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O musicógrafo

Authors:
  • Conservatório de Música C. Gulbenkian, Braga, Portugal

Abstract

Aquelas pessoas, com poder de pontificar sobre o bem e o mal na música, foram caindo no esquecimento eterno, mas neste encontro com o passado veio-me à memória uma que se cognominava de musicógrafo, ainda que ninguém soubesse onde se habilitara para tal honraria nem as aptidões que esse título lhe conferia, ou se era, como os proto-cardeais, um musicógrafo 'in pectore'.
13 outubro 2021
AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 22
MÚSICO
O musicógrafo
Podemos tratar com os compositores imortais
por intercessão de um médium, pois estão to-
dos mortos, ou, de modo mais criativo, inter-
pretando a sua obra. O problema é tratar com
os compositores vivos que se acham imor-
tais, pois não há argumentos nem raciocínio
humano que permita o diálogo com alguém
que se considera superior ou que padece da
síndrome do ditador com mandato divino, a
quem todos lhe devemos vassalagem.
uns anos abandonei uma associação
quando foi proposta uma mudança de estatu-
tos para que a admissão dos novos membros
fosse uma competência exclusiva dos funda-
dores, obviamente, inextinguíveis. Um vulgar
mortal não deve malgastar o seu limitado
tempo neste mundo a imiscuir-se nos desíg-
nios da estupidez.
Estou a construir este artigo num espaço de
desordem, pois o meu escritório-biblioteca foi
desmontado para remodelação e conter mais
livros. Nesta desarrumação aparecem velhos
papéis que fui guardando ao longo da vida e
chamou-me a atenção uma série de progra-
mas de concertos dos anos setenta, aquando
eu estudava em Madrid. Na altura, conside-
rava que, aquelas longas notas prévias dos
programas, deviam ser importantes pois es-
tavam assinadas por pessoas com poder de
opinião musical e predicamento nos jornais
capitalinos, onde publicavam as suas críticas
musicais, eu diria indículos sociais, dos con-
certos que previamente anotaram e pelos
que já foram generosamente retribuídos. Não
resisti à tentação de reler alguns daqueles
textos que agora têm um aspeto sico mais
pálido, um tanto amarelentos. As ideias que
encontrei naquelas ‘notas ao programa’, antes
de desistir por aborrecimento, eram ácidas,
melíuas e anedóticas, ideias convencionais
ou padronizadas, como talvez correspondia
ao conformismo bem-pensante numa dita-
dura assassina. Para acelerar o seu processo
de desintegração em partículas elementares,
joguei tudo no lixo.
Aquelas pessoas, com poder de ponticar
sobre o bem e o mal na música, foram caindo
no esquecimento eterno, mas neste encontro
com o passado veio-me à memória uma que
se cognominava de musicógrafo, ainda que
ninguém soubesse onde se habilitara para tal
honraria nem as aptidões que esse título lhe
conferia, ou se era, como os proto-cardeais,
um musicógrafo ‘in pectore’.
Numa consulta rápida a dois dicionários em
linha, observo que não há unanimidade na
denição. Tendo ambos duas entradas para
o verbete ‘musicograa’, um regista: “1. trata-
do sobre a arte de escrever música. 2. arte de
escrever a respeito de música.”1 e o outro “1.
tratado acerca da música. 2. arte de escrever
música”2. Fico algo confundido pois não per-
cebo em qual dessas quatro aceções se ba-
seava aquele es crevedor não músico para s e
apresentar como musicógrafo. Hoje em dia, a
palavra caiu em desuso, mas ainda se utiliza
para falar da escrita musical para invisuais, a
musicograa braille. Agora, a palavra da moda
para aquelas funções do poder de opinião
musical é ‘musicologia’, um substantivo com
prestígio académico ainda que poucos são os
que tiraram um verdadeiro curso de musico-
logia, já que não são tantas as universidades
que têm um plano de estudos musicais para
essa especialidade e a maioria procede dos
cursos de História. Também há os amadores
que, sem ter qualquer curso superior de mú-
sica, se deixam apelidar de musicólogos, pelo
que há muito intruso.
O tal musicógrafo, já esquecido e que também
se achava perdurável, e screvia com tanta
convicção que a sua opinião era altamente
valorada pelos decisores musicais na altura.
Todo o intérprete musical que aspirasse a ter
uma carreira de sucesso na Espanha franquis-
ta precisava de incluir no seu currículo uma
frase elogiosa assinada por ele. Mas o musi-
cógrafo não tem vida própria e sua alma ex-
ternaliza-se para que o mundo tenha conhe-
cimento das belezas que lhe foi dado ouvir.
Assim, quando nas suas ‘críticas’ elogiava as
qualidades de algum intérprete, enviava uma
cópia ao interessado com uma nota solicitan-
do o contravalor monetário que, já na época,
rondava os sessenta euros.
Fico muito irritado quando alguém, queren-
do ser amável comigo, me apresenta como
musicólogo. Imediatamente esclareço que a
musicologia é de letras (Trivium), e eu, sendo
compositor de música, sou das ciências ma-
temáticas (Quadrivium). Nada tenho contra
os musicólogos, nem musicógrafos, mesmo
quando falam das minhas obras, mas eu não
gosto que me atribuam prossões para as
quais não estou habilitado e, portanto, não
vou resgatar do seu merecido esquecimento
aqueles que alcançaram neste mundo a imor-
talidade indevida.
Não sei se um médium consegue comuni-
car com espíritos de esquecidos, porque a
criatividade não faz milagres. Que sejam os
musicólogos, se acham que isso tem algum
interesse para o seu currículo, a ressuscitar os
musicógrafos.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
O Bardo na Brêtema
1 Porto Editora – musicograa no Dicionário infopédia
da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora.
[consult. 20210916 12:43:05]. Disponível em https://www.
infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/musicograa
2 Priberam – musicograa no Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa [em linha]. Lisboa: Priberam.
[consult. 20210916 12:44:01]. Disponível em
https://dicionario.priberam.org/musicograa
FOTO: DR
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