial Independente
redenir cursos de ação e o trabalho de mo-
bilização de técnicos e especialistas da rede
de parceiros. Ao mesmo tempo, o articula-
dor local tinha o papel de iniciar a conver-
sa com as lideranças indígenas, para com-
preender suas expectativas e necessidades
mais urgentes. Munido dessas informações
o grupo revisava o cronograma e objetivos
de trabalho, que era então compartilhado
novamente com as lideranças;
II. Campo: o primeiro momento da Ca-
ravana compreendia a apresentação do
cronograma de trabalho em reunião cole-
tiva na aldeia polo8, onde normalmente se
reuniam lideranças das outras aldeias. As
reuniões eram bilíngues, com utilização
do português e da língua nativa, apoiada
por um ou dois tradutores indígenas. Esse
era o momento de relembrar a agenda de
atividades do campo passado, apresen-
tar os pontos de avanço do trabalho, e o
que ainda se fazia necessário avançar. As
equipes eram separadas por linhas temá-
ticas, e acompanhadas pelos indígenas
responsáveis escolhidos pela comunida-
de. O último dia era o momento de apre-
sentar os resultados em reunião coletiva,
colher sugestões e comentários, e refazer
a lista de tarefas a serem cumpridas no
período entre o próximo campo;
III. Pós-Campo: Após o campo, a equipe
avançava na lista de tarefas, buscando
8 A aldeia Teles Pires é a maior aldeia Munduruku do baixo Teles Pires, criada em 1975, como posto indígena pelo antigo
Serviço de Proteção aos Índios (SPI). A aldeia está no limite entre a TI Kayabi e a TI Munduruku, em território paraense. Por
ser a aldeia polo do povo Munduruku no rio Teles Pires, ela reúne os serviços de atendimento à saúde e educação, além de
ser o cenário de encontros entre outras comunidades da mesma etnia e o lugar em que a maioria das atividades do PAB-CI
das usinas é desenvolvida.
Figura 3b. Ocina de monitoramento do Fórum Teles Pires em Alta Floresta, em 2016 (Fonte: ICV, 2015 e FTP, 2016).
1.
28 Rede de Monitoramento Territorial Independente
produzir informações para apoiar a solu-
ção de problemas imediatos das comunida-
des, integrando articulação, organização
de campanhas de comunicação, e ações de
litigância e advocacy, além da organização
e análise dos dados coletados.
A esse passo a passo, soma-se a tempo-
ralidade do processo de monitoramento
independente, que se desenrolou em três
etapas: 1) diagnóstico coletivo dos impac-
tos e produção de banco de dados temá-
ticos; 2) articulação e resultados práticos;
3) aprendizagem para a prática. O pro-
cesso de monitoramento independen-
te foi desenvolvido tendo como norte o
aprimoramento de capacidades voltadas
a estabelecer processos de retroalimen-
tação autônomos, que assegurem a tra-
dução entre os impactos vivenciados e as
informações enviadas pelas comunida-
des ao FTP (Figura 4).
1. Diagnóstico coletivo dos impactos e
produção de banco de dados temáticos
O monitoramento independente estabe-
leceu a estrutura para a coleta de dados
a partir dos problemas levantados pela
comunidade em oficinas e reuniões do
FTP. A “Oficina de Trabalho e Troca de
Experiências Monitoramento Partici-
pativo de Impactos Socioambientais de
Hidrelétricas no rio Teles Pires” (2016)
foi um marco importante para o iní-
cio da sistematização dos problemas e
necessidades das comunidades impac-
tadas (Figura 3b).
A partir das informações desta ocina, o
FTP articulou atores externos para a pro-
dução da base de dados cientícos de inte-
resse para os problemas e necessidades das
comunidades, coletados entre as Carava-
nas I, II e III. As linhas temáticas dos diag-
nósticos cientícos foram: impactos sobre
a espécies migradoras e ecologia de peixes
e quelônios; impactos na qualidade e dis-
ponibilidade de água; impactos à cultu-
ra e ao patrimônio material e imaterial do
povo Munduruku; e levantamento sobre
a situação dos conitos entre indígenas e
empresa construtora. Todas as atividades
posteriores seriam direcionadas para ali-
Diagnóstico coletivo
Banco de dados temático
Articulação
Resultados práticos
RETROALIMENTAÇÃO
monitoramento independente
Aprendizagem
Aprendizagem
Figura 4. Processo de monitoramento independente desenvolvido pelo Fórum Teles Pires (Elaborado pelos autores).
1.
29 Rede de Monitoramento Territorial Independente
mentar os bancos de dados estruturados
por esses diagnósticos.
2. Articulação para resultados práticos
A criação da atmosfera para o monitora-
mento independente não se esgotou na
coleta e sistematização de dados usados
para produção de relatórios técnicos sobre
os impactos gerados pelas hidrelétricas. A
manutenção desse processo demandou a
construção de bases estruturais nas comu-
nidades que possibilitasse a continuidade
do monitoramento independente e autô-
nomo apoiado na relação de conança
construída entre comunidade e o FTP.
É primordial que as comunidades com-
preendam a função da coleta de dados e
vivenciem na prática os benefícios des-
se trabalho. A concretude dos resultados
quase que imediatos da coleta (vídeos, re-
latórios, artigos), a periodicidade das cara-
vanas, a negociação das atividades a serem
desempenhadas e o diálogo direto e contí-
nuo foram ingredientes importantes para
o fortalecimento da conança no trabalho.
Percebemos a importância da informação
sobre processos e projetos desenvolvidos
ser clara, transparente e constantemente
negociada. A periodicidade deve consi-
derar a temporalidade dos diversos grupos
envolvidos: o tempo da comunidade
para digerir e discutir internamente as
informações apresentadas; o tempo do
FTP para criar respostas e resultados, a
partir das necessidades e demandas da
comunidade; o tempo das instituições
de defesa e daquelas responsáveis
pelo licenciamento para responder aos
pareceres enviados; a temporalidade
da empresa construtora, e a atenção
aos momentos de inexão no processo
de licenciamento, em que é possível
criar brechas institucionais e janelas de
oportunidade para a negociação. Por isso,
é extremamente importante seguir, em
campo, procedimentos que assegurem
a construção de processos coletivos em
que esses tempos sejam esclarecidos,
compreendidos e negociados.
Os vídeos-relatos de denúncias dos indí-
genas sobre impactos sofridos, a produ-
ção de cartas-denúncia na reunião nal
das caravanas e a produção de artigos jor-
nalísticos foram elementos mediadores
desses tempos. Eles criavam o ambiente
midiático para pressionar as instituições
formais para cursos de ação de advocacy,
que somados às cartas-denúncia elabo-
radas durante as Caravanas e os pare-
ceres jurídicos, abriam caminho para
ações de litigância, intensicando agen-
das junto ao MPF, MPE, FUNAI, IBAMA
e SEMA-MT. Os relatórios técnicos, cuja
produção demanda uma temporalidade
espaçada, eram mobilizados em etapas
posteriores de litigância. Os resultados
práticos de curto período, que muitas ve-
zes envolviam relatos produzidos pelos
próprios indígenas, mediados pelo FTP,
alimentaram a narrativa de que era pos-
sível produzir informações úteis sobre
impactos locais. Os indígenas começaram
então a produzir vídeos de botos e peixes
mortos, a enviar fotos de vazamento de
óleo, e fazer relatos por carta ou áudio de
mudanças da vazão do rio, abusos de po-
der e chantagens da usina à comunidade.
As informações enviadas alimentaram a
estrutura do banco de dados gerado pelo
diagnóstico inicial.
3. Aprendizagem para a prática -
formação de lideranças interlocutoras
O processo de monitoramento inde-
1.
30 Rede de Monitoramento Territorial Independente
pendente retroalimentado se torna com-
pleto quando as lideranças indígenas se
sentem empoderadas para negociar nos
espaços formais em que o acesso aos seus
direitos é denido estruturalmente. As
atividades desenvolvidas nesse âmbito
articulavam-se em torno de processos de
aprendizagem formal e aprendizagem
para a prática, com o intuito de aproximar
conhecimentos tradicionais e técnicos re-
correntemente discutidos em reuniões
junto às instituições governamentais e
em redes interessadas em diálogos inter-
culturais sobre impactos de obras de in-
fraestrutura na Amazônia.
Dessas ações, derivaram processos de
aprendizagem para autonomia, incluin-
do: formações técnico-políticas rela-
cionadas à política energética nacional
para comunidades impactadas por hi-
drelétricas; formação de defensores po-
pulares, que abarca informações bási-
cas sobre formação do Estado, política e
direitos, ferramentas para incidência e
responsabilização; formação em comu-
nicação como ferramenta ao enfrenta-
mento de violações de direitos; progra-
ma de formação em direitos indígenas
(Defensores Indígenas); intercâmbio
entre indígenas de outras bacias Ama-
zônicas e outros países; e a aproximação
entre indígenas das bacias do Teles Pi-
res e Juruena (IFMT, 2019)9, 10. Esse pro-
cesso estimulou o engajamento das lide-
ranças indígenas que passaram a olhar
as Caravanas como uma oportunidade
para expandir sua atuação, em arranjos
que promoviam trajetórias interconec-
tadas com a defesa de direitos.
Aos processos formativos, somaram-
-se ações práticas. O FTP se preocu-
pou em facilitar o acesso das lideranças
Munduruku aos espaços de incidência
direta. A nível local, o FTP facilitou as
discussões do povo Munduruku junto ao
MPF e às ocinas de apresentação de re-
sultados do PBAI pelos técnicos das UHE
Teles Pires e São Manoel, além de encon-
tros regionais de articulação (Juruena
Vivo). Em Brasília, foi possível envol-
ver lideranças indígenas em trabalhos
de incidência nas reuniões do Grupo de
Trabalho de Infraestrutura11, reuniões
junto à 6° Câmara do MPF, bem como
audiências públicas com Ministério de
Minas e Energia (MME), Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), Ministério do Meio Ambiente
(MMA), IBAMA, FUNAI e MPF. No âm-
bito internacional, abriram-se espaços
de diálogo frente ao Conselho de Direi-
tos Humanos da ONU, junto ao Coletivo
sobre Investimento e Financiamento
Chineses, Direitos Humanos e Meio Am-
biente (CICDHA)12 composto por organi-
zações e grupos da América Latina, no
âmbito da Avaliação Periódica Universal
da China em 2018, por considerações so-
bre o envolvimento da China na cons-
trução e operação da UHE São Manoel,
e seu impacto aos povos indígenas (PRO-
TEJA AMAZÔNIA, 2018). Ao incluir as
lideranças indígenas no processo de ne-
gociação, criou-se o ambiente de apren-
dizagem social necessária e seguro, com
vista ao maior empoderamento das lide-
ranças indígenas em espaços de negocia-
ção. Esse empoderamento é uma prer-
rogativa importante em propostas de
9 www.redejuruenavivo.com
10 amazondamsnetwork.org
11 gt-infra.org.br
12 chinaambienteyderechos.lat
1.
31 Re de de Monitoramento Territorial Independente
monitoramento participativo (ATHAY-
DE, 2014; EDWARDS et al., 2008; GUI-
JT, 2007).
REFLEXÕES E APRENDIZAGENS
O processo de monitoramento indepen-
dente foi cocriado a partir da prática das
relações concretas entre o FTP e a As-
sociação Indígena Dace. Inicialmente, o
processo mimetizou outras iniciativas de
monitoramento convencional conduzi-
das por instituições comprometidas com o
apoio a comunidades atingidas por hidrelé-
tricas em outros territórios. As Caravanas
I a III acomodaram esse desejo, tendo como
foco a contratação de especialistas e a coleta
de dados cientícos para a produção de re-
latórios técnicos e banco de dados temático.
Diante da baixa visibilidade dos empreen-
dimentos do Complexo de Usinas Hidrelé-
tricas do rio Teles Pires, a temporalidade da
construção das quatro usinas, a complexida-
de necessária para garantir a mensuração e
criação de indicadores para impactos cumu-
lativos e sinérgicos, somada à limitação de
recursos nanceiros e humanos e os desa-
os logísticos para chegar às comunidades
impactadas, levaram o FTP a repensar o mo-
delo de monitoramento. O desao estava em
conciliar coleta e produção de informações
necessárias à elaboração de indícios, mate-
riais de comunicação, e peças jurídicas para a
denúncia e responsabilização das empresas
e órgãos ligados ao licenciamento.
Após a Caravana III, a equipe do FTP reali-
nhou os objetivos do monitoramento, reor-
ganizando as informações produzidas e es-
truturando um banco de dados como base
para a coleta independente de informações.
Ficou evidente a necessidade de impulsio-
nar atividades articuladas para a produ-
ção de resultados práticos de curto prazo.
Nessa virada, intensicaram-se as ações
de “articulação para resultados práticos”
(2) e “aprendizagem para a prática” (3). Foi
o momento de produção massiva de mate-
riais midiáticos, campanhas de comunica-
ção, ações de advocacy e litigância em rede.
As ações também se voltaram à ampliação
da rede em escala federal e internacional.
Muitos desses trabalhos ainda exigiram
novas Caravanas, agora com equipes re-
duzidas, o que implicava em menos esforço
logístico e organização prévia, bem como
menor custo de recursos humanos.
Nos espaços entre as Caravanas, as lide-
ranças Munduruku enviavam denúncias,
dados e informações relacionadas aos im-
pactos via WhatsApp. Esse processo de
retroalimentação exigia grande esforço da
equipe do FTP para organizar, sistemati-
zar e analisar todas as informações cole-
tadas. A ideia do aplicativo Proteja Ama-
zônia surgiu nesse contexto, como uma
ferramenta auxiliar do monitoramento
independente de impactos. O aplicativo
alia a cultura digital e articulação terri-
torial, amarrando o contexto local de im-
pactos aos tomadores de decisão nacional,
grupos e instituições de defesa de direitos,
permitindo a constante interlocução local-
-nacional. Com o aplicativo13, as comuni-
dades enviam informações simples, como
vídeos, fotos, pequenos textos ou áudios,
que são direcionadas automaticamente
para o banco de dados estruturado.
Esse processo produziu resultados sa-
tisfatórios, quanto a indícios para Ações
Civis Públicas, peças de comunicação e
relatórios (técnicos-jurídico-político-mi-
13 www.protejaamazonia.org
1.
32 Rede de Monitoramento Territorial Independente
diático) para a incidência e respon-
sabilização, em menor tempo, consi-
derando o cenário de menor aporte de
recursos humanos e nanceiros. Além
disso, o processo também possibilitou
avanços importantes quanto aos ganhos
do povo Munduruku nas negociações
junto às instituições licenciadoras e em-
presas construtoras.
O processo de monitoramento inde-
pendente do FTP foi eficaz e eficiente
como atividade meio, tendo em vista os
impactos diretos sofridos pelos povos
atingidos, considerando variáveis eco-
nômicas e temporais, uma vez que mo-
nitoramentos oficinais demandam mui-
to recurso e levam tempo maior do que
o previsto na construção e operação de
usinas hidrelétricas. Em um contexto de
vulnerabilidade social e impactos sobre
povos indígenas, cujas estratégias de
vida e soberania alimentar são altamen-
te dependentes de recursos ambientais,
demanda respostas rápidas e imediatas
a problemas presentes que afetam dire-
tamente a sobrevivência física e socio-
cultural destas comunidades.
CONCLUSÃO
O monitoramento independente, pro-
posto pelo Fórum Teles Pires e imple-
mentado junto ao Povo Munduruku, teve
como premissa a criação de processos au-
tônomos e contínuos dirigidos pelas co-
munidades atingidas, com apoio da rede
do FTP. Esse processo não teve a preten-
são de concorrer com ou substituir o mo-
nitoramento ocial, mas apontar diretri-
zes para onde este monitoramento deve
concentrar esforços, indicando os pontos
nevrálgicos dos impactos apontados pelas
comunidades que administram cotidiana-
mente os impactos gerados pelo complexo
de Usinas Hidrelétricas do rio Teles Pires.
O monitoramento independente do FTP
reconhece que processos de monitora-
mento convencional sistemático de bases
cientícas demandam grande período
de coleta de dados de campo, são caros
e complexos, e de difícil acesso às comu-
nidades amazônicas. A temporalidade
do monitoramento convencional está
muitas vezes desalinhada com as diver-
sas temporalidades demandadas pelo
processo de licenciamento. Além disso,
estes processos são tipicamente contro-
lados por empreendedores, nos quais evi-
denciam-se conitos entre interesses
econômicos privados e a necessida-
de de proteger ecossistemas, meios de
vida e direitos de populações locais. A
criação de processos de monitoramen-
to efetivamente participativos e inde-
pendentes pode ser uma trajetória inte-
ressante para a realidade dos impactos
de obras de infraestrutura na Amazônia,
considerando o seu caráter político, e a
diculdade de inuenciar processos de
licenciamento por meio da produção de
relatórios técnicos. Cabe ressaltar que ex-
periências de pesquisa e monitoramento
participativo, os quais visam propiciar o
empoderamento das comunidades envol-
vidas para o exercício da autodetermina-
ção e da defesa de seus direitos e territó-
rios, são processos de longo prazo, e que
não se iniciam e nem se nalizam no pe-
ríodo de execução de projetos especícos.
O monitoramento independente do FTP
emerge, portanto, como atividade fron-
teiriça entre o monitoramento conven-
cional e a mera denúncia de impactos, su-
perando algumas limitações inerentes a
estes dois processos. Esse monitoramento
1.
33 Rede de Monitoramento Territorial Independente
abre espaço para denúncias de impactos e
violações de direitos humanos, ao mesmo
tempo que constrói bases robustas de in-
formações, via parcerias entre comunida-
des, movimentos sociais, pesquisadores e
outros parceiros. Ao estruturar diagnós-
ticos cientícos e o banco de dados, o FTP
criou as bases que poderiam ser alimen-
tadas independentemente pelas comuni-
dades, sem o apoio de técnicos de especia-
listas, viabilizando a tradução e o diálogo
das informações enviadas em relatórios
técnicos, jurídicos e vídeos-denúncia, as-
sociados às ações de advocacy e litigância.
A retroalimentação do monitoramento
independente é resultado da conança
da comunidade de que os dados coleta-
dos gerariam benefícios reais de curto
prazo às necessidades dos indígenas, não
importando a complexidade do resulta-
do. Essa é uma outra característica im-
portante desejada em iniciativas de mo-
nitoramentos participativos (ATHAYDE,
2014; EVANS; GUARIGUATA; BRAN-
CALION, 2018). Os diálogos e negociações
contínuas e diretas com as lideranças in-
dígenas foi crucial para a consolidação
da conança. O comprometimento do
FTP com a formação prática, direciona-
da ao desenvolvimento de capacidades
que seriam mobilizadas em atividades
reais de negociação de direitos junto às
instituições formais, fortaleceu os pro-
cessos comunitários internos e assegu-
rou a manutenção das dinâmicas sociais.
Embora a metodologia desenvolvida te-
nha criado um círculo virtuoso para co-
leta e alimentação do banco de dados, as
temporalidades entre os impactos e as
respostas dos processos de litigância e ad-
vocacy na produção de resultados quan-
to ao estabelecimento de condicionantes
ou melhoria de PBAIs, foram discrepan-
tes. Essa metodologia se fortaleceu no
âmbito local, mas as ações de litigância e
advocacy exigem acompanhamento con-
tínuo e ações coordenadas entre esferas
territoriais distintas (local-global) para
que as informações produzidas tenham
impacto real quanto as necessidades das
comunidades. É necessário, que ações de
monitoramento independente venham
acompanhadas do fortalecimento de rede
em outras esferas de atuação. Nesse sen-
tido, VILLASENOR et al. (2016), em uma
revisão de literatura sobre experiências
de tradução das informações obtidas em
processos de monitoramento participa-
tivo para a efetiva tomada de decisão,
encontraram evidências de que o uso da
informação foi inuenciado pelo nível de
poder local e as conexões transescalares
ligadas a processos de tomada de decisão.
Os avanços proporcionados pelo moni-
toramento independente são permeados
por desaos quanto a capacidade da rede
em conduzir ações de advocacy e litigân-
cia que dialoguem e respondam às tempo-
ralidades aceleradas dos impactos e das
necessidades dos atingidos, ao mesmo
tempo que criem condições para o surgi-
mento de novas ações comunitárias que
extrapolem a dinâmica de resistência.
AGRADECIMENTOS
Gostaríamos de agradecer o apoio de
várias instituições, coletivos sociais, or-
ganizações indígenas e pessoas que têm
contribuído para os trabalhos e pesqui-
sas que subsidiaram a elaboração deste
artigo. Em especial, agradecemos a par-
ticipação e o protagonismo do Fórum
Teles Pires, do Coletivo Proteja Amazô-
nia, e do povo Munduruku do rio Teles
1.
34 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Pires. Ao Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB) pelo apoio e parceria
no desenvolvimento do monitoramen-
to independente em Sinop, frente às
UHE Sinop e Colíder. A Fernanda Sil-
va, antropóloga colaboradora do FTP e
professora do IFMT. Ao Instituto Cen-
tro de Vida pelo apoio institucional e
financeiro, à International Rivers pelo
apoio nas ações de advocacy e litigân-
cia. Ao Instituto Clima e Sociedade (ICS)
pelo apoio financeiro, fortalecimento
institucional e contribuição nas defini-
ções das estratégicas para o desenvol-
vimento deste trabalho. À Capes e ao
CNPq, pelo apoio ao Programa de Pós-
-graduação em Ciências do Ambiente
(PGCiamb) da Universidade Federal do
Tocantins (UFT) e à Rede Internacional
de Pesquisa em Barragens Amazônicas
(RBA/ADN/RIRA), através do Projeto
Pesquisador Visitante Especial (PVE) do
Programa Ciência sem Fronteiras (Pro-
cesso 88881.064958/2014-01). À Rede
Internacional de Pesquisa em Barragens
Amazônicas (RBA/ADN/RIRA), pela co-
-liderança na organização da Oficina do
Fórum Teles Pires em 2016.
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1.
37 Rede de Monitoramento Territorial Independente
2. Projetos de infraestrutura
no Tapajós: pressões do agronegócio
INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem por objetivo uma
reexão introdutória sobre as pressões
advindas da expansão da fronteira do
agronegócio e dos grandes projetos logís-
ticos e infraestruturais numa das áreas
estratégicas da Amazônia. Nessa pers-
pectiva, contextualiza-se a expansão do
agronegócio no Tapajós via os municípios
de Santarém e Itaituba para assim apre-
sentar a Bacia do Tapajós e as pressões
que vem sofrendo.
Em Santarém, apresentaremos as pressões
territoriais e logísticas, a partir da instala-
ção e operação do porto graneleiro e da
produção de soja na região. E, em Itaituba,
vamos descrever as mudanças e dinâmicas
quanto a demanda modal logística para es-
coamento da soja pela região. Com os efei-
tos da instalação do complexo de portos de
transbordo de cargas, o completo asfalta-
mento da BR-163 (Cuiabá-Santarém) e os
novos projetos ainda a serem executados,
como a instalação de ferrovia que preten-
de ligar as principais áreas produtoras do
Mato Grosso ao porto de Miritituba, vem
se percebendo que, tais dinâmicas, estão
acarretando um processo de reestrutura-
ção territorial, fruto do avanço da fronteira
agrícola, que necessitam ser monitoradas.
Espera-se com isso, mostrar um panorama
dessa realidade, para que a compreensão
dessas pressões seja um parâmetro que
possa auxiliar a organização e atuação
das populações tradicionais, via monito-
ramentos independentes e participativos,
frente às ameaças que poderão advir com
a concretização dos grandes projetos que
se conectam com tal expansão da fronteira
do agronegócio e pela perspectiva logística.
O texto é fruto de pesquisas e estudos dos
Andréa Leão1
Sandro Leão²
Antônia do Socorro Pena da Gama3
Wandicleia Lopes de Sousa4
1 Economista, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará e pesquisadora do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão
Socioeconômica da Amazônia (Gepesa). E-mail: andrea.leao@ufopa.edu.br.
2 Economista, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará e pesquisador dos Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão
Socioeconômica da Amazônia (Gepesa) e do Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas
(Gemap). E-mail: sandro.leao@ufopa.edu.br.
3 Professora do Curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Oeste do Pará. Coordenadora
do Projeto de Pesquisa Conitos socioambientais no setor pesqueiro na Várzea da Região do Baixo Amazonas. E-mail:
socorropgama@gmail.com.
4 Economista, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade, Natureza e Desenvolvimento (PPGSND) da Ufopa.
Pesquisadora dos Grupos de Estudos, Pesquisa e Extensão Socioeconômica da Amazônia (GEpesa) e do Projeto de Pesquisa
Conitos socioambientais no setor pesqueiro na Várzea da Região do Baixo Amazonas. E-mail: wandicleia@hotmail.com.
2.
38 Rede de Monitoramento Territorial Independente
autores na área de abrangência dentro
de um marco bibliográco, documental e
experiência de pesquisa de campo. Para
tanto, além desta breve introdução e das
considerações nais, seguem duas se-
ções: a primeira trata de contextualizar o
agronegócio no oeste do Pará, e a segun-
da disserta sobre os impactos dos grandes
projetos logísticos e infraestruturais na
Bacia do Tapajós, nalizando com o in-
dicativo de que ações de monitoramento
independente e participativo podem ser
de grande contribuição. Considerando que
tais discussões são a representação de dois
processos com o mesmo m: pressionar e
ameaçar as realidades e dinâmicas locais
da região amazônica sob a égide de ações
“de cima para baixo” e velhos discursos de
“integração e desenvolvimento”, pressões
históricas, que as populações tradicionais
e sociedade civil organizada da região “as-
sistem” se reproduzirem, mas anseiam por
ações que possam contribuir com o moni-
toramento e indicar caminhos diferentes.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO
AGRONEGÓCIO NO OESTE DO PARÁ
O sistema capitalista passa por intensas
transformações alterando os padrões de
consumo, produção e comércio, acarretan-
do uma ampliação da demanda por recursos
naturais para a produção de insumos e ali-
mentos. Soma-se a isso uma pressão sobre
as terras agricultáveis nas áreas de frontei-
ra dos países que ainda possuem reservas
para serem exploradas (WESZ JUNIOR, et
al., 2019). Segundo Silveira, et al. (2014), com
a grande quantidade de terras e aumentos
expressivos da produtividade no campo, o
Brasil tem expandido sua fronteira agrícola.
Além dessa expansão, o setor agrícola tem
sido o principal setor da pauta de exporta-
ção e, portanto, tem gerado divisas para
a economia. Esse processo pode revelar
uma possível reprimarização da pauta
exportadora em detrimento da diminui-
ção da industrial, com consequências
negativas para o país. Um fator impor-
tante tanto para aumento da exportação
quanto no plano internacional é a maior
demanda global por alimentos, em geral
e em particular por carnes, com aumento
dos preços internacionais das commodi-
ties agrícolas (SILVEIRA, et al., 2014).
O movimento de maior demanda por
alimentos estimula mais ainda a espe-
cialização do país e de seu complexo
agroindustrial em produtos primários.
Essa reprimarização recente, resultado
da liberalização econômica e expansão do
agronegócio, aumentou as exportações
de matérias-primas agropecuárias de bai-
xo valor agregado, ou seja, as chamadas
commodities agrícolas e minerais. O cres-
cimento das atividades do agronegócio
revela que essa dinâmica estrutural de
relativa dependência da exportação de
commodities ainda está presente e longe
de se exaurir (LEÃO, 2017a).
Ao comparar as exportações brasileiras
em termos agregados com as do agrone-
gócio, pode-se notar que, entre os anos
de 1990 até virada de 2010, houve um
crescimento vertiginoso dos setores li-
gados ao agronegócio nacional, em com-
paração aos outros setores econômicos,
demonstrando um relativo dinamismo
das atividades agropecuárias voltadas ao
comércio externo (LEÃO, 2017a). Esse
dinamismo para Contini (2014) foi fru-
to da abertura da economia brasileira,
da adoção de novas tecnologias e do au-
mento da demanda externa que elevou
os preços internacionais das principais
2.
39 Rede de Monitoramento Territorial Independente
commodities, criando condições de ren-
tabilidade para o setor. Apesar de haver
uma relativa diversicação da produção
do agronegócio brasileiro nas últimas dé-
cadas, as exportações do agronegócio ain-
da estão concentradas em cinco produtos,
com destaque para a soja, carnes, comple-
xo sucroalcooleiro e produtos orestais.
A dinâmica do agronegócio brasileiro está
relacionada ao aumento nas exportações e
se inicia na década de 1950 nas regiões Sul
e Sudeste, expandindo-se para o Centro-
-Oeste nos anos de 1970 e, num novo
processo expansionista, chega à região
amazônica no nal dos anos de 1990, via
região Centro-Oeste sentido oeste do es-
tado do Pará, tendo como rota a Rodovia
BR-163 (Cuiabá-Santarém) (LEÃO, 2017a;
LEÃO 2017b).
Inicia-se, com isso, a expansão da frontei-
ra agrícola, tendo como característica o
encontro de grupos sociais com estrutura
socioeconômica e perspectivas de desen-
volvimento distintas. Segundo Martins
(2009, p. 133), a fronteira é um “lugar de
encontro dos que por diferentes razões são
diferentes entre si [...]”, e também de de-
sencontro de “temporalidades históricas”.
Os atores do agronegócio cruzam com po-
pulações, povos e comunidades tradicio-
nais, os quais vivem em territórios dispu-
tados por projetos minerais, agropecuários
e unidades de conservação, emergindo
conitos e disputas entre sujeitos capita-
lizados e ribeirinhos, posseiros, quilombo-
las, indígenas e migrantes, evidenciando
a complicada situação fundiária. As áreas
rurais eram relativamente ocupadas por
pequenos produtores familiares, pecuaris-
tas e moradores rurais, de antigas frentes
de expansão do século XX, a exemplo dos
projetos de colonização dos anos 1970 e
frentes “espontâneas” anteriores, com a
vinda de populações do Nordeste para o
interior do Pará (LEÃO, 2017a.).
Desta forma, a região Oeste do Pará se en-
contra no centro da dinâmica de expan-
são da fronteira do agronegócio. O oeste
do Pará abrange 29 municípios (IBGE,
2020), equivalente a 59% da área total do
estado (732.509,5 km2) e 15% da popula-
ção (1.159.000 habitantes) (Idesp, 2011) e, a
partir do processo de expansão de frontei-
ra do agronegócio, tornou-se uma região
estratégica para esse setor tanto em nível
nacional como internacional, devido à sua
localização geográca. Do oeste paraense,
alguns municípios se destacam na cadeia
produtiva da soja, principalmente por ser-
vir de rota logística para facilitar e bara-
tear o escoamento da produção de grãos
do estado do Mato Grosso (LEÃO, 2017a).
Os municípios de Santarém e Itaituba
passaram a servir de rota de escoamento,
em função da Rodovia BR-163 (Cuiabá-
-Santarém) e dos portos/hidrovias existen-
tes. Com a operação, em Santarém, do por-
to da Cargill Agrícola S. A., no ano de 2003,
inicia-se o escoamento de grãos através de
barcaças de Porto Velho/RO, vindas pelos
rios Madeira e Amazonas. De Itaituba, tais
grãos chegam pela hidrovia do rio Tapajós
e vão até o município de Santarém, onde
o produto também é armazenado pela
Cargill Agrícola S. A., para rápido carre-
gamento em navios graneleiros, visando
atender aos mercados globais. Tal proces-
so, conta ainda com o uxo da Rodovia BR-
163 (Cuiabá-Santarém), rota Mato Grosso-
-Porto da Cargill, tornando essa rodovia
mais um importante segmento logísti-
co para o fortalecimento da expansão da
fronteira agrícola de grãos para a região
(LEÃO, 2017b).
2.
40 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Com a instalação do porto da Cargill em
Santarém, houve um estímulo à vinda de
produtores de soja, que aproveitaram para
adquirir terras e expandir seus negócios
familiares do Mato Grosso. Esses atores
empresariais estão territorialmente arti-
culados, buscando controlar os elementos
que viabilizam sua atividade na região
como: a terra, a logística de transporte e as
leis ambientais. Na segunda década deste
século XXI, a região de Itaituba/PA passou
a fazer parte da expansão dos negócios lo-
gísticos do agronegócio (LEÃO, 2017a).
Nessa região, estão projetadas diversas
estações de transbordo de cargas no dis-
trito de Miritituba, em Itaituba, e em área
do município de Rurópolis (Santarenzi-
nho)/PA. Esse movimento acabou deslo-
cando, em parte, os interesses das gran-
des tradings de Santarém, colocando em
destaque o município de Itaituba e muni-
cípios do entorno no contexto político e
econômico regional (LEÃO, 2017a).
A incorporação de áreas para a produção
de soja gerou problemas fundiários, am-
bientais e socioeconômicos. Esse processo
mobilizou grupos sociais locais a se orga-
nizarem em torno dos efeitos sociais da
concentração fundiária e impactos am-
bientais, decorrentes do desmatamento e
do uso de agrotóxicos (LEÃO, 2017a). For-
mam-se redes para conciliar interesses
entre atores locais e externos, inclusive
globais, para assegurar as condições polí-
ticas de controle dos recursos da região,
especialmente a terra (LEÃO, 2017b).
Do ponto de vista logístico, novas rotas,
para escoamento da produção de soja do
Mato Grosso, encontram nas alternati-
vas dos eixos modais ao norte do país a
sua principal opção para redução de cus-
tos de transporte. É perceptível a pressão
dos setores privados empresariais sobre o
Estado, não apenas para cobrar execução
das obras logísticas, mas também cobrar
a agilidade destas execuções, exigindo
por exemplo, a eliminação de barreiras
ambientais legais à execução das obras. É
relevante compreender os projetos para o
corredor Norte, onde se situam as obras e
investimentos no oeste do Pará.
O projeto “Arco Norte” propõe a implanta-
ção de logística intermodal de transporte
para diminuir a pressão sobre os portos da
Região Sudeste, cujos grãos vêm do Cen-
tro-Oeste, e criar condições mais competi-
tivas de exportação, aproximando os pro-
dutores nacionais dos mercados ao redor
do globo, com a redução de tempo e custo
dos fretes até os portos graneleiros. Esse
sistema de transporte ou logístico, através
de corredores (rodovias, hidrovias e ferro-
vias) e portos (graneleiros ou de transbor-
do), presentes ou através de projetos ainda
em fase de planejamento ou execução está,
por um lado, criando uma alternativa de
escoamento para exportação de grãos, e,
por outro, desencadeando grandes efeitos
e mudanças sobre as áreas e regiões afeta-
das pelos novos empreendimentos.
Na Figura 1, estão as rotas de escoamento
da produção de grãos entre o centro-oeste
e o norte do país, com exceção da Hidrovia
do Paraguai. As rotas de hidroviárias em
azul, mostram a hidrovia do rio Madeira
em funcionamento, entre os municípios
de Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM).
As outras não estão funcionando, ou não
funcionam plenamente, como a Juruena-
-Teles Pires-Tapajós, sendo apenas utili-
zada a rota entre Miritituba e Santarém
no Pará. Existem ainda projetos que de-
pendem da construção de hidrelétricas
2.
41 Rede de Monitoramento Territorial Independente
com eclusas, e/ou dragagem de rios, ou,
até mesmo, o derrocamento5 de pedrais,
como é o caso do Pedral do Lourenço,
para viabilizar a navegação permanente
na hidrovia Tocantins-Araguaia.
As ferrovias Norte-Sul e Carajás junto às
rodovias BR-158, BR-080 e BR-155, arti-
culam transporte multimodal para trans-
portar grãos, a partir de áreas do Mato
Grosso (Vale do Araguaia), Tocantins,
Piauí e Maranhão, até o porto de Itaqui
no estado do Maranhão. As outras fer-
rovias presentes na Figura 1, Ferronorte,
também conhecida como Ferrogrão e a
Ferrovia de Integração do Centro-Oeste,
ainda se encontram em fase inicial de im-
plantação. Destaca-se aqui a Ferrogrão,
um projeto da iniciativa privada que bus-
ca ligar o município de Lucas do rio Verde
(MT), uma região tradicional de produção
de grãos, com o Porto de Miritituba (PA),
ao lado do rio Tapajós.
Os trilhos dessa ferrovia, caso esta entre
em operação, correriam paralelamen-
te à Rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém),
promovendo uma integração dos modais
rodoviário, ferroviário e hidroviário (CO-
LETI, 2016). Há também a ampliação da ca-
pacidade de portos de embarque de grãos.
Em Santarém e Itaituba, o aumento de in-
vestimentos em instalações portuárias se-
gue no ritmo de crescimento da produção
5 Retirada de rochas ao longo de rios.
Figura 1. Estrutura de Transporte do Arco Norte. (Fonte: IMEA – 2016 apud MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, 2016).
2.
42 Red e de Monitoramento Territorial Independente
e exportação de grãos, produzidos no Mato
Grosso e no norte do país.
A situação socioeconômica dessa região,
particularmente em período de forte reces-
são econômica, falta de alternativas locais
de desenvolvimento e geração de emprego
e renda, levam grande parte da opinião pú-
blica e de grupos da elite a não se oporem
à instalação desses complexos portuários.
Está mais evidente, em Santarém, a forte
presença de organizações sociais histori-
camente constituídas, de moradores, de
populações tradicionais e de ONGs. Em Itai-
tuba, a luta política é pautada pelas contra-
partidas sociais e de infraestrutura frente
à execução de obras portuárias e uxo de
carretas de grãos (LEÃO, 2017a).
Dentre essas várias transformações ad-
vindas pelo contexto da expansão da
fronteira do agronegócio e de grandes
projetos logísticos e infraestruturais em
curso que, chamamos a atenção para as
pressões que a região vem sofrendo no
âmbito econômico, social, político, am-
biental e cultural. As ameaças às popu-
lações tradicionais e ao meio ambiente
amazônico são latentes. Dessa forma, fa-
z-se necessário a junção de saberes cien-
tícos e tradicionais, organização social
e instrumentos capazes de auxiliar tais
populações e sociedade civil organizada
a fazer frente a tais processos, reexões
que apresentaremos na próxima seção a
partir do contexto da Bacia do Tapajós.
AS PRESSÕES NA BACIA DO TAPAJÓS
E O MONITORAMENTO COMO
ALTERNATIVA DE AÇÃO
A bacia do rio Tapajós é considerada uma
das mais importantes sub-bacias da região
amazônica. Estende-se por aproximada-
mente 492.000 km² compreendendo os
estados do Pará, Mato Grosso, Amazonas,
e uma pequena área de Rondônia, inter-
ligando os biomas do Cerrado e da Ama-
zônia. Os principais tributários dessa área
territorial são: Jamanxim, Juruena e Teles
Pires. A união dos dois últimos, dentro do
estado do Pará, formam o rio Tapajós, com
extensão de 650 quilômetros (SCOLES,
2016). Dentro desse eixo territorial exis-
tem aproximadamente 74 (setenta e qua-
tro) municípios localizados às margens da
bacia do rio Tapajós, sendo 2 (dois) perten-
centes ao estado do Amazonas, 60 (sessen-
ta) ao estado do Mato Grosso, 11 (onze) ao
estado do Pará e 1 (um) ao estado de Ron-
dônia (WWF-BRASIL, 2016).
O espaço territorial que se encontra
dentro do estado do Pará possui em tor-
no de 221.992 km², representando 17,7
% do total da área territorial e uma po-
pulação de aproximadamente 244.742
habitantes. Entre as cidades que estão
dentro de terras paraenses, encontram-
-se Santarém, Aveiro e Itaituba, sendo que
os dois últimos municípios estão dentro
da Região de Integração do Tapajós (RI-
-Tapajós), composta por seis municípios:
Aveiro, Itaituba, Jacareacanga, Rurópo-
lis, Novo Progresso e Trairão. Na década
de 1960, foi uma área estimulada basica-
mente pelas atividades ligadas à explo-
ração mineral, em especial pelo ouro na
Província Mineral do Tapajós, período em
que ocorreu um grande uxo migratório
para a região (SCHUBER, 2013). A RI-Ta-
pajós é apontada como estratégica dentro
do Plano de Desenvolvimento Nacional
devido à sua potencialidade de geração
de energia e a sua localização privilegia-
da com referência à nova rota de escoa-
mento dos produtos agrícolas (graneleiro)
da região Centro-Oeste do país. Dentro
2.
43 Rede de Monitorame nto Territorial Independente
da RI-Tapajós existem 121.694,17 km²
composto por áreas protegidas, represen-
tando 40% do total do território, sendo
constituído de Unidades de Conservação
(21,7%) e Terras Indígenas (18,3%). As
Unidades de Conservação são divididas
em duas categorias: de Proteção Integral
(composto por três Parques Nacionais) e
de Uso Sustentável (composto por Flores-
ta Nacional, Reserva Extrativista e Área
de Proteção Ambiental). Essa região pos-
sui ainda a Reserva Garimpeira do Tapa-
jós, considerada a maior reserva mineral
do país, regularizada na década de 1980
e, desde então, vem sendo explorada na
atividade de garimpagem.
Dentre os projetos previstos e citados na
seção anterior para esse espaço territorial,
em questão, as maiores prioridades são: i)
Ferrovia Ferrogrão - terá aproximada-
mente 933 km, sendo apontada como o
corredor ferroviário para a exportação de
grãos (milho, soja e farelo de soja) do país
pelo Arco Norte, com a capacidade inicial
de 42 milhões de toneladas; ii) Asfalta-
mento da Rodovia BR-163 (Cuiabá-San-
tarém); e, iii) Construção das Estações de
Transbordo de Carga (ETC). Essa última
localizada no município de Itaituba, per-
mite o transporte multimodal, passagem
que faz a junção do sistema rodoviário
com o hidroviário. As ETC’s são usadas
para transportar a carga rodoviária para
a hidroviária, seguindo pelas barcaças
ao longo do rio até os mais importantes
portos do país, como: Cargill Agrícola S.
A (Santarém), Terminal Portuário Gra-
Figura 2. Mapa de Infraestrutura prevista para a Bacia do Tapajós. (Elaboração: The Nature Conservancy).
2.
44 Rede de Monitoramento Territorial Independente
neleiro (Barcarena) e o Santana (Amapá)
(SCHUMER, 2013).
Como mostrado na Figura 2, algumas es-
truturas previstas para serem implantadas
encontram-se em estágio bem avançado,
como é o caso das ETC’s que foram insta-
ladas em Miritituba (distrito do município
de Itaituba) e muito próximas de Unidades
de Conservação e Terras Indígenas. Nesse
local, alguns conitos começaram a sur-
gir, como o existente com os pescadores
artesanais da região, que são proibidos de
exercer sua atividade nas proximidades
de instalação das barcaças de soja. Outro
conito existente é o fundiário, em espe-
cial na Comunidade de Pimental e nos ar-
redores, onde muitos moradores tiveram
de abandonar suas unidades familiares,
pois com a efetivação do referido projeto,
os comunitários terão problemas com a
poluição sonora causada pelos transportes
que estão previstos circular no local. Além
disso, haverá alterações de infraestrutura
e especulações imobiliárias.
Com tudo que foi relatado até aqui é que
se evidencia que processos de monitora-
mentos independentes e participativos
podem vir a contribuir para o entendi-
mento, empoderamento e planejamentos
de ações capazes de suscitar espaços de
governança, onde as populações tradicio-
nais e sociedade civil organizada tenham
ferramentas e instrumentos para viabili-
zar sua manutenção no local, mesmo que
isso signique disputar espaços territo-
riais como vem acontecendo ao longo do
processo de ocupação da Amazônia. Nes-
se contexto, ações transparentes e viabi-
lizadas por processos de monitoramentos
participativos e independentes, podem
gerar socialização de conhecimento, ca-
pacitações, fortalecimento dos envolvi-
dos, disseminação de informação “em for-
mato amigável, [...], balizador ainda mais
poderoso de equidade que regras formais
em torno da tomada de decisão.” (FGV,
2018, 54). Dessa forma, pensar em mo-
nitoramentos participativos e indepen-
dentes para fazer frente às pressões dos
grandes projetos contemporâneos à Bacia
do Tapajós e entorno é pensá-lo como:
[...] monitoramento daquilo que se
executa e torna possível vericar
a adequação a metas e acordos es-
tabelecidos, portanto uma espécie
de amálgama entre planejamento
e sua efetiva realização. Esta ob-
servação contínua e devidamente
compartilhada permite também
revisar e repactuar os próprios
planos à luz do dinamismo e cir-
cunstâncias, tão característico do
processo de instalação de uma
grande obra (FGV, 2018, p. 54).
Na citação acima, portanto, temos impor-
tantes elementos para vermos o monitora-
mento independente e participativo como
um relevante instrumento, capaz de subsi-
diar processos dinâmicos de conhecimen-
to, mobilização e atuação. Este ensaio faz
parte de pesquisas e estudos dos autores na
área de abrangência, dentro de um marco
bibliográco, documental e experiência de
pesquisa de campo que tem na prática do
monitoramento independente uma for-
ma de atuação e conexão com a região em
questão. Assim, a busca de associar a pes-
quisa cientíca com técnicas participativas
e envolvimento das populações tradicio-
nais e sociedade civil organizada passa a
ser usada como uma forma de acompa-
nhamento do que vem sendo proposto
na Bacia do Tapajós e, por meio de apoio
técnico nas pesquisas e ações pontuais
2.
45 Red e de Monitoramento Territorial Independente
vem agregando o acúmulo de informa-
ções sobre a região, ao mesmo tempo que
vem permitindo parcerias e articulações
entre cientistas e populações tradicionais,
manter e fortalecer tais parcerias com cer-
teza proporcionará uma melhor visão dos
processos contribuindo para articulações
e defesa da região da Bacia do Tapajós.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto acima buscou apresentar de for-
ma breve e resumida, uma realidade que
vem se perpetuando historicamente nos
povos amazônicos e que nos alertam
para as frequentes pressões e ameaças
no território das populações tradicionais.
Sob a égide de termos nada novo como
“integração, progresso e desenvolvi-
mento”, tais territórios continuam sendo
ameaçados socialmente, espacialmente e
culturalmente. Nessa perspectiva o mo-
nitoramento antecipado e mobilizações
em defesa das populações tradicionais e
do seu território são fundamentais para
que tais pressões desenvolvimentistas
não avancem, promovendo mudanças so-
cioambientais desastrosas na região.
Dito isso, este texto, por ora, tem como
função ajudar na reexão desses proces-
sos, reconhecer que tais pressões são uma
realidade e que impactam o território
amazônico. E, não tendo um caráter con-
clusivo, coloca-se como uma colaboração
na reexão de realidades locais e ratica a
importância do monitoramento desses pro-
cessos para que nos permita subsidiar os
atores locais na defesa dos seus territórios.
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em: 20 de janeiro de 2021. 2.
47 Rede de Monitoramento Territorial Independente
3. Xingu, o rio que pulsa em nós:
monitoramento independente para
registro de impactos da UHE Belo
Monte no território e no modo de
vida do povo Juruna (Yudjá) da
Volta Grande do Xingu
Em 20 de abril de 2010, o leilão para con-
cessão e comercialização de energia da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte foi rea-
lizado pela Aneel (Agência Nacional de
Energia Elétrica) com uma duração his-
tórica de apenas sete minutos2. Esses sete
minutos alteraram de forma irreversível a
vida de diversos povos indígenas e comu-
nidades ribeirinhas no Médio Xingu. A re-
gião da Volta Grande do Xingu, tornou-se
o epicentro das cadeias de impactos da hi-
drelétrica em decorrência de sua engenha-
ria baseada na tecnologia o d’água, que
consiste no desvio do uxo do rio Xingu
para um canal de derivação que alimenta
as turbinas de geração de energia elétrica.
Além dos impactos de Belo Monte, a Volta
Grande do Xingu está ameaçada por outra
grande obra: um projeto de mineração da
empresa canadense Belo Sun Mining Ltda.
O Projeto Volta Grande de mineração tem
como objetivo se tornar a maior mina de
exploração de ouro a céu aberto do país. A
menos de 50 km da barragem principal da
UHE Belo Monte e de de 9,5 km da Terra
Indígena (TI) Paquiçamba, o projeto prevê
o uso de cianeto no manejo dos minérios –
Thais Mantovanelli1
1 Thais Mantovanelli é antropóloga associada ao Programa Xingu do ISA (Instituto Socioambiental). Doutora em antropologia
pela Universidade Federal de São Carlos, realizou pesquisa em etnologia indígena sobre a relação do povo Mebengôkre-
-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá com a política dos brancos através do licenciamento e construção da usina
hidrelétrica de Belo Monte, na Amazônia paraense. Desde de 2017 apoia o monitoramento independente do povo Juruna
Yudjá da Volta Grande do Xingu sobre os impactos de Belo Monte negligenciados nos relatórios ociais compilados e
divulgados pela empresa concessionária Norte Energia. A partir de 2018, iniciou a pesquisa de pós-doutorado, realizada na
UFSCar em pareceria com o ISA, desenvolvendo análise comparativa das narrativas de impacto dos povos Mebengôkre-
-Xikrin e Juruna Yudjá da Volta Grande do Xingu com foco nas ações de resistência e nas práticas insurgentes desses povos
em defesa de seus territórios e regimes de existência.
2 O consórcio Norte Energia é formado por nove empresas: Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF), com 49,98%;
Construtora Queiroz Galvão S/A, com 10,02%; Galvão Engenharia S/A, com 3,75%; Mendes Junior Trading Engenharia
S/A, com 3,75%; Serveng-Civilsan S/A, com 3,75%; J Malucelli Construtora de Obras S/A, com 9,98%; Contern Construções
e Comércio Ltda, com 3,75%; Cetenco Engenharia S/A, com 5%; e Gaia Energia e Participações, com 10,02%. Disponível
em: http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/noticias/Output_Noticias.cfm?Identidade=3385&id_area=90. Acessado em 08
de março de 2011.
3.
48 Rede de Monitoramento Territorial Independente
substância extremamente tóxica para o
solo e para os corpos hídricos –, e os estu-
dos ambientais do empreendimento pre-
veem o risco de rompimento da barragem
como alto. Assim, ao mesmo tempo que
Belo Monte representa um elemento que
torna a exploração do projeto de minera-
ção ambientalmente muito arriscado, Belo
Sun também representa um novo elemen-
to a ser considerado por Belo Monte nos
cálculos de projeções de impactos sobre o
ambiente e as comunidades da região3.
Com o advento de Belo Monte e diminuição
de vazão das águas da Volta Grande do Xin-
gu, os Juruna têm vivido mudanças signi-
cativas no seu modo de vida com a redução
de peixes e perda de soberania alimentar.
O povo Juruna Yudjá compartilha uma re-
lação de pertencimento e mesmo de con-
tiguidade com o rio Xingu, especialmente
com a Volta Grande. Em suas narrativas
míticas, sua origem e a do rio é concomitan-
te e consubstancial. Essa origem consubs-
tanciada mostra as importantes reexões
ontológicas desse povo canoeiro funda-
mentadas pela co-evolução e pela codepen-
dência com as águas e os uxos do rio.
Foi por um sopro. Assim se criou
a Volta Grande do Xingu, as ca-
choeiras do Jericoá e o próprio
povo Juruna (Yudjá), fruto da ação
do demiurgo Senã’ã, no início dos
tempos. Das pegadas dos primeiros
humanos, outros sopros zeram
3 Entre as diversas questões problemáticas do projeto, a magnitude dos seus impactos ocorrerá na mesma região recém-
-impactada pela construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, e que se encontra em fase de monitoramento ao
menos até 2025, devido às instabilidades em termos de impactos ambientais que a usina vem causando. O processo de
licenciamento de Belo Sun é marcado por diversas manifestações para suspensão por parte do Ministério Público Federal
e Estadual. As instituições apontam diversas falhas no licenciamento e na condução dos estudos de impacto ambiental
do projeto. Entre elas, a não realização de consulta livre, prévia e informada junto às comunidades ribeirinhas da Volta
Grande do Xingu e o subdimensionamento dos impactos considerando os efeitos cumulativos e sinérgicos da construção e
operação da hidrelétrica de Belo Monte.
Figura 1. Mapa que destaca os empreendimentos que impactam a Volta Grande do Xingu. (Fonte: Pezzuti, et al, 2018, p. 08).
3.
49 Red e de Monitoramento Territorial Independente
surgir mais e mais pessoas, que
povoaram aquela região do Xingu.
(Xingu pulsa em nós, p. 11)
Essa referência mítica é também a expe-
riência histórica desse povo com o território.
Canoeiro, o povo Juruna (Yudjá)
estabeleceu-se na região deslo-
cando-se pelas ilhas, onde xa-
vam suas aldeias. Com a chegada
dos não indígenas à região de Al-
tamira, os Juruna (Yudjá) passa-
ram por severos ataques visando
ao deslocamento compulsório de
seu território e ensejando uma
perversa depopulação, particular-
mente em meados dos anos 1930.
Parte do grupo decidiu, então,
migrar. Saíram com suas canoas
para a montante do rio Xingu, es-
tabelecendo-se ao m de uma lon-
ga jornada no Território Indígena
do Xingu (TIX), anteriormente
conhecido como Parque Indígena
do Xingu. Outra parte, entretanto,
manteve-se no território, nela in-
cluso o grupo do chefe Muratu, im-
portante personagem que marca a
descendência dos Juruna (Yudjá)
que permaneceram na região da
Volta Grande do Xingu. Essa par-
te do grupo que não subiu o rio
considera-se um povo sofrido, que
precisou lutar para a garantia de
seu território e para a manutenção
de seu modo de vida. O o dessa
luta envolve desde os massacres
ocorridos em conitos fundiários
e pressões territoriais de fazen-
deiros até, mais recentemente, a
batalha contra os graves efeitos
da usina hidrelétrica (UHE) Belo
Monte. (Xingu, pulsa em nós, p. 11)
Uma das medidas de compensação dos
impactos adotada pela concessionária
Norte Energia, maior acionista da hi-
drelétrica, tem sido a abertura de grandes
roças nas aldeias da Terra Indígena. Essa
medida ocasionada pelo “roubo da água
do Xingu”, como dizem os Juruna quando
se referem a Belo Monte, tem um efeito
perverso na vida desse povo. “Ter de se
adaptar a viver no seco”, nas palavras de
Belo Juruna, gura um movimento de
desconexão dos Juruna com o Xingu. Os
Juruna Yudjá, povo canoeiro que “tem ca-
noas no lugar dos pés”, não se submetem
a essa mudança passivamente. Os Juruna
Yudjá lutam pelas águas do rio, pelo uxo
adequado de sua vazão, pela permanên-
cia no seu território de origem. Gente da
água, cujos corpos negam-se a ter de se
adaptar a viver no seco. O monitoramen-
to ambiental territorial independente é
um instrumento dessa luta.
Em 2013, os Juruna iniciaram as ativi-
dades do monitoramento independente
junto a pesquisadoras e pesquisadores da
Universidade Federal do Pará (UFPA) com
apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
Através de ocinas preparatórias foram
denidos o escopo e os procedimentos
metodológicos a serem adotados a partir
de esforços colaborativos. O objetivo foi
a construção de uma base de dados con-
ável capaz de mapear as alterações na
vida dos Juruna (Yudjá) da Volta Grande
do Xingu após a construção e a operação
da usina hidrelétrica (UHE) Belo Monte.
Desse modo, seria possível a comparação
com dados coletados antes do início de
construção da hidrelétrica.
Para o monitoramento da pesca, foi denida
a metodologia de registro de desembarque
pesqueiro, por meio da utilização de for-
3.
50 Rede de Monitoramento Territorial Independente
mulários chamados de agendas de pesca.
As agendas de pesca permitiram o registro
diário da atividade pesqueira, garantindo a
coleta de informações básicas imprescindí-
veis para determinação do volume pescado,
o esforço de pesca e as áreas em que a ati-
vidade é realizada. Essas informações são
ferramentas fundamentais de acompanha-
mento e avaliação, além de possibilitarem o
estabelecimento de tendências para a ativi-
dade e o recurso pesqueiro.
Com relação ao monitoramento do con-
sumo alimentar, o protocolo foi o de que
pesquisadores e pesquisadoras Juruna
(Yudjá) passariam a pesar todo o ali-
mento consumido nas unidades fami-
liares da aldeia ao longo de um dia da
semana, definido por seleção aleatória.
Nesse dia, todo o alimento consumido
era categorizado e pesado com auxílio
de balanças. As informações, coletadas
a cada refeição, incluem horário, núme-
ro de pessoas e quantidade (em gramas)
de cada tipo de alimento, como carne de
gado, enlatado, peixe ou caça designa-
dos pelo nome local.
A relação entre soberania alimentar e
qualidade ecossistêmica da fauna aquática
é um ponto crucial do monitoramento. A
vazão reduzida provocada por Belo Monte
acarretou na diminuição do pescado e na
ausência das piracemas, reprodução dos
peixes que é realizada em canais alagados
das ilhas aluviais. Essa diminuição e a per-
da da qualidade dos peixes pescados têm
levado a um grave contexto de insegu-
rança alimentar na Volta Grande do Xin-
gu, como mostram as análises dos juruna.
O engajamento juruna na realização de
monitoramento independente dos im-
pactos de Belo Monte têm sido um instru-
mento fundamental na luta pelos direitos
dos povos da Volta Grande e um levante
contra a lógica do subdimensionamento
de impactos que marca o licenciamento e
a operação da hidrelétrica. Esses esforços
de engajamento em pesquisas colabora-
Figura 2. Consumo de proteína animal pelos Juruna (Yudjá) da aldeia Mïratu, TI Paquiçamba. Gráco sobre impactos na segurança
alimentar na Volta Grande confeccionado a partir dos dados do monitoramento independente juruna. (Fonte: Pezzuti et al 2018, p. 42).
53% Peixe
6% Quelônios
3% Criação
20% Produção
da cidade
12% Caça
2014
56% Peixe
25% Produção
da cidade
13% Caça
4% Quelônios
2% Criação
2015
41% Peixe
2% Quelônios
1% Criação
50% Produção
da cidade
6% Caça
2016
32% Peixe
60% Produção
da cidade
1% Quelônios
6% Criação
2017
12% Caça
3.
51 Rede de Monitoramento Territorial Independente
tivas dependem de determinadas condi-
ções materiais para se consolidarem. É
impossível descrever os efeitos das expe-
riências de monitoramentos independen-
tes sem mencionar as condições necessá-
rias para suas realizações. Como qualquer
pesquisa, a pesquisa colaborativa, que
fundamenta o monitoramento indepen-
dente juruna, precisa de tempo (dimen-
são fundamental), recursos nanceiros
que sejam sensíveis à necessidade desse
tempo, e necessidade de continuidade das
ações. Sem essas condições asseguradas,
experiências como o monitoramento in-
dependente juruna não se concretizam.
OBSERVATÓRIO DA VOLTA GRANDE
DO XINGU: MONITORAMENTO
INDEPENDENTE JURUNA E REDE DE
PESQUISADORES
Nos anos de 2017 e 2018, os Juruna Yudjá
convidaram cientistas de diversas áreas
do conhecimento para a Canoada Xingu,
evento de turismo de experiência de base
comunitária realizado em parceria com o
ISA. A Canoada tem sido uma ação fun-
damental de visibilização e fortalecimen-
to da relação de pertença dos Juruna com
o rio Xingu e suas corredeiras, bem como
um importante instrumento de armação
de seus conhecimentos tradicionais sobre
o rio, a dinâmica de seus uxos, os modos
de vidas de espécies de peixes, a impor-
tância das orestas aluviais e a dinâmica
da vida na Volta Grande. Instrumento da
luta juruna pela defesa do rio e seus u-
xos, a Canoada cria espaços de conexão
com os participantes que vivem a expe-
riência de remar pelos canais rochosos
da Volta Grande do Xingu. A Canoada
Xingu tornou-se um seminário uvial
para discussão sobre os impactos de Belo
Monte a partir dos dados e das análises do
monitoramento independente. Do semi-
nário uvial da Canoada Xingu nasceu o
Observatório da Volta Grande do Xingu,
uma rede de pesquisadoras e pesquisado-
res indígenas e não indígenas dedicada a
monitorar os impactos de Belo Monte, ne-
gligenciados nos relatórios e documentos
produzidos pela empresa concessionária
Norte Energia, maior acionista do em-
preendimento hidrelétrico4.
Os dados e as análises colaborativas foram
publicados em 2018 com título “Xingu, o
rio que pulsa em nós. Monitoramento in-
dependente para registro de impactos da
UHE Belo Monte no território e no modo
de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta
Grande do Xingu”. Além da publicação,
uma animação baseada no monitoramen-
to independente foi produzida e premiada
na 27ª edição do festival de animação Ani-
maMundi em 2019.
O princípio norteador do monitoramen-
to independente juruna e do Observatório
da Volta Grande do Xingu foi denido por
Natanael Juruna no seminário para aná-
lise conjunta das informações existentes e
coletadas realizado no Núcleo de Altos Es-
tudos Amazônicos (Naea) na Universidade
Federal do Pará no campus de Belém: “Não
estamos monitorando nossa própria mor-
te nem a morte dos peixes e das tracajás.
Nosso monitoramento tem o objetivo de
defender a vida na Volta Grande do Xin-
gu e de parar o Hidrograma de Consenso”.
Hidrograma de consenso são as previsões
4 Juarez Pezzuti, Cristiane Carneiro, Jansen Zuanon, André Sawakuchi, Eder de Paula, Camila Ribas, Ingo Wahnfried,
Fernando D’Horta, Marcelo Camargo, Priscilla Lopes, Tanoa Stolze Lima, Alberto Akama, Bivvuany Rojas, Carolina Reis,
Thais Mantovanelli.
3.
52 Re de de Monitoramento Territorial Independente
dos volumes de água que irão passar pela
região da Volta Grande do Xingu após a
instalação de todas as turbinas de Belo
Monte realizada em 2020. Os volumes
desviados da região servirão para produ-
ção de energia. O roubo das águas da Vol-
ta Grande do Xingu, como nominam os
Juruna, é a principal característica da en-
genharia de Belo Monte. A água que an-
tes passava pela região nos seus ciclos de
cheia, vazão, seca e enchente é desviada
para alimentar as turbinas da hidrelétrica
e gerar energia. Preso pelo barramento, o
uxo das águas do Xingu passa ser con-
trolado por uma maquinaria de liberação
e retenção conforme os volumes de vazão
previstos pelo hidrograma de consenso.
Os Juruna, homens e mulheres, armam
a denição desses volumes como incapa-
zes de manter a vida e sua reprodução na
Volta Grande do Xingu. Na publicação de
seu monitoramento independente, o ano
de 2016 foi nominado como “ano do m
do mundo”, marcado por uma drástica di-
minuição de tracajás e grande mortanda-
de de peixes. Naquele ano, o máximo do
volume de vazão para a Volta Grande do
Xingu atingiu, na época da cheia, 10.000
m³/s. Os volumes propostos pelo hidro-
grama, em seu melhor cenário, atingirá
apenas 8.000 m³/s. Em seu pior cenário,
o hidrograma prevê 4.000 m³/s.
Nós somos daqui, estamos falando
da Volta Grande do Xingu. Nosso
povo é da Volta Grande do Xingu.
Daqui surgimos e aqui estamos.
Aqui é nossa região. Nosso povo e a
Volta Grande do Xingu merecemos
respeito (Gilliarde Juruna, aldeia
Miratu, comunicação pessoal)
A composição dos Juruna com pesquisa-
dores e pesquisadoras através do Obser-
vatório do Xingu tornou evidente, por
meio de um procedimento metodológico
de pesquisa colaborativa, a incapacidade
de aplicação dos volumes previstos pe-
los hidrograma de consenso do ponto de
vista da manutenção das condições da
reprodução da vida na Volta Grande do
Xingu. Os Juruna provocaram também
questões político epistemológicas sobre
como levar a sério, no sentido de levar
às últimas consequências, a armação de
Figura 3. Capa da publicação do monitoramento independente dos Juru-
na Yudjá da Volta Grande do Xingu. Fonte: https://www.socioambiental.
org/pt-br/noticias-socioambientais/xingu-o-rio-que-pulsa-em-nos-juru-
na-denunciam-impactos-de-belo-monte.
Para acesso ao vídeo premiado:
https://www.youtube.com/watch?v=fh1mwlwOzLw.
3.
53 Rede de Monitoramento Territorial Independente
ser um povo canoeiro, ter canoas no lugar
dos pés, ter o Xingu como seu pai e sua
mãe, ter o Xingu correndo no seu sangue,
“um rio que pulsa em nós”.
Em 2019, um conjunto de pesquisadores e
pesquisadoras que compõem o Observa-
tório da Volta Grande do Xingu publicou
um artigo acadêmico na revista do Núcleo
de Altos Estudos Amazônicos da UFPA
questionando a viabilidade ambiental,
social e ecossistêmica dos volumes defen-
didos pelos hidrograma de consenso. O
artigo, inspirado nas análises do monito-
ramento independente Juruna, tornou-se
um importante instrumento para avalia-
ção técnica do Ibama, órgão licenciador
da hidrelétrica, sobre essa questão. Em
seu parecer técnico do mesmo ano da pu-
blicação do artigo, o órgão determinou à
Norte Energia que adotasse volumes mais
adequados que fossem capazes de garan-
tir as condições de reprodução da vida na
Volta Grande do Xingu.
Ademais, o documento apresenta
uma análise sobre a ecologia dos
Pacus, com base no monitoramen-
to independente realizado pelos
Juruna (Yudjá) em parceria com a
UFPA. O estudo avalia os impactos
da UHE Belo Monte sobre a ali-
mentação desses peixes. Segundo
os pesquisadores, “os resultados
comprovam que os pacus são de-
pendentes do pulso de inundação
para a sua alimentação e que a al-
teração da dinâmica hidrológica sa-
zonal interfere negativamente na
ecologia alimentar e na saúde dos
Figura 4. Gráco das vazões com destaque ao “ano do m do mundo” e os volumes defendidos pelo hidrograma de consenso.
(Fonte: Pezzuti, et al 2018, p. 39).
20000
18000
16000
14000
12000
10000
8000
6000
4000
2000
0
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Vazão m3/s
(média 1931 a 2008)
Vazão m3/s
(média 2006)
Hidrograma
de Consenso A
Hidrograma
de Consenso B
3.
54 Rede de Monitoramento Territorial Independente
peixes.” Além disso, a quantidade
de água vertida para o TVR é insu-
ciente para a manutenção dos pa-
cus. Ressalta-se que os pacus são o
principal tipo de pescado consumi-
do e comercializado pelos Juruna
(Yudjá). (IBAMA, Parecer técnico,
n.133, 2019)
Ainda que o órgão ambiental posterior-
mente tenha declinado da decisão da
necessidade de aplicação imediata de um
hidrograma provisório com maior capa-
cidade para manutenção e proliferação
das relações ecossistêmicas locais devido
a pressões externas, o parecer de 2019 é
um importante marcador do reconheci-
mento técnico da inviabilidade ambiental
dos volumes defendidos pelo hidrograma
de consenso. Como destaca o artigo men-
cionado acima:
Não existe certeza sobre os impac-
tos socioambientais decorrentes da
possibilidade de implementação do
Hidrograma de Consenso (PEZZU-
TI et al., 2018). Não há qualquer es-
tudo demonstrando a extensão ou
a proporção de pedrais e orestas
aluviais que serão de fato alagados
com os respectivos hidrogramas A
e B. Não há, ainda, qualquer estu-
do especíco do EIA-Rima, ou pos-
terior ao mesmo, que indique ou
demonstre que a manutenção de
médias mensais de 4.000 m³/s e de
8.000 m³/s apenas no mês de abril,
durante o período chuvoso (“inver-
no”), vão garantir a vigência dos
processos ecológicos associados aos
pulsos anuais de inundação na Vol-
ta Grande. Em outras palavras, não
há nenhum estudo ou evidência de
que os hidrogramas vão possibilitar
as migrações trócas e reproduti-
vas da fauna aquática para as áreas
inundáveis, nem tampouco a ma-
nutenção dos padrões e processos
Figura 5. Excerto da publicação do monitoramento independente juruna. (Fonte: Pezzuti et al 2018, p. 27-28).
3.
55 Re de de Monitoramento Territorial Independente
ecológicos que caracterizam as co-
munidades dos ambientes aluviais
(ZUANON et al, 2019, p. 27).
Além disso, as previsões de volume do
hidrograma de consenso não são ade-
quadas ao atual contexto de emergência
climática e intensicação do desmata-
mento na Amazônia, como ressalta An-
dré Sawakuchi do Instituto de Geociên-
cias da Universidade de São Paulo, que
compõe o Observatório do Xingu.
O hidrograma de consenso leva ao
conito pela água do Xingu. A res-
trição hídrica na Volta Grande pre-
vista pelo chamado Hidrograma de
Consenso é muito severa, pois mais
de 70% da água da Volta Grande do
Xingu será desviada para produ-
ção de energia. Em alguns meses,
o volume de água desviada pode
chegar próximo a 90%. Isto causa
uma condição de seca nunca antes
vista ou vivida na região. A água da
Volta Grande vem do Alto Xingu e
depende da cobertura orestal na
bacia. Então, a chuva depende da
presença da oresta. Menos o-
resta, menos água para o Xingu.
A disponibilidade de água no Xin-
gu pode diminuir ainda mais nas
próximas décadas com a mudança
climática. Alguns estudos sugerem
que a mudança climática pode le-
var à redução da vazão em 30%
nas próximas décadas. O projeto
da barragem foi feito a partir da
disponibilidade de água das últimas
décadas, período quando a bacia do
Xingu tinha maior cobertura o-
restal e estava sob menor ameaça
da mudança climática. Portanto, a
hidrelétrica não foi pensada para
operar nas condições atuais e futu-
ras. Isto poderá intensicar ainda
mais o conito pela água imposto
pelo Hidrograma de Consenso (co-
municação pessoal).
Em novembro de 2020, em meio à pande-
mia e cinco anos após a liberação da licença
de instalação da hidrelétrica de Belo Mon-
te, povos indígenas e ribeirinhos da Volta
Grande do Xingu, ocuparam e paralisaram a
BR-230, mais conhecida como Transamazô-
nica, por cinco dias. “Viemos aqui defender a
piracema dos peixes do Xingu”, declaram em
uma de suas cartas manifesto da ocupação:
Estamos aqui com as nossas vidas
para defender a vida do Xingu.
Belo Monte quer nos matar de-
vagar, como está fazendo com o
Xingu, com as plantas, os animais,
os peixes. Mas não vamos morrer
sem gritar. Estamos aqui mostran-
do esse nosso grito pela água e pela
vida. Parem de nos matar! Parem
de roubar as águas do Xingu!
Os povos da Volta Grande seguem de-
nunciando os graves impactos de Belo
Monte associados à redução da vazão do
rio Xingu para geração de energia. Esses
povos recusam a morte do rio Xingu e lu-
tam pelo seu direito de existir. A existên-
cia desses povos está diretamente rela-
cionada com a existência dos regimes de
uxo do rio que promovem delicadas re-
lações ecossistêmicas geradoras da vida.
Eduardo Viveiros de Castro, renomado
antropólogo brasileiro, num esforço de
tipicação antropológica de sustentação
jurídica do conceito etnocídio arma que:
[...] ações etnocidas podem ser co-
metidas como “resultado não in-
3.
56 Rede de Monitoramento Territorial Independente
tencional” ou “dano colateral” de
decisões, projetos e iniciativas de
governo cujo objetivo precípuo
não é a extinção sociocultural e
desguração étnica de uma cole-
tividade, mas antes a realização
de “projetos de desenvolvimento”
(grandes obras de infraestrutura
como barragens, estradas, plantas
industriais, extração minerária e
petroleira) que visariam ostensiva-
mente beneciar toda uma popu-
lação nacional. Visto, porém, que
as instâncias de planejamento e
decisão dos Estados que sancionam
e implementam tais projetos têm
o dever incontornável de estarem
amplamente informadas sobre
os impactos locais de suas inter-
venções sobre o ambiente em que
vivem as populações atingidas, o
etnocídio é frequentemente uma
consequência concreta e efetiva, a
despeito das intenções proclama-
das do agente etnocida, e torna-se
assim algo tacitamente admitido,
quando não estimulado indireta e
maliciosamente por supostas ações
de “mitigação” e “compensação”
que, via de regra, tornam-se mais
um instrumento ecaz dentro do
processo de destruição cultural, em
total contradição com seu propósi-
to declarado de proteção dos modos
de vida “impactados”. (VIVEIROS
DE CASTRO, 2017)
Os Juruna e os ribeirinhos são como as
espécies endêmicas de peixes da Volta
Grande, dependem das relações ecos-
sistêmicas associadas ao uxo de vazão,
enchente, e cheia do rio. Algumas dessas
espécies estão correndo risco de extin-
ção, como o acari-zebra (Hupancistrus
zebra), alertou Jansen Juanon, ecólogo
associado ao Instituto Nacional de Pes-
quisas da Amazônia que compõe o Ob-
servatório da Volta Grande do Xingu.
Segundo nossa legislação, é proibi-
do extinguir espécies consciente-
mente. Mas como podemos provar
Figura 6. Registro fotográco do movimento de paralisação da BR-230 em novembro de 2020. Créditos: Lilo Clareto. (Fonte:
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/roubo-das-aguas-do-xingu-ribeirinhos-indigenas-e-agriculto-
res-protestam-contra-belo-monte-no-para).
3.
57 Red e de Monitoramento Territorial Independente
que espécies estão sendo extintas
em decorrência dos impactos de
Belo Monte e a redução da vazão
do rio Xingu em sua Volta Grande?
Isso só será possível quando elas
forem extintas? Esse é um enor-
me contrassenso. A perda de 80%
de água na Volta Grande do Xingu
signica perda equivalente nas po-
pulações das espécies de peixes. Es-
tamos diante de um enorme risco
de extinção de diversas espécies da
fauna aquática, muitas delas endó-
genas da região.
Em julho de 2018, na cidade de Altamira,
homens e mulheres Juruna Yudjá reuni-
ram-se na sede do Instituto Socioambien-
tal (ISA) para realização dos preparativos
da 5ª Canoada Xingu. Durante a reunião,
o cacique Gilliarde Juruna da aldeia Mi-
ratu da Terra Indígena Paquiçamba, soli-
citou que as camisetas do evento trouxes-
sem a foto do zebrinha, nome regional do
peixe ornamental anteriormente referi-
do. O cacique explicou sua solicitação.
Esse ano nossa camiseta terá a foto
do zebrinha. Porque somos como
o zebra, sabe? Precisamos da cheia
do rio Xingu. Se acabarem com o
inverno, com a cheia do rio, corre-
mos o risco de entrar em extinção,
como está acontecendo com esse
peixe ornamental. Isso precisa ser
mostrado. O zebra deve estar na
parte da frente das camisetas dessa
Canoada.
Dona Graça Juruna, da Terra Indígena Pa-
quiçamba, decidiu criar tracajás em tonéis
e tinas d’água em sua casa. Em buscas co-
tidianas pela Volta Grande do Xingu, seu
marido, Pedim, em sua rabeta, recolhe as
espécies que encontra em situação de fome
e doença ocasionada pela usina hidrelétrica
de Belo Monte, o roubo das águas do Xin-
gu. Enquanto isso, ela alimenta e troca a
água de seus tonéis cheios desses animais
que orgulhosa mostra como já estão gor-
dinhas e fortes. Muitas pessoas disseram
para Dona Graça que essa era uma atitude
impossível, criar tracajás no quintal da casa.
Figura 7. Imagem de criança juruna mergulhando no rio Xingu, durante a realização da 4ª Canoada. Crédito: Márcio Seligmann.
(Fonte: Protocolo de Consulta Juruna (Yudjá) da Volta Grande do rio Xingu, 2017, p. 06. Citação direta: comunicação pessoal).
3.
58 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Mas Dona Graça não titubeou, ela não es-
tava disposta a ser uma simples testemu-
nha da morte das tracajás. Ela se recusou
a car passiva frente ao impossível e pôs
sua atitude em prática. No m de uma tar-
de, após uma reunião com o corpo técnico-
-burocrático da Norte Energia, ela disse:
Quando é mesmo que vale a vida?
Essa barragem não se importa com
a vida. Não se importa se as tracajás
estão morrendo. Agora, eu mesma,
nós daqui que nascemos e nos
criamos aqui, a gente se importa
e muito como toda a vida daqui.
A gente se importa com a vida. A
vida dos bichos todos, das plantas,
das frutas, da água que é vida para
nós e para tudo aqui. Nunca achei
que estaria viva para ver isso que
está acontecendo com a gente,
com o que está acontecendo com
as tracajás, com os pacus, com os
peixes ornamentais. Mas te digo
que não desistimos, lutamos. Nossa
vida não tem preço não, sabe. Vida
nenhuma pode ter preço. A vida
não se compra, não é produto,
não está à venda. Não quero que a
vida das tracajás se acabe, por isso
estou criando algumas aqui. Não
aceitamos o m das tracajás, não
aceitamos nosso m.
O monitoramento independente juruna
parte fundamental do Observatório da Vol-
ta Grande do Xingu está engajado na defesa
da vida. Vida na e da Volta Grande do Xin-
gu. É fundamental garantir a real participa-
ção indígena e de comunidades ribeirinhas
e tradicionais nas avaliações de impacto de
empreendimentos e obras de infraestrutura
como a hidrelétrica de Belo Monte. Sem essa
garantia, as análises de impacto tornam-se
meras etapas burocráticas do licenciamento
ambiental em favor do empreendedor.
Além disso, a prática de contratação de
empresas terceirizadas para realização
dos estudos e monitoramentos de im-
pacto por parte das empresas e/ou con-
sórcios interessados no projeto do licen-
ciamento auxilia um perverso processo
de subdimensionamento de impactos. É
fundamental que essa seja uma discus-
são pública com a participação de insti-
tuições de pesquisa que não têm interes-
se direto no empreendimento e que não
sejam pagas pelo próprio empreendedor
que almeja uma redução dos seus custos
de investimento para uma amplica-
ção de seu lucro. Isso causa não apenas
impactos negativos na vida de povos e
comunidades afetadas como um agrava-
mento nos problemas ambientais decor-
rentes desse subdimensionamento. Esse
tipo de manobra diminui o real custo das
propostas desses projetos de obras de in-
fraestrutura, ao desconsiderar ou subdi-
mensionar os impactos socioambientais.
Como adverte Biviany Rojas, advogada
do Instituto Socioambiental:
Belo Monte não é um fato con-
sumado. Precisamos conside-
rar os usos múltiplos da água e sua
premissa como direito e não como
recurso. A partir do monitoramen-
to independente Juruna, somos
capazes de destacar a questão do
hidrograma de consenso e seus
impactos ecossistêmicos e socioam-
bientais presentes e futuros.
Se o monitoramento independente Juruna
não é um ato em si mesmo e o modo de vida
desse povo é pautado pela conectividade
com o Xingu, estamos aqui com a tarefa de
3.
59 Rede de Monitoramento Territorial Independente
criar composições. Composições com a Vol-
ta Grande do Xingu. O levante juruna con-
tra a imposição do m do uxo das águas
do Xingu é uma ação de composição. Com-
posições com os parentes Juruna Yudjá que
moram na TIX (Terra Indígena do Xingu),
com cientistas de universidades públicas
que não assinam os relatórios técnicos que
negligenciam os impactos de Belo Monte
e com organizações não governamentais
e sociedade civil. As ações de composições
dos Juruna contra o hidrograma de con-
senso podem ser narradas com uma ima-
gem descrita por Bel Juruna:
Estamos fazendo isso de juntar as
pedras da Volta Grande com as ce-
râmicas fabricadas pelas parentes
da TIX (Terra Indígena do Xingu)
e juntar os grácos do nosso mo-
nitoramento com os grácos dos
pesquisadores e das pesquisadoras
que convidamos para estarem co-
nosco nessa guerra pela água da
Volta Grande. Juntar nosso conhe-
cimento e nossa vida no Xingu com
os conhecimentos dos cientistas
contra os argumentos do empreen-
dedor, interessado no lucro de sua
empresa e desinteressado pela vida
ou pela Volta Grande. Ao contrário
do que eles dizem, a Volta Grande é
uma questão de todo esse planeta.
Ela deve ser uma preocupação de
todo o planeta.
A vida, uma composição sincrética e he-
terogênea de muitos tipos de vida, do
modo como os regimes de existência Ju-
runa expressam, não quer monitorar sua
própria morte, um testemunho do m.
Essa ética de negação ao testemunho do
m, que marca a própria história de per-
manência desse povo na região da Volta
Grande, é a caracterização de seu moni-
toramento independente, da redação e
divulgação de seu protocolo de consulta,
da atividade ativista anual da Canoada
Xingu, dos seus engajamentos com cien-
tistas, de suas práticas cotidianas.
REFERÊNCIAS
PEZZUTI, Juarez et al. Xingu, o rio que pulsa
em nós: monitoramento independente para
registro de impactos da UHE Belo Monte
no território e no modo de vida da Volta
Grande do Xingu. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2018.
ZUANON, Jansen et al. Condições para
manutenção da dinâmica sazonal de
inundação, a conservação do ecossistema
aquático e a manutenção dos modos de
vida dos povos da Volta Grande do Xingu.
Universidade Federal do Pará: Papers do
NAEA, 2019, vol.28, n.2, pp. 20-62.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Sobre a
noção de etnocídio com especial atenção
ao caso brasileiro. Parecer técnico: mi-
meo, 2017.
3.
60 Rede de Monitorame nto Territorial Independente
A voz dos atingidos de Belo Monte:
desaos e direitos
INTRODUÇÃO
Ouvir os atingidos pelas obras de constru-
ção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo
Monte foi a principal preocupação do
monitoramento feito no projeto “A Voz
dos Atingidos de Belo Monte: desaos e
direitos”, executado pela Fundação Viver,
Produzir e Preservar (FVPP). Financiado
pelo Plano de Desenvolvimento Regional
Sustentável do Xingu (PDRSX), o projeto
visitou áreas diretamente atingidas pela
UHE, e produziu um relatório detalhado
sobre a situação dos moradores dos Reas-
sentamentos Urbanos Coletivos (RUC).
A ação foi proposta em 2014, e apresen-
tada pela FVPP como uma ferramenta
necessária para avaliar o andamento de
condicionantes ambientais da UHE Belo
Monte, e como o cumprimento dessas
ações afetaram a vida das pessoas atin-
gidas pela UHE. Uma vez aprovado pela
Câmara Técnica de Monitoramento do
PDRSX, o projeto passou por algumas re-
formulações, e em 2016 foi iniciado.
As atividades consistiram em várias eta-
pas, que incluíam visitas às comunidades
diretamente atingidas reassentadas nos
RUC para produzir um monitoramento
independente que contribuísse para o en-
tendimento sobre quem são e como se sen-
tem as pessoas atingidas pela instalação da
UHE. Este capítulo traz um recorte das
informações levantadas no projeto A Voz
dos Atingidos de Belo, e foca nos resulta-
dos relacionados aos temas de moradia e
habitação dos reassentados nos RUC.
Durante a pesquisa, grande parte dos en-
trevistados transpareceu não apenas in-
satisfação, mas sofrimento pelas perdas
causadas pela remoção e mudança de terri-
tórios – boa parte das famílias consultadas
pelo projeto foram removidas de ocupações
em áreas alagáveis conhecidas em Altami-
ra como “Baixões”, bairros populares que ti-
nham como edicação comum palatas de
madeira. Durante o processo de remoção
e reassentamento, impactos já esperados
se concretizaram, tais como a fragilização
dos laços de vizinhança e amizade, perdas
econômicas, somadas ao distanciamento
da cidade e do rio (importante em múltiplas
dimensões da vida das famílias) e perda de
acesso a alguns serviços, sem que houvesse
reparação integral e satisfatória.
Outra situação apontada pelo estudo mos-
4.
Antonia Pereira Martins1
Capítulo construído com apoio da equipe do FGVces.
1 Fundação Viver Produzir e Preservar.
4.
61 Rede de Monitoramento Territorial Independente
tra que o acesso a serviços públicos e à
justiça piorou ou continuou insatisfatório
nos reassentamentos em relação à situa-
ção de moradia anterior. Ao receberem a
proposta de mudança para uma área que
ofereceria maior qualidade de vida, os
atingidos acreditavam que serviços bási-
cos que faltavam às famílias que viviam
nos “Baixões” seriam agora implementa-
dos, mas essa realidade não se materiali-
zou, gerando ainda maior insatisfação.
O projeto de monitoramento coordena-
do pela FVPP foi proposto como uma
espécie de janela para o futuro, em que
os resultados da pesquisa possibilita-
riam avançar na elaboração de estra-
tégias de reparação aos danos sofridos
pelas famílias atingidas, partindo de um
diagnóstico mais preciso. Para além do
senso comum sobre a satisfação das pes-
soas com suas novas residências – en-
tendida por muitos como melhor que
as residências de palatas anteriores –,
os resultados do projeto permitem iden-
ticar outras dimensões sobre o reas-
sentamento, apontando que aqueles que
tiveram suas moradias realocadas não
apenas foram obrigados a mudar, como
herdaram problemas complexos.
Essa janela para o futuro com base no mo-
nitoramento independente pôde tornar
pública uma parte relevante da realidade
dos atingidos, e abrir caminhos para que
os atores envolvidos pudessem analisar a
situação de um ângulo mais aprofundado,
e assim conseguir criar programas e polí-
ticas públicas especícos para as popula-
ções atingidas por Belo Monte.
CONTEXTO
Estudos de Inventário Hidrelétrico para
a Bacia Hidrográca do rio Xingu e para
a construção de uma Usina Hidrelétrica
nas proximidades do município de Alta-
mira remontam a ns da década de 1970
e início dos anos 1980. Objeto de grande
resistência por parte de movimentos so-
ciais e organizações da sociedade civil
desde então, o barramento do rio Xin-
gu e a construção da Usina Hidrelétrica
teve sua licença de instalação liberada em
2011. em 2011 (CHAVES, 2018).
Entre as diversas intervenções promo-
vidas no território para a instalação e
operação da UHE Belo Monte, esteve
o deslocamento compulsório de popu-
lações e comunidades que tinham suas
moradias em áreas ribeirinhas ou de iga-
rapé que seriam alagadas, ou potencial-
mente alagadas, pelo barramento do rio.
Os moradores dessas áreas habitavam
casas costumeiramente de palatas, e
tinham suas vidas intimamente atrela-
das ao rio Xingu e seu regime natural
de cheias e vazantes. Na área urbana de
Altamira, essas localidades são conheci-
das como os já mencionados Baixões. A
UHE Belo Monte removeu para instala-
ção de sua infraestrutura e seus reser-
vatórios cerca de 10 mil famílias, dentre
as quais cerca de 8 mil nas áreas urba-
nas atingidas pelo empreendimento, das
quais cerca de 3.500 acessaram os pro-
gramas de reassentamento urbano co-
letivo (CHAVES et al, 2019). A imagem
a seguir indica a localização dos cinco
maiores reassentamentos urbanos, to-
dos estes distantes do rio. Recentemente
um sexto RUC foi construído próximo
ao rio, como uma conquista importan-
te das famílias indígenas e ribeirinhas
que viviam nas áreas urbanas no mu-
nicípio. Conhecido como RUC Tavaqua-
ra, o reasentamento tem capacidade de
4.
62 Re de de Monitoramento Territorial Independente
160 casas, e foi concluído em 2019, não
compondo, portanto, o presente estudo.
Com perdas de diversas ordens, estudos
apontam que os deslocamentos forçados
produzem empobrecimento multidimen-
sional das famílias (CERNEA, 2006), com
deterioração das condições de vida por
razões que vão desde a perda de fontes de
renda, fragmentação das relações de vi-
zinhança, às perdas imateriais e culturais
(OLIVER-SMITH, 2009; IFC, 2012; MAGA-
LHÃES e SANZ, 2015; CHAVES et al, 2019).
Entre as famílias que foram assentadas
nos Reassentamentos Urbanos Coletivos –
bairros construídos pela empreendedora
Norte Energia – pouco se sabe sobre suas
percepções e sobre como avaliam suas no-
vas condições de moradia e habitação. É
por conta disso que o trabalho realizado no
projeto A Voz dos Atingidos de Belo Monte
se justica e traz importante contribuição
para o debate sobre o monitoramento dos
reassentamentos e das famílias atingidas.
METODOLOGIA EMPRESADA NO
MONITORAMENTO
O modelo adotado para o monitoramento
conduzido pela Fundação Viver Produzir
e Preservar no Projeto A Voz dos Atingi-
Figura 1. Implantação do Reassentamento Urbano Coletivo. (Fonte: Norte Energia (2015). Adaptação própria).
RUC ÁGUA AZUL RUC CASA NOVA RUC SÃO JOAQUIM RUC LARANJEIRAS
RUC JATOBÁ
4.
63 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dos de Belo Monte foi o chamado ex-post,
isto é, a ação de monitoramento foi reali-
zada após a ocupação dos novos reassen-
tamentos, e seu principal objetivo foi o de
vericar o grau de satisfação das famílias
reassentadas com as novas moradias e in-
fraestrutura presente nos novos bairros.
Um universo de 951 famílias foi entrevis-
tado, além de outras 50 entrevistas apli-
cadas em caráter de testagem, somando
no total, 1.002 entrevistas, distribuídas
entre os cinco Reassentamentos Urbanos
Coletivos (RUC) no município de Altami-
ra no período entre junho e dezembro de
2016. A quantidade de questionários apli-
cados signica, na prática, que um pouco
mais de 25% das unidades habitacionais
dos RUC foi entrevistada. A realização do
projeto e esse seu alcance só foram pos-
síveis graças a articulações em parceria.
Junto à FVPP, houve a participação e o
envolvimento do Movimento dos Atingi-
dos por Barragens (MAB), e de moradores
dos RUC, sobretudo jovens, em especial
para a coleta de dados. Houve ainda o
apoio técnico do Instituto Rede Terra.
ESTRUTURA DO QUESTIONÁRIO DE
ENTREVISTA
O questionário aplicado com as famílias
baseou-se em quatro eixos: identicação
de problemas; atribuição de notas sobre a
situação vivida; comparação com a situa-
ção anterior em dimensões de moradia e
habitação; e, por m, sugestões. No que
diz respeito às notas, foram estabelecidas
a partir de escala de”1” a “5”, sendo “1” o
indicativo de “péssimo” e “5” o indicativo
de “excelente”. Na comparação entre as
situações de moradia, os respondentes
poderiam apontar a situação como “seme-
lhante”, “melhor” ou “pior”.
As dimensões sobre as quais as famílias fo-
ram perguntadas estavam relacionadas a
(1) infraestrutura da moradia; (2) organiza-
ção, segurança e urbanização; (3) equipa-
mentos sociais; e (4) acessibilidade pública.
A matriz de avaliação apresentada utili-
zou uma grandeza de notas aos moldes
da escala Likert, metodologia comumente
empregada para avaliação da satisfação,
Figura 2. Estrutura do questionário. (Fonte: FVPP e Instituto Rede Terra – 2017).
Nota
Comparação
Problemas Sugestões
4.
64 Rede de Monitoramento Territorial Independente
que permite captar percepções em uma
escala de conformidade ou discordância
do entrevistado em relação ao quesito
abordado (VIEIRA & DALMORO, 2008).
A dimensão infraestrutura da moradia
incorpora indicadores ligados ao concei-
to de moradia, ou seja, a casa em funcio-
namento, “(...) permitindo aos moradores
praticar a privacidade e a intimidade do-
mésticas, obtendo com isso, o restauro fí-
sico e emocional para novamente voltar
ao mundo exterior” (BRASIL, 2014, p.25).
As demais dimensões também dialogam
com o conceito de moradia, mas estão mais
articuladas ao conceito de habitação, pois
tratam de itens relacionados ao “extrava-
samento” da moradia com o mundo exte-
rior, permitindo ao morador compreender
de forma mais ampla a ideia de habitar
com qualidade. Segundo denição de estu-
do do Ministério da Cidade, “abarca tanto
as relações com os vizinhos, quanto as re-
lações desses moradores com o conjunto
da sociedade e os equipamentos sociais e
de serviços (...)” (BRASIL, 2014, p.26).
Com base nessa distinção entre moradia e
habitação e o estabelecimento das quatro
dimensões, foram criados indicadores so-
bre os quais os moradores dos RUC foram
perguntados. Para a dimensão de infraes-
trutura da moradia, os indicadores foram:
moradia, abastecimento de água, energia
elétrica e saneamento; para a dimensão
organização, segurança e urbanização, os
indicadores foram: cultura e lazer, segu-
rança pública, comércio local, arboriza-
ção, organização de moradores e serviços
bancários; para a dimensão equipamentos
sociais, os indicadores foram: serviços de
saúde, serviços de assistência social e edu-
cação pública; por m, na dimensão aces-
sibilidade pública, os indicadores foram:
mobilidade e transporte público, ilumina-
ção elétrica, e acessos (vias, calçadas, ruas).
Os resultados e a análise da condição
social e das percepções dos moradores
dos cinco Reassentamentos Urbanos Co-
letivos (Água Azul, Casa Nova, Jatobá,
Laranjeiras, e São Joaquim), no âmbito
do monitoramento promovido pelo pro-
jeto A Voz dos Atingidos de Belo Monte
foram feitos, a partir das respostas dos
questionários, com o uso de ferramentas
de estatística descritiva e inferência esta-
tística para identicar pontos de similitu-
de e variabilidade, e estão apresentados
na próxima seção.
Esses resultados aqui apresentados tam-
bém foram debatidos em diferentes mo-
mentos com entidades parceiras, órgãos
públicos e os próprios reassentados. Fo-
ram realizadas reuniões técnicas, pro-
movidos mutirões comunitários e por m
as ações do projeto foram nalizadas na
audiência pública realizada no dia 1ºde
agosto de 2017.
RESULTADOS
Nesta seção são apresentados os re-
sultados do monitoramento sobre a si-
tuação da moradia e da habitação dos
RUC, conforme a percepção dos seus
moradores, a partir da aplicação de
questionários e usando a metodologia
descrita na seção anterior.
Na tabela 1 na próxima página podem ser
vistas as médias das notas dadas pelos
reassentados aos 16 indicadores, confor-
me os diferentes RUC.
As notas criadas para os indicadores
apresentados na Tabela 1 acima revelam
4.
65 Re de de Monitoramento Territorial Independente
uma avaliação mais positiva dos
moradores dos itens relacionados mais
diretamente à dimensão de moradia. Os
indicadores “moradia” e “saneamento”
tiveram nota média superior a 3. Dentro
da dimensão “infraestrutura da moradia”,
o item com maior variabilidade nas notas
é “abastecimento de água”, que recebeu
notas abaixo da mediana nos RUC Água
Azul e Jatobá, porém recebeu a melhor
nota em todos os quesitos dessa dimensão
no RUC Casa Nova (4,3). As notas
apresentam uma resposta ligeiramente
positiva dos moradores nessa dimensão,
com destaque para a distribuição de água2.
O RUC Laranjeiras apresentou as melho-
res notas referentes à “infraestrutura da
moradia”, com notas acima de 3 em todos
os indicadores. Há uma percepção tradu-
zida em notas mais próximas da mediana
ou abaixo sobre os quesitos que acompa-
nham as demais dimensões, podendo ser
identicados casos “positivos” isolados em
alguns RUC sobre as questões que envol-
vem vizinhança, equipamentos sociais e
serviços públicos.
Na dimensão “organização, segurança e
urbanização”, chama atenção a avaliação
negativa sobre a disponibilidade de servi-
ços bancários, com notas próximas ao in-
dicativo de “péssimo” em todos os RUC. Os
indicadores “cultura e lazer” e “arborização”
tiveram notas médias abaixo da mediana
(2,5) em quatro RUC, revelando situação de
carência e insatisfação por parte dos mora-
dores. Aqui aparecem carências existentes
2 O município de Altamira apresenta 17,80% de domicílios com esgotamento sanitário adequado, o que caracteriza um diferencial
positivo para os RUC, visto que o município tem um dos piores índices do Brasil, cando atrás de 3.802 cidades nesse quesito.
Tabela 1. Nota média para os indicadores de moradia e habitação, por RUC. (Fonte: FVPP e Instituto Rede Terra 2017).
Infraestrutura
da moradia
Organização,
segurança e
urbanização
Equipamentos
sociais
Acessibilidade
pública
4.
66 Rede de Monitoramento Territorial Independente
no município de Altamira, que também se
manifestam até o momento nos RUC3.
Na dimensão “equipamentos sociais”, os
RUC chocam-se com uma realidade de
carências signicativas do município de
Altamira. Segundo o IBGE, Altamira está
entre os 250 piores municípios do Brasil
em taxa de escolarização de crianças en-
tre 6 e 14 anos (93,1%). Das notas atribuí-
das à educação pública, apenas no RUC
São Joaquim a média das notas é supe-
rior à mediana (nota 3,4).
Na dimensão “acessibilidade pública”, Al-
tamira alcançou índices inferiores a 1.646
municípios do Brasil, apesar de estar em
terceiro lugar no estado do Pará (IBGE,
2010). No caso dos RUC, apenas o RUC
Laranjeiras apresentou notas inferiores
à mediana. Os demais apontaram notas
médias superiores a 34.
Para além da atribuição de notas aos
indicadores distribuídos entre quatro
dimensões, são apresentados aqui os
resultados para os comparativos en-
tre a nova situação de moradia, pós-
-reassentamento, e a situação anterior.
Os RUC enfrentam o desao de serem
comparados a uma situação anterior de
3 No âmbito da cultura, por exemplo, é relevante constatar que na Pesquisa de Informações Básicas Municipais sobre a estrutura
e equipamentos de cultura, o município de Altamira não contava, até 2014, com “pontos de cultura”, “pontos de leitura” ou
mesmo “pontos de memória”, que são políticas públicas que permitem apoiar iniciativas comunitárias de acesso a manifestações
culturais, de acesso a leitura ou de reconhecimento e valorização da memória social, por meio de exposições ou mostras culturais.
4 No município de Altamira, 22,70% de domicílios urbanos localizam-se em vias públicas com urbanização adequada
(presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-o) (IBGE, 2010).
Gráco 1. Comparativo da estrutura do RUC em relação ao local de moradia anterior. (Fonte: FVPP e Instituto Rede Terra, 2017).
Infraestrutura da moradia Organização, segurança e urbanização Equipamentos sociais Acessibilidade pública
4.
67 Re de de Monitoramento Territorial Independente
habitação consolidada, em que a estrutura
existente, via de regra precária em relação
à moradia, era compensada por elementos
típicos da consolidação dos bairros ou aglo-
merados urbanos, com a oferta de serviços
e equipamentos sociais. É possível olhar a
distribuição percentual entre responden-
tes que acham que sua situação melhorou,
piorou ou se manteve como estava, para
cada um dos 16 indicadores do monitora-
mento no Gráco 1.
Os dados coletados nos RUC demonstram
que há percepção de melhora em relação
à casa e a algumas das estruturas que co-
locam a casa em funcionamento, como o
abastecimento de água. Porém, há dese-
quilíbrio quando isso não vem acompa-
nhado de serviços como transporte, esco-
la, posto de saúde ou centro de referência
em assistência social.
A segurança pública é um dos principais
problemas apontados pelos moradores
dos RUC5. A precariedade com relação ao
trabalho e emprego dos moradores dos
RUC, somada à pressão da migração em
massa causada pela UHE e à ampliação de
casos de violência ligada ao tráco de dro-
gas, pode estar ligada à causa do aumento
dos índices de violência nesses bairros. A
ausência de rondas ou de postos policiais,
ou seja, a presença de efetivo que possa
inibir situações de violência, aumenta a
sensação de vulnerabilidade do conjunto
dos moradores, e tal percepção é captada
nos dados apresentados.
A comparação entre os índices de satisfa-
ção da ocupação atual e da moradia ante-
rior demonstram que há desvantagem aos
RUC, uma estrutura ainda em consolida-
ção, quando confrontada à morada ante-
rior, com história, vivência e ofertas de
serviços públicos e privados que, mesmo
precários, foram se conformando ao lon-
go do tempo e, de certa forma, atendiam
as necessidades dos moradores. Com ex-
ceção do RUC São Joaquim, mais próximo
do centro da cidade do que os demais, a
percepção das carências nos RUC referen-
te aos equipamentos sociais talvez seja a
melhor demonstração dos desaos ainda
colocados para consolidação dos RUC.
Na avaliação melhor, pior ou semelhan-
te, os dados coletados nos RUC demons-
tram que há satisfação em relação à casa
e algumas das estruturas que colocam a
casa em funcionamento, tal como o abas-
tecimento de água, por exemplo. Porém,
há insatisfação com serviços como trans-
porte e acesso aos equipamentos públicos,
como escolas, posto de saúde ou centro de
referência em assistência social.
A pesquisa evidenciou ainda uma pre-
sença elevada de jovens nos RUC, o que
torna latente as demandas por educação,
mobilidade, esporte, cultura e lazer. Fo-
ram registrados preocupantes indicado-
res sociais, em particular a desocupação e
a falta de trabalho, o que afeta de manei-
ra marcante jovens que buscam suas pri-
meiras inserções no mundo do trabalho.
Os diálogos com os moradores demons-
traram que seria oportuno e de grande
relevância o aumento do investimento
social privado direcionado para jovens
moradores dos RUC.
Por fim, o monitoramento indicou que
5 Altamira foi considerada como uma das cidades com maior índice de vulnerabilidade juvenil à violência, segundo a publicação
“Índice de Vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial 2014”.
4.
68 Rede de Monitoramento Territorial Independente
os moradores dos RUC consideram bai-
xa a organização comunitária. O au-
mento da organização comunitária é
determinante para que as comunidades
possam cobrar adequadamente seus
direitos, mas também para que sejam
construídas alternativas locais de gera-
ção de renda e laços de solidariedade. Os
movimentos sociais, igrejas e sindicatos
desempenham papel destacado quanto
a este tema e podem ser parceiros na
promoção de projetos que visem forta-
lecer a organização comunitária. A pró-
pria articulação em torno do projeto de
monitoramento A Voz dos Atingidos de
Belo Monte é um exemplo.
A partir das percepções dos reassentados,
“pontos de atenção”, demandas e suges-
tões de melhoria também foram siste-
matizadas e publicizadas, e apontaram
para a necessidade de melhoria do acesso
aos equipamentos públicos; garantia de
transporte público conectando os RUC ao
demais bairros da cidade; implantação de
estratégias de segurança pública envol-
vendo a comunidade; barateamento do
alto custo da energia elétrica; melhorias
em serviços de telecomunicação e inter-
net, e fortalecimento de políticas para
acesso à Justiça, entre outros.
Não menos importante do que os resul-
tados trazidos pelo monitoramento, é o
uso que se faz dessas informações. Os
resultados do monitoramento no âmbito
do projeto foram amplamente discutidos
em diferentes ocasiões e com diferentes
atores sociais e as sugestões oriundas da
pesquisa são potenciais subsídios para
uma mais adequada atuação do Estado,
organizações da sociedade civil e de ato-
res privados, entre eles o próprio em-
preendedor da UHE Belo Monte.
CONCLUSÕES
A consolidação e monitoramento dos
reassentamentos causados por grandes
empreendimentos no Brasil é um desa-
o para os diferentes atores envolvidos.
O foco na percepção dos atingidos traz à
tona a necessidade de avanços, sobretudo
na construção de ferramentas que garan-
tam efetiva transparência e participação
social para tomada de decisão, bem como
anar os caminhos para integração entre
empreendedores (muitas vezes responsá-
veis pelos reassentamentos), e poder pú-
blico. A garantia da retomada dos modos
de vida, com efetiva reparação dos danos
vividos pelos atingidos, depende dessa in-
tegração, e o caso vivido em Altamira nos
reassentamentos causados pela UHE Belo
Monte evidencia essa situação. A implan-
tação de grandes obras na Amazônia e no
Brasil é um dos importantes debates pú-
blicos que nossa sociedade e os governos
continuarão a se defrontar no próximo
período. São latentes as contradições entre
o desenvolvimento econômico, a sustenta-
bilidade ambiental e o direito dos povos e
comunidades a uma vida digna e feliz. A
situação das famílias moradoras dos RUC
construídos pela UHE Belo Monte é um
caso exemplar dessas contradições.
Um importante aprendizado do projeto
aqui apresentado diz respeito ao poten-
cial de organização comunitária de estra-
tégias de monitoramento, para além da
construção de evidências e identicação
de demandas sobre impactos vividos pe-
las famílias atingidas. Ao monitorar de
forma participativa, comunitária, ou co-
laborativa, a produção da informação ga-
nha sentidos públicos e a comunidade se
empodera do processo e metodologia, as-
sim como também dos resultados e estra-
4.
69 Re de de Monitoramento Territorial Independente
tégias de uso. Com o objetivo e compro-
misso de atingir o bem-estar das famílias,
ampliar a participação social nas decisões
sobre os reassentamentos é passo neces-
sário, tanto quanto envolver as comuni-
dades atingidas e reassentadas no moni-
toramento das condições de vida.
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4.
70 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Monitoramento da condicionante
deslocamento compulsório em
territórios afetados pela Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, rio
Xingu, Pará
“Nas margens do rio Xingu, muitas pes-
soas dependiam do rio para manter sua
existência no local. Com o empreendi-
mento de Belo Monte, as famílias ribei-
rinhas tiveram seus direitos desrespei-
tados, sendo obrigadas a saírem de suas
terras, deixando para trás toda uma tra-
jetória, de construção de relações afetivas
com o lugar e com as pessoas que ali vi-
viam” (Herrera e Santana, 2016)
INTRODUÇÃO
O processo de construção da Hidrelétrica
de Belo Monte na região da Volta Gran-
de do Xingu, a partir de 2011, ocasionou
o deslocamento de forma violenta das
populações amazônidas que residiam na
área de inuência do reservatório do Xin-
gu. Retirando-as dos seus territórios, des-
considerando seus modos de vida, seus
saberes, suas práticas culturais e suas re-
lações sociais.
Desencadeando assim, rupturas de natu-
reza econômica, política, cultural e social,
compreendido como processo de dester-
ritorialização dos sujeitos, ocasionando
a perda do seu espaço de convivência e
subsequente a isso, a tentativa de reinte-
gração em outro território. Dessa forma,
o monitoramento desses processos se faz
necessário, tanto no perímetro urbano
quanto no rural, tendo em vista o con-
junto de impactos, sobremaneira, o estra-
nhamento e as diculdades de adaptações
e reconstrução das relações materiais e
subjetivas nos novos espaços de moradia,
5.
José Antônio Herrera1
Ronicleici Santos Conceição2
Gleiciely Barroso Carvalho2
Darlene Costa da Silva2
Edilane Bezerra Amorim2
Thiago Silva dos Santos2
David Teixeira Alves2
1 Pesquisador-Coordenador do Laboratório de Estudos das Dinâmicas Territoriais na Amazônia – Ledtam/Universidade
Federal do Pará – UFPA. e-mail: herrera@ufpa.br/ ledtam@ufpa.br/ www.ledtam.ufpa.br.
2 Pesquisadoras e pesquisadores do Laboratório de Estudos das Dinâmicas Territoriais na Amazônia – Ledtam/Universidade
Federal do Pará – UFPA. e-mail: ledtam@ufpa.br/ www.ledtam.ufpa.br.
5.
71 Re de de Monitoramento Territorial Independente
dentre eles os Reassentamentos Urbanos
Coletivos (RUC) e os Reassentamentos
Rurais Coletivos (RRC), criados pelo em-
preendedor para reassentar as famílias
que foram afetadas diretamente pela
UHE Belo Monte na região.
Nesse sentindo, a metodologia de moni-
toramento do deslocamento é pautada no
resgate da memória de vida e de trabalho,
tendo como base a análise feita por Halb-
wacs (2017), em que as famílias que foram
afetadas e expropriadas pela hidrelétrica
narram suas experiências de vida e de
trabalho, através das entrevistas abertas
e semiestruturas, registro fotográco e
áudiovisual, produção de mapas mentais,
dentre outros. Os materiais coletados
são organizados e sistematizados em um
banco de dados do Laboratório de Estudo
das Dinâmicas Territoriais na Amazônia
(Ledtam/UFPA), com objetivo de subsi-
diar leitura da situação com dados primá-
rios que possibilitem mecanismos de in-
tervenção (formação/qualicação) junto
às populações afetadas.
Portanto, o monitoramento do desloca-
mento coloca-se como etapa para compre-
ensão da realidade vivenciada por esses
sujeitos amazônicos (populações urba-
nas, camponeses, agricultores familiares,
ribeirinhos, etc.) afetados pela UHE Belo
Monte. Visa também o apoio à constru-
ção de estratégias de permanência e uso
sustentado dos territórios, corroborando
assim, com as instituições governamen-
tais e não governamentais na capacidade
de interpretação crítica acerca das trans-
formações ocorridas nos territórios de in-
uência direta da hidrelétrica.
Metodologicamente, inicialmente, ado-
tou-se o diagnóstico para o reconheci-
mento das mudanças ocorridas nos terri-
tórios e assim estabelecer caminhos para
as reivindicações dos direitos negligen-
ciados e violados em virtude da UHE de
Belo Monte na região.
METODOLOGIA
Como orientação para o monitoramen-
to as ações foram organizadas usando o
Guide to the Project Management Body of
Knowledge (PMBOK). Dentre os temas
monitorados, destaca-se o Deslocamento
Compulsório. Ressalta-se que o monito-
ramento foi realizado como um sistema
aberto, sofrendo constantemente altera-
ções e ajustes ao longo da execução. Na
gura 1, apresentam-se os processos de
gerenciamento e planejamento de execu-
ção do monitoramento.
Neste texto, relata-se os resultados par-
ciais do monitoramento em curso sobre o
deslocamento compulsório causado pela
UHE Belo Monte. Apresentamos uma
análise das consequências percebidas
com o não atendimento ecaz das con-
dicionantes previstas durante as fases
de licenciamento, construção e operação
da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que
vêm sendo acompanhadas desde o pro-
cesso de cadastramento socioeconômi-
co da empresa Norte Energia a partir de
2011, até a situação atual das condições
de vida nos Reassentamentos Urbanos
Coletivos (RUC), Reassentamentos Rurais
Coletivos (RRC) e Reassentamentos em
Áreas Remanescentes (RAR). Destaca-
mos como principais resultados o esface-
lamento dos modos de vida, imposto por
um grande projeto econômico que ocasio-
nou a degradação ambiental e a desterri-
torialização das famílias, como apontam
os estudos ribeirinhos de Herrera e San-
5.
72 Red e de Monitoramento Territorial Independente
tana (2016). A seguir estão descritos os
procedimentos metodológicos que possi-
bilitaram obter os resultados apresenta-
dos no escopo deste texto.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Os procedimentos metodológicos tiveram
como central a abordagem adotada por
Michel Halbwachs (2006), para quem a
memória é um lastro de ações memoria-
listas individuais e coletivas dos sujeito
do lugar. Por meio da memória, as pes-
soas produzem fotograa linguísticas do
que viveram e do que vivem, projetando
discursivamente as condições de vida.
Para organizar os elementos das narra-
tivas memorialistas, as técnicas usadas
nas atividades de campo foram: diário de
campo para registros das ocorrências; en-
trevistas com auxílio de formulário com
questões semiestruturadas. Mesmo com
as questões semiestruturadas foi garanti-
do aos sujeitos falantes uidez discursiva
a m de assegurar maiores dimensões da
memória discursiva. Técnicas comple-
mentares, para maior delidade dos ele-
mentos linguísticos e dos lastros da me-
mória, foram usadas, como o gravador de
áudio e máquina fotográca.
Durante o monitoramento foram en-
Figura 2. Interação entre os processos de gerenciamento e monitoramento. (Fonte: LEDTAM 2018).
5.
73 Rede de Monitoramento Territorial Independente
trevistados diferentes sujeitos tentan-
do garantir as representações sociais
e culturais dentre as famílias impacta-
das. Essa abordagem metodológica per-
mite interpretar as informações usan-
do as técnicas disponíveis no software
NVIVO, que possibilitou sistematizar os
dados a partir de temas-respostas, con-
tribuindo para as interpretações analí-
ticas no sentido de correlacionar a em-
piria e os marcos teóricos existentes.
Na prática foram estabelecidas etapas,
as quais não necessariamente seguiram
uma sequência cronológica, uma vez que,
em muitos momentos, foram sobrepostas
num dado intervalo de tempo. A saber,
as etapas foram: pesquisa bibliográca;
pesquisa documental; pesquisa de campo;
sistematização e tratamento dos dados e
informações; processamento de dados em
SIG; e ocinas-testes, essas entendidas
pela interação com grupos de sujeitos lo-
cais para diálogos e avaliações dos dados e
das informações sistematizadas.
Pesquisa bibliográca – revisão de litera-
tura sobre as principais teorias que nor-
teiam as questões colocadas no monito-
ramento, realizadas em livros, periódicos,
artigo de jornais, sites de internet entre
outras fontes.
Pesquisa documental – esta etapa foi mar-
cada pela busca das informações em do-
cumentos que não receberam nenhum
tratamento cientíco, como relatórios, re-
portagens de jornais, revistas, cartas, l-
mes, gravações, fotograas, entre outras
matérias de divulgação. A riqueza de in-
formações que deles se pode extrair e res-
gatar justica o seu uso em várias áreas
das ciências humanas e sociais, principal-
mente por permitir a contextualização
histórica e sociocultural, essa entendida
como extremamente importante para o
monitoramento.
Pesquisa de campo – essa etapa da pesquisa
foi central e considerada a mais importan-
te, e revelou a partir do vivido as variáveis
que compõem as interpretações e aproxi-
mação da realidade. E, por isso, ressalta-
-se a armação de Suertegaray (2002),
para quem a pesquisa de campo constitui
o ato de observar a realidade do outro,
interpretada pela lente do sujeito na rela-
ção com o outro sujeito. Foi pautada nesta
etapa a necessidade de interagir e dialo-
gar com a maior diversidade dos sujeitos,
observando as implicações no território.
Para tanto foram realizadas entrevistas
semiestruturadas, coleta de narrativas
com pessoas-chave (reconhecida pelos
seus pares como possível informante da
história) dos diferentes setores e repre-
sentantes das famílias diretamente en-
volvidas nos processos de deslocamentos
forçados tanto da cidade quanto do campo.
Sistematização e tratamento dos dados e in-
formações – realizada na sede do Ledtam,
as informações e dados resultantes tanto
do levantamento documental quanto da
pesquisa de campo foram organizados
num banco de dados criado no Access. Im-
portante ressaltar que nesse momento foi
feita a triagem das informações e dados,
sendo que nem todo o material coletado foi
sistematizado no banco de dados. O banco
de dados é um instrumento já usado pelo
laboratório em outras pesquisas, compos-
to por interface conectadas entre elas que
permitem análises pontuais, por exemplo,
de uma família entrevistada no espaço
rural, mas também a correlação dessas
informações com outra família do espaço
urbano que estejam, inclusive, em muni-
5.
74 Rede de Monitoramento Territorial Independente
cípios diferentes. Com as informações or-
ganizadas no banco de dados e usando o
Microsoft Excel, os programas de estatísti-
cas SPSS - Statistical Package for the Social
Sciences e R – linguagem de programação
realizaram as análises e interpretações es-
tatísticas das informações e, no caso das
entrevistas gravadas (uso de roteiros), fo-
ram feitas as transcrições e usado o soft-
ware NVIVO para adequar a interpreta-
ção ao sistema de análise a partir de dos
principais temas-respostas registrados.
Processamento de dados em SIG – o
tratamento dos dados especializáveis
e espaciais e composto pelas seguintes
atividades: organização e seleção de
dados; inclusão em banco de dados;
edição vetorial e álgebra de raster nos
dados secundários obtidos para ambiente
de Sistema de Informações Geográcas
(SIG) Quantun Gis 3.4.
Ocinas de diálogo – adotou-se a apresen-
tação e o diálogo com os sujeitos do ter-
ritório acerca dos dados e informações
coletados, bem como dos procedimentos
tomados no decorrer das ações. O labora-
tório tem em sua estrutura uma sala de
“Uso e Apropriação da Informação”. Es-
tas foram disponibilizadas para acesso do
arcabouço de informação levantado du-
rante o diagnóstico/monitoramento. Esse
material, além de estar disponível para
sociedade, serviu e ainda serve como base
para realização das ocinas de diálogo, de
modo que fomos validando as informa-
ções e dados coletados com a participação
direta de representantes das famílias im-
pactadas pelo deslocamento compulsório.
As informações foram e são socializadas
com a sociedade por meio de ocinas, en-
contros locais e redes sociais, além disso,
quando solicitado para algum uso especí-
co pela comunidade, as informações são
tratadas, organizadas de acordo com a so-
licitação feita e enviadas por e-mail.
Nos tópicos seguintes são descritos os re-
sultados parciais do monitoramento, apre-
sentando consequências percebidas com o
não atendimento ecaz das condicionantes
previstas durante as fases de licenciamen-
to, construção e operação da Usina Hidrelé-
trica de Belo Monte. As interpretações e as
reexões estão organizadas considerando
os ocorridos com as famílias viventes do
espaço urbano e com as famílias que origi-
nalmente estavam no espaço rural quando
iniciado o processo de construção da UHE.
Portanto, apresentam-se dois tópicos: Mo-
nitoramento urbano – a condição de mo-
radia e o viver no RUC e Monitoramento
rural – os casos da Vila Santo Antônio e Co-
munidade Deus é amor.
MONITORAMENTO URBANO:
A CONDIÇÃO DE MORADIA E O
VIVER NO RUC
A implantação da usina hidrelétrica de
Belo Monte ocasionou uma série de mu-
danças estruturais, econômicas, sociais
e ambientais na Região de Integração do
Xingu (RIX), em particular no espaço ur-
bano de Altamira, sobretudo em relação
às variáveis: moradia; organização social;
comércio e espaços de lazer dos sujeitos
diretamente impactados com as obras
realizadas pelo empreendimento.
Notadamente, a produção do espaço
urbano, com a implantação de grandes
projetos hidrelétricos, é significativa-
mente alterada e consequentemente
também as vidas das populações perten-
centes a esse espaço. Monitorar as mu-
5.
75 Re de de Monitoramento Territorial Independente
danças ocorridas no espaço urbano de
Altamira tem sido fundamental para o
reconhecimento dos problemas gerados
com a construção da hidrelétrica, sub-
sidiar a sociedade sobre seus direitos e
contribuir com responsáveis nas toma-
das de decisão quanto à necessidade de
mitigar os problemas vividos.
Na gura 4, verica-se a expansão da ma-
lha urbana. Ocupando antigas áreas de
fazendas na periferia da cidade, tem-se
a consolidação dos reassentamentos ur-
banos coletivos (construídos pela Norte
Energia S.A) e os bairros planejados por
empresas privadas. Observa-se que após
o ano de 2010, ano de especulação quanto
à construção da UHE, acelera-se a expan-
são em relação aos anos anteriores, apre-
sentada na gura 2.
Destaca-se que os bairros mais antigos
da cidade de Altamira foram constituí-
dos às margens dos igarapés em função
da dinâmica econômica estabelecida
com o rio. Com o barramento do rio, as
famílias residentes dessas áreas foram
remanejadas para os reassentamentos
urbanos coletivos (RUC).
Um dos pontos questionados no remane-
jamento foi a distância em que as famílias
foram realocadas, pois a proposta é que
não ultrapassasse o raio de 2 quilômetros,
e isso não foi atendido em todos os reas-
sentamentos. Quebrando a dinâmica so-
Figura 2. Mapa da evolução do crescimento urbano do município de Altamira. (Fonte: LEPURB – Laboratório de Estudos Popu-
lacionais e Urbanos, SEPLAN – Secretaria de planejamento do município de Altamira-PA, IBGE; organização – Herrera. J.A.;
elaboração: COSTA.D.F.2019).
5.
76 Rede de Monitoramento Territorial Independente
cial e econômica estabelecidas historica-
mente pelas famílias, as quais sofrem até
o momento para se adaptar em seus novos
territórios (reterritorialização precária).
Na gura 5, produzida pela Norte Energia
S.A/Nesa, é possível observar uma proje-
ção das áreas denitivamente alagadas,
correspondente ao perímetro rodovia
Ernesto Acioly, bairro Aparecida, Boa
Esperança, dentre outros. Analisando,
percebe-se que os referidos bairros estão
nos arredores do centro e com ligação di-
reta para o rio Xingu e aos igarapés que
cortam a cidade de Altamira. Essas áreas
alagadas concentravam muitas famílias
que foram realocadas, por estarem den-
tro da cota altimétrica 100 metros, sendo
direcionados para os reassentamentos
urbanos coletivos.
Para além do problema da distância, vive-
-se na cidade de Altamira o aumento da
segregação socioespacial. Sujeitos já mar-
ginalizados tiveram seu direito de viver
a cidade ceifado, pois foram levados para
fora dela e sem transporte público cole-
tivo de qualidade e frequente, tornando
difícil a mobilidade das famílias.
Na gura 6, é possível observar uma das
casas construída pelo empreendedor em
um dos RUC, a estrutura física da casa, ape-
sar de ser aparentemente mais adequada
que as casas anteriores (feitas sobre o rio),
representou um choque para as famílias
que, em sua maioria, demoraram a acos-
tumar-se, devido à temperatura, arranjo
espacial na estrutura (todas um padrão)
dentre outras características, processo
esse que acarretou mudanças e necessi-
dades de adaptações nos seus cotidianos.
A escolha do modelo de casas não pas-
sou por um processo democrático e que
atendesse às características locais. Carac-
terizado como Unidades Habitacionais –
Classe I, o material escolhido para cons-
trução foi o concreto pré-moldado (PBA,
2011), com variação de tamanho das casas
e quantidades de cômodos em algumas
circunstâncias. No trecho da entrevista
Figura 3. Áreas que caram denitivamente alagadas na cidade de Altamira. (Fonte: Norte Energia, 2012).
5.
77 Rede de Monitoramento Territorial Independente
realizada com uma moradora do RUC Ja-
tobá, sobre a sua nova moradia, ca evi-
dente o descontentamento ocasionado
com o deslocamento compulsório.
Para ser sincera eu nunca concor-
dei em sair do Baixão para vim pra
cá, porque apesar de lá ter vários
problemas como todo mundo fala,
é o lugar que a gente viveu né, já
tinha hábitos e costumes lá, não dá
assim pra gente sair de um lugar
que a gente se apegou pra gente
chegar em outro e dizer que gostou
daquele local. Duvido que alguém
saia do lugar onde você viveu por
muito tempo e chegue a outro e
diga que tá melhor, por que não é
verdade, mas eu não vou mentir,
não eu não gosto muito daqui, a
gente acostuma né, por que é único
lugar que tem pra morar, mas eu
não gosto daqui, até porque, pri-
meira coisa que eles falam porque
aqui tá melhor é porque lá todo ano
a gente tem que sair das casa da
gente por que a água alaga (Entre-
vistada, moradora do RUC Jatobá).
Os modos de vida das famílias reassenta-
das, que sempre estiveram ligadas à dinâ-
mica do rio, sofreram rupturas nos laços
afetivos e simbólicos, além da perda na
condição de trabalho. Como consequência,
foram vericados, durante a atuação da
equipe, problemas atrelados às condições
emocionais, pois a necessidade de estabe-
lecer e recriar uma nova dinâmica na rea-
lidade espacial na qual estão inseridos não
tem sido simples, e sem acompanhamento
adequado por parte dos órgãos responsá-
veis, torna a adaptação ainda mais difícil.
A situação para as famílias do espaço ru-
ral não foi diferente, com o agravante de
ter a dependência dos recursos naturais
como principal fonte de sobrevivência.
A seguir, relata-se brevemente acerca de
alguns resultados vericados durante o
monitoramento do espaço rural.
MONITORAMENTO RURAL:
OS CASOS DA VILA SANTO ANTÔNIO
E COMUNIDADE DEUS É AMOR
A exploração dos recursos naturais,
normalmente, acontece dissociada dos
Figura 4. Moradia em um Reassentamento Urbano Coletivo em Altamira. (Fonte: Acervo LEDTAM).
5.
78 Red e de Monitoramento Territorial Independente
interesses e perspectivas locais. Com o
interesse dos grandes conglomerados
econômicos, os projetos foram e ainda são
instalados para a exploração dos recursos
naturais na Amazônia. O rural segue o
ritmo de transformação e de reprodução
desigual que imprime novas formas de
manutenção das relações sociais, ora as-
sociadas, ora contraditórias às práticas vi-
vidas no momento de formação socioes-
pacial das localidades (SILVA, 2018, p.14).
A exemplo desse processo, no espaço rural
afetado com a construção de Belo Monte,
destaca-se o caso da Vila Santo Antônio,
a qual foi totalmente extinta, desestrutu-
rada para dar espaço ao parque de abas-
tecimento dos caminhões-pipas que aten-
diam ao canteiro de obras. Mesmo antes
de iniciar as obras, quando ainda se espe-
culava acerca do empreendimento, a Vila
já estava sob pressão e sofrendo impactos,
como pode ser observado no fragmento
da entrevista, a seguir:
Um belo dia estávamos reunindo
e, de repente, começam a chegar
vários carros do outro lado da ro-
dovia camos assustados com a
cena tão inesperada, desceu uns
encamisados e se dirigiram até
onde nós estávamos, se apresen-
taram e foram logo falando que a
partir de agora vamos começar a
construir o canteiro de obra para
dar início a construção da barra-
gem de Belo Monte. Nesse mo-
mento faltou chão, camos sem
ação, sem atitude e sem palavras
diante da informação. Meu com-
padre e que ainda conseguiu per-
guntar e quando vai ser isso. A res-
posta foi rápida, logo!!!! (A.F, 2015).
Como consequência do processo, as famí-
lias tiveram de readequar a condição cam-
ponesa, drasticamente alterada com o iní-
cio das obras da hidrelétrica, e reinventar
suas atividades produtivas (econômicas e -
nanceiras), ao mesmo tempo que necessita-
vam conviver com as transformações ocor-
ridas no lugar e nos seus modos de vida.
Figura 5. Vila Santo Antônio. (Fonte: Arquivo LEDTAM/Silva – 2011).
5.
79 Red e de Monitoramento Territorial Independente
A vila Santo Antônio foi fundada em 1973,
fruto da colonização, dentro do Programa
Integrado de Colonização (PIC) na Ama-
zônia. Esse programa, anunciado naquela
década pelo governo militar do presiden-
te Emílio Garrastazu Médici, foi circuns-
tancial para ocupação dirigida do espaço
amazônico. O mosaico de foto na gura
7 apresenta a Vila antes da desestrutu-
ração pelo empreendimento. Importante
lembrar que essa foi a Vila que sediou o
encontro Xingu + 23 eventos organizado
pelos movimentos sociais como marco de
resistência ao empreendimento.
Os anos de 2011 e 2012 foram decisivos para
os moradores da Vila, pois com a constru-
ção da usina hidrelétrica Belo Monte, acon-
teceu a desapropriação – angústia e muita
incerteza reetida diretamente nas ativi-
dades que realizavam, essas diretamente li-
gada ao rio. Devido às explosões para início
da concretagem da obra, os peixes daquela
porção do rio se afastaram, prejudicando os
moradores que caram com poucas alter-
nativas para sobreviver na Vila.
Na gura 8, infelizmente, observa-se o
que se tornou o espaço da vila – pátio de
caminhões que atenderam no início das
obras. Sem alternativas, os últimos mora-
dores deixaram o local no ano de 2012 e,
com muito pesar, alguns deles retornam
a cada ano na área, pois o cemitério que
deveria ser remanejado permaneceu no
local e, para homenagear seus familiares,
alguns ex-moradores da vila vão no dia
de Finados para acender suas velas.
Com a chegada dos agentes do Consórcio
Empreendedor na Vila, vericou-se entre
as famílias da Vila, o distanciamento entre
os moradores, já que houve uma desinte-
gração da vida comunitária, das relações de
vizinhança e de parentesco por conta das
negociações iniciadas individualmente. Um
dos moradores da Vila, que tinha a pesca do
peixe ornamental, demonstra em sua entre-
vista que não se conforma com a perda do
seu local de trabalho e de vida, o rio Xingu:
Lugar igual ao nosso não vamos
encontrar mais nunca. Além da
Figura 6. Vila Santo Antônio. (Fonte: Arquivo LEDTAM/Silva – 2011).
5.
80 Rede de Monitoramento Territorial Independente
convivência e das amizades que
tínhamos aqui, todo mundo era
conhecido. E, de repente, nos tiram
do canto e ainda não nos indeni-
zam do jeito que a gente gostaria
que fosse; não chegou nem no
rumo, nem próximo, botando um
para lado e outro para outro, se eles
pagassem 500 mil reais para cada
um e talvez um psicólogo para nós
todo dia ainda não ia ser fácil, ain-
da mais fazendo como eles zeram
largando todo mundo por conta
(Entrevistado, 2015).
A população impactada não consegue su-
perar facilmente o trauma vivido pela re-
tirada de suas residências, de suas relações
sociais, de suas práticas produtivas, de
seus modos de vida. As perdas foram nota-
damente maiores que qualquer ganho que
puderam obter, o simbólico, como os laços
de pertencimento ao lugar não foram colo-
cados na conta do empreendedor.
A comunidade Deus é Amor vivenciou e
ainda os impactos materiais e imateriais
ocasionados pelo deslocamento compulsó-
rio. A Comunidade fez parte do que foi de-
marcado pelo empreendimento como se-
tor referente ao Reservatório dos Canais,
e corresponde a áreas inseridas integral-
mente no município de Vitória do Xingu.
O processo de construção da UHE Belo
Monte implica para os moradores da comu-
nidade Deus é Amor, rupturas que alteram
de forma abrupta a vida e as redes de signi-
cados estabelecidas em comunidade.
Até 2011, a comunidade Deus é Amor
contava com 59 famílias (após a chegada
da UHE Belo Monte, restaram apenas seis
famílias na localidade). Além das casas, a
Comunidade possuía uma escola que aten-
dia alunos do ensino fundamental, menor
e maior, uma máquina de arroz, uma fari-
nheira, a sede de uma associação de pro-
dutores rurais, uma igreja católica e duas
igrejas evangélicas, além de um campo de
futebol, e duas pequenas mercearias.
Atualmente, a comunidade não existe
mais, na localidade encontram-se apenas
cinco casas remanescentes. Conforme
relato dos entrevistados, estes tentaram
criar estratégias para garantir a perma-
nência na comunidade, pois, não tinham
o interesse de deixar suas terras. Tais es-
tratégias nunca se concretizavam, a cada
ação planejada, pressões do empreende-
dor impediam sua realização.
Nós começamos assim, nós fazía-
mos reunião nós mesmo com o pre-
sidente da associação e os líderes
da comunidade, nós dizíamos: nós
não queremos, nós vamos botar o
pé na parede, mas nós não saímos.
Ai o sindicato dos trabalhadores
rurais de Vitória do Xingu vinha
e dizia: Rapaz é o seguinte, vocês
podem fazer greve e tudo, mas
vocês não vão conseguir, não vão
conseguir porque isso é coisa do
governo, como é que nós vamos
vencer o governo? e nós não conse-
guiríamos mesmo não, né? A bar-
ragem tá aí. (Entrevistado, 2020).
Deixar suas terras (o lugar), para essas fa-
mílias signicaria a perda da identidade,
a quebra do sentimento de pertencimen-
to, dos laços de afetividade construídos
ao longo de décadas, e além disso, signi-
caria o surgimento das incertezas, pois
no deslocamento compulsório, o plane-
jamento era desocupar a terra e não ne-
5.
81 Re de de Monitoramento Territorial Independente
cessariamente garantir aos moradores a
tranquilidade na mudança. Isso pode ser
observado no fragmento de entrevista de
um ex-morador da Deus é amor
Nós sempre falava, nós não quer, nós não
quer sair, porque nós não sabe pra onde
vai, aqui é um local bom, sadio, criei mi-
nha família todinha lá, os colono tudo
criou as famílias lá, e ninguém quase
nem adoecia, e ai pra Norte Energia tira
nós e, nós cava com aquela preocupa-
ção pra onde nós ia ne? E justamente foi
isso que aconteceu, quando eles nos ti-
raram, eu mesmo não sabia pra onde eu
ia. Eu fui pra Altamira passei um tem-
po lá, sem rumo (Entrevistado, 2020).
O entrevistado, faz seu relato, na sua área
nova localizada na região do Assurini,
conquistada com muito esforço e depois de
muito transtorno vivido na cidade de Alta-
mira. Para desmobilizar a comunidade, os
líderes comunitários foram os primeiros
indenizados: conforme consta, esses rece-
beram indenizações melhores. Além disso,
a incerteza, pois assumiram ter escutado
que se não recebessem logo a proposta fei-
ta, poderiam car por último ou chegar a
nem receber compensação por suas áreas.
Para as famílias, o empreendedor causava
certo temor, eles relatam escutar que se
não aceitassem a primeira proposta teriam
que ir para a justiça, processo que poderia
durar anos e que tenderia a diminuir ainda
mais o valor da indenização. Muito embora
para muitos ex-moradores da comunidade
Deus é amor, a questão não passava pelo
valor nanceiro, relatam que não tiveram
direito de escolha e foram simplesmente
forçados a sair de suas áreas. No relato do
entrevistado, ca evidente o sentido de
permanecer, o saudosismo do lugar.
Lá pra mim foi o melhor lugar que
eu já morei ô. Não existe um lugar
tão bom como aquele no estado do
Pará todinho (risos). Eu sinto sauda-
de dos amigos, do rio, da fartura, dos
peixes de tudo (Entrevistado, 2020).
Em outro trecho, o entrevistado apresen-
ta a ideia de expulsão, quando assume que
foram umas das primeiras famílias a sair
da área, e relata: “Em 2011, nós saímos, nós
fomos as primeiras famílias a sair, porque
a Norte Energia invadiu nossas terras, a
minha e a do meu irmão, que era o presi-
dente da associação (Entrevistado, 2020)”.
Para os entrevistados a rapidez e perspi-
cácia da empresa Norte Energia, em obter
assinaturas dos contratos e estabelecer
de “acordos” para indenização, favore-
ceram a empresa, já que em sua grande
maioria os moradores eram incapazes de
ler e compreender as laudas dos contra-
tos. Enquanto seus bens materiais foram
destruídos e suas vidas coletivas foram
desestruturadas, a empresa garantia o
processo de construção da hidrelétrica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O deslocamento traumático das popu-
lações cujas perdas não podem ser com-
pensadas, elas possuem um valor para
além do um valor monetário. O processo
de desterritorialização ocorre a partir do
momento em que as famílias são visita-
das e informadas de que serão retiradas
da sua moradia, cando sem possibilidade
de trabalhar na terra, no rio e na oresta,
o que afeta seu vínculo social e simbóli-
co com o território, desarticulando todo
o seu modo de vida. As construções de
hidrelétricas excluem a população local,
forçando as famílias a viverem em novos
5.
82 Rede de Monitoramento Territorial Independente
territórios desprovidos de valores sociais
e vínculos de pertencimento.
Considera-se que o deslocamento com-
pulsório é um processo de desterritoria-
lização, de perda do espaço concreto de
moradia e sobrevivência, das referências
culturais, econômicas, sociais e espaciais
(HAESBAERT, 2004). E, esse processo de
desterritorialização acontece quando as
grandes empresas construtoras deman-
dam os recursos naturais existentes e afe-
tam os modos de vida, a ordem social e o
cotidiano das famílias, promovendo a rup-
tura dos laços existentes, altera a dinâmica
produtiva e não contribui para que as fa-
mílias remanejadas consigam se restabele-
cer no novo território (reterritorialização).
O não atendimento das condicionantes
ou o atendimento parcial dessas corrobo-
ram para o processo de desterritorializa-
ção, pois, as famílias, sozinhas, não conse-
guem se organizar no novo espaço. Tanto
no espaço urbano quanto no espaço ru-
ral, apesar de alguns benefícios percebi-
dos por parcela pequena das famílias, o
sentimento de perda e em determinados
casos de desconsolo caram evidentes.
Nesses termos, são evidentes e urgentes
a implantação de um programa de com-
pensação; e o acompanhamento e plane-
jamento junto às famílias. As instituições
públicas e o empreendedor deveriam ter
trilhado juntos medidas de superação da
degradação social e ambiental, que foi
proporcionada com a construção da Usi-
na Hidrelétrica de Belo Monte.
O Ledtam apresentou nesse texto uma
parcela pequena do já se tem sistemati-
zado, objetivamente com recorte para a
temática dos deslocamentos. Enfatiza-se
o compromisso social de continuar moni-
torando e contribuindo com a sociedade
da Região de Integração do Xingu (RIX),
para quem se registra o agradecimento,
pois, sem a sociedade, a qual rmou par-
ceria com a equipe Ledtam e têm cons-
tantemente contribuído para o exercício
de monitorar e interpretar os problemas
vividos no território, não seria possível
trilhar este caminho.
REFERÊNCIAS
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rialização: Do “m dos territórios” multi-
territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2004.
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva.
São Paulo. Centauro Editora, 2017.
HERRERA, J. A.; SANTANA, N. C. Em-
preendimento hidrelétrico e famílias ribei-
rinhas na Amazônia: desterritorialização
e resistência à construção da hidrelétrica
Belo Monte, na Volta Grande do Xingu.
Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 20, n.
2, p. 250-266, mês. 2016. ISSN 2179-0892.
SILVA, D.C. da. Uma interpretação geográ-
ca dos impactos da hidrelétrica Belo Mon-
te: Estudo de caso da Vila Santo Antônio
e da Comunidade Babaquara na micror-
região de Altamira-PA, 153f. Dissertação
(mestrado em Geograa) – Universidade
Federal do Pará, Belém – PA, 2018.
SUERTEGARAY, Dirce Maria A. Pesquisa
de Campo em Geograa. Geographia. Rio
de Janeiro. v. 4. n. 7. 2002.
5.
83 Rede de Monitoramento Territorial Independente
6. Nossa luta pela vida:
monitoramento independente
da Covid-19 entre povos indígenas
no Brasil
O presente capítulo é uma versão extraí-
da e adaptada do relatório Nossa luta é pela
vida: Covid-19 e povos indígenas, o enfren-
tamento das violências durante a pandemia,
publicado pela Articulação dos Povos In-
dígenas do Brasil (Apib), em novembro
de 2020. A adaptação feita para o livro
Monitoramento Territorial Independente
na Amazônia: reexões sobre estratégias e
resultados tem como objetivo apresentar
o monitoramento comunitário partici-
pativo de casos e óbitos da Covid-19 pelo
movimento indígena, coordenado pela
Apib, com o Comitê Nacional pela Vida e
Memória Indígena. Para tanto, o texto está
dividido em quatro seções: uma introdu-
ção, que apresenta brevemente o moni-
toramento; uma segunda seção em que é
descrito o contexto e as razões de surgi-
mento do monitoramento; e, uma tercei-
ra seção com metodologia, resultados e
diculdades da iniciativa. Por m, há uma
conclusão com os principais aprendizados.
INTRODUÇÃO
A pandemia da Covid-19 evidenciou diver-
sas violações de direitos sofridas pelos po-
vos indígenas devido ao descaso histórico
com suas condições de vida e seus direitos
fundamentais e constitucionais. Além de
estarem na linha de frente em diversas me-
didas preventivas e lutarem pela redução
dos impactos da pandemia nas comunida-
des indígenas, as organizações indígenas
acompanham o avanço dos casos e óbitos da
Covid-19, desde a conrmação das primei-
ras contaminações no Brasil, entre os povos
indígenas. Trata-se de um esforço coletivo
que marca historicamente a participação dos
povos indígenas como protagonistas na luta
por um subsistema de saúde diferenciado,
assegurado pela Constituição brasileira.
Diante das diculdades para o acesso aos
dados ociais, do atraso das noticações e
da ausência de informação sobre cor/raça
nos registros relativos aos atendimentos
de saúde de indígenas em áreas urbanas,
iniciou-se um trabalho de monitoramento
comunitário participativo de casos e óbi-
tos da Covid-19 pelo movimento indígena,
coordenado pela Apib, com o Comitê Na-
cional pela Vida e Memória Indígena.
Através dessa estratégia, a Apib buscou
ampliar a visibilização da ocorrência e
dos impactos da pandemia entre os povos
indígenas no Brasil. Em diversos lugares
do país, as lideranças indígenas questio-
navam as informações ociais da Secreta-
ria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib
* Capítulo construído com apoio da equipe do FGVces.
6.
84 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Até novembro de 2020, o Comitê Na-
cional pela Vida e Memória Indígena re-
gistrava mais de 41 mil indígenas conta-
minados pelo novo coronavírus, de 161
povos, e 880 mortes. Uma tragédia sem
paralelos na história recente.
A grande atenção dada pelos movimentos
indígenas aos dados tem implicações de
ordem prática, com potencial de aprimo-
rar a vigilância em saúde. As acusações
vindas de autoridades governamentais
que deslegitimam a vigilância comunitá-
ria promovida pela Apib ignoram ques-
tões como a falta de transparência dos da-
dos, a necessidade de integração entre os
sistemas de informação, a subnoticação
de casos e a invisibilidade dos indígenas
atendidos no restante da rede SUS.
Apesar das acusações e questionamentos
sobre a veracidade e a legitimidade desse
monitoramento participativo, este alme-
ja, em última instância, ressaltar quão crí-
tica é a situação dos povos indígenas que,
histórica e politicamente, são mais vulne-
ráveis e marginalizados – situação que é
agravada pela pandemia de Covid-19.
SAÚDE INDÍGENA E COVID-19
Diversos estudos apontam que os povos
indígenas, historicamente, enfrentam
profundas desigualdades em saúde, com
maior mortalidade infantil, alta preva-
lência de doenças de causas evitáveis
e, particularmente, com evidências que
mostram que as infecções respiratórias
agudas apresentam altas taxas de ataque
e de internações, com potencial de causar
óbitos. Além disso, sabe-se que as doenças
infecciosas tendem a se espalhar rapida-
mente, desestruturando a organização da
vida cotidiana e os cuidados com saúde dos
povos indígenas. Em uma pandemia, como
é o caso da Covid-19, os dados de vigilância
epidemiológica são centrais para analisar a
progressão e impactos da doença.
Nesse sentido, questões envolvendo a vi-
gilância e noticação da doença, bem como
os cálculos de indicadores (como letalidade
e mortalidade) sobre indígenas, tornaram-
-se essenciais para a formulação, monito-
ramento e aprimoramento das políticas de
saúde indígena no atual contexto. Desse
modo, no âmbito do movimento indíge-
na, o número de casos de contaminados,
recuperados e óbitos, passaram a fazer
parte dos diálogos e reuniões estratégicas
e a posse desses dados passou a signicar
pauta e demanda dos grupos que atuam no
enfrentamento contra a pandemia.
Durante a pandemia, sérias violações no
acesso às informações e na transparência
dos dados ociais têm dicultado a per-
cepção da disseminação da Covid-19 e dos
impactos causados pelo vírus.
Diante da disputa de narrativas, acontece
hoje uma intensa discussão em torno dos
dados sobre adoecimento e morte pela
Covid-19 na população indígena. De um
lado, o Governo Federal, através da Secre-
taria Especial de Saúde Indígena (SESAI),
não disponibiliza na íntegra os dados e
arma que os níveis de mortalidade e le-
talidade dos povos indígenas são menores
que os observados para a população brasi-
leira em geral. De outro, o movimento in-
dígena se desdobra, na ausência de dados
oriundos de fontes ociais, e estrutura o
monitoramento de informação autônomo
e participativo com vistas a redimensio-
nar o impacto da pandemia.
Essa tensão é pública e, inclusive, está indi-
6.
85 Rede de Monitoramento Territorial Independente
cada em título de matéria sobre sessão que
aconteceu no Conselho Nacional de Saúde:
“Divergência de dados sobre Covid-19 na
população indígena diculta medidas efe-
tivas de proteção”1. Cabe perguntar: seria
mesmo uma divergência de dados (ou seja,
resultados diferentes devido a formas di-
versas de contabilizar)? Antes da questão
da divergência de dados em si, uma inda-
gação imprescindível é a seguinte: por que
razões as organizações indígenas precisa-
ram começar a produzir esses dados sobre
adoecimento e morte por Covid-19?
As informações ociais sobre a ocorrência
de casos e mortes causados pela Covid-19
na população indígena são registradas em
diferentes sistemas de informação, desta-
cando-se três: Sivep-Gripe, e-SUS Notica
e o Sistema de Informações da Atenção à
Saúde Indígena (Siasi), da Sesai.
Os dois primeiros sistemas, Sivep-Gripe
e e-SUS Notica, se baseiam na variável
cor ou raça para a identicação dos casos
em indígenas. Por sua vez, os registros da
Sesai, sistematizados através do Sistema
de Informações da Atenção à Saúde In-
dígena (Siasi), se referem unicamente à
população atendida pelos 34 Distritos Sa-
nitários Especiais Indígenas (DSEIs), que é
majoritariamente aldeada.
Os casos identicados no subsistema,
em princípio, alimentam o Sivep-Gripe e
e-SUS, mas se referem apenas a uma par-
cela da população indígena no país. Dessa
forma, limitações de comparabilidade e
complementaridade desses sistemas di-
cultam uma compreensão mais dedig-
na da situação da Covid-19 na população
indígena em âmbito nacional. Ressalta-se
que o banco de dados do Sistema de Infor-
mações da Atenção à Saúde Indígena (Sia-
si) não está disponível publicamente, di-
ferentemente dos demais mencionados, o
que agrava ainda mais as limitações para
compreensão dos impactos da pandemia
em povos indígenas.
A iniciativa de acompanhar e monitorar
os casos de Covid-19 entre os povos pe-
las organizações indígenas foi motivada
pelo reconhecimento de que os números
ociais da Sesai não representavam a to-
talidade dos casos de indígenas infectados
e mortos pela Covid-19. Para mencionar
uma das facetas mais evidentes da pro-
dução e discrepância dos dados, os casos
de Covid-19 em indígenas que vivem em
áreas urbanas ou em terras indígenas
ainda não homologadas, não atendidos
pelo subsistema, não aparecem nas esta-
tísticas geradas pela Sesai2.
Portanto, chegamos a, ao menos, uma
parte da resposta colocada pela pergun-
ta acima “por que razões as organizações
indígenas precisaram começar a produzir
esses dados sobre adoecimento e morte
por Covid-19?”. Os registros ociais, como
aqueles da Sesai, mesmo que apresentas-
sem elevada conabilidade, até o momen-
to atual, cobrem apenas a população re-
conhecida pelo Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena que, em sua maioria, vive
em aldeias localizadas em terras indíge-
nas homologadas. Portanto, esses dados
1 Ver: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1357-divergencia-de-dados-sobre-covid-19-na-populacao-indigena-
diculta-medidas-efetivas-de-protecao.
2 Para o movimento indígena, é fundamental que o monitoramento da Covid-19 contemple a totalidade da população indígena
existente no país, independentemente de estar assistida ou não pelo subsistema. Isso tem implicações não somente por
questões de autorreconhecimento, como também pelo fato de que a ampla circulação e interação da população indígena
entre os diversos recortes socioespaciais traz repercussões objetivas na dinâmica da transmissão do novo coronavírus nas
comunidades indígenas.
6.
86 Rede de Monitoramento Territorial Independente
ociais não incluíram os indígenas viven-
do em áreas urbanas, nem aqueles em
terras não homologadas (como territórios
de retomada, por exemplo).
Além disso, os dados públicos da Sesai são
consolidados e não apresentam informa-
ções sobre, entre outras variáveis impor-
tantes, qual o povo indígena da pessoa. Na
prática, os dados do Siasi sobre a progres-
são da pandemia têm sido publicamente
disponibilizados de forma agregada no
nível de DSEI por meio dos Boletins e In-
formes Epidemiológicos, o que limita as
possibilidades de análise em níveis mais
desagregados e a sua replicabilidade.
Ademais, o preenchimento da variável cor/
raça nos formulários dos sistemas de saú-
de tem baixa qualidade de registro e sua
obrigatoriedade na noticação da Covid-19
está sendo tardia. O eventual registro de
indígenas em outras categorias de cor ou
raça, em particular os “pardos”, contribui
para subdimensionar os reais impactos da
Covid-19 nas populações indígenas. Essa
ausência de informações sobre raça/cor e
povo pode ser vista como expressão de ra-
cismo institucional nos serviços de saúde3.
Diante de um contexto de subnotica-
ção e falta de transparência, tanto do
SUS quanto do Sistema de Saúde Indí-
gena (SIASI), sobre os dados do impac-
to da pandemia nos povos indígenas,
evidencia-se a relevância e validez dos
mecanismos de vigilância comunitá-
ria e participativa sobre o avanço da
Covid-19 nos territórios.
Ressalta-se, inclusive, que a atual iniciati-
va do movimento indígena encontra pre-
cedentes nos debates, desde os anos 1970,
sobre as prerrogativas da participação so-
cial na Atenção Primária à Saúde, na qual
se recomenda que os governos estimulem
e assegurem a participação das comuni-
dades nas ações de saúde.
No Brasil, a 1ª Conferência Nacional de
Vigilância em Saúde, realizada em 2018,
teve como um dos eixos “a vigilância em
saúde participativa e democrática para
enfrentamento contra iniquidades em
saúde”, apontando a relevância da pers-
pectiva da atuação comunitária.
Além dessas dimensões de ordem técnica,
a questão do envolvimento da sociedade
civil, incluindo o movimento indígena,
com a produção de dados precisa ser situa-
da historicamente. Há exemplos concre-
tos e bem documentados de que a pauta
da produção de dados foi extremamente
importante não somente para visibilizar
a temática indígena, como também ofere-
cendo insumos para a elaboração de polí-
ticas públicas especícas. Esse foi o caso
das iniciativas de organizações indígenas
e indigenistas nos anos 1970 e 1980 que,
na ausência de dados governamentais
conáveis, se envolveram diretamente
na produção de dados populacionais, que
vieram a ter importantes impactos no re-
conhecimento dos direitos indígenas.
Considerando esses elementos histó-
ricos, ca evidente que as iniciativas con-
temporâneas do movimento indígena
3 Cabe indicar que há recomendações governamentais visando o preenchimento obrigatório de dados de recorte racial. Essas
recomendações fazem parte das estratégias necessárias para o efetivo dimensionamento de como os povos indígenas estão
sendo afetados pela pandemia. Ter essas informações nos bancos de dados ociais auxilia o planejamento e a avaliação
das políticas públicas de saúde em âmbito federal, estadual e municipal. As informações sobre saúde que contemplem a
informação dos povos são também estratégicas para ajudar as lideranças de cada povo indígena, no âmbito de suas aldeias
e comunidades, sobre os perigos da doença e sobre a manutenção das ações de isolamento e higiene.
6.
87 Rede de Monitoramento Territorial Independente
precisam ser entendidas como estratégias
de resistência e crítica fundamentais na
elaboração e aprimoramento das políticas
públicas. Dados ociais de melhor quali-
dade somente são produzidos quando são
disponibilizados de forma pública, sendo
imprescindível o escrutínio da sociedade
civil para que haja o seu aprimoramento.
No momento atual, com um governo es-
cancaradamente contra os direitos das
minorias e dos povos indígenas especial-
mente, o questionamento sobre a produ-
ção e a disponibilização de dados ociais,
incluindo aqueles sobre saúde, se ma-
nifestam hoje no esforço das organiza-
ções indígenas regionais de acompanhar
e apurar os casos de óbito e de infecção
pelo novo coronavírus, entre seus povos.
A motivação surgiu no momento em que
se reconheceu que muitos dos óbitos não
estavam sendo contabilizados pela Sesai.
O MONITORAMENTO INDEPENDENTE
DE COVID-19 ENTRE OS POVOS
INDÍGENAS
O trabalho do movimento indígena dian-
te da negligência histórica com dados es-
pecícos e a luta pela garantia dos direitos
em saúde especíca justicam a iniciativa
de monitorar os casos pelos indígenas,
como parte da sociedade civil, que se or-
ganiza para realizar a vigilância comuni-
tária e o controle social.
A atividade de acompanhamento e moni-
toramento dos casos, em todo o território
nacional, teve início em março de 2020,
com a noticação do primeiro óbito de
uma senhora do povo Borari, em Alter do
Chão, no Pará, reportado pela Coordena-
ção das Organizações Indígenas da Ama-
zônia Brasileira (Coiab). Durante o mês de
março e abril, as lideranças e organizações
regionais passaram a receber relatos de
falecimento e contágios pela Covid-19 em
seus territórios e também de indígenas em
áreas urbanas. Nesse momento foi identi-
cada disparidade de dados, devido ao fato
de que a Sesai só reportava os casos por ela
assistidos, evidenciando um número me-
nor do que aqueles percebidos cotidiana-
mente pelos próprios povos indígenas.
A questão da subnoticação e invisibili-
dade do impacto da Covid-19 nos povos
indígenas foi tema central no Acampa-
mento Terra Livre (ATL), que aconteceu
de forma virtual, em abril de 2020. Após
esse evento, que reuniu lideranças, mo-
vimentos e pesquisadores, organizou-se
a Assembleia Nacional da Resistência
Indígena. Durante a Assembleia, foi en-
tão criado o Comitê Nacional pela Vida e
Memória Indígena, da Apib, que tem feito
o monitoramento dos casos de Covid-19
desde abril de 2020, junto com as organi-
zações regionais.
A coleta de informações e apuração do
Comitê é feita pelas organizações regio-
nais da Apib através de pontos focais
locais e com a apuração das informações
disponibilizadas pelos órgãos de saúde
municipais, estaduais e federal. Os pro-
cessos, uxos, metodologias e possibi-
lidades de acompanhamento dos casos
mudam de organização para organização
e se encontram em contínuo aprimora-
mento através do trabalho coletivo.
As ações vão do processo de acompanha-
mento dos casos de contaminação e óbitos
até ações de apoio e estruturação dos territó-
rios, para o fortalecimento das capacidades
de resistência dos povos indígenas de en-
frentamento nas suas diversas camadas.
6.
88 Rede de Mon itoramento Territorial Independente
A sistematização, em nível nacional, das
informações sobre os casos de contágio e
óbito pela Covid-19 é feita pelo Comitê Na-
cional pela Vida e Memória Indígena, agru-
pando informações de fontes das organiza-
ções indígenas de base da Apib, Frentes de
enfrentamento contra a Covid-19 organi-
zados no Brasil que colaboram com a Apib,
Sesai, secretarias nunicipais e estaduais de
Saúde e Ministério Público Federal.
Os dados do Comitê incluem tanto indíge-
nas que vivem nos territórios tradicionais
quanto os que vivem em contexto urbano,
que se autodeclaram e possuem laços com
seu povo, como dispõe a Convenção 69 da
OIT (raticada pelo Brasil). As informações
sobre pessoas infectadas pelo novo coro-
navírus coletadas pelo Comitê são prove-
nientes de conrmações por indígenas,
por secretarias municipais e estaduais de
saúde e, eventualmente, por instituições
como o Ministério Público Federal (MPF),
por exemplo, que tem colaborado na testa-
gem em alguns estados para os indígenas
refugiados da Venezuela, os Warao.
Devido à falta de testagens em massa em
todo o país, e particularmente no contex-
to indígena, estima-se que há uma dispa-
ridade signicativa entre o número de
casos conrmados e a quantidade real de
pessoas infectadas. Mais uma vez, diante
da falta de transparência e ausência de
detalhamento das informações da Sesai,
não é possível conferir detalhadamente
os casos entre as diferentes bases de da-
dos, gerando uma possível duplicidade
nas informações fornecidas pelo Comitê.
Os povos indígenas foram proporcio-
nalmente os mais afetados pelo vírus. Até
novembro de 2020, mais de 41 mil indíge-
nas foram contaminados pelo novo coro-
navírus, afetando mais da metade dos 305
povos que vivem no Brasil: a Apib, através
do Comitê Nacional pela Vida e Memória
Indígena, conseguiu investigar e conr-
mar, junto das suas organizações indíge-
nas de base, 161 povos com casos conr-
mados do novo coronavírus no país, um
dado que os informes e boletins da Sesai
não revelam, dada a falta de transparên-
Figura 1. Quantidade de povos indígena com casos conrmados de Covid-19, até novembro de 2020. (Fonte: APIB 2020).
*
*Além dos indígenas brasileiros, conta-se também o povo Waroo, refugiados da Venezuela.
MAIS DA
METADE
DOS POVOS
INDÍGENAS
BRASILEIROS
FORAM
ATINGIDOS
PELA
PANDEMIA
DE COVID-19
6.
89 Rede de Monitoramento Territorial Independente
cia dos dados. O número de mortes chegou
a 880 em nove meses, segundo monito-
ramento feito pelo Comitê Nacional pela
Vida e Memória Indígena. Uma tragédia
sem paralelos na história recente.
A Figura 1 apresenta em vermelho os 161,
dentre os 305 povos indígenas no Brasil,
que tiveram registro de casos conrma-
dos pelo novo coronavírus. Como eviden-
cia a Figura, o número de povos com casos
conrmados é mais da metade do total.
A Figura 2 apresenta o número de óbi-
tos conrmados de indígenas, vítimas
da Covid-19, para os dez estados com
o maior número de óbitos, até 30 de
novembro de 2020. O estado com o
maior número de mortes era o Ama-
zonas, com 211 vítimas, e o décimo es-
tado com o maior número de óbitos era
o Rio Grande do Sul, com 19 vítimas.
A Figura 3 apresenta o número de óbi-
tos conrmados de indígenas, vítimas da
Covid-19, por etnia, até 30 de novembro
de 2020. O maior número de mortes se
deu entre indígenas cuja etnia não foi in-
formada, 262 vítimas. Em seguida, estão
os Xavante, com 68 óbitos, e em décima
posição encontram-se os Kayapó Mebên-
gôkrê, que contavam 12 vítimas.
Cada organização regional de base da
Apib construiu sua própria metodologia
e uxo de monitoramento a partir das
possibilidades de acompanhamento dos
casos. A condição de mobilizar apoio ao
enfrentamento contra a pandemia e a
capacidade de fortalecer ações de manu-
tenção ao isolamento também são fatores
que inuenciam na metodologia de cada
organização. O Comitê reúne essas infor-
mações para unicar as diferentes meto-
dologias sobre os casos de Covid-19.
Ao longo dos meses da pandemia, entre os
povos indígenas, cou também evidente
a precariedade das condições de trabalho
dos agentes de saúde indígena pela quanti-
dade de casos conrmados e mortes desses
prossionais, de norte a sul do país. A Apib
Figura 2. Os dez estados da federação com o maior número de óbitos conrmados de indígenas por Covid-19, até novembro de
2020. (Fonte: https://emergenciaindigena.apibocial.org/dados_covid19/. Acesso em 5 de abril de 2021).
ESTADO ÓBITOS CONFIRMADOS ESTADO ÓBITOS CONFIRMADOS
Amazonas 211 Maranhão 69
Mato Grosso 139 Rondônia 29
Mato Grosso do Sul 94 Acre 27
Roraima 93 Amapá 20
Pará 89 Rio Grande do Sul 19
6.
90 Rede de Monitoramento Territorial Independente
recebeu denúncias de funcionários indíge-
nas dos DSEI, que foram obrigados a tra-
balhar, mesmo com sintomas da Covid-19.
A pandemia entre os povos indígenas agra-
vou ainda mais a política anti-indígena do
governo Bolsonaro. A falta de protocolos,
treinamento, infraestrutura e insumos
para estruturação das medidas sanitárias e
emergenciais de proteção aos povos indíge-
nas, desde o início da pandemia, impactou
no elevado número de casos e mortes.
O isolamento social, prática necessária
para o enfrentamento contra a pandemia,
é um desao para os povos indígenas, tan-
to por sua dependência dos meios urbanos
para adquirir recursos nanceiros e ma-
teriais, quanto pela pressão dos invasores
em terras indígenas, que se constituem em
transmissores do vírus no território.
A impossibilidade de vender seus produ-
tos artesanais, de adquirir alimentos nas
cidades, ou mesmo diante do risco relacio-
nado ao deslocamento às cidades para o
recebimento do Auxílio Emergencial apre-
sentam graves ameaças à manutenção da
saúde e do território indígena. Tal cenário,
aliado à realidade das invasões por mine-
radores, madeireiros e fazendeiros, e a ata-
ques diretos às terras indígenas, destacam
as diculdades dos povos indígenas para se
defender territorial e sanitariamente.
Muitas diculdades são sentidas pelas
organizações nesse processo, tanto de
ordem técnica quanto afetiva. Além da
sobrecarga de trabalho sobre as organi-
zações indígenas na apuração diária dos
casos reportados, menciona-se também
a diculdade na utilização de tecnologias
e interfaces necessárias para o acompa-
nhamento que nem sempre são acessí-
veis para alguns territórios. No entanto, a
grande diculdade sentida pelas pessoas
responsáveis pelo acompanhamento dos
casos é a dor da perda de seus parentes
diante da velocidade com que o vírus
atingiu os povos indígenas.
Lidar diariamente com a morte de pessoas
Figura 3. As dez etnias indígenas com o maior número de óbitos conrmados por Covid-19, até novembro de 2020. (Fonte:
https://emergenciaindigena.apibocial.org/dados_covid19/. Acesso em 5 de abril de 2021).
POVOS AFETADOS ÓBITOS CONFIRMADOS POVOS AFETADOS ÓBITOS CONFIRMADOS
SI 262 Kaingang 22
Xavante 68 Macuxi 19
Kokama 58 Tikuna 17
Terena 56 Munduruku (PA) 15
Guajajara 37 Kayapó Mebêngôkrê 12
6.
91 Re de de Monitoramento Territorial Independente
queridas, registrá-las e, ainda assim, im-
plementar estratégias de enfrentamento
em um cenário de emergência são tarefas
pesadas que afetam os corpos, as mentes
e os corações de todas e todos.
Muito mais do que números, foram pajés,
rezadeiras e rezadores, parteiras, anciões
e anciãs, cacicas e caciques que partiram.
Os povos têm perdido os idosos que guar-
dam as lembranças da memória da an-
cestralidade, guardiões do conhecimento,
dos cantos, das rezas, da espiritualidade.
Lideranças que dedicaram suas vidas à
luta pela defesa do território, da integri-
dade e da existência física e cultural de
seus povos. Vive-se o luto por essa tragé-
dia que atinge não somente os indígenas,
mas toda a humanidade.
Nesse sentido, inclusive, a Apib registrou
inúmeras denúncias de racismo contra os
povos indígenas. Pois, outro enfrentamen-
to que muitos povos indígenas tiveram de
fazer foi o de lutar pelo direito de sepultar
seus mortos com dignidade, respeitando
cada cultura. As violações que acontecem
possuem base no racismo, que impossibili-
ta a compreensão sobre a dimensão cultu-
ral da morte para muitos povos.
CONCLUSÕES
As ações da Apib têm se voltado para a
garantia de direitos assegurados aos po-
vos indígenas, a ampliação da cobertura
de atendimento da Sesai aos indígenas
em contexto urbano e em territórios
não homologados, parcerias com médi-
cos, associações para o atendimento das
pessoas aldeadas, compra e realização
de testes em colaboração com os DSEIs,
distribuição de alimentos para garantir o
isolamento social, utilização de conheci-
mentos ancestrais e medicina tradicional
como medida preventiva e paliativa, além
de campanhas de comunicação com vis-
tas a promover a acessibilidade da infor-
mação sobre a Covid-19.
As possibilidades de atendimento médico
na realidade dos povos aldeados são res-
tritas devido à distância e às diculdades
de transporte para centros urbanos equi-
pados, além dos problemas históricos na
xação de médicos em regiões remotas
e do interior do país. Com a intenção de
ampliar as possibilidades de atendimento,
a Apib fez parceria com a iniciativa Mis-
são Covid-19 e Doutores da Amazônia
para proporcionar o acesso à telemedici-
na e ao atendimento no território.
Além dos serviços de saúde, muitos po-
vos em diversas regiões têm feito uso de
práticas ancestrais e medicina tradicional
no tratamento e acompanhamento dos
doentes. Chás de folhas, raízes e outros
preparos tradicionais têm sido adminis-
trados com vistas a auxiliar no processo
de recuperação de pessoas e de fortalecer
a imunidade da comunidade.
Até o momento, o melhor tratamento
para combater a Covid-19 é a vacina. A
Apib conquistou junto ao Supremo Tribu-
nal Federal, decisão para que o Governo
Federal colocasse os indígenas na priori-
dade da imunização contra Covid-19, in-
dependentemente de viverem na cidade
ou nas aldeias. Não existe tratamento
nem medicamento para o tratamento es-
pecíco da Covid-19, sendo que, mesmo
dentro das unidades de saúde, as medidas
aplicadas visam minimizar sintomas ou
desconfortos, tratar as complicações ou
melhorar a resposta imunológica. Nesse
sentido, a medicina tradicional indígena
6.
92 Rede de Monitoramento Territorial Independente
possui diferentes formulações e aplica-
ções com os mesmos objetivos de expec-
torantes e vaporizações para auxiliar a
respiração, assim como alimentos que au-
mentam signicativamente a capacidade
imunológica. Por isso que o resgate de
conhecimentos terapêuticos e medicinais
se coloca como atividade não apenas de
apoio à manutenção da saúde indígena,
mas também como armação da cultura
e do conhecimento tradicional.
Além da produção e distribuição de remé-
dios caseiros, as mulheres indígenas têm
produzido máscaras de tecido para pro-
teção, instruindo também sobre a impor-
tância do uso e facilitando a compreensão
de como o vírus se comporta.
Um dos pilares das ações da Apib de en-
frentamento contra a pandemia são as
campanhas de comunicação que buscam
informar de modo acessível tanto em ter-
mos de linguagem, quanto de formato. As
informações sobre prevenção, reconheci-
mento de sintomas e alertas foram tradu-
zidas para línguas indígenas e divulgadas
de forma virtual e física através da distri-
buição de material e boletins informati-
vos. Organizações regionais, inuencers,
artistas e prossionais indígenas têm
usado de suas redes para a divulgação de
informes através de postagens, lives e ou-
tros tipos de conteúdo digital.
É importante ressaltar que a Apib e suas
organizações de base não têm intenções
políticas, nem recursos humanos ou -
nanceiros para realizar a vigilância da
Covid-19 entre os povos indígenas. A
proposta do monitoramento é cobrar o
Governo Federal para que tome medi-
das urgentes sobre a situação alarmante
dos povos indígenas durante a pande-
mia. Destaca-se a importância do acesso
público aos dados como estratégia para
identicar fragilidades na qualidade da
informação e indicar caminhos para o
seu aprimoramento, além de subsidiar as
ações do controle social indígena.
Em 2021, devido ao agravamento da
pandemia no Brasil a Apib está aperfei-
çoando o sistema de monitoramento co-
munitário sobre os casos com a constru-
ção de uma plataforma que irá qualicar
o banco de dados com mais segurança
para coleta e armazenamento das infor-
mações. A imunização da Covid-19 entre
os povos indígenas também começou a
ser monitorada pela Apib, em janeiro de
2021, através do Comitê Nacional pela
Vida e Memória Indígena.
REFERÊNCIA
APIB, Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil; Comitê Nacional pela Vida e
Memória Indígena. (2020) Nossa luta é
pela vida: Covid-19 e Povos indígenas, o
enfrentamento das violências durante a
pandemia. [s.l: s.n.].
6.
94 Re de de Monitoramento Territorial Independente
Monitoramento e manejo
participativos
do pirarucu em comunidades
ribeirinhas da região do Baixo
Amazonas paraense
INTRODUÇÃO
A pesca artesanal é uma atividade eco-
nômica expressiva no território do Bai-
xo Amazonas e desempenha um im-
portante papel para manutenção da
alimentação das famílias nas comunida-
des ribeirinhas, predominante entre as
populações de várzea. No entanto, por
conta da pesca comercial descontrolada
e outras pressões antrópicas, algumas
espécies de peixes demonstram estoques
deplecionados ou em vias de esgotamen-
to. O exemplo clássico da depleção de
estoques pesqueiros na Amazônia é o
pirarucu (Arapaima spp.). De acordo com
Castello et al. (2015), em seu estudo de-
senvolvido em 81 comunidades do Baixo
Amazonas, o pirarucu encontra-se ex-
tinto em 19% das comunidades, ameaça-
do de extinção em 57% delas e superex-
plorado em 17%.
Entretanto, os estoques de pirarucu vêm
sendo recuperados em algumas comuni-
dades de várzeas, devido às práticas de
manejo participativo e sustentável por elas
adotadas. O sistema de manejo do pirarucu
foi desenvolvido na década de 1990, na
Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá - RDS, localizada no estado do
Amazonas. Seus princípios envolvem a
realização de uma série de procedimentos
relacionados à organização comunitária,
vigilância dos ambientes aquáticos, esta-
belecimento de regras de uso dos recursos,
realização de levantamento dos estoques,
pesca sustentável e comercialização. A
pesca manejada do pirarucu é estabele-
cida por meio de uma cota de captura de
30% a partir do resultado das contagens
de pirarucus adultos, preservando os 70%
restantes, como forma de assegurar a re-
produção para ns de manutenção do seu
estoque de forma sustentável.
7.
Poliane Batista da Silva1
Antônio José Mota Bentes1
Antônia do Socorro Pena da Gama1,2
David Gibbs McGrath2,3
Wandicleia Lopes de Sousa1,2
1 Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente, Santarém, Pará, Brasil.
2 Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão Socioeconômica da Amazônia da Universidade Federal do Oeste do Pará.
3 Earth Innovation Institute, San Francisco, USA.
7.
95 Re de de Monitoramento Territorial Independente
As experiências de manejo do pirarucu
desenvolvidas em alguns estados amazô-
nicos têm demonstrado que essa prática
de uso sustentável traz bons resultados
econômicos para as populações ribeiri-
nhas, que têm o pescado como sua prin-
cipal fonte sobrevivência, pois gera maior
produtividade pesqueira nos ambientes
aquáticos e renda aos pescadores (QUEI-
ROZ; SARDINHA, 1999; ARANTES et al.,
2006; AMARAL; ALMEIDA, 2013). Além
disso, estimula a organização social, pro-
move capacitações e gera bem-estar às
famílias. Também através da contagem
visual e auditiva os pescadores realizam
o monitoramento participativo dos esto-
ques de pirarucu nos lagos de domínio
comunitário, por meio do qual fazem a
gestão e o manejo. Essa ferramenta de
conservação do pirarucu nos ecossiste-
mas de várzea contribui indiretamente
para a proteção de outras espécies de pes-
cado, bem como de quelônios e do peixe-
-boi amazônico (MIORANDO et al., 2013).
Neste capítulo, apresentamos os resul-
tados do monitoramento e manejo par-
ticipativos do pirarucu desenvolvido por
seis comunidades de várzea do Baixo
Amazonas Paraense, com algumas destas
comunidades desenvolvendo práticas de
manejo sustentável há cerca de 20 anos.
DESCRIÇÃO DO CASO
1. Contexto
A Região do Baixo Amazonas está loca-
lizada no noroeste do estado do Pará e
abrange cerca de 25% do território pa-
raense. A população dessa área está esti-
mada em 705.730 habitantes, sendo que
cerca de 39% está na zona rural (IBGE,
2010). Na região, dezenas de comunida-
des rurais estão localizadas ao longo das
17.600 km² de planícies alagáveis do rio
Amazonas (ARANTES et al., 2018). Devido
à importância do pescado como fonte de
proteína animal e de renda às populações
ribeirinhas, a região foi pioneira no desen-
volvimento de políticas de comanejo pes-
queiro e na criação de Conselhos de Pesca,
responsáveis pela elaboração e implemen-
tação de Acordos de Pesca intercomunitá-
rios (MCGRATH et al., 1999; VIDAL, 2010).
A partir de 2006, o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária - In-
cra regulamentou as áreas de várzea
através da criação dos Projetos de As-
sentamento Agroextrativista (PAE’s),
que consiste em uma modalidade de
assentamento de uso coletivo de popu-
lações tradicionais. Foram criados 44
PAE’s de várzeas em oito municípios do
Baixo Amazonas (SAPOPEMA, 2019).
Os trabalhos com o pirarucu no Baixo
Amazonas começaram em 1985 na região
do Ituqui, com pesquisas desenvolvidas
pelo Projeto Várzea/Ipam. A partir do
ano 1999, o trabalho foi ampliado para
a região do Aritapera e Tapará. Nessas
regiões, além da pesquisa convencional,
foram utilizados métodos participativos,
o qual alia o conhecimento cientíco
com o tradicional dos moradores locais.
Também foram realizados treinamentos,
capacitações e intercâmbios para outras
regiões com experiências pioneiras de
manejo da pesca.
O início da formação de contadores de
pirarucu em Santarém aconteceu a partir
do treinamento realizado na Reserva de
Mamirauá, em 1999, onde participaram
quatro pescadores da região do Tapará
e quatro do Aritapera. Foi essa equipe
7.
96 Re de de Monitoramento Territorial Independente
que iniciou um processo de formação de
recursos humanos na região para o mo-
nitoramento e avaliação de estoque de
pirarucus através do método de conta-
gem visual e auditiva. Também para dar
sustentabilidade para as atividades já ini-
ciadas relacionadas ao manejo dos recur-
sos pesqueiros, foi criada a Associação de
Pescadores e Piscicultores de Pirarucu do
Município de Santarém - APPPMS.
A partir de 2003, a APPPMS e o Institu-
to de Pesquisa Ambiental da Amazônia -
Ipam iniciaram a avaliação das popula-
ções de pirarucu no município de Santa-
rém, sendo que, em 2004, esta parceria
obteve informações sobre a situação dos
estoques do pirarucu de 54 comunidades
de várzea. Esse levantamento pioneiro
indicou que em 29 comunidades os esto-
ques de pirarucu estavam deplecionados
(CROSSA, 2008). Os resultados obtidos
naquele ano, somados a outras iniciativas
desenvolvidas, foram importantes para
nortear a construção de uma estratégia
de monitoramento e de um modelo adap-
tativo de manejo participativo e sustentá-
vel do pirarucu no Baixo Amazonas.
Em 2006, por questões interinstitucio-
nais, a permanência da APPPMS na es-
tratégia do manejo foi inviabilizada. A
partir desse momento o Ipam se torna no-
vamente a principal instituição responsá-
vel pelas atividades relacionadas ao com-
ponente de manejo do pirarucu no Baixo
Amazonas, realizando cursos de manejo,
capacitação e certicação de contadores
de pirarucu, entre outras ações. Em 2012
o Ipam deixou de atuar na área, e a ONG
Sociedade para Pesquisa e Proteção do
Meio Ambiente - Sapopema se propôs a
dar continuidade aos trabalhos junto às
comunidades de várzea.
Atualmente, são as comunidades de Pi-
xuna, Santa Maria, Tapará Miri, Costa
do Tapará, Tapará Grande e Ilha de São
Miguel, no município de Santarém, e Ilha
do Carmo e Urucurituba, no município
de Alenquer, que desenvolvem o mane-
jo do pirarucu na região. Esse trabalho
é acompanhado e apoiado por diversas
instituições públicas e entidades da so-
ciedade civil organizada, tais como a Sa-
popema, Colônias de Pescadores Z-20, de
Santarém, e Z-28, de Alenquer, Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas - Sebrae, Universidade Federal
do Oeste do Pará - Ufopa, Secretaria Esta-
dual de Desenvolvimento da Agricultura
e Pesca do Pará - Sedap e secretarias nu-
nicipais de Agricultura e Pesca de Santa-
rém e de Alenquer.
2.Metodologia empregada
no monitoramento
O monitoramento dos estoques de pira-
rucu é realizado através do método de con-
tagem visual, conforme Castello (2004). Os
procedimentos utilizados nas contagens
são baseados na capacidade e experiên-
cia do pescador em contabilizar pirarucus
quando observam e escutam sua emersão,
chamada por eles de boiada, no momen-
to em que o espécime vem à superfície
da água realizar a respiração aérea. Cada
pescador conta quantos pirarucus obser-
vou em uma unidade predeterminada de
área, durante um intervalo de 20 minutos.
Somente pirarucus maiores de 1 metro
são contabilizados, sendo classicados em
duas categorias: juvenis, chamados local-
mente de bodecos e que medem entre 1 e
1,5 m, e adultos, de tamanho superior a 1,5
m. Os pescadores devem realizar as con-
tagens de forma silenciosa para assegurar
a acurácia do método e evitar que o com-
7.
97 Rede de Monitoramento Territorial Independente
portamento do pirarucu seja alterado por
interferências externas.
O monitoramento participativo do pira-
rucu é desenvolvido pelas comunidades
envolvidas a partir de quatro processos
sociais: a organização social, os acordos
de pesca, as contagens e a vigilância co-
munitária. Esses mecanismos de gestão
dos recursos pesqueiros garantem ao
pescador e as comunidades o protago-
nismo do seu próprio desenvolvimento,
baseados em princípios de autonomia e no
autoconhecimento como sujeitos políticos
de sua própria história, e os recursos na-
turais como riqueza que substanciam as
suas liberdades (SEN, 2010).
A organização comunitária é a base que
sustenta toda a estratégia de monitora-
mento e manejo participativo de pira-
rucu nas comunidades da região do Bai-
xo Amazonas. Este é um processo que se
congura em cada realidade obedecendo
as suas especicidades locais. É a organi-
zação social que permite garantir o fun-
cionamento dos acordos comunitários e o
acesso a benefícios de políticas públicas.
Essas estruturas organizacionais, obede-
cem a relações políticas que vão desde o
convívio nas comunidades através das
Associações, passam pelos Conselhos Re-
gionais de Pesca, que estão articulados
com as Colônias de Pescadores e conecta-
dos a uma Rede de Movimento dos Pes-
cadores do Baixo Amazonas - Mopebam.
Os acordos de pesca são os regulamentos
elaborados coletivamente pelos pescadores
e objetivam normatizar a gestão parti-ci-
pativa e o uso dos recursos pesqueiros em
cada comunidade ou área. Portanto, são
instrumentos importantes que estabelecem
o regramento do acesso aos recursos natu-
rais da Várzea e contribuem para a evitar
a sua degradação (OVIEDO et al, 2015).
O monitoramento dos estoques de pira-
rucu através das contagens é realizado
pelos pescadores com o apoio técnico da
Sapopema em seis comunidades: San-
ta Maria, Pixuna, Tapará Miri, Costa do
Tapará/Tapará Grande, Ilha do Carmo e
Urucurituba (Figura 1 e Tabela 1). Os re-
sultados das contagens são anualmente
apresentados, avaliados e discutidos em
reunião comunitária. Além disso, os da-
dos das séries históricas de contagens
encontram-se armazenados no banco de
dados da Sapopema, estando disponíveis
para as comunidades envolvidas e enti-
dades e instituições parceiras.
As vigilâncias comunitárias são atividades
desenvolvidas pelos pescadores por meio
da organização social que ocorrem nos la-
gos que são objetos dos acordos e a da es-
tratégia de conservação e o manejo de pira-
rucu, e objetiva o cumprimento das regras
de uso dos recursos e evitar que as áreas
de manejo sofram invasões por terceiros e
pesca ilegal. Este processo compõe o sistema
de auto regulação e gestão do recurso pes-
queiro que vem sendo desenvolvido pelas
comunidades da região (FERREIRA, 2017).
As comunidades envolvidas no manejo
realizam o monitoramento dos estoques
de pirarucu em período de tempo dife-
rentes e possuem um número variado de
pescadores (Tabela 1). Os pescadores das
comunidades de Pixuna e Ilha do Carmo
desenvolvem há mais tempo o monitora-
mento das populações de pirarucus, com
registro no banco de dados da primeira
contagem no ano de 2009. Já Costa do Ta-
pará é a comunidade que implementou as
práticas de manejo do pirarucu mais re-
centemente, sendo que a primeira conta-
7.
98 Rede de Monitoramento Territorial Independente
gem realizada após o início desse processo
aconteceu em 2018.
3. Resultados e diculdades
Alguns indicadores demonstram que as
ações do manejo participativo do pirarucu
provocaram aumento nos estoques pes-
queiros na várzea do Baixo Amazonas. As
contagens de pirarucu baseadas no mé-
todo de Castello (2004), indicam aumen-
to da população de pirarucus em lagos de
seis comunidades (Santa Maria do Tapará,
Pixuna do Tapará, Tapará Miri, Costa do
Tapará, Ilha do Carmo e Urucurituba), com
destaque para Tapará Miri, que em 2019
apresentou as maiores densidades de pira-
rucu da região (Figura 2).
Especicamente no Lago Taboca, loca-
lizado na comunidade de Tapará Miri,
aumentou em mais de 300% o número
de pirarucus entre 2012 e 2019. Na co-
munidade de Urucurituba, as contagens
mostraram que houve um acréscimo de
83% no número de pirarucus entre 2014 e
2019, no Lago do Sinezil. Na Costa do Ta-
pará, a primeira estimativa populacional
realizada no Lago do Campo Grande ocor-
reu em 2018, e as contagens do ano se-
guinte já mostraram um aumento de 65%
no número de pirarucus nesse ambiente.
No Lago Papucu, pertencente à comuni-
dade de Ilha do Carmo, o monitoramento
apontou apenas um pirarucu juvenil em
2009, já no ano de 2019 foram contados
119 pirarucus nesse ambiente.
Os dados das contagens de pirarucu são in-
tegrados em um sistema de manejo em que
todos os anos, a partir do monitoramento
participativo, os pescadores estimam o nú-
mero de pirarucus nos seus lagos, e usam os
resultados das contagens para avaliar esses
Figura 1. Localização das comunidades que desenvolvem monitoramento dos estoques de pirarucu na região do Baixo Amazonas,
Pará. (Fonte: SAPOPEMA).
7.
99 Rede de Monitoramento Territorial Independente
estoques e determinar as cotas de pesca. No
entanto, o monitoramento da pesca ainda
é uma fragilidade no processo de avaliação
da atividade, pois não é realizada de manei-
ra sistemática nas comunidades. Dessa for-
ma, não é possível assegurar que somente
os 30% dos adultos contabilizados estão
sendo retirados durante o período de pesca.
Um dos fatores que diculta a sistematiza-
ção dos dados de captura de pirarucus é o
fato de que a maioria das comunidades de-
senvolvem pescarias individuais.
Mas apesar das fragilidades de alguns
processos do sistema de manejo do pira-
rucu na região do Baixo Amazonas, os
pescadores apontam a atividade como
MUNICÍPIO PAE COMUNIDADE NÚMERO
DE FAMÍLIAS
NÚMERO
DE PESCADORES
ANO DE INÍCIO DO
MONITORAMENTO
Santarém Tapará Pixuna 78 60 2009
Alenquer Salvação Ilha do Carmo 15 14 2009
Santatém Tapará Santa Maria 66 51 2011
Santarém Tapará Tapará Miri 68 72 2012
Alenquer Atumã Urucurituba 70 60 2014
Santarém Tapará Costa do Tapará 126 302 2018
Tabela 1. Informações sobre as comunidades que desenvolvem o monitoramento do pirarucu na região do Baixo Amazonas, Pará.
(Fonte: SAPOPEMA e Colônia de Pescadores Z-20).
Figura 2. Mapa da densidade de pirarucu nas seis comunidades da região do Baixo Amazonas que desenvolvem práticas de ma-
nejo sustentável. (Fonte:SAPOPEMA).
7.
100 Rede de Monitoramento Territorial Independente
de grande relevância para a manuten-
ção deste e de outros recursos pesquei-
ros nas comunidades. Como pode ser
observado a partir de depoimentos de
pescadores de comunidades que desen-
volvem o manejo:
[...] quando a gente começou a
fazer o manejo quase a gente
não via pirarucu, via só um aqui
outro ali boiando, agora que a
gente tá ajudando a preservar,
estamos vendo quantidade de
pirarucu nos nossos lagos. E da-
qui uns dias os benefícios vão
ser ainda melhor do que estamos
tendo hoje, porque por onde a
gente anda a gente vê peixe de
lho e chocando. Mas a gente
continua preservando, porque
se fosse como antes querendo só
acabar como a gente fazia, não
tinha essa quantidade de peixe
que a gente tem hoje nos nossos
lagos [...] (Pescador da comunida-
de de Costa do Tapará)
[...] desde que nós começamos a
trabalhar com o manejo do pira-
rucu nós notamos uma grande
produção de pescado e animais de
grande porte nos lagos da nossa
comunidade. E a captura do pira-
rucu traz grandes benefícios para
nós pescadores, devido a procura
e importância dessa espécie de
peixe que é muito valorizado no
mercado [...] (Pescador da comuni-
dade Tapará Miri)
Mas apesar dos avanços do manejo do
pirarucu na região, a falta de uma legis-
lação que fortaleça o desenvolvimento
da atividade ainda é um dos principais
entraves no estado do Pará. Na tentati-
va de fortalecer o manejo no estado, a
Sapopema colaborou na elaboração de
uma minuta de lei referente ao pirarucu,
igualmente como existe no Amazonas
e Acre. Esses estados proíbem de 1º de
junho a 30 de novembro de cada ano a
pesca, o transporte, a armazenagem e a
comercialização do pirarucu, sendo per-
mitidas a captura e a comercialização
somente em caso de piscicultura devida-
mente autorizada e de áreas de manejo,
em complemento à normativa federal,
Figura 3. Número de pirarucus contados no ano de registro mais antigo da série histórica do monitoramento e do ano de 2019
(registo mais recente) nas seis comunidades da região do Baixo Amazonas. (Fonte: SAPOPEMA).
nº de pirarucus
2500
2000
1500
1000
500
0
Lago Pixuna
Pixuna
2009 | 2019
398 433
Lago Papucu
Ilha do Carmo
2009 | 2019
1116
Lago Purus
Santa Maria
2011 | 2019
436 542
Lago Taboca
Tapará Miri
2012 | 2019
537
2232
Lago Sinezil
Urucurituba
2014 | 2019
85
390
Laguinho
Costa do Tapará
2018 | 2019
235
390
7.
101 Rede de Monitoramento Territorial Independente
que restringe da mesma forma tais ati-
vidades no período de 1º de dezembro a
31 de maio. Esta proposta de lei para o
estado do Pará já foi aprovada como in-
dicativo ao governo pela Alepa, mas até
o momento não foi regulamentada.
Em paralelo, ações de capacitação de pes-
cadores em boas práticas de manipulação/
beneciamento do pirarucu, realização de
Rodadas de Negócios e feiras de comer-
cialização do pirarucu estão oportunizan-
do agregar valor ao peixe proveniente
de manejo. Por exemplo, a estratégia de
comercialização do pirarucu pelos pesca-
dores-manejadores diretamente para os
empresários e consumidores em geral au-
mentou em cerca de 40% o faturamento
desses pescadores, uma vez que no perío-
do da realização da primeira feira o quilo
da manta do pirarucu estava sendo comer-
cializada por no máximo R$ 16,00 para os
atravessadores na comunidade ou na ci-
dade. Já no contexto da feira foi possível
vender a R$ 23,00 os cortes da manta.
Por m, os resultados obtidos pelas co-
munidades que monitoram e manejam os
estoques de pirarucu na região têm provo-
cado um impacto em outras comunidades,
cujo indicador tem sido a manifestação
de interesse em replicar a experiência
em suas áreas. Nesse sentido, nos últimos
anos, tem aumentado o interesse de outras
comunidades em participar da estratégia
de monitoramento e manejo participativo
do pirarucu na região do Baixo Amazonas.
CONCLUSÕES
Os benefícios derivados do manejo partici-
pativo e sustentável do pirarucu vão além
do aumento da produtividade pesqueira
nos ambientes aquáticos e do incremen-
to de renda aos pescadores. Esse processo
tem contribuído de forma efetiva no for-
talecimento da organização social das co-
munidades, o que tem possibilitado acesso
a serviços que são demandas históricas
das populações ribeirinhas. E também tem
permitido que os próprios moradores reali-
zem benfeitorias nos locais de uso coletivo,
utilizando recursos nanceiros derivados
das pescarias, o que consequentemente
agrega maior capital social às comunida-
des e viabiliza o sistema de governança
dos recursos naturais da Várzea.
No entanto, para alcançar o cenário de-
sejado para região, ou seja, com a cadeia
produtiva do pirarucu modernizada e
integrada à uma agenda de sustentabili-
dade, alguns obstáculos ainda devem ser
superados. Os principais entraves que
precisam ser superados são a falta de
regulamentação da lei estadual, que per-
mitiria somente a pesca do pirarucu via
manejo; a ausência de comprometimento
do poder público com a gestão dos recur-
sos pesqueiros e o fato de poucas comu-
nidades e pescadores estarem inseridos
nos processos de manejo sustentável, e
particularmente no monitoramento dos
estoques pesqueiros.
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7.
103 Rede de Mon itoramento Territorial Independente
8. Aprendizagens da Rede Ciência
Cidadã para a Amazônia
A Rede Ciência Cidadã para a Amazônia
é uma rede de conhecimento para con-
servação e gestão da Bacia Amazônica. A
iniciativa tem dupla abordagem: um en-
foque em ciência cidadã, que catalisa ci-
clos de inovação e promove uma cultura
de aprendizado e experimentação; e uma
perspectiva de gestão integrada de bacias
hidrográcas em escalas apropriadas. Or-
ganizações da sociedade civil, entidades
governamentais, universidades, centros
de pesquisa, fundações e outras redes co-
laborativas têm a meta de gerar dados,
informações e conhecimentos sobre os
ecossistemas de água doce da Bacia Ama-
zônica compartilhados de maneira coná-
vel, oportuna e acessível. A Rede tem como
princípios uma visão integral a múltiplas
escalas da Bacia Amazônica, inovação, ex-
perimentação e aprendizado, colaboração,
abertura localizada3 e respeito aos direitos
humanos e soberania dos países, seus ter-
ritórios, conhecimento e cultura.
A Rede origina-se do Projeto Ciência Ci-
dadã para a Amazônia. O projeto contou
com o apoio da Fundação Gordon e Betty
Moore (GBMF – sigla em inglês) e foi um
esforço concreto de implementação do
marco da Iniciativa Águas Amazônicas,
uma abordagem de manejo integrado de
bacias hidrográcas. A Rede tem o ob-
jetivo de gerar evidência cientíca para
informar as decisões de maneira custo-e-
fetiva, promovendo a construção de um
público informado em favor da conserva-
ção e capacitando os cidadãos a cuidar da
Bacia Amazônica. Assim, contribuímos
para manter a conectividade desse gran-
de sistema de água doce, interconectado
e dinâmico, apoiando o bem-estar dos se-
res humanos, da vida selvagem e dos am-
bientes dos quais dependem.
O primeiro encontro de sócios, em abril
de 2017 (Lima, Peru), marca o início de um
projeto-piloto de ciência cidadã em escala
amazônica para ajudar a entender as mi-
grações de peixes e os fatores ambientais
que as inuenciam – informações funda-
mentais para garantir o manejo susten-
-tável da pesca e para preservar os ecos-
Gina Leite1
Mariana Varese2
1 Gina Leite é ocial de programa de Ciência Aberta e Águas Amazônicas da WCS (Região Andes Amazônia-Orinoco) e
compõe a equipe gestora da Rede de Ciência Cidadã para a Amazônia.
2 Mariana Varese faz parte do comitê diretivo da Rede Ciência Cidadã para a Amazônia, representando a WCS como
organização antriã da Rede.
3 Aqui é importante destacar que a Rede promove a cultura de dados abertos com responsabilidade de manter uma reexão
consciente sobre o quê, quando e como os dados e informações que gera são compartilhados. Por exemplo, os dados sensíveis
são anonimizados na publicação dos dados abertos, e as localizações são divulgadas em nível de sub-bacia hidrográca para
evitar que se cruzem diferentes fontes de dados que tenham a nalidade de reidenticar atividades das pessoas.
8.
104 Rede de Monitoramento Territorial Independente
sistemas aquáticos da Amazônia. Esse
encontro reuniu mais de 60 participantes
de 35 ONGS, centros de investigação e re-
presentantes de governos para conhecer e
participar do desenvolvimento deste tra-
balho colaborativo. Ao nal de dois anos
e meio de projeto, mais de 40 organizações
da Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Es-
tados Unidos, França e Peru estavam en-
gajadas em conectar e empoderar pessoas
e organizações para coletar e compartilhar
informações sobre os peixes mais impor-
tantes para a segurança alimentar, para
diversas culturas amazônicas e para sua
economia. Os sócios do projeto decidem
consolidar os esforços da comunidade por
meio da criação da Rede Ciência Cidadã
para a Amazônia em fevereiro de 2019.
Em setembro daquele ano, o Modelo de
Governança formalizou os acordos de tra-
balho da Rede. Um ano depois, em 2020, a
Rede reuniria 24 organizações e 5 pessoas
associadas baseadas em 7 países: Bolívia,
Brasil, Colômbia, Equador, França, Peru e
Estados Unidos. Ao nal deste capítulo, a
explanação sobre o modelo de governan-
ça e aprendizagens da Rede será aprofun-
dada, entretanto, antes de chegar a esse
ponto, explicamos as motivações que de-
ram início a um projeto regional focado na
pesca e ao desenvolvimento da plataforma
Ictio, um caso concreto do potencial do tra-
balho em rede para abordar um problema
de escala transnacional.
A pesca é um importante recurso natural
da região Amazônica. O sistema uvial
amazônico abriga a maior diversidade
de ictiofauna de água doce do planeta –
conta com mais de 2.200 espécies descri-
tas pela ciência (OBERDORFF, 2019 et al,
p. 1). Ali encontram-se espécies de peixes
de vital importância para a subsistência
de quase 20 milhões de pessoas que vivem
em regiões urbanas e rurais da Amazônia
Legal brasileira (IBGE, n.d.). São exemplos
dessas espécies a dourada (Brachyplatys-
toma rousseauxii), peixe migrador que per-
corre mais de 11 mil quilômetros de ida e
volta entre o piemonte dos Andes até o
Atlântico, e o icônico pirarucu (Arapaima
sp.), que pode crescer até 3 metros e pesar
200 kg. Ambos os megapeixes4 estão entre
as maiores espécies de peixe do mundo.
O relatório técnico Índice Planeta Vivo
para Peixes Migratórios de Água Doce
revela um cenário apocalíptico para a ic-
tiofauna. O estudo demonstra que, nas úl-
timas cinco décadas, houve uma redução
de 84% da população dos peixes na Amé-
rica Latina e Caribe (DEINET et al., 2020,
p. 6). Esse declínio deverá se acentuar ain-
da mais se for concretizada a construção
de novas barragens nos rios amazônicos.
As espécies migradoras são diretamente
afetadas, pois seu ciclo de vida depende
intrinsecamente da interconectividade
dos ecossistemas aquáticos.
O Brasil está entre os 13 países com maior
produção pesqueira de água doce (FAO,
2020), no entanto dados estatísticos so-
bre a pesca não correspondem à impor-
tância da pesca no país. Em entrevista
ao InfoAmazonia, o pesquisador Ronal-
do Barthem revela que o IBGE realizou
estatísticas da pesca entre 1971 e 1990,
quando o Ibama assumiu essa respon-
sabilidade. O Ibama apresenta resulta-
dos cada vez mais conáveis. Segundo o
4 A categoria de mega peixes refere-se a peixes de grande porte que passam uma parte crítica de sua vida em ecossistemas de
água doce ou salobra e atingem pelo menos 30kg (tradução livre) (Deinet, 2020, p. 5).
8.
105 Rede de Monitoramento Territorial Independente
pesquisador, entre 2004 e 2007, teriam
sido gerados os dados mais conáveis, no
entanto, a partir de 2008, outras pastas
do Governo Federal assumem essa res-
ponsabilidade, porém com resultados
questionáveis. Ronaldo destaca que “a
maioria dos estoques estão ou no limite
da sobrepesca ou já sobrepescados. Quer
dizer, nós estamos em uma situação de
borda. Na minha opinião, quem controla
a pesca é o próprio estoque. Se começa
a diminuir o estoque, o pessoal para de
pescar, se volta a crescer, voltam a pes-
car de novo” (MELO, 2019).
De outro lado, uma série de iniciativas
de base comunitária ajudam a com-
preender os ecossistemas de várzea e
sua importância para a biodiversida-
de aquática e terrestre e desenvolvem
ações para manejar estoques localmen-
te e contribuir para a conservação dos
ecossistemas aquáticos da Bacia Ama-
zônica. Contribuições importantes vêm
ocorrendo principalmente por meio de
iniciativas com manejo de peixes e ou-
tras espécies aquáticas em escala local –
a Amazônia também reúne diversas ex-
periências de manejo e monitoramento
comunitário territorial em nível local,
com diálogo entre conhecimentos tradi-
cionais e locais.
Os resultados preliminares de um mapea-
mento realizado pela Rede Iberoamerica-
na de Ciência Participativa (Ricap) ofere-
cem uma dimensão das experiências de
participação pública em ciência de cinco
países amazônicos (Bolívia, Brasil, Co-
lômbia, Equador e Peru). No Brasil, foram
documentadas 177 experiências e, na re-
gião, 547. Destas, 81% estão vinculadas à
biodiversidade, ecologia, meio ambiente e
manejo de recursos naturais e 80% são de
escala local ou subnacional (PILAND et al,
2020). Essa expressiva proporção de es-
forços locais ou subnacionais revela que
ainda é difícil encontrar modelos ecazes
para replicar ou projetar essas experiên-
cias em grande escala.
Na Amazônia, existe uma base extraordi-
nária de iniciativas de produção e uso do
conhecimento para a conservação e o de-
senvolvimento sustentável. Muitos desses
avanços aportam positivamente à qualida-
de de vida das populações locais que depen-
dem dessas espécies para sua subsistência,
tanto em termos de saúde alimentar quan-
to econômica e cultural. Por outro lado, o
enfoque local não é suciente para respon-
der aos desaos associados com a gestão de
dinâmicas hidrológicas complexas e a con-
servação de espécies migradoras de longas
distâncias, cujos ciclos de vida dependem
da saúde e interconectividade de diversos
ecossistemas. Essas dinâmicas hidrológicas
e o manejo dos migradores de larga escala
revelam a urgência de uma gestão dos re-
cursos em múltiplas escalas: desde a escala
comunitária local até o sistema hidrológico
amazônico por completo.
Para contribuir com o manejo em esca-
la adequada, em abril de 2017, a WCS
convidou diversas organizações go-
vernamentais, não governamentais e
acadêmicas para participar do Projeto
Ciência Cidadã para a Amazônia com
o intuito de desenvolver um projeto-
-piloto de ciência cidadã em escala amazô-
nica. A nalidade foi aproximar cientistas,
acadêmicos e cidadãos para criar um am-
biente favorável à produção participativa de
conhecimento, a m de contribuir com o or-
denamento pesqueiro em escala adequada
e, nalmente, com a conservação dos ecos-
sistemas aquáticos prioritários. A pergunta
8.
106 Rede de Monitoramento Territorial Independente
orientadora do projeto era onde e quando
migram os peixes na Bacia Amazônica e quais
sãos os fatores ambientais que inuenciam
suas migrações, e a estratégia para respondê-
-la seria abordá-la por meio de quatro com-
ponentes-chave: ciência e tecnologia, cons-
trução de alianças institucionais, partici-
pação cidadã e incidência política. A escala
desse trabalho inclui os países que fazem
parte da Bacia Amazônica: Bolívia, Brasil,
Colômbia, Equador e Peru. Essa escala é
fundamental para compreender, priorizar
e gerenciar os processos ecológicos em toda
a região inuenciada pelo grande uxo do
sistema hidrográco do rio Amazonas.
O desenvolvimento e a implementação de
soluções inovadoras para o componente
de ciência e tecnologia tiveram a ativa par-
ticipação dos parceiros institucionais que
atuaram diretamente em grupos de cola-
boração, processos consultivos, reuniões
presenciais e virtuais. O projeto investiu
no desenvolvimento do aplicativo e pla-
taforma on-line Ictio, para registro e com-
pilação de dados de pesca, e na adaptação
de um protótipo FieldKit, um sistema mo-
dular de sensores de nível e qualidade da
água, com estações climáticas, bem como
aplicativo web e celular para coleta, ges-
tão e difusão de informação, desenvolvi-
do pela Conservify. Em 2021, além de dar
continuidade ao processo de adaptação e
ajustes FieldKit, se disponibilizará um guia
com um conjunto com outras ferramentas
de monitoramento de água e clima.
Além da criação e adaptação das soluções
tecnológicas mencionadas acima, foi im-
plementado um projeto-piloto de ciência
comunitária para fortalecer a cidadania
e construir uma cidadania ambiental em
quatro escolas rurais de ensino médio no
distrito de San Juan del Oro, província de
Sandia (Puno - Peru). Liderado pela WCS, o
projeto trabalhou em estreita colaboração
com 144 alunos e 28 professores e contou
com a colaboração do Programa Interna-
cional de Ciência e Educação desenvolvido
pela Agência Espacial Americana (Nasa),
do Ministério da Educação e do Ministério
do Meio Ambiente do Peru. A sistematiza-
ção desta experiência apresenta uma des-
crição do projeto, seus desaos, resultados,
aprendizados de forma que possa se con-
verter em uma referência pode ser repli-
cada, ampliada e adaptada por iniciativas
semelhantes (WCS, 2020).
Nas próximas páginas, aprofundaremos
a discussão sobre o desenvolvimento
de Ictio, projeto lançado em julho de
2018 e é resultado da colaboração das
organizações que formam parte da
comunidade do projeto.
O Ictio é uma plataforma que conta com
uma infraestrutura de banco de dados,
aplicativo gratuito5 e página web6 para
compartilhar registros de observações
de pesca. A plataforma foi desenvolvida
pelo Laboratório de Ornitologia da Uni-
versidade de Cornell (CLO – sigla em in-
glês)7 e pela WCS, em colaboração direta
com a comunidade do projeto e partici-
pação indireta de populações locais e in-
5 Disponível em Google Play por meio de http://bit.ly/IctioApp.
6 Ictio.org.
7 O CLO é o responsável pelo eBird, uma plataforma global de registro de avistamentos de aves. A participação deste laboratório
em um projeto relacionado ao registro de peixes se dá, de um lado, pela vasta experiência desta equipe com um projeto
de ciência cidadã de grande escala que envolve indivíduos, organizações governamentais, ONGs e iniciativa privada. Por
outro lado, o laboratório tinha interesse em ampliar as formas de observar a biodiversidade; o projeto Ciência Cidadã para a
Amazônia foi uma oportunidade de aliar-se a um grupo de especialistas e uma rede de organizações que participariam de uma
experiência-piloto.
8.
107 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dígenas, pescadores individuais, grupos
de manejo e associações locais vincula-
das aos parceiros.
O Ictio conta com tem três protocolos
de registro8, que permitem documen-
tar espécies, número de indivíduos,
peso, localização, preço de venda, data
e fotograas. Por meio do aplicativo,
os usuários podem visualizar e com-
partilhar seus dados, bem como ras-
trear as espécies que capturam ao lon-
go do tempo. Além do aplicativo Ictio,
também é possível compartilhar da-
dos usando a ferramenta de upload de
dados disponível na página da web.
A seleção dos locais para implementação
do projeto-piloto foi baseada em uma com-
binação de dois critérios: as sub-bacias
críticas para o ciclo de vida dos bagres9 e
os characiformes10 migratórios (Figura 1);
e organizações locais com vasta experiên-
cia em monitoramento participativo inte-
ressadas em comprometer-se com esta
fase-piloto. Dezoito organizações da Bo-
lívia, Brasil, Colômbia, Equador e Peru11
comprometeram-se a promover e apoiar
grupos locais a utilizar do aplicativo Ictio
em sua fase-piloto (2018-2019).
8 O aplicativo tem três protocolos: (1) Durante a pesca, que permite registrar localização precisa por meio do registro do trajeto
da pesca, usando-se GPS. (2) Depois da pesca, que permite que o usuário informe data, hora e local do evento de pesca. Neste
caso, o registro da informação é realizado em um local distinto do local da pesca, mas é possível informar onde foi realizada
a pescaria e (3) Mercado, protocolo utilizado para realizar registros em pontos de comercialização de pescado. Neste caso,
não é possível identicar facilmente quando e onde foi realizada a atividade pesqueira.
9 Ordem Siluriformes.
10 Ordem Characiformes.
11 Bolívia: Faunagua; WCS Bolívia; Brasil: Ecoporé, ICMBIO, Instituto Mamirauá, Sapopema, WCS Brasil; Colômbia:
Fundación Omacha, Instituto Sinchi; Equador: USFQ - Universidad San Francisco de Quito, WCS Equador; Peru: Cincia,
FZS - Frankfurt Zoological Society, IBC, ProNaturaleza, San Diego Zoo Global, WCS Peru.
Figura 1. A área de foco geográco do Projeto é destacada em verde escuro e representa as bacias que são críticas para o sustento
de bagres migratórios e characiformes. Barthem, R. B. et al. (2017). (Fonte: WCS).
8.
108 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Todas as organizações comprometidas
com a implementação do Ictio já tinham
vasta experiência em monitoramento par-
ticipativo, dessa forma, cada uma desen-
volveu estratégias adaptadas ao contexto
local. A pergunta orientadora do projeto –
onde e quando os peixes migram e que fato-
res ambientais inuenciam essas migrações
– abrange um problema de grande escala,
portanto as organizações parceiras desen-
volveram um trabalho abarcando a cida-
dania para relacionar essa questão mais
ampla com necessidades locais, tais como a
gestão pesqueira, a educação infantil ou as
preocupações com a qualidade da água. O
primeiro momento de participação estava
focado no desenvolvimento tecnológico
e na retroalimentação para aperfeiçoar o
desenho do aplicativo. Essa etapa foi cru-
cial para acelerar o processo de desen-
volvimento e criar uma ferramenta mais
adequada a um contexto de baixa escolari-
dade em geral.
Ao longo dessa primeira fase, foram
realizadas reuniões para apresentar o
projeto, treinamentos e assistência téc-
nica, totalizando mais de 260 atividades
12 A Bacia Amazônica está destacada em laranja, as organizações que lideram a implementação de tecnologias estão
sinalizadas em amarelo e os locais onde o Ictio, o FieldKit e o projeto de ciência comunitária foram implementados estão
destacados em verde.
Figura 2. Sítios-piloto do Projeto Ciência Cidadã para a Amazônia.12 (Fonte: WCS)
8.
109 Rede de Monitoramento Territorial Independente
com o envolvimento de cerca de 8 mil
pessoas. Os parceiros locais lideraram o
trabalho com associações de pescadores,
comunidades indígenas e estudantes,
denindo quais perguntas responder, de
que forma analisar os dados, como usá-
-los e dando subsídios para tomada de
decisões em nível local. A Rede conec-
ta esses esforços locais distribuídos por
toda a bacia, respeitando e fortalecendo
suas capacidades e autonomia. Mais do
que “escalar”, “massicar” ou “alargar” o
modelo, trata-se de conectar e “viralizar”
boas práticas, lições, promovendo siner-
gias entre essas iniciativas.
No nal de 2019, a GBMF rmou um novo
compromisso com a WCS, que incluiu o
apoio para dar continuidade à Rede até
outubro de 2021, no entanto a pandemia
de Covid-19 evidentemente provocou uma
descontinuidade nas atividades presen-
ciais, o que compromete diretamente a
realização de atividades de campo, que são
tão fundamentais para o desenvolvimento
do trabalho com populações rurais. Esse
desao segue exigindo esforços adicionais
por parte da equipe de coordenação e dos
parceiros para manter o interesse e a par-
ticipação ativa das cidadãs e cidadãos. O
resultado cumulativo do número de usuá-
rios do aplicativo e plataforma de upload
de dados e número total de listas13 envia-
das pode ser observado na Figura 3.
O CLO é responsável pela infraestrutura
da plataforma, manutenção de servido-
res físicos em Nova York, hospedagem
de dados em nuvem e adoção de medi-
das para proteção dos dados. O acesso
aberto a dados está no cerne da losoa
da Rede e se manifesta no Ictio por meio
13 Uma lista é um registro de um evento de pesca em lugar e momento determinados e pode conter observações e fotograas
de diversas espécies.
14 Até setembro de 2020, foram registradas no Ictio 38.001 observações em 20.089 listas compartilhadas via aplicativo e
plataforma on-line. Esses dados provêm de 148 sub-bacias da Amazônia, o que representa 74% do total de 199 sub-bacias
nível BL4 (conforme Venticinque et al. 2016).
Figura 3. Resultados do aplicativo e plataforma Ictio a setembro de 2020. (Fonte: WCS).14
8.
110 Red e de Monitoramento Territorial Independente
de sua Política de Dados (CORNELL LAB
OF ORNITHOLOGY & WCS, 2019). A co-
munidade do projeto teve a oportunidade
de debater sobre a Política de Dados em
uma série de webinars sobre dados aber-
tos e proteção de direitos e, ao nal, fo-
ram denidos três níveis de acesso aos
dados: (1) um conjunto básico de dados é
publicado trimestralmente em ictio.org.
Esse banco de dados é público e não inclui
informações sensíveis nem coordenadas
geográcas precisas; (2) Os associados da
Rede têm acesso ao conjunto de dados
ampliado com coordenadas geográcas
e sem informações pessoais; (3) Os usuá-
rios têm acesso a seus dados completos
mediante solicitação por e-mail. Qual-
quer pessoa pode reportar inconsistên-
cia nos registros da base de dados. Toda
retroalimentação é consolidada e anali-
sada em conjunto, e o conjunto de dados
seguinte incorpora essa revisão, dessa
forma, trabalhamos consistentemen-
te para garantir a qualidade dos dados.
O Ictio é o resultado de um caso-piloto de
elaboração de metodologias e tecnologias
desenvolvidas de forma participativa,
que conecta experiências de monitora-
mento e manejo participativo na Amazô-
nia. Contribuímos para o fortalecimento
de iniciativas comunitárias locais e aju-
damos a preencher vazios de informa-
ção em grande escala. No futuro, com a
geração de informação em larga escala,
esperamos ajudar na formação de acor-
dos de pesca, na avaliação dos impactos
dos projetos de infraestrutura, na nego-
ciação com o Estado, no aprofundamen-
to da nossa compreensão dos padrões de
migração de peixes prioritários na Ama-
zônia e nos informes sobre estratégias in-
tegradas de gestão e conservação para as
grandes bacias da Amazônia.
Desde o início, o projeto adotou processo
de desenvolvimento experimental que
foi sendo renado ao longo do tempo,
com base nos avanços e aprendizados co-
letivos. Em dezembro de 2020, o Grupo
de Colaboração de Peixes conta com 17
participantes de 9 organizações da Bolí-
via, Brasil, Equador, EUA, França e Peru15
e tem o objetivo crucial de apoiar a me-
lhoria do projeto conceitual, implementa-
ção e uso do aplicativo e ferramentas de
upload do Ictio.
Os grupos de colaboração foram estabe-
lecidos como modelo de troca de ideias e
colaboração sobre temas priorizados pela
comunidade. Com a criação da Rede em
fevereiro de 2019 e a aprovação do modelo
de governança em setembro desse mesmo
ano, os grupos de colaboração se consoli-
dam como um espaço de intercâmbio, tra-
balho e consulta, operando em múltiplas
escalas. Assessoram o Comitê Diretor e o
Grupo Gestor em vários temas, especial-
mente os técnicos no âmbito do plano es-
tratégico da Rede. Apesar de não ser uma
instância deliberativa, os participantes dos
grupos de trabalho elegem dois represen-
tantes para o Comitê Diretor da Rede, o
qual cumpre a função de orientar e denir
estratégias técnicas e operacionais para
assegurar a implementação do planeja-
mento estratégico da Rede.
O Estatuto da Rede Ciência Cidadã para
a Amazônia (Rede Ciência Cidadã para a
Amazônia, 2020) determina sua estrutura
15 Faunagua e WCS (Bolivia), UNIR, Mamirauá e WCS (Brasil), WCS (Equador), IRD (França), IBC, CLO, Departamento de
Ictiología del Museo de Historia Natural, Instituto de Investigación de la Amazonía Peruana (Peru).
8.
111 Red e de Monitoramento Territorial Independente
de governança, a qual é formada por qua-
tro instâncias: os grupos de colaboração e o
Comitê Diretor, mencionados no parágra-
fo anterior, e a Assembleia Geral e o Gru-
po Gestor. A Assembleia Geral, formada
pelo conjunto de associados, é a autorida-
de máxima de decisão da Rede e dene o
direcionamento da Rede e quatro dos sete
representantes do Comitê Diretor. E, nal-
mente, o Grupo Gestor é a esfera executi-
va, que coordena a implementação do pla-
no estratégico da Rede e a articulação de
aspectos técnicos entre o Comitê Diretor
e os Grupos de Colaboração. Esse grupo é
liderado pela organização antriã da Rede,
atualmente a WCS. A Figura 4 apresenta
um sumário da estrutura de governança
da Rede, incluindo também uma comuni-
dade de pessoas e organizações vinculadas
a ela informalmente.
Em 2021, a comunidade Ciência Cidadã
para a Amazônia completa quatro anos.
As principais lições aprendidas, sem
considerar os aprendizados durante o
período da pandemia de Covid-19, são:
(I) o desenho de processos colaborativos
ágeis que combinem transparência, ex-
perimentação e manejo adaptativo; (II)
a diversidade de atores e tipo de organi-
zações que atuam em diversas escalas é
fundamental para o fortalecimento da
rede e de seus sócios, bem como para in-
centivar o protagonismo de organizações
locais; (III) a possibilidade de as organi-
zações estabelecerem distintos níveis
de engajamento garante uma estrutura
exível que corresponde à capacidade e
interesse de participação dos sócios; (IV)
gestão da informação é um aspecto-chave
para gerar conança e auxiliar o trabalho
dos grupos de colaboração, que incluem
colegas com distintos níveis de especia-
lização e experiência, o que permite uma
perspectiva conjunta bastante ampla; (V)
os grupos de colaboração são o espaço que
promovemos para canalizar esforços co-
letivos que ultrapassam as barreiras insti-
tucionais. Com transparência e conança,
geramos um espaço de experimentação
para acelerar a produção de protótipos;
e, nalmente, (VI) a gestão de dados com
Figura 4. Instâncias da Rede Ciência Cidadã para a Amazônia. (Fonte: Rede Ciência Cidadã para a Amazônia).
8.
112 Rede de Monitoramento Territorial Independente
padrão internacional e seu uso amigável e
interoperável deve responder tanto a ne-
cessidades locais quanto permitir a agre-
gação de dados que possam ser analisados
em diversas escalas.
A Rede Ciência Cidadã para a Amazônia
é um exemplo prático de como respon-
der ao desao de conectar esforços in-
dependentes e promover a participação
cidadã com o intuito de produzir, com-
partilhar e utilizar conhecimentos para
responder a impactos antrópicos em
múltiplas escalas. Um grande desao é
obter uma melhor compreensão desses
impactos e suas causas a m de abordá-
-los nas escalas adequadas. Na primeira
fase, o processo de experimentação este-
ve enfocado em peixes migradores, pois
são sentinelas da conectividade da bacia,
e suas populações estão ameaçadas. Eles
são fundamentais para as populações
urbanas e rurais da Amazônia, conec-
tam as pessoas ao ecossistema de forma
muito concreta. Ciência, conhecimento
compartilhado e cidadania ativa ajudam
a embasar tomadas de decisão em múlti-
plas escalas. Isso é comprovado para es-
calas locais, e seguimos fortalecendo esse
enfoque em escalas nacionais e em toda
a Bacia Amazônica. A conectividade é
um conceito-chave desse desao: conec-
tividade e integridade de ecossistemas,
conexões entre pessoas e ecossistemas e
conexões entre pessoas.
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8.
113 Rede de Monitoramento Territorial Independente
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8.
114 Rede de Monitoramento Territorial Independente
O Biomonitoramento
feito pelo povo Paiter Suruí
O BIOMONITORAMENTO NA TI SETE
DE SETEMBRO
O presente capítulo apresenta o biomo-
nitoramento Paiter Suruí de mamíferos
de médio e grande porte (MMG), com foco
na caça tradicional para alimentação.
O biomonitoramento Suruí – também
chamado de “automonitoramento” –
é realizado na Terra Indígena Sete de
Setembro (TISS), território do povo Pai-
ter Suruí, homologada em 1989, locali-
zada entre os estados do Mato Grosso e
Rondônia, e que possui área aproxima-
da de 248 mil hectares.
O biomonitoramento surgiu como parte
de um diagnóstico etnoambiental parti-
cipativo e elaboração de plano de gestão
para o Território e para o Povo Suruí, no
início dos anos 2000. O foco na caça foi
motivado pela preocupação das lideran-
ças indígenas com a garantia da seguran-
ça alimentar do povo e a valorização da
alimentação e caça tradicionais, além da
preocupação com o manejo da fauna no
entorno da aldeia e da região. A proposta
do biomonitoramento foi construída de
forma participativa ao longo dos anos, e
se concretizou através de um projeto de
monitoramento, em 2009, com o apoio da
Associação Kanindé, organização parceira
da Associação Metareilá do Povo Indígena
Suruí na construção das metodologias de
coleta, registro e interpretação dos dados.
Entre abril de 2012 e junho de 2013, oito
pesquisadores indígenas foram treinados
e monitoraram a caça em cinco aldeias da
Terra Indígena Sete de Setembro. Duran-
te esse período também foram realizados
censos de mamíferos não voadores de
médio e grande porte em duas trilhas. Os
dados quantitativos apresentados ao longo
do texto fazem referência a esse período,
mas as atividades de automonitoramento,
contudo, seguem sendo realizadas.
A construção deste capítulo está apoiada
em dois materiais: entrevista concedida
virtualmente por Luan Mopib Gorten Su-
ruí, liderança indígena e coordenador de
meio ambiente da Associação Metareilá,
no dia 4 de março de 2021 à equipe do
Luan Mopib Gorten Suruí1
Israel Correa do Vale Junior2
Alexsander Santa Rosa Gomes2
Ivaneide Bandeira Cardozo2
* Capítulo construído com apoio da equipe do FGVces.
1 Associação Metareilá.
2 Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé.
9.
9.
115 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Centro de Estudos em Sustentabilidade
da Fundação Getulio Vargas (FGVces); e
o relatório intitulado Automonitoramen-
to Paiter Suruí sobre o uso de mamíferos
de médio e grande porte (MMG) na Terra
Indígena Sete de Setembro, Cacoal, Ron-
dônia, Brasil, publicado pela Associação
Metareilá e pela Associação de Defesa Et-
noambiental Kanindé, em 2017. Os mate-
riais foram combinados para construção
da narrativa do capítulo, que apresenta,
além desta seção com breve introdução,
uma seção para descrição detalhada do
biomonitoramento, assim como de sua
metodologia e principais resultados e di-
culdades. Ao nal, serão apresentados os
principais aprendizados desta iniciativa
de monitoramento.
O BIOMONITORAMENTO SURUÍ, SEU
CONTEXTO E METODOLOGIA
O projeto do biomonitoramento nasceu
no início dos anos 2000, ligado à propos-
ta das lideranças indígenas de construção
de um diagnóstico etnoambiental do Ter-
ritório Paiter, e um plano de gestão com
horizonte para 50 anos do povo Suruí.
Dentro desse plano constavam vários te-
mas: educação, proteção do meio ambien-
te, cultura, saúde e segurança alimentar.
Além do diagnóstico e plano, o biomo-
nitoramento também é ação derivada
do Projeto de Carbono Florestal Suruí
(PCFS), um dos primeiros projetos lide-
rados por indígenas que teve como fonte
de nanciamento a venda de créditos de
carbono. Após assinatura de Memorando
de Entendimento entre os Clãs do Povo
Paiter Suruí, em 2009, e com incentivo
nanceiro junto às Nações Unidas, fo-
ram iniciadas atividades do PCFS, que
continha quatro eixos temáticos: (1) Fis-
calização e Meio Ambiente; (2) Seguran-
ça Alimentar e Produção Sustentável; (3)
Fortalecimento Institucional; e (4) Desen-
volvimento e Implantação de um Meca-
nismo Financeiro. Com a implantação do
projeto de carbono na TISS, e a denição
dos eixos temáticos, surgiu a necessidade
de buscar meios para monitorar aspectos
da alimentação tradicional das comuni-
dades Paiter (Eixo Temático 2).
Com o propósito de avançar no monitora-
mento, conectado ao Eixo Temático 2 do
PCFS, entre abril de 2012 e junho de 2013,
oito pesquisadores indígenas foram treina-
dos e monitoraram a caça em cinco aldeias,
dentre as 25 da Terra Indígena Sete de Se-
tembro. Durante esse período também rea-
lizaram censos de mamíferos não voadores
de médio e grande porte em duas trilhas
dentro do território do povo Suruí.
A ação de monitoramento da caça foi rea-
lizada nas aldeias Lapetanha; Joaquim;
Nabeko–Dabalakibá; Apoena Meirelles; e
Kabaney. Em cada aldeia foi selecionado,
pela comunidade e Associação Indígena,
um monitor para desenvolver os traba-
lhos. Essa seleção levou em consideração,
dentre outros fatores, garantir ao menos
um agente indígena de cada aldeia; con-
tar com a representação de todos os clãs
do povo Suruí, e a distribuição espacial do
monitoramento, buscando assim não con-
centrar os estudos em uma pequena re-
gião, mas compreender um espaço maior
de análise. Após a seleção, os monitores
passaram por uma capacitação para atua-
rem como Agentes Ambientais Indígenas,
compreendendo a importância de seu tra-
balho e dos resultados do projeto.
O conteúdo abordado na capacitação pas-
sou por: (a) pensamento amplo e conscien-
9.
116 Rede de Monitoramento Territorial Independente
te sobre a biodiversidade, os usos e perigos
das ações antrópicas e (b) a implementação
do etnozoneamento e do Plano de Gestão
na TISS, além do monitoramento de ma-
míferos de médio e grande porte, e seu uso.
Um ponto de destaque sobre a constru-
ção do sistema de monitoramento, foi
a parceria com biólogos da Associação
Kanindé. Foram desenvolvidas ocinas
para a sistematização de um programa
de monitoramento, desenvolvimento de
uma plataforma de dados e para organi-
zação dos dados registrados.
As ações de monitoramento contaram
com a utilização do aplicativo Open
Data Kit (ODK). Trata-se de um conjun-
to de ferramentas gratuito e de códi-
go aberto para coleta e envio de dados
usando dispositivos móveis Android.
Esse processo pode ocorrer remotamen-
te mesmo sem acesso a Internet ou da-
dos móveis no momento da coleta. Ade-
mais, com o ODK é possível fazer upload
de texto, dados numéricos, GPS, fotos,
vídeos, códigos de barras e áudio para
um servidor on-line3.
Atualmente, quase todas as aldeias con-
tam com conexão de internet, e cada mo-
nitor usa um smartphone para tirar foto
do animal caçado e enviar informações
para o servidor. Quando o monitor não
está presente para registrar, outras pes-
soas fazem o registro e enviam informa-
ções sobre animais caçados para monitor
responsável via WhatsApp. São inseridos
dados sobre local da caça (aldeia/territó-
rio), e informações sobre espécie, tamanho
e peso do animal caçado, por exemplo. Os
registros são armazenados com o uso do
ODK, e cam disponíveis na plataforma
do aplicativo assim que preenchidos.
Para além dessas atividades relaciona-
das às coletas e registros, são realizados
encontros periódicos com os monitores
para avaliação do andamento das ativi-
dades, identicação e socialização sobre
diculdades que possam estar enfren-
tando no dia a dia, e também para reali-
zação de análises dos dados.
Nesses encontros também são elaborados
entendimentos conjuntos e aprendizados
sobre o processo, e nesse sentido merece
destaque a compreensão da importância
do biomonitoramento para as ativida-
des de manejo da caça dentro do territó-
rio. Com as informações coletadas, faz-
-se possível acompanhar as dinâmicas de
caça, identicando os animais mais caça-
dos, quais suas principais características e
onde a caça deste animal acontece.
Elemento importante para o desenvolvi-
mento da ação de biomonitoramento, a
integração entre os conhecimentos indí-
genas e o conhecimento cientíco foi e
segue como um desao. De toda maneira,
não há valorização de um conhecimento
em detrimento de outro, mas antes o es-
forço de elaborá-los conjuntamente. In-
clusive, ao lidar com os animais, a impor-
tância destes para a cultura Paiter Suruí
é ressaltada durante o biomonitoramen-
to, e as formas de registrar os diversos
aspectos culturais vêm sendo também
discutidas no âmbito do projeto4.
3 Para mais, ver: https://www.google.com/intl/pt-BR_br/earth/outreach/learn/odk-collect-and-google-drive-integration-
to-store-and-manage-your-data/.
4 Na estrevista ao FGVces (março/2021), Luan Mopeb compartilhou que a história dos animais é importante para os Suruí,
e que essas histórias vêm de seus antepassados, e que cada animal também tem seu espírito e seu signicado, que deve
ser respeitado. Há, portanto, preceitos, interdições, evitações, dentre outras, a serem respeitados no trato com os animais.
9.
117 Red e de Monitoramento Territorial Independente
RESULTADOS E DIFICULDADES
O relatório “Automonitoramento Paiter
Suruí sobre o uso de mamíferos de médio
e grande porte na Terra Indígena Sete
de Setembro” traz informações para 15
meses de trabalho e pesquisa com o bio-
monitoramento (abril de 2012 e junho de
2013). Em cinco aldeias, foram aplicados
443 questionários e entrevistados 27
caçadores, que relataram a captura de
7.618,29 quilos de mamíferos de médio
e grande porte, e biomassa de cinco es-
pécies, que foram utilizadas como fonte
de alimentação: queixadas Mebe, catetos
Mebekob, macaco-prego Masaíkir, tatu-
-galinha Arelig e tatu Waloy. Foram 455
indivíduos capturados, pouco mais de
um indivíduo por caçador, por mês.
Sobre a escolha das espécies de mamífe-
ros de médio e grande porte monitora-
das, é possível imaginar que restrições
e tabus alimentares, ou sazonalidade na
disponibilidade de caça podem explicar
o conjunto reduzido escolhido pelos ca-
çadores Paiter Surui: seis espécies. Quei-
xadas e catetos constituíram 95% da bio-
massa capturada, enquanto as demais,
macaco-prego Masaíkir, tatu-galinha
Arelig e tatu Waloy constituem parcela
reduzida. Apenas um porco-espinho foi
capturado no período de estudo, por ca-
çadores da aldeia Lapetanha.
Todos esses mamíferos foram capturados
com arma de fogo – não houve nenhum
registro de caça realizada com arco e e-
cha. Os caçadores relataram caçar sozi-
nhos, e a caça em grupos ocorreu apenas
em duas ocasiões: 1) quando da presença
de bandos de porcos do mato (catetos ou
queixadas) em áreas próximas às aldeias
(roça, igarapé, varadouros); e 2) em rituais
e festas. O número de caçadores, 27, signi-
ca uma média de 5 por aldeia monitorada.
Além das informações relacionadas a
caça, o relatório “Automonitoramento
Paiter Suruí sobre o uso de mamíferos de
médio e grande porte na Terra Indígena
Sete de Setembro” traz dados sobre os
ESPÉCIE NOME
POPULAR
NOME
NA LÍNGUA
ALDEIA
LAPETANHA
ALDEIA
JOAQUIM
ALDEIA
NABEKO
ALDEIA
KABANEY
ALDEIA
A. MEIRELES
BIOMASSA
TOTAL KG
Sapajus
apella
Macaco
prego Masáikír 72,00 32,00 26,00 18,00 64,00 212,00
Dasypus
novemcinctus
Tatu
galinha Alerub 26,00 13,00 15,00 24,00 48,00 126,00
Tayassu
pecari Queixada Mebe 1.152,60 1.320,00 1.441,00 420,00 682,80 5.016,40
Pecari tajacu Cateto Mebekob 501,60 456,70 453,00 287,00 527,59 2.225,89
Dasypus
kappleri
Tatu 15
quilos Waloy 22,00 8,00 6,00 - - 36,00
Coendu
prehensilis
Porco
espinho - 2,00 - - - - 2,00
TOTAL
GERAL 1.776,20 1.829,70 1.941,00 1749,00 1.322,39 7.618,29
Tabela 1. Biomassa (kg) de mamíferos de médio e grande porte capturados por 27 caçadores das aldeias (Lapetanha, Joaquim,
Nabeko-Daba- lakibá, Kabaney e Apoena Meireles) da terra indígena Sete de Setembro, Cacoal, Rondônia, entre abril de 2012 e
junho de 2013. (Fonte: Gomes, 2017).
9.
118 Rede de Monitoramento Territorial Independente
censos realizados durante esses 15 me-
ses: foram realizados 105 censos diurnos
e percorridos 840 km na TISS em dois
transectos: 420 km em Área Recuperação
próximo a aldeia Lapetanha (TL) e 420
km em Área Produção próximo a aldeia
Apoena Meireles (TAP). Foram observa-
dos 1.143 mamíferos terrestres não voa-
dores de 22 espécies. Dos 1.143 animais
observados, o maior número (89% das ob-
servações ou 1.020 animais) foi registra-
do na Área de Recuperação. No transecto
da Área de Produção foram registrados os
outros 123 animais. Na Área de Recupe-
ração, a riqueza de espécies foi maior, 22,
do que na área produção, 17.
Ao longo da realização do biomonitora-
mento, foram notadas fragilidades na sua
operação. O registro em papel foi uma
diculdade enfrentada pelas equipes de
monitoramento, decorrente do tempo
demandado para reunir as informações
das diferentes aldeias. A introdução das
ferramentas digitais proporcionou a sim-
plicação dos processos de troca de infor-
mações e armazenagem dos dados, tor-
nando-os de mais fácil acesso.
Sendo assim, o uso de aparelhos como
handheld e smartphone, com a ferramenta
ODK para coleta dos dados, parece ter sido
uma boa escolha, acelerando as etapas de
registro e sistematização das informações.
Por outro lado, esse sistema apresentou
deciências que requerem atenção: du-
rabilidade das baterias e suscetibilidade
à umidade (alta na Amazônia). Essas de-
ciências podem ser minimizadas com o
uso de baterias sobressalentes e cuidados
especiais com os equipamentos.
CONCLUSÕES
Desde aspectos técnicos e operacionais,
passando por formas de organização, o
biomonitoramento traz diversos apren-
dizados. Nesse sentido, o relatório so-
bre o “Automonitoramento Paiter Su-
ruí sobre o uso de mamíferos de médio
e grande porte na Terra Indígena Sete
de Setembro” conta que após o início
ORDEM FAMÍLIA ESPÉCIE NOME COMUM TUPI-MONDÉ ALDEIA
LAPETANHA
ALDEIA
A. MEIRELES
Nº TOTAL DE
AVISTAMENTOS
Rodentia Dasyproctidae Dasyprocta
variegata Cotia Waki 165 23 188
Primates Atelidae Ateles chamek Macaco aranha Arime 105 4109
Primates Cebidae Lagothrix cana Mão-de-ouro Txomeah 91 13 104
Primates Atelidae Lagothrix cana Macaco barrigudo Masaykor 89 2 91
Cetartiodactyla Tayassuidae Tayassu pecari Queixada Mebe 75 12 87
Primates Pitheciidae Callicebus bernhardi Zogue-zogue Manaah 75 8 83
Primates Pitheciidae Chiropotes albinasus Cuxiú Masaypeb 66 1 67
Cetartiodactyla Cervidae Mazama americana Veado roxo Pantxaahb 60 464
Carnívora Procyonidae Nasua nasua Quati - 45 7 52
Cetartiodactyla Cervidae Mazama nemorivaga Veado vermelho Itiahb 45 1 46
TOTAL GERAL 816 75 891
Tabela 2. Ranking das 10 espécies de mamíferos de médio e grande porte mais avistadas em transectos lineares próximos à aldeia
Lapetanha (TL), área recuperação (secundária), e próximo a aldeia Apoena Meireles (TAP), área produção, entre abril de 2012 e
junho de 2013. (Fonte: Gomes, 2017).
9.
119 Re de de Monitoramento Territorial Independente
do biomonitoramento, os Agentes In-
dígenas (AI), que trabalham no desen-
volvimento da pesquisa e que coletam
informações, tiveram esse trabalho
reconhecido pela comunidade e pela
Associação, e ganharam outras respon-
sabilidades, tornando-se os principais
agentes de atividades de educação am-
biental desenvolvidas pela Associação
Metareilá nas comunidades.
A atuação em parceria entre a Associa-
ção indígena Metareilá e a Associação
Kanindé foi central para o processo de
monitoramento. A presença de Agen-
tes Indígenas na condução das ações de
biomonitoramento dentro da TISS va-
loriza o conhecimento indígena sobre
seu território, e também reduz custos
relacionados a deslocamento e esta-
dia de pesquisadores não indígenas. A
iniciativa valoriza o saber tradicional,
aliado a métodos cientícos, buscando o
envolvimento da comunidade na obten-
ção de soluções para o manejo da fauna
de mamíferos de médio e grande porte
da TISS e conservação da cultura Paiter.
As informações geradas pelo monito-
ramento são importantíssimas para
o entendimento da forma pela qual o
povo Paiter Suruí utiliza a fauna e co-
labora diretamente com os objetivos
traçados no projeto de carbono Surui,
Imagem 1. Aula prática: transecção linear e preenchimento de formulário eletrônico em Smartphone. (Foto: Alexsander Santa
Rosa Gomes. Fonte: Gomes, 2017).
9.
120 Rede de Monitoramento Territorial Independente
que tem como uma de suas premissas a
conservação da biodiversidade de fau-
na e flora da TISS.
Contudo, há uma preocupação com es-
pécies de animais que têm sido avista-
das com menor frequência no território
Suruí, e dentre as razões para isso estão
computadas invasões, desmatamento e
caça ilegais no entorno da Terra Indíge-
na Sete de Setembro, a qual vem sofren-
do com ações de desmatamento, extração
ilegal de madeira e caça e pesca predató-
rias. O biomonitoramento é uma forma
de monitorar e fazer frente aos impactos
promovidos por essas atividades ilícitas
que ameaçam, inclusive, a segurança ali-
mentar do povo Paiter Suruí.
De toda forma, os efeitos da caça Paiter
Suruí sobre as populações de mamíferos
de médio e grande porte ainda são pouco
conhecidos e devem ser estudados e mo-
nitorados no futuro. Tais estudos, além de
úteis na defesa do território, poderão servir
ao fortalecimento comunitário, pesquisas
acadêmicas, formulação de políticas, além
de reforçar aspectos imateriais do cuidado
com a fauna e com a biodiversidade.
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Paiter Surui sobre o uso de mamíferos de
médio e grande porte na terra indígena
Sete de Setembro, Cacoal, Rondônia,
Brasil. Porto Velho, RO: [s.n.]. 2017. 9.
121 Rede de Monitorame nto Territorial Independente
10. Contribuições do Projeto
Monitoramento Participativo da
Biodiversidade em Unidades de
Conservação na Amazônia, para
a sociedade e conservação da
biodiversidade com integração
de conhecimentos tradicionais e
cientíco
INTRODUÇÃO
As unidades de conservação foram ideali-
zadas com a nalidade de conservação dos
ecossistemas, e a manutenção de processos
ecológicos funcionais, como composição,
estrutura e funções naturais – a exemplo
das funções de regime hidrológico, tama-
nho e dinâmica populacional, conectivida-
de, padrão mosaico, entre outras. Porém,
essas questões ecológicas vão além dos de-
senhos geográcos estabelecidos ou de sua
categoria, sendo associado à identidade so-
ciopolítica de grupos sociais que exercem
controle e/ou tem a natureza como fonte
primária de sua economia. Os processos
psicológicos, as tradições sociais e os va-
lores culturais afetam profundamente as
vias pelas quais os indivíduos percebem as
espécies em um dado ecossistema e, inclu-
sive, o ecossistema como uma totalidade
(YOUNÉS & GARAY, 2006).
Dessa forma, a participação dos grupos
Cristina F. Tofoli1
Pollyana F. Lemos1
Leonardo S. Rodrigues1,2
Débora Lehmann1
Fernanda Freda1
Marcela Silva1
Virgínia Bernardes1
Fernando Lima1
Rafael Moaris Chiaravalotti1
1 IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas.
2 Verde Perto.
3 Ação Ecológica do Guaporé (Ecoporé).
Gabriel Mendes1
Livia Maciel1
Rúbia Maduro1
Ana Maira Bastos Neves1
Camila Lemke Moura1
Paulo Henrique Bonavigo1,3
Roselma Carvalho1
Cibele Tarraço Castro1
Fabiana F. Prado1
10.
122 Rede de Monitoramento Territorial Independente
sociais na tomada de decisão e gestão das
unidades de conservação é essencial para
diversicação da cosmovisão e saberes re-
lacionados ao gerenciamento das áreas.
Contudo, efetivar a participação social é
um desao, pois esses processos estão in-
trinsecamente ligados ao histórico de de-
mocratização da nossa sociedade. A utili-
zação de métodos participativos tem sido
um elemento-chave na agenda de conser-
vação e desenvolvimento após a década
de 1980, desencadeadas pelo trabalho de
Diagnóstico Rural Participativo (DRP ou
RPA). Eles tinham a intenção de repre-
sentar uma mudança de paradigma nas
formas de aproximação da população local
para coletar informações combinadas com
o reconhecimento do valor do conheci-
mento local e indígena (CHAMBERS, 1981).
Iniciativas de envolvimento da popula-
ção local tem otimizado a gestão dessas
áreas protegidas a despeito de todas as
adversidades e considerando os desaos
estruturais das unidades de conservação
(CONSTANTINO et al. 2019). Entre essas
iniciativas, destaca-se o monitoramento
participativo da biodiversidade, que tem
o intuito de auxiliar a gestão de áreas
protegidas criando uma cultura de ques-
tionamento e respeito da oresta e seus
recursos e uso, com base nas informações
obtidas, e ser um importante mecanis-
mo para garantir a efetividade da gestão,
como acesso a recursos, uso, conservação
e distribuição de benefícios.
DESCRIÇÃO DO CASO
1. Contexto
Um dos maiores desaos para conservação
Amazônica é saber como, quais as razões
e quanto a biodiversidade está mudando
ao longo do tempo, obter uma maior com-
preensão e com isso orientar estratégias de
conservação, ações de mitigação e conser-
vação da biodiversidade com participação
social nas áreas protegidas. Nesse sentido,
o Projeto de Monitoramento Participativo
da Biodiversidade (MPB), realizado pelo
IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas
foi construído de forma adaptativa, com
muito aprendizado, a partir do objetivo
inicial de compreender as mudanças na
biodiversidade em larga escala e também
contribuir com o institucionalização do
Programa Nacional de Monitoramento
da Biodiversidade (Monitora), do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodi-
versidade (ICMBio) e apoiar o Plano Nacio-
nal de Adaptação às Mudanças Climáticas.
O MPB, realizado desde 2013, foi imple-
mentado em 18 unidades de conservação
federais (Figura 1) e tem na sua essência
a formação de arranjos locais inclusivos,
por meio do envolvimento das popula-
ções residentes nas áreas protegidas e
atores do entorno dessas áreas, sendo
desenhado a muitas mãos (TÓFOLI et al.,
2019a) entre ICMBio e IPÊ com colabora-
ção técnica da GIZ (Deutsche Gesellschaft
für Internationale Zusammenarbeit), su-
porte da Fundação Gordon e Betty Moo-
re, Usaid, Arpa e de cerca de 40 institui-
ções locais parceiras e apoiadoras.
O Monitora está dividido em três subpro-
gramas: Terrestre (Componentes Florestal
e Campestre-Savânico), Aquático-Con-
tinental (Componentes Área Alagável) e
Marinho-Costeiro, dos quais o MPB apoia a
implementação dos dois primeiros subpro-
gramas nos componentes Florestal, Igara-
pés e Áreas Alagáveis. Cada componente
consiste de alvos globais ecomplementares,
que incluem protocolos básicos ou avança-
10.
123 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dos. Com os alvos globais, espera-se enten-
der como o sistema de unidades de conser-
vação responde ao objetivo de conservação
da biodiversidade brasileira por meio de
indicadores padronizados. Já os alvos com-
plementares buscam responder questões
de gestão da unidade de conservação, ma-
nejo de recursos e conservação da biodi-
versidade especícas das áreas. O Monitora
estabelece um conjunto de procedimentos
para levantar dados de biodiversidade a
partir do emprego de protocolos metodoló-
gicos padronizados (alvos globais) e o proje-
to MPB contribui para o fortalecimento do
monitoramento com envolvimento de ato-
res locais, com foco em questões represen-
tativas das áreas (alvos complementares).
2. Metodologia empregada no
monitoramento
A estruturação e implementação do pro-
jeto MPB são alicerçadas em articulações
com os parceiros e construção conjunta
de conhecimento que permite aos mora-
dores locais maior inserção no contex-
to da gestão da unidade de conservação
e no manejo sustentável dos recursos,
valorizando sua importância, aplican-
do conceitos no seu cotidiano e sendo
agentes multiplicadores nos locais onde
moram, criando um senso de pertenci-
mento entre a gestão e as comunidades.
Além de promover reconhecimento e va-
lorização pessoal dos monitores e de se-
rem apresentadas possíveis alternativas
de atuação na comunidade, despertando
a atenção dos jovens para a valorização
dos modos de vida tradicionais e da con-
servação da biodiversidade no local onde
vivem. Entretanto, é necessário que haja
proximidade e envolvimento com as co-
munidades de modo contínuo, cultivando
essa relação, garantindo a participação
dos moradores locais na tomada de deci-
são da gestão da unidade de conservação.
Figura 1. Mapa com a indicação das unidades de conservação com o Projeto MPB. (Fonte: Projeto Monitoramento Participativo da
Biosiversidade/IPÊ).
10.
124 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Envolvimento e pactuação com parceiros
e instituições locais são de fundamental
importância para a implementação do mo-
nitoramento participativo, porém exigem
muito tempo. Outro ponto de destaque na
implementação do monitoramento parti-
cipativo é a participação do órgão gestor,
ICMBio, e o envolvimento do gestor da uni-
dade de conservação. Sendo elementos-
-chave na implementação, na articulação
de parcerias e no envolvimento das co-
munidades.
No MPB, as ações são norteadas por três
eixos principais (TÓFOLI et al., 2019a):
Ações integradas, atividades práticas de
intervenção e educação como processo
crítico. Essas ações são implementadas
de acordo com o modelo apresentado na
Figura 2 e descritos em Lemos et al. 2019.
Articulação e envolvimento: Primeiros pas-
sos para a implementação do MPB, foram
envolvimento de gestores das unidades de
conservação e identicação de parceiros
institucionais. Um dos aspectos importan-
tes foi o mapeamento das iniciativas locais
de monitoramento, na busca por parceiros
e sinergias, visando o fortalecimento des-
sas iniciativas, planejamento conjunto e
formação de uma rede de parcerias.
Construção coletiva de protocolos de mo-
nitoramento: A escolha dos alvos globais
de cada componente partiu das denições
estratégicas do ICMBio em diferentes
reuniões com participação de pesquisa-
dores e instituições, embora as unidades
de conservação e seus atores tenham sido
consultadas sobre os alvos que poderiam
responder questões sobre todo o sistema.
Ao longo de extensas conversas referen-
tes aos componentes Florestal, Área Ala-
gável e Igarapé, foram denidos que os al-
vos que conseguiriam gerar informações
conáveis, de baixo esforço e custo, são:
Figura 2. Macroações do Projeto MPB: Modelo conceitual. (Adaptado de Lemos et al. 2019).
10.
125 Rede de Monitoramento Territorial Independente
plantas lenhosas; borboletas frugívoras e
aves cinegéticas, dentre elas tinamídeos e
cracídeos e mamíferos diurnos de médio e
grande porte, morfotipo de peixes, odona-
tas e características de habitat e automo-
nitoramento da pesca (Figura 3).
As identicações dos alvos complemen-
tares seguiram um caminho diferente.
Foram construídos especicamente para
cada área a partir de alvos de conservação
com relevância para a unidade de conser-
vação, vinculados a instrumentos de ges-
tão e priorizados por grau de importância.
Os alvos complementares também podem
ser adotados por outras áreas protegidas
Figura 3. Alvos de monitoramento por subprograma do Monitora apoiados pelo IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas. (Fonte:
Ribeiro et al. 2021).
10.
126 Rede de Monitoramento Territorial Independente
devido, em alguns casos, à sua importân-
cia regional. Os alvos complementares e
perguntas norteadoras relativas a eles fo-
ram identicados em ocinas realizadas
nas unidades de conservação, levando-se
também em consideração as oportunida-
des que já existiam em cada uma delas,
como monitoramentos, equipamentos
disponíveis e parcerias já estabelecidas.
Os roteiros metodológicos para cada mo-
nitoramento foram delineados por pes-
quisadores especialistas, com base nas
informações obtidas na ocina participati-
va. Posteriormente, os roteiros foram va-
lidados e ajustados em ocinas locais com
participação de gestores do ICMBio, comu-
nitários locais, parceiros institucionais e
pesquisadores. Os alvos complementares
de monitoramento dentro do escopo do
MPB são apresentados na Figura 54.
Eventos Formativos: O programa Monito-
ra possui uma estrutura pedagógica que
antecedeu o Projeto MPB e subsidiou a
elaboração dos eventos formativos e de
intercâmbio de conhecimentos realizados
localmente. Todos os eventos têm pers-
pectiva metodológica baseada na parti-
cipação efetiva de pessoas locais, na va-
lorização dos diferentes conhecimentos
e saberes. Adicionalmente, há o ciclo de
capacitação em monitoramento da biodi-
versidade para gestores das unidades de
conservação (SANTOS et al.; 2015).
Os eventos de formação do MPB são con-
tínuos (anuais ou bianuais), e em geral, são
realizados localmente. Diversos atores lo-
cais, entre moradores das unidades de con-
servação e entorno, voluntários e estudan-
tes participaram dos eventos para adquirir
conhecimento a respeito dos diferentes pro-
tocolos de monitoramento. Por essas razões,
os diferentes olhares, narrativas, experiên-
cias, práticas, trazidos pelos participantes
dos eventos de formação, são considerados
fundamentais por reetirem a diversidade
de saberes, os conhecimentos locais, cien-
tícos e as percepções das pessoas sobre
a realidade de seus territórios, tornando-
-se ponto de partida para construção
de novos conhecimentos necessários à
implementação do Projeto MPB e con-
sequentemente do Monitora, além de
subsidiar o manejo por meio da aplicabi-
lidade dos resultados na gestão da unida-
de de conservação. Esses eventos cons-
tituem momentos estratégicos quando
o assunto é geração de conhecimento e
fortalecimento do monitoramento nas
unidades de conservação, além disso são
constantemente avaliados e aprimorados.
Coleta de dados: A coleta de dados teve
início após a consolidação dos roteiros
metodológicos. Como cada alvo de mo-
nitoramento tem uma metodologia es-
pecífica5, é importante ser enfatizado
o processo de implementação. Escolha
dos locais, abertura de trilhas, instala-
ção de unidades de amostragem e coleta
de dados contaram com envolvimento
de atores locais. A rede de engajamen-
to construída nos processos iniciais do
projeto foram a base dessa etapa. Não
apenas as comunidades fizeram parte,
toda a rede de instituições presentes
desde o começo do projeto também foi
chamada, estimulando assim a conti-
nuidade da gestão participativa (LEMOS
et al., 2019). As coletas de dados foram
iniciadas pelos monitores locais da bio-
4 As publicações dos roteiros metodológicos estão disponíveis em www.ipe.org.br.
5 As publicações dos roteiros metodológicos estão disponíveis em www.ipe.org.br.
10.
127 Rede de Monitoramento Territorial Independente
diversidade com apoio dos pesquisado-
res locais do MPB. Após alguns anos
de implementação da coleta de dados,
a partir das avaliações realizadas após
as atividades, foi identificado que o de-
senvolvimento de formulários ilustra-
dos facilitaria a dinâmica de campo no
momento da coleta de dados (Figura 4).
A partir da experiência de três anos de im-
plementação do projeto, vericou-se a ca-
rência de tempo dos gestores das unidades
de conservação para tabular os dados do
monitoramento e do risco de perda de da-
dos no processo de envio dos formulários
por e-mail. Assim, foram desenvolvidos
um aplicativo que permite a coleta de da-
dos digital por meio de aparelhos celulares
(GeoODK) e um sistema que armazena os
dados do monitoramento (SisMonitora).
Construção colet iva do conhecimento: Os
Encontros dos Saberes são os momen-
tos de construção coletiva de conheci-
mento, com imersão, diálogo, avaliação,
discussão e interpretação dos dados do
monitoramento envolvendo diferentes
atores locais. Monitores, pesquisadores,
moradores da unidade de conservação e
entorno, agentes públicos e representan-
tes de empresas discutem informações,
elaboram interpretações, incrementam
o que foi analisado e planejam aplicações
de resultados. Apesar de o evento ocor-
rer em um único dia, há uma etapa infor-
mativa cerca de um mês antes do Encon-
tro, quando a população é mobilizada e
há transmissão dos resultados por meio
de apresentações e material impresso
(panetos e cartazes). A iniciativa é uma
estratégia desenhada em 2018 de forma
Figura 4. Formulário ilustrado do automonitoramento de pesca. (Fonte: Projeto Monitoramento Participativo da Biosiversidade/IPÊ).
10.
128 Rede de Monitoramento Territorial Independente
participativa, que tem por meta inserir
o monitoramento da biodiversidade e as
informações que ele gera na realidade
da gestão, avançando na escada de par-
ticipação cidadã (ARNSTEIN, 2002), am-
pliando pertencimento e empoderando
dos diferentes atores envolvidos nesse
processo. Nos Encontros dos Saberes,
o diálogo das diferentes cosmovisões e
conhecimentos envolvidos no monitora-
mento da biodiversidade se encontram,
e a aplicação dessas informações para o
manejo de recursos naturais, conserva-
ção da biodiversidade e gestão da unida-
de de conservação é o foco principal.
As comunidades têm espaço para apre-
sentar suas interpretações e análises
sobre os dados, os pesquisadores conse-
guem entender especicidades locais que
ampliam sua compreensão sobre a unida-
de de conservação, e o poder público pos-
sui ferramentas sucientes para realizar
a gestão participativa de fato.
Avaliações dos processos e impactos do pro-
jeto: Em todas as etapas de realização do
Projeto MPB são conduzidas avaliações
com os atores envolvidos para ajustes nos
processos de implementação das ações.
Adicionalmente, há o monitoramento
trimestral dos resultados do projeto por
meio de indicadores de impacto, quando é
realizada uma avaliação e possíveis adap-
tações em sua implementação. A partir de
2018 iniciou o processo de avaliação de
impacto do projeto com monitores locais
da biodiversidade, membros dos conse-
lhos gestores, gestores das unidades de
conservação e em 2021 com lideranças
das comunidades locais.
Para avaliação do projeto, foram aplicados
questionários semiestruturados. Oitenta
e cinco monitores locais da biodiversida-
de de sete unidades de conservação par-
ticiparam da avaliação em 2018. No caso
da avaliação com membros dos conselhos
gestores, os questionários foram respon-
didos durante as reuniões de conselho
gestor das unidades de conservação em
2019. Participaram da pesquisa 205 con-
selheiros de 12 unidades de conservação
avaliadas. Já as avaliações com gestores
das unidades de conservação foram rea-
lizadas por meio de formulário virtual em
maio e junho de 2020, com participação
de 15 analistas ambientais. As avaliações
com lideranças comunitárias foram rea-
lizadas em 16 unidades de conservação
com participação de 20 líderes por área.
3. Resultados
Ao longo da trajetória do Projeto, de 2014
até 2021, foram envolvidas cerca de 4.000
pessoas nas ações do projeto e coletados
mais de 500 mil registros referentes aos
alvos de monitoramento. Adicionalmente,
foram estruturados 11 roteiros metodológi-
cos de monitoramento, dois artigos cientí-
cos (CHIARAVALLOTI et al, 2018; FREDA
et al, no prelo), um livro que descreve im-
plementação e resultados do Encontros dos
Saberes (Tófoli et al., 2021) e ainda estão em
preparação mais sete publicações, dentre
elas, cinco roteiros metodológicos do moni-
toramento de alvos complementares e dois
volumes de séries técni cas para serem pu-
blicados em 20216. Complementarmente,
foram desenvolvidos sete vídeos de divul-
gação do projeto MPB e Programa Monito-
ra relatando os resultados de 2013 a 20177.
6 Após publicados estarão estarão disponíveis em www.ipe.org.br.
7 https://www.youtube.com/playlist?list=PLzVr84zIjS-xjG4m_iVxdxdgVCGZ2lk.
10.
129 Rede de Monitoramento Territorial Independente
Em 2020, diante o cenário de suspensão
das atividades de campo e presenciais, em
decorrência da pandemia de COVID-19,
dedicamos esforços para ampliar a comuni-
cação entre os atores do projeto com a cria-
ção do canal “UIRAPURU CANTA” com o
compartilhamento de seis vídeos no What-
sApp, tratando de diferentes assuntos rela-
cionados a COVID-198 e por meio de divul-
gação para a sociedade das ações do projeto
e principais resultados com a realização de
conversas ao vivo em redes sociais9.
Segundo as avaliações realizadas com
membros dos conselhos gestores, 67% per-
cebe que os resultados contribuem no pla-
nejamento da gestão das áreas protegidas
e como conteúdo educacional nas escolas,
além de 11% que indicaram várias aplica-
ções para os resultados. Com relação às
mudanças na gestão pela implementação
do MPB, de acordo com a percepção dos
membros do conselho gestor, 59%apontou
avanços positivos: 26% indicou melhora
no manejo do recurso natural monitorado,
17% mencionou a geração de informações
úteis à gestão e 16% percebeu que houve
aproximação entre gestores e comunitá-
rios. Adicionalmente, 69% indicou que o
objetivo do projeto é a geração de informa-
ções que ajudem na conservação da biodi-
versidade e manejo dos recursos naturais.
De acordo com as avaliações realizadas com
os analistas do ICMBio, 87% consideram o
projeto MPB é fundamental (20%) ou au-
xilia (67%) na ampliação da efetividade de
gestão Gestores das UC. As vantagens da
adoção do monitoramento participativo da
biodiversidade, na percepção dos analistas,
incluem maior disponibilidade das infor-
mações de biodiversidade para a sociedade
(73%) e rapidez no uso da informação de bio-
diversidade pela gestão local (87%). Além do
conhecimento de biodiversidade, 100% dos
gestores de unidades de conservação consi-
deram que o monitoramento participativo
aproxima as comunidades da gestão da uni-
Figura 5. Evolução temporal do monitoramento e do índice FAUC, valores gerais das unidades de conservação do ARPA em rela-
ção às do MPB. (Fonte: Projeto Monitoramento Participativo da Biosiversidade/IPÊ).
8 https://youtube.com/playlist?list=PLzVr84zIjS-xjG4m_iVxdxdgVCGZ2lk.
9 https://www.youtube.com/playlist?list=PLzVr84zIjS-ywkqfFVrKJW2zi6w8ow9Ij.
10.
130 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dade de conservação e auxilia na re dução
de conitos, 100% que seus resultados in-
uencia as decisões de manejo e conserva-
ção da unidade de conservação e 80% que
há maior entendimento sobre os efeitos das
ações de manejo da UC (Figura 5). Uma aná-
lise comparativa com dados da Ferramenta
de Avaliação de Unidades de Conservação
do Programa Áreas Protegidas da Amazô-
nia (FAUC), demonstrou que as unidades de
conservação com o MPB apresentam me-
lhores números nos indicadores gerais do
FAUC do que os valores apresentados por
todas as unidades de conservação.
Na busca por ampliar participação social,
gestão participativa e o debate a partir dos
resultados do monitoramento, o projeto
MPB promoveu sete edições do “Encon-
tro dos Saberes” até 2020, com participa-
ção de cerca de 550 pessoas. Um deles, na
Reserva Extrativista (Resex) do Cazumbá-
-Iracema (Acre), reuniu mais de 120 pes-
soas: monitores, membros da comunidade,
pesquisadores e representantes do ICM-
Bio, IPÊ, Embrapa, WWF e Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Sena Madureira.
Participaram também comunitários de
pelo menos quatro localidades da Resex:
Cazumbá, Cuidado, Alto Caeté e Iracema.
Ali, foram apresentados e discutidos para
a comunidade os resultados do monitora-
mento feito na unidade de conservação e
denidos os próximos passos do trabalho”
por “denido um plano de ação com base
nas informações do monitoramento.
O apoio do IPÊ ao Monitora também
abrange outros desaos como o arma-
zenamento, disponibilização e aná-
lise de dados, que têm sido trabalhadas
pelo Projeto MPB por meio do desen-
volvimento de um sistema de armaze-
namento, compartilhamento e geração de
resultados sobre biodiversidade nas uni-
dades de conservação federais, indo além
das 18 unidades de conservação contem-
pladas com o projeto. Além do aplicativo
de coleta digital de dados e do SisMonitora,
há outro sistema, o Sisbia (Sistema de ges-
tão de dados da biodiversidade para ava-
liação impacto ambiental), que consiste em
um sistema integrado para Ibama e ICM-
Bio armazenarem dados de biodiversidade
de provenientes de empreendimentos que
impactam unidades de conservação.
Todos esses resultados são apenas uma
demonstração do potencial do monitora-
mento participativo e do Programa Moni-
tora para fortalecer a sociedade em prol
da conservação da biodiversidade, por
meio do compartilhamento de informa-
ções acerca da biodiversidade das unida-
des de conservação, e do diálogo que gera
a construção de novos conhecimentos.
CONCLUSÕES
O MPB proporciona a aproximação dos
atores sociais à gestão da unidade de con-
servação, dá subsídios de informações
para a sustentabilidade do manejo e con-
servação da biodiversidade e aponta va-
riações em grupos ecológicos chaves que
são parâmetros para conservação da bio-
diversidade. Além de ser um instrumento
que promove educação ambiental, inter-
câmbio de saberes e democratização da
ciência, fortalece o conselho como espaço
para tomada de decisão, aumenta a efeti-
vidade de gestão e contribui com políticas
internacionais e brasileiras de conserva-
ção da biodiversidade. Contudo, é impor-
tante considerar a fragilidade de recursos
humanos e nanceiros destinados à gestão
das unidades de conservação. O maior de-
sao é a manutenção do monitoramento
10.
131 Rede de Monitoramento Territorial Independente
por muitos anos, pois requer envolvimen-
to ampliado de atores locais, aplicabili-
dade dos resultados na gestão e recursos
nanceiros e humano para manutenção
das ações que permitam a observação de
mudanças ao longo do tempo e obtenção
de respostas para essas variações.
Os novos conhecimentos e informações
que surgem a partir do monitoramento
promovem o fortalecimento comunitário
local, a gestão das unidades de conserva-
ção e a conservação da biodiversidade, por
meio do envolvimento e participação efeti-
va. Entretanto, é necessário que haja pac-
tuação com as comunidades de modo con-
tínuo, cultivando essa relação ao longo dos
ciclos de monitoramento de forma adapta-
tiva e garantindo a participação dos mora-
dores locais na tomada de decisão a partir
das informações geradas para a realidade
socioambiental da unidade de conservação.
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10.
133 Rede de Monitoramento Territorial Independente
11. Monitoramento territorial
participativo
no Médio Solimões: diálogos
entre o Instituto Mamirauá e
as comunidades das Reservas
Mamirauá e Amanã
INTRODUÇÃO
Os indicadores provenientes de programas
de monitoramentos apontam informações
sobre o estado dos fenômenos acompa-
nhados, permitindo exibir progressos ou
lacunas existentes (DUTRA, 2016). Em Uni-
dades de Conservação (UCs), os programas
de monitoramento são instrumentos de
gestão territorial que acompanham a sua
condição e facilitam os processos de toma-
das de decisão que garantem a sua conser-
vação. Cada vez mais, o envolvimento da
população local em ações de monitoramen-
to tem mostrado reexos efetivos no forta-
lecimento das organizações comunitárias,
sobretudo porque incidem na efetividade
de gestão desses territórios (COSTA, 2019;
CONSTANTINO et al., 2016).
Na Amazônia diversos projetos de con-
servação e desenvolvimento envolveram
diferentes iniciativas de monitoramento
participativo. Esses projetos foram im-
plementados principalmente por agên-
cias governamentais e instituições par-
ceiras e contaram com a participação
social. No Amazonas, existem exemplos
de programas de monitoramento parti-
cipativo da biodiversidade, principal-
mente focados em espécies ameaçadas
ou de uso de recursos naturais pelas po-
pulações locais. O Instituto de Desenvol-
vimento Sustentável Mamirauá (IDSM)
é uma das instituições que atua, em
parceria com as comunidades, na rea-
lização desses monitoramentos, sobre-
tudo nas Reservas de Desenvolvimento
Sustentável (RDS) Mamirauá e Amanã
(COSTA, 2019).
Considerando nossa experiência nessas
duas UCs, neste capítulo compartilhamos
quatro ações de monitoramento territorial
participativo envolvendo diversos níveis
de diálogo entre as comunidades locais e o
IDSM. Primeiramente apresentaremos a
experiência de um sistema de proteção am-
Pedro Meloni Nassar1
Maria Isabel Figueiredo Pereira de
Oliveira Martins1
Dávila Suelen Sousa Correa1
Isabel Soares de Sousa1
1 Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Caetano Lucas Borges Franco1
Oscarina Martins dos Santos1
Paulo Roberto de Souza1
Luciano Regis Cardoso1
Sebastião de Oliveira Dias1
11.
134 Rede de Monitoramento Territorial Independente
biental de base comunitária, realizado por
Agentes Ambientais Voluntários (AAV) que
atuam para o monitoramento territorial e a
proteção dos recursos naturais da região. Em
seguida, discorreremos sobre o monitora-
mento de participação das lideranças capaci-
tadas pelo IDSM, cujo objetivo é mensurar a
sua participação nos fóruns e nas instâncias
de gestão dessas UCs. Por m, relataremos
sobre o monitoramento da qualidade dos
serviços prestados na Pousada Uacari e dos
impactos da atividade de turismo na den-
sidade populacional de primatas realizado
pelos condutores locais neste empreen-
dimento de turismo de base comunitária.
AS RESERVAS DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
MAMIRAUÁ E AMANÃ
Criada em 1996, a RDS Mamirauá repre-
sentou uma mudança de paradigma em
relação à conservação no Brasil (QUEI-
ROZ, 2005). Na esteira do processo de
conservação protagonizado pela sua cria-
ção, foi criada a RDS Amanã, em 1998.
Ambas as UCs, que somam juntas mais
de 3,5 milhões de hectares, possibilitaram
compor o Corredor Central da Amazônia,
que une outras 12 Unidades de Conserva-
ção e 10 Terras Indígenas, conforme ex-
posto na Figura 1 (QUEIROZ, 2019). Esse
elemento estrutural ocasionou a catego-
rização dessa área como Reserva da Bios-
fera da Amazônia Central, pela Unesco,
em 2001, e compõe um Sítio Natural do
Patrimônio Mundial. Além disso, as RDS
Mamirauá e Amanã são reconhecidas
como sítio Ramsar.2
No último censo demográco realizado
pelo IDSM em 2018 e 2019, existem 337
2 Ver: https://www.mamiraua.org.br/noticias/reserva-amana-e-reconhecida-como-sitio-ramsar.
Figura 1. Localização das RDS Mamirauá e Amanã. (Fonte: Banco de dados geográcos do Instituto de Desenvolvimento Susten-
tável Mamirauá. Elaborado por: Caetano Lucas Borges Franco, 2020).
11.
135 Rede de Monitoramento Territorial Independente
localidades, distribuídas em 34 setores
políticos3, com uma população de 16.339
pessoas, entre moradores dentro dos li-
mites geográcos das RDS Mamirauá
e Amanã e das suas áreas de entorno
(IDSM, 2020). Essas populações realizam
a gestão participativa para manejo de re-
cursos naturais, principalmente pesca, ja-
caré, agroecologia, madeireiro e não ma-
deireiro e turismo de base comunitária.
Ambas as UCs possuem como órgão ges-
tor a Secretaria de Estado do Meio Am-
biente do Amazonas, que estabelece po-
líticas e programas de gestão, de modo a
assegurar os critérios e normas estabe-
lecidos no Sistema Estadual de Unidades
de Conservação do Amazonas (AMAZO-
NAS, 2007)4 e no Plano de Gestão, que
estabelece as normas que regulam uso e
o manejo dos recursos naturais em cada
uma das RDSs do estado.
Em se tratando de estrutura de organiza-
ção social, as RDS Mamirauá e Amanã
são geridas por um Conselho Deliberati-
vo, que é a instância maior de delibera-
ção dessas UCs e pela Assembleia Geral
dos moradores. Cada uma das UCs possui
um Conselho, com uma média de duas
reuniões anuais e realiza uma Assem-
bleia por ano. Os conselhos são compos-
tos por representantes dos moradores,
de instituições governamentais e não
governamentais e nele são deliberados e
discutidos assuntos de interesse geral de
cada RDS. Em um nível abaixo dos con-
selhos, estão inseridas as Assembleias
Gerais, em que alguns dos temas discu-
tidos pelos moradores e representantes
de cada setor político e das instituições
parceiras são encaminhados para os Con-
selhos (MENDONÇA, et al., 2019).
ESTUDOS DE CASO
Sistema de Proteção ambiental de base
comunitária
A demanda por proteção dos recursos
naturais na região onde hoje estão ins-
tituídas as RDS Mamirauá e Amanã sur-
giu pelas próprias populações locais des-
de os anos 1980, como reexo da forte
pressão que essas áreas enfrentavam.
Em 1995, comunitários que já atuavam
em ações de vigilância territorial foram
capacitados e credenciados como Agen-
tes Ambientais Voluntários (AAVs) pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Iba-
ma), contando com o apoio do IDSM des-
de os primeiros anos. Foi nesse mesmo
impulso que teve início o monitoramen-
to territorial dessas áreas, protagonizado
por esses agentes nas ações de proteção
ambiental (FRANCO et al., 2019).
O monitoramento territorial é realiza-
do pelos AAVs através de saídas diárias
para sistemas de lagos piscosos, paranás,
rios e áreas com potenciais para extração
de madeira e caça. Nessas saídas, abor-
dam embarcações, vericam a existência
de produtos extraídos de forma ilegal, e
orientam a tripulação sobre legislação
ambiental e formas legais de uso dos re-
cursos naturais. Preenchem um formulá-
rio para cada saída, que contém informa-
ções sobre as infrações ambientais: data,
3 Representam áreas geográcas dispostas no interior ou no entorno das RDSs Mamirauá e Amanã. Essas áreas agrupam
um conjunto de localidades que acordam e estabelecem normas para a organização social e de acesso e uso dos recursos
naturais (MOURA, E et al. Sociodemograa da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá: 2001- 2011. Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá; Belém: IDSM; Naea; 2016).
4 Lei complementar nº53/2007-AM.
11.
136 Rede de Monitoramento Territorial Independente
recursos naturais interceptados, locais de
interceptação, embarcações intercepta-
das e o seu local de origem, além da infor-
mação sobre a quantidade de saídas para
monitorar as coordenadas geográcas
das interceptações.
Ao longo dos anos, esse monitoramento
foi sendo aperfeiçoado, adequando-se às
necessidades e disponibilidade de recur-
sos nanceiros. As informações coletadas
são organizadas em um banco de dados e
sistematizadas. Para isso, os formulários
utilizados pelos AAVs foram adequados,
visando tornar o preenchimento mais
fácil e objetivo, levando em conta a di-
culdade com a escrita por parte de al-
guns. Simultaneamente, os AAVs foram
capacitados e sensibilizados sobre a im-
portância do correto preenchimento dos
formulários, considerando que são essas
informações que subsidiam os relatórios
feitos pela equipe do IDSM e alimentam o
banco de dados. As capacitações incluem
georeferenciamento das informações co-
letadas com utilização de GPS, técnicas
para abordagem de infratores, estudo da
legislação ambiental vigente, além de o-
cinas de educação ambiental.
Esse sistema de monitoramento conta com
o apoio do IDSM e da Secretaria Estadual
de Meio Ambiente do Amazonas (Ibama),
que atualmente gere o Programa AAV em
nível estadual e, portanto, é responsável
pelo apoio e respaldo das ações dos AAVs,
assim como pela capacitação de novos
agentes. O IDSM apoia, principalmente, o
desenvolvimento das capacidades locais,
com a realização de cursos de capacitação
e de renovação de pessoal; captação de
recursos para aquisição de equipamentos
e custos de logística para manutenção do
sistema; além de realizar a manutenção e
gestão do banco de dados, que historica-
mente subsidiou o planejamento das ações
ociais de scalização nessas reservas.
Nos últimos 25 anos, esse sistema regis-
trou mais de 20 mil saídas para monitora-
mento territorial e proteção dos recursos
naturais. Entre 2002 e 2012, foram regis-
tradas mais de mil infrações ambientais
relacionadas a atividades ilegais de pesca,
de caça e de extração de madeira; mais de
1.200 embarcações e mais de 70 tonela-
das de recursos pesqueiros e faunísticos
foram interceptados. Nesse mesmo perío-
do, participou também de praticamente
todas as ações ociais de scalização nas
RDS Mamirauá e Amanã (FRANCO et al.,
2019; FRANCO, 2020).
Alguns pontos de observação merecem
atenção. Esse sistema de proteção am-
biental se comporta como um importante
vetor de desenvolvimento de capacidades
para tratativas diversas no âmbito da co-
gestão dos recursos naturais. Outro as-
pecto positivo é a participação social em
diferentes processos de gestão das UCs.
Nos últimos anos, tem sido possível ob-
servar a equidade de gênero e étnica na
gestão dos recursos naturais, com mais
protagonismo feminino e de indígenas
(FRANCO et al., 2019).
Nos seus 25 anos de existência esse sis-
tema de proteção contou com o apoio -
nanceiro de, pelo menos, seis instituições
nacionais e internacionais. Isso demonstra
a importância de instituições parceiras
para a captação dos recursos necessários
para a manutenção do sistema. No entan-
to, acredita-se que se a assessoria técnica
promovida por instituições externas fosse
nalizada, o monitoramento continuaria,
sobretudo porque ele é prévio à existência
11.
137 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dessas reservas e é a única ação voltada à
proteção ambiental realizada frequente-
mente nessas áreas. Provavelmente a ação
mais impactada sem o apoio externo seria
a sistematização dos dados coletados nos
relatórios de campo.
Os maiores desaos para a atuação des-
te sistema estão relacionados às grandes
extensões territoriais e a falta de re-
cursos nanceiros. Especialmente este
segundo, pois é um fator que impede a
realização do monitoramento na totali-
dade dos territórios das RDS Mamirauá e
Amanã. Outro desao é o pulso de inun-
dação (JUNK, 1997) na região, que no pe-
ríodo das cheias proporciona inúmeros
canais de acesso às UCs, o que diculta o
trabalho realizado pelos AAVs.
Mesmo com todas as adversidades nan-
ceiras, técnicas e de segurança para os
agentes do sistema, as atividades foram
contínuas. Portanto, esse sistema se con-
gura como uma importante iniciativa
para a proteção e conservação efetiva de
recursos naturais, através de monitora-
mento territorial, educação ambiental
e mobilização social, em uma região em
que há uma limitada atuação de institui-
ções e organizações governamentais e
não governamentais.
Monitoramento de Lideranças
Comunitárias
O Programa de Gestão Comunitária do
IDSM monitora, desde 2010, a efetividade
dos seus esforços de capacitação de 392 li-
deranças comunitárias, por meio do mo-
nitoramento da participação dos egressos
nas instâncias de gestão das RDS Mami-
rauá e Amanã, da Reserva Extrativista
(Resex) Auati-Paraná, nas coordenações
de acordos locais para uso de recursos na-
turais e nas secretarias dos municípios do
entorno dessas UCs, sendo elas Tefé, Fon-
te Boa, Jutaí, Uarini Alvarães e Maraã.
O monitoramento é realizado por meio
de duas frentes de vericação: a) em
campo, dialogando com as lideranças lo-
cais para vericar as instâncias de gestão
que atuam e as funções que assumem e
b) participação em reuniões dos conse-
lhos gestores e em assembleias gerais
dos moradores por meio de consulta às
listas de lideranças presentes e votantes
nas Assembleias Gerais anuais, à lista de
membros do Conselho Gestor Deliberati-
vo das RDS Mamirauá e Amanã e Resex
Auati-Paraná, à lista de Agentes Ambien-
tais Voluntários em atividade no ano de
vericação, às atas de posse de diretorias
de associações comunitárias e à lista de
coordenadores de Acordos de Pesca.
Os resultados obtidos pelo monitoramen-
to ao longo dos 10 anos de existência es-
tão expostos na gura 2, que indica o per-
centual de lideranças nas capacitações do
IDSM5 que estão participando nas instân-
cias locais de gestão e de tomada de deci-
são participativa.
De modo geral essas lideranças atuam
em 20 instâncias, como por exemplo,
os Agentes Ambientais Voluntários,
Assembleia Geral, Associações Comu-
nitárias, Prefeituras, Conselho Delibera-
tivo, Distrito Sanitário Especial Indígena,
Grupo de artesãs, Grupo de manejadores
5 São 392 lideranças egressas que são vericadas se estão atuando ou presentes em alguma instância de gestão das UCs. Se
atuam em apenas uma instância já são consideradas ativas e por conseguinte, contabilizadas no monitoramento.
11.
138 Rede de Monitoramento Territorial Independente
de recursos naturais, Sindicatos e Turis-
mo de Base Comunitária e assumem 30
funções, se diversicando entre as co-
ordenações de organizações comunitá-
rias, secretarias e câmaras municipais,
demonstrando que o esforço institucional
na capacitação dessas lideranças está sen-
do aplicado em, pelo menos, uma dessas
diversas instâncias e funções.
Uma das lacunas que chamam atenção no
monitoramento é o alcance da equidade
de participação entre homens e mulhe-
res, que em média representam apenas
30% das atuações em comparação com os
homens e a baixa ocupação de jovens nas
funções e instâncias, evidenciando que há
uma necessidade de novas capacitações e
de incentivo à participação das mulheres.
Ao longo dos anos, a metodologia de conta-
bilização das lideranças atuantes foi aper-
feiçoada, mas as alternâncias dos resulta-
dos registrados no período de 2010 a 2019
são inuenciadas por diversos fatores que
afetam a participação das lideranças e que
fogem da intervenção do IDSM, como a
sobreposição de atividades, questões pes-
soais e nanceiras. Outro grande desao é
a falta de recursos para a aferição da atua-
ção das lideranças em campo, pois uma das
etapas do monitoramento é realizar, pelo
menos, uma ida anual em todos os setores
políticos das RDS Mamirauá e Amanã.
RECURSOS CÊNICOS
Qualidade do serviço prestado na
pousada Uacari
A Pousada Uacari é uma iniciativa de
turismo de base comunitária cuja ges-
tão é compartilhada entre o IDSM e 11
comunidades da RDS Mamirauá. Criada
em 1998, tem como objetivos o desen-
volvimento socioeconômico e empo-
deramento local e apoio à conservação
dos recursos naturais (PERALTA et al.,
2018). A participação local ocorre através
das tomadas de decisão, divisão de be-
Figura 2. Percentual de lideranças egressas atuantes. (Fonte: Programa de Gestão Comunitária/ Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá).
70
60
50
40
30
20
10
0
2010
20
2011
32
2012
25
2013
24
2014
45
2015
33
2016
54
2017
49
2018
57
2019
61
11.
139 Rede de Monitoramento Territorial Independente
nefícios econômicos coletivos, venda de
produtos e na prestação de serviços, que
é realizada pela Associação de Auxilia-
res e Guias de Ecoturismo do Mamirauá
(Aagemam). Essa prestação de serviços é
feita em forma de rodízio, por um grupo
de 80 pessoas, em que cada pessoa traba-
lha no máximo 12 dias por mês. O rodízio
maximiza o número de pessoas bene-
ciadas e colabora na manutenção das
atividades tradicionais, evitando uma
dependência do turismo. Por outro lado,
pode haver um pouco de diculdade em
se adaptar ao trabalho após cumprir o
tempo fora da Pousada. O monitoramen-
to dos serviços foi iniciado junto à criação
do empreendimento como forma de ava-
liar o desempenho da equipe que traba-
lhou durante o pacote turístico.
Ao nal de cada pacote, os hóspedes são
convidados a preencher uma cha de ava-
liação. Assim que os visitantes deixam o
local, a equipe que estava trabalhando se
reúne para uma autoavaliação e leitura
coletiva do formulário do turista. Essa me-
todologia foi desenvolvida por pesquisado-
res e extensionistas do IDSM e moradores
locais. É um processo em que todos os en-
volvidos podem falar sobre os problemas
e os acertos. É uma forma participativa de
buscar melhorias e exaltar o que deu certo.
Os resultados das chas de avaliação dos
visitantes são armazenados em um ban-
co de dados do Programa de Turismo de
Base Comunitária (PTBC), do IDSM. Esses
dados são sistematizados pelos técnicos
do PTBC que os apresentam, pelo menos,
uma vez ao ano no fórum de tomadas de
decisão da Pousada Uacari com a partici-
pação do IDSM, equipe da Pousada Uacari
e presidentes das comunidades partici-
pantes desse projeto de turismo. A partir
da análise das notas e dos comentários
deixados pelos turistas, conversa-se se
está havendo melhora ou piora nos se-
tores de trabalho ao longo dos anos. Em
casos de notas e comentários negativos,
discutem-se os possíveis motivos e como
podem ser melhorados. Os comentários
deixados pelos visitantes podem auxiliar
no planejamento do ano seguinte, como
necessidade de melhorias nos serviços de
manutenção, limpeza e dedetização.
O monitoramento dos serviços prestados
pela Pousada Uacari tem se mostrado
uma ferramenta muito importante para
tomada de decisões, mas apresenta al-
gumas diculdades, em parte no método
e em parte na execução. Em relação ao
método, a sistematização depende de al-
guma compreensão de informática, tan-
to para alimentação do banco de dados,
mas, principalmente, para a extração e
organização dos dados. Quanto à exe-
cução, dois problemas se sobressaem: a
reunião da equipe para discutir sobre a
avaliação nem sempre é realizada, seja
por falta de tempo, seja por desinteres-
se do grupo que está na pousada naquele
momento, e por m, a falta de represen-
tatividade das comunidades no fórum
anual de prestação de contas.
IMPACTOS DA ATIVIDADE
DE TURISMO NA DENSIDADE
POPULACIONAL DE PRIMATAS
O turismo em áreas naturais, mesmo
quando realizado seguindo princípios
sustentáveis e responsáveis, é uma ativi-
dade com potencial impacto à natureza.
Sabendo disso, o IDSM propôs a criação
de um sistema de avaliação de impactos
ambientais por meio de um monitora-
mento de fauna nas trilhas utilizadas pe-
11.
140 Rede de Monitoramento Territorial Independente
los visitantes da Pousada Uacari (PAIM
et al., 2016). O monitoramento se soma a
outras medidas realizadas e previstas no
plano de gestão da RDS Mamirauá, como
número máximo de turistas por vez por
trilha e rodízio de trilhas (IDSM, 2010).
A ideia da realização de monitoramento
de impactos ambientais surgiu logo no
início das atividades da Pousada Uacari.
Naquele momento foram propostas algu-
mas variáveis como água, ora e diver-
sos grupos animais, mas neste capítulo
apresentaremos o monitoramento de pri-
matas, realizado entre 2007 e 2010. Esse
monitoramento objetivou compreender
se a visitação de turistas está causando al-
guma interferência na fauna de primatas,
como habituação dos animais à presença
humana e afugentação das espécies.
O modelo foi desenvolvido pelo Grupo de
Pesquisas de Ecologia de Vertebrados Ter-
restres do Instituto Mamirauá que elaborou
o método, sistematizou e interpretou os da-
dos e a coleta foi realizada por guias locais
da Aagemam/Pousada Uacari, que recebe-
ram capacitação para realizar essa atividade.
Os dados foram coletados em quatro tri-
lhas categorizadas em uso intenso e uso
mínimo. A primeira refere-se àquelas tri-
lhas que são utilizadas pelo menos duas
vezes por semana, enquanto que a segun-
da são aquelas com pouco uso, muitas ve-
zes passando meses sem receber visitan-
tes. A coleta era realizada por três meses
na época da cheia dos rios e por três meses
na época da seca. Quando o nível da água
estava alto, o trajeto era realizado em pe-
quenas canoas a remo e, quando estava
baixo, as trilhas eram percorridas a pé.
Seguindo a metodologia do moni-
toramento, os guias locais anotavam a es-
pécie e a quantidade de indivíduos obser-
vada. Com isso, ao longo de 2007 a 2010
foram percorridos 811,2 km e registrados
1.448 grupos de macacos. As espécies gua-
riba (Alouatta seniculus) e macaco-prego
(Sapajus macrocephalus) apresentaram
maiores densidades nas trilhas de uso
intenso. Não houve diferença signi-
cativa entre as trilhas para uacari-
-branco (Cacajo calvus), macaco-de-
-cheiro-comum (Saimiri cassiquiarenses) e
macaco-de-cheiro-da-cabeça-preta (Sai-
miri vanzolinii). Os resultados para guari-
ba e macaco-prego sugerem habituação
dos indivíduos aos turistas, mas as con-
clusões iniciais são de que esse impacto
é mínimo. A maioria dos animais ainda
apresenta comportamento de fuga.
Esses dados são importantes subsídios para
a gestão das atividades de lazer da Pousada
Uacari e avaliação dos impactos que a ativi-
dade turística pode causar na fauna, mas os
principais desaos dessa metodologia são o
forte componente cientíco das análises e
interpretação dos resultados, o que diculta
a participação comunitária nessas etapas.
O monitoramento com viés cientíco ter-
minou em 2010, mas a Pousada Uacari
vem elaborando suas próprias metodolo-
gias que envolve a participação dos visi-
tantes e dos guias locais, como uma pre-
miação para o guia local que observar mais
vezes o macaco uacari-branco nos pas-
seios, e um monitoramento, com visitan-
tes dispostos a auxiliar na coleta de dados
de observação de mamíferos nas trilhas,
em uma metodologia de ciência cidadã.
CONCLUSÕES
Os resultados provenientes dos moni-
11.
141 Re de de Monitoramento Territorial Independente
toramentos contribuem para o planeja-
mento de uso e gestão dos recursos na-
turais e dos territórios, auxiliando órgãos
gestores públicos e instituições parceiras.
Além disso, a formação de bancos de da-
dos apoiados pela participação daqueles
que possuem interesses em entender as-
pectos e impactos de ações coletivas so-
bre os recursos naturais é fundamental
para o aprimoramento desses esforços
em médio e longo prazos. Dessa forma,
os monitoramentos participativos se
tornam fundamentais para que as ações
sejam mais assertivas à sustentabilidade
e à melhoria dos níveis de qualidade de
vida. A complexidade social e ambiental
da Amazônia torna esses monitoramen-
tos ainda mais desaadores, necessitando
para suas efetividades a adaptabilidade e
o constante retorno de resultados às po-
pulações em linguagens e formatos apro-
priados ao contexto.
O IDSM, em seus mais de 20 anos de de-
dicação à ciência em consonância com as
questões socioambientais apresentadas
pelas populações das RDS Mamirauá e
Amanã, promoveu uma diversidade de
experiências de monitoramento partici-
pativo de aspectos sociais e ambientais a
partir das ações de conservação e desen-
volvimento sustentável. As principais li-
ções dessas experiências são: a raticação
de que a inclusão das populações em to-
das as etapas de implementação das UCs
é indispensável, o fortalecimento da pre-
missa de avaliação contínua baseada em
evidências e no sentido prático das infor-
mações produzidas pelas populações para
melhoria das suas formas de organização
social e produtiva.
A construção entre instituições e comu-
nidades é fundamental para o sucesso dos
monitoramentos. No contexto amazôni-
co, essas parcerias assumem maior impor-
tância, tendo em vista a falta de apoio às
populações locais pelo poder público local,
somada às diculdades de logística e cus-
tos para a realização das atividades que
dão suporte a manutenção dos monitora-
mentos. No entanto, o diálogo só produz
resultados positivos quando é realizado
participativamente, quando as partes con-
ciliam suas práticas e demandas e acor-
dam responsabilidades. Essas premissas
colaboram também para a efetividade da
gestão compartilhada de áreas protegidas.
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Sustentável Amanã (1998 – 2018): 20 anos
de pesquisas. Tefé: IDSM, 2019, p. 14-15.
11.
143 Rede de Monitoramento Territorial Independente
12. Uma energia boa para salvar nosso
rio: monitoramento do potencial de
energia solar no Tapajós
INTRODUÇÃO
O projeto Tapajós Solar: uma energia boa
para salvar nosso rio, conduzido pelo Mo-
vimento Tapajós Vivo (MTV), um mo-
vimento social na cidade de Santarém –
PA, tem como objetivo demonstrar a
viabilidade do emprego de energia so-
lar descentralizada em comunidades
rurais e organizações sociais, fazendo
um contraponto, e também enfrenta-
mento, à construção de hidrelétricas
na bacia do rio Tapajós. Para além da
solarização de espaços, há também
ações de sensibilização ambiental e
formações técnicas para a emancipa-
ção econômica, a partir da geração de
energia fotovoltaica, assim como atra-
vés da educação ambiental.
O objetivo deste capítulo é o de discutir
as pressões sobre a Bacia do Tapajós, para
sua exploração hidrelétrica, e o potencial
do uso da energia solar, em oposição ao
modelo de matriz energética hegemôni-
ca. Para demonstrar esse potencial, apre-
senta-se o monitoramento do uso da ener-
gia solar feita no âmbito do projeto Tapajós
Solar: uma energia boa para salvar nosso
rio. Também são discutidos alguns aspec-
tos físicos e educacionais da realização do
monitoramento, assim como aspectos me-
todológicos, os resultados e as diculdades
enfrentadas. Por m, há um espaço para
considerações nais em uma seção de con-
clusões. A construção do capítulo conta
com a participação direta do Movimento
Tapajós Vivo, realizador do projeto. Nesse
sentido, destaca-se, então, que os autores
Lindon Johnson Pontes Portela1
Isabel Cristina da Silva1
Edilberto Moura Sena1
Raimundo Carlos Ferreira Alves1
Daniela Paula Pantoja Silva1
Darlon Neres dos Santos1
Erick Vasconcelos de Oliveira1
Elmaza Lúcia Sadeck Bandeira1
Marcos Wesley Castro Pedroso1
Isabelle dos Santos Maciel1
1 Movimento Tapajós Vivo.
Gabriel Siqueira Rodrigues1
Allan dos Santos Vieira1
Lucinalva Cardoso Nascimento1
Messias Santos da Silva1
Neida Maria Pereira Rego1
Valéria Maria Bentes Ferreira1
Marilene Rodrigues Rocha1
Edilson Silveira Figueira1
Ileise Sousa Martins1
12.
144 Rede de Monitoramento Territorial Independente
são também militantes do movimento so-
cioambiental do Tapajós.
DESCRIÇÃO DO CASO
1. Contexto: Bacia do Tapajós e a pressão
pelos recursos hídricos
A bacia do Tapajós nasce a partir da
união dos rios Juruena e Teles Pires,
percorrendo grandes ecossistemas aquá-
tico-orestais, desde os altos relevos do
cerrado-matogrossense, indo até as bai-
xas latitudes e altitudes da região de San-
tarém (gura 1). Fazem parte também
da bacia os rios Jamanxim e Cupari. Ao
considerar todo o sistema amazônico,
trata-se da quinta maior bacia hidro-
gráca em extensão, cercada por áreas
de proteção ambiental, tais como unida-
des de conservação, reservas extrativis-
tas e terras indígenas (SANTOS, 2015).
A região da Bacia está em disputa, e enfren-
ta grandes desaos socioambientais, de-
vido à exploração dos seus recursos na-
turais, por meio de pesca predatória,
mineração ilegal, plantações de mono-
culturas, madeireiras ilegais, PCHs, hi-
drelétricas e hidrovia. Nesse sentido, o epi-
centro da disputa é o discurso do grande
capital para “desenvolver” a região, custe
o que custar, devastando suas orestas,
poluindo rios, e consequentemente ma-
Figura 1. Mapa principal das sub-bacias da hidrográca do Tapajós. (Fonte: Santos et al., 2015).
12.
145 Rede de Monitoramento Territorial Independente
tando culturas dos povos que vivem no
território (SENA, 2010).
Dentro do contexto amazônida, um dos
desaos mais latentes é o uso dos recur-
sos hídricos como fonte de energia, com
grandes complexos de usinas hidrelétri-
cas (UHE), assim como pequenas centrais
hidrelétricas (PCH), que são obras que
atingem em cheio os ciclos de vida da fau-
na e ora dos rios e provocam mortes de
peixes e envenenamento da água, além
de destruir povos, comunidades tradicio-
nais e pequenas e médias cidades tanto
à montante quanto à jusante das insta-
lações. Portanto, a geração de energia
centralizada nas hidrelétricas é uma das
mais poderosas formas de destruir os bio-
mas, além de não atender as demandas
locais por energia (exemplo: Belo Monte,
que não entrega energia para região de
Altamira). Essa forma de desenvolvimen-
to está planejada e em execução desde a
ditadura militar, independente dos go-
vernos que estão ou já caram no poder
(CASTRO, 2012; SCHMELA, 2016).
No rio Tapajós está previsto desde a ditadu-
ra militar a construção de um complexo hi-
drelétrico, tendo como maior usina, a de São
Luís do Tapajós, planejada para alagar cerca
de 376 quilômetros quadrados de orestas
e comunidades indígenas e ribeirinhas.
Numericamente, o complexo é composto
por 44 barragens, sendo quatro delas para
usinas, e 40 para PCHs. Destas, mais de 13
já estão em pleno funcionamento no estado
do Mato Grosso (HERNANDEZ, 2012).
2. O Projeto Tapajós Solar
e o monitoramento da energia solar
A partir do contexto descritos acima, nasce
o Projeto Tapajós Solar: uma energia boa para
salvar nosso rio, com sede em Santarém no
prédio do Grupo de Defesa da Amazônia
(GDA) e Centro de Apoio a Projeto de Ação
Comunitária (Ceapac), e executado pelo Mo-
vimento Tapajós Vivo (MTV), em parceria
com o Fórum Mudanças Climáticas e Jus-
tiça Sociambiental (FMCJS) e Cáritas Brasi-
leira, com apoio da Misereor. O objetivo do
projeto é contrapor-se às grandes hidrelé-
tricas pela geração de energia solar descen-
tralizada na bacia do Tapajós, entregando
diretamente autonomia para comunidades
e estimulando processos de sensibilização
sobre meio ambiente. O uso de energia
fotovoltaica promove caminhos para pro-
dução de energia boa e que autonomiza as
comunidades em termos de geração e, ao
mesmo tempo, ilumina a contradição que
acompanha os grandes projetos, que não
atendem às necessidades locais embora
causem impactos e danos aos territórios
atingidos. (PORTELA; SANTOS, 2020).
O projeto conta com envolvimento de al-
gumas organizações que ajudaram nas
ocinas, cursos e discussões sobre energia
solar, destacam-se o Projeto Saúde e Ale-
gria (PSA); Centro de Apoio a Projetos de
Ação Comunitária (Ceapac); Rede de No-
tícias da Amazônia (RNA); Universidade
Federal do Oeste do Pará (Ufopa); Frente
por uma Nova Política Energética (Frente);
Comitê de Energia Renovável do Semiári-
do (Cersa) e a Sociedade para a Pesquisa e
Proteção do Meio Ambiente (Sapopema).
O monitoramento do uso da energia so-
lar feito através desse projeto é relevante,
pois produz dados palpáveis sobre a e-
cácia do objetivo central do projeto, que
é contrapor o modelo e o ideal imposto de
energia pautado nas hidrelétricas, sensi-
bilizando a comunidade sobre o potencial
de energia solar na região. Com isso, usa-
12.
146 Rede de Monitoramento Territorial Independente
-se um modelo partitivo de monitoramen-
to com uso de aplicativo para aparelhos
celulares, usados no acompanhamento da
geração e na descrição da conta de luz.
METODOLOGIA EMPREGADA NO
MONITORAMENTO
Os processos empregados no monito-
ramento seguem o método da gestão de-
mocrática, seja nos aspectos relacionados
à operacionalização dentro da equipe de
execução do projeto, seja no âmbito do
Movimento Tapajós Vivo e parceiros, e
das organizações sociais beneciadas, nas
ocinas, cursos, rodas de conversas, visi-
tas aos locais/comunidades e na instalação
das unidades de energia solar.
O método de gestão democrática pode ser
entendido a partir da denição de Lück
(2009, p. 70), em que
(...) os direitos e deveres são dois
conceitos indissociáveis, de modo
que, fala-se de um, remete-se ao
outro necessariamente. E assim, a
gestão democrática, como sendo
o processo em que se criam con-
dições e se estabelecem as orien-
tações necessárias para que os
membros de uma coletividade, não
apenas tomem parte, de forma re-
gular e contínua, de suas decisões
mais importantes, mas assumam
os compromissos necessários para
sua efetivação.
A construção deste modelo de monitora-
mento se dá desde a criação do projeto de
cada unidade, especicando o potencial de
geração e economia resultante em cada
ano, e os beneciados do projeto fazem o
acompanhamento a partir da construção
de conhecimentos técnicos sobre energia
solar e pelo acesso ao projeto de dimensio-
namento da energia solar. O percurso me-
todológico das aplicações do projeto se dá
em 10 fases, e os processos de cada fase são
realizados entre a organização que execu-
ta o projeto e parceiros locais ou nacionais.
Essas 10 fases são divididas da seguinte
forma: 1) Reunião de discussão sobre po-
tenciais locais estratégicos; 2) Seleção dos
locais pelos quesitos de função social, lo-
calização, estrutura e histórico; 3) Visita
ao local; 4) Reunião para aferição do local.
Após a escolha do local: há 5) Apresen-
tação do projeto para a comunidade ou
organização; 6) Realização de cinco rodas
de conversas socioambientais de sensibi-
lização sobre o Tapajós e energia solar; 7)
Ocina ecopedagógica de sensibilização;
8) Curso de eletricistas comunitários; 9)
Gestão dos processos e montagem dos
equipamentos para a geração de energia,
e por m; 10) Visita de vericação de ge-
ração de energia e acompanhamento.
As guras a seguir trazem alguns regis-
tros das fases de implementação do Pro-
jeto, como rodas de conversa, curso de
eletricista solar comunitário, ocina de
fabricação de lâmpadas e ocinas de sen-
sibilização ambiental, entre outras.
O monitoramento do uso da energia
solar, objeto deste capítulo, acontece,
sobretudo, nas fases nais de cada pro-
cesso de solarização. São usadas duas
formas de acompanhamento da geração
das unidades, a primeira é através do
uso do aplicativo Growatt ShinePhone,
que monitora a geração de modo on-line,
mostrando em tempo real a geração e de-
talhando o dia a dia da geração, poden-
do também agregar as informações em
12.
147 Rede de Monitoramento Territorial Independente
dados mensais e anuais também. Além
disso, o Growatt gera grácos de econo-
mia e de impactos ambientais pelo uso de
uma energia limpa.
O segundo modo de monitoramento acon-
tece nos locais sem conexão com a inter-
net, usando um acompanhamento sema-
nal da geração que o monitor do inversor
detalha, assim como no contador da em-
presa de energia. Ou seja, um outro modo
também usado para monitorar localmente
se dá a partir da conta de luz, em que se
detalha o consumo e abatimento deste,
através do injetado na rede pela geração
de energia solar. Os dois modos de moni-
toramento são possíveis com a capacitação
feita nos cursos de energia solar.
As primeiras organizações e comunida-
des beneciadas com captação de energia
solar foram: o Grupo em Defesa da Ama-
zônia (GDA) / Centro de Apoio a Projetos
de Ação Comunitária (Ceapac), com po-
tência de 3kwp e o Espaço Mãe Natureza
gerando cerca de 5,5 kwp. Em seguida,
foram beneciados a Paróquia da co-
munidade de Santa Maria, com geração
de 1,5 kwp; o Centro de Formação Chico
Roque, gerando 4,3 kwp; a Sede do Sin-
dicato dos Trabalhadores e Trabalhado-
ras Rurais de Santarém (STTR), com 17,8
kwp; o Sistema de abastecimento de água
da comunidade Maguari (Flona), gerando
5,9 kwp; a Pastoral do Menor Núcleo Ma-
piri gerando cerca de 3kwp; e o Sistema
de abastecimento de água da comunidade
de São Domingos (Flona), com potência de
4,95 kwp. As organizações que ainda es-
tão em processo de instalação das ocinas
e cursos ecopedagógicos são: Pastoral do
Menor Núcleo Alcione Barbalho; Sistema
de abastecimento de água da comunida-
de de Jamaraquá (Flona), com projeção de
2,3 kwp; Conselho Indígena Tapajós/Ara-
piuns, projetado para potência de 3 kwp;
Centro de Estudos, Pesquisas e Formação
dos trabalhadores do Baixo Amazonas,
projetado para 4 kwp; e a Casa Familiar
Rural de Belterra, com 2,3 kwp.
Figura 2. Curso de eletricista solar comunitário. (Fonte: Blog do MTV).
12.
148 Rede de Monitoramento Territorial Independente
1. Resultados
Desse modo, a geração total de energia em
pleno funcionamento são 51,88 kwp tanto
nas comunidades quanto nas organiza-
ções, restando ainda implementar cerca de
11,6 kwp. Esse total de 63,48 kwp de gera-
ção impactará por volta de 2.349 pessoas
diretamente. No bojo, estão três unidades
de bombeamento em comunidades na Flo-
Figura 3. Ocinas de sensibilização ambiental. (Fonte: Blog do MTV).
Figura 4. Tabela de projeção geração de economia do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém STTR/
Santarém. (Fonte: STTR/Santarém).
12.
149 Re de de Monitoramento Territorial Independente
na Tapajós, locais de formação popular,
igreja e pastorais do menor, organizações
com ns sociais e ambientais, sindicato ru-
ral e conselho indigenista.
No que tange aos aspectos da econo-
mia nanceira, é percebido que a ge-
ração está condizente com o projeto,
já reduzindo custos para cada local
coletivo, causando economias anuais
que vão de R$ 2.029 na igreja de San-
ta Maria até R$ 26.074 no caso da Sede
do STTR/Santarém, que possui a maior
geração. Essas economias serão usufruí-
das, pelo menos ao longo dos próximos 25
anos, tempo estimado da durabilidade das
placas solares. Dando autonomia nan-
ceira para os beneciados, demostra-se
que a energia solar, além de mais limpa, é
economicamente viável para as comuni-
dades e demais organizações, assim como
para o próprio poder público.
Na Figura 4, a título de exemplo, é possível
ver a projeção de economia para 25 anos
com a instalação de placas solares no STTR
de Santarém. Como resultado, espera-se
economizar mais de 2 milhões de reais.
O uso dos aplicativos de monitoramento
da geração de energia solar, como dito
anteriormente, acompanham o processo
como um todo, com produção de grácos
e relatórios, e é uma das formas de sen-
sibilização para o uso da energia solar.
Por exemplo, com o aplicativo Growatt é
possível calcular o quanto foi poupado se
a energia usada fosse oriunda de outras
matrizes energéticas como o carvão, e de
acordo com isso, o quanto de emissão de
CO2 e de desmatamento foram evitados.
A Figura 5, oriunda do Growatt, mostra o
quanto de kWh foram gerados em um dia
especíco (no caso, 18 de janeiro de 2021),
e o quanto de kWh foram gerados desde
o início da instalação da unidade no GDA/
Ceapac. Na gura, também é possível ver o
quanto de economia, em dinheiro, foi possí-
vel com a captação da energia solar, para o
dia especíco e para o total até então.
Figura 5. Monitoramento da energia solar do GDA/CEAPAC, com Growatt. (Fonte: https://server.growatt.com/index).
12.
150 Rede de Monitoramento Territorial Independente
A Figura 6, oriunda do Growatt, mostra
as informações que o aplicativo nomeia
como “contribuições sociais”. Nessa seção,
o Growatt estima o quanto de CO2 teria
sido emitido, o quanto de árvores deixa-
ram de ser cortadas e quantos quilos de
carvão deixaram de ser usados, caso a
mesma quantidade de kWt produzida
com energia solar tivesse sido produzida
com base em carvão. Os dados da gura 6
também foram extraídos da unidade ins-
talada no GDA/Ceapac.
A Figura 7, oriunda do Growatt, à seme-
lhança da Figura 5, mostra o quanto de
kWh foram gerados em um dia especíco
(no caso, 18 de janeiro de 2021), e o quanto
de kWh foram gerados desde o início da
instalação da unidade. Contudo, a unidade
em questão é a do Espaço Mãe Natureza.
Aqui, também é possível ver o quanto de
economia, em dinheiro, foi possível com a
captação da energia solar, para o dia espe-
cíco e para o total até então.
A Figura 8, oriunda do Growatt, à seme-
lhança da Figura 6, mostra as informações
que o aplicativo nomeia como “contribui-
ções sociais”, da unidade Espaço Mãe Na-
tureza. Nessa seção, o Growatt estima o
quanto de CO² teria sido emitido, o quan-
to de árvores deixaram de ser cortadas e
quantos quilos de carvão deixaram de ser
usados, caso a mesma quantidade de kWt
produzida com energia solar, na unidade,
tivesse sido produzida com base em carvão.
Nota-se que o uso do aplicativo permite
uma visão sobre os bons impactos do uso
de uma energia mais limpa. Para além des-
ses números, o monitoramento demons-
tra, em termos qualitativos, os benefícios
às comunidades e organizações com rela-
ção à autonomia energética e econômica.
2. Diculdades
Houve problemas orçamentários no que
tange a geração de energia solar nas unida-
des de bombeamento, visto a profundidade
do poço, e a necessidade de geração equita-
tiva à consumida, precisando de reajustes
no projeto, para um redimensionamento
coeso para a ecácia de geração solar.
Figura 6. Monitoramento de outras contribuições da energia solar do GDA/CEAPAC, com Growatt.
(Fonte: https://server.growatt.com/index).
12.
151 Rede de Monitoramento Territorial Independente
A diculdade na sensibilização ambiental
nas ocinas e rodas conversa sobre o con-
texto socioambiental foi percebida, consi-
derando o processo de colonização do pen-
samento, no qual o desenvolvimento é visto
unicamente quando é preciso desmatar ou
barrar um rio para construção de hidrelé-
tricas. Nas áreas do Baixo Tapajós e Baixo
Amazonas, a distância geográca foi mais
uma diculdade, pelo difícil acesso terrestre
e o dispendioso acesso por meio uvial.
A pandemia de Covid-19 foi um fator que
causou muitos impactos relativos ao an-
damento das ocinas, cursos, reuniões e
demais atividades presenciais, pelo cená-
Figura 7. Monitoramento da geração de energia solar da unidade Espaço Mãe Natureza, com Growatt.
(Fonte: https://server.growatt.com/index).
Figura 8. – Monitoramento de outras contribuições da energia solar do Espaço Mãe Natureza, com Growatt.
(Fonte: https://server.growatt.com/index).
12.
152 Red e de Monitoramento Territorial Independente
rio de insegurança de saúde pública, as
atividades foram suspensas, porém, pos-
teriormente puderam ser seguidas, com
respeito aos protocolos da Organização
Mundial da Saúde (OMS): no uso de másca-
ras, álcool em gel e distanciamento social.
Houve ainda problemas com a realização
do monitoramento nos locais sem inter-
net. Para contornar essa diculdade, fo-
ram conduzidas formações especícas
buscando saídas para o acompanhamento
da geração. Ademais, com relação ao uso
aplicativo Growatt em si, houve poucas
diculdades relacionadas à plataforma,
pois, foram realizadas formações e capa-
citações para seu uso.
CONCLUSÕES
No meio de tantas problemáticas so-
cioambientais na Amazônia, mais exa-
tamente a região do Tapajós, o Projeto
Tapajós Solar: uma energia boa para salvar
nosso rio nasce como uma solução práti-
ca para o uso de uma energia mais limpa
e economicamente viável, com ações de
educação ambiental palpáveis para sensi-
bilizar comunidades, organizações sociais
e a sociedade civil como um todo.
O monitoramento da produção de energia
solar de modo qualitativo demonstra que
é possível gerar energia limpa, aportando
autonomia energética para comunida-
des no rio Tapajós. Esse capítulo também
aponta a importância de parcerias e ações
participativas com foram importantes para
o andamento do projeto. Como resultados,
além da economia de energia, destacamos
a promoção de discussão ampla da disputa
sobre usos de recursos, e fortalecimento
das narrativas sobre outras possibilidades
de desenvolvimento na região.
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Events/SolarPower_Webinar_Global_
Market_Outlook.pdf>. Acesso em julho
de. 2019.
12.
COMUNICADO
Este material foi elaborado pela Fundação Getulio Vargas, com apoio da Fundação
Charles Stewart Mott, para avanço público no conhecimento sobre monitoramento ter-
ritorial independente de territórios. Ele não foi elaborado com o objetivo de inuenciar
legislação especíca ou qualquer campanha política.
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va cujos destinatários sejam encorajados a tomar medidas em relação a alguma legisla-
ção especíca. Por exemplo, ao compartilhar esse material em sites externos, a página
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mada à ação. Da mesma forma, ao enviar o material a outras pessoas com uma carta de
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Adicionalmente, este material não pode ser utilizado em iniciativas para inuenciar elei-
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