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15 setembro 2021
AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 22
MÚSICA
O pH do conhecimento PhD
“A cultura é uma obser-
vância. Ou pelo menos
pressupõe uma obser-
vância”1, escrevia em 1949
Ludwig Wittgenstein nos
seus apontamentos ma-
nuscritos. No mesmo ano,
Albert Einstein afirmava
que o conhecimento exis-
te em duas formas: inerte,
guardado nos livros, ou
vivo, na consciência das
pessoas; e considerava
que a segunda forma era
a essencial2. Mas Aristóte-
les já nos esclarecera que
o conhecimento pela de-
monstração constituía o
saber3.
A natureza é física, no en-
tanto, os humanos têm a
capacidade de a transfor-
mar em cultura, recriando e transcendendo
os seus significados, mesmo que não alte-
rem as propriedades. Esse cultivo da natu-
reza acrescenta um sentido novo à ordem
física e estabelece a ponte entre o mundo e o
espírito. A cultura não existe na natureza; ela
só se manifesta pela ação humana e assim
como não há cultura sem pessoas, também
não há pessoas sem cultura. A cultura é o
património acumulado que cada geração re-
cebe do seu contexto social e do qual precisa
para proceder em comunidade; além disso,
não é homogénea e no mesmo grupo huma-
no gera-se um pluralismo cultural onde há
manifestações que podem ser melhores do
que outras. Uma vez assimiladas, as formas
culturais são como uma continuação da na-
tureza, numa simbiose que se torna difícil
distinguir entre o físico e o simbólico; contu-
do, nenhuma cultura deriva da essência da
humanidade, ainda que se travem guerras
pelo predomínio de umas sobre as outras. A
cultura aprende-se e transmite-se, mas insta-
la-se na mente, não nos genes.
O conhecimento, afirma Edgar Morin, é a
organização da informação que extraímos
do universo. O importante não são os dados
mas o cálculo que realizamos com as unida-
des de informação que retiramos ao ruído.
A vida é uma organização computacional,
uma dimensão cognitiva indiferenciada,
pois esse conhecimento não se conhece a si
próprio. O cérebro não computa diretamen-
te os estímulos; computa apenas as compu-
tações que os seus neurónios fazem. Analo-
gamente, conhecer é produzir uma tradução
das realidades do mundo exterior4.
O saber é um conhecimento reflexivo de
índole interdisciplinar e âmbito mais vas-
to. Historicamente, a filosofia foi sinónimo
do saber racional e da ciência, um sistema
que abrangia a totalidade do conhecimen-
to, daí que em muitas Universidades o grau
académico mais elevado se denomine Phi-
losophiae Doctor ou PhD. Isto faz lembrar a
famosa máxima de José de Letamendi, que
figura no pedestal da estátua de Abel Sala-
zar, fundador do Instituto Biológico do Porto:
“O médico que só sabe de medicina, nem de
medicina sabe”.
Seria bom dispor de uma escala similar à
do pH, que poderíamos denominar como
‘potencial Habilitador’, para medir a intensi-
dade da grandeza interdisciplinar dos PhD,
e assim podermos evitar tanto os doutores
que só sabem da sua área científica igno-
rando o resto (conhecimento ácido), como
os que sabem de tudo desconhecendo o
próprio (conhecimento alcalino). Só aque-
les que se encontram no centro da tabela
(pH equilibrado ou neutro) cumpririam os
requisitos de sabedoria de um PhD. Além do
mais, também os candidatos a doutorandos
deveriam demonstrar esse equilíbrio no co-
nhecimento interdisciplinar e, desse modo,
eu talvez não tivesse que passar pela vergo-
nha alheia quando recebo
propostas, sempre com a
desculpa de estarem mui-
to ocupados, para escre-
ver-lhes a tese. Fique aqui
a dica para que as institui-
ções universitárias tratem
da sua honra.
As unidades de conheci-
mento necessárias para
alcançar a sabedoria não
abundam e é assustado-
ra a quantidade de PhD
incapazes de relacionar a
sua especialidade com o
desenvolvimento susten-
tável do mundo em que
habitam. Fico espantado
quando alguém que atin-
giu o nível mais alto na
formação universitária de-
clara, sem qualquer pudor,
que não lê nada para além da sua área, ou,
falando de música, desagua no relativismo
opinável e equipara o pimba com Mozart.
Os músicos eruditos não são diferentes e
muito poucos conseguem relacionar as
obras que tocam com o mundo em que vi-
vem, porque se ‘só sabem de música, nem
disso sabem’, e daí que, olhando para o re-
pertório que preenche a programação da
imensa maioria das salas de concerto, pare-
çam animadores dum museu arqueológico.
Só um pequeno grupo revela o seu vasto sa-
ber divulgando a música que nos é contem-
porânea.
Informação, organização e reflexão. “A edu-
cação pela música é capital, porque o ritmo
e a harmonia penetram mais fundo na alma
e afetam-na mais fortemente, trazendo con-
sigo a perfeição”5, razoava Platão. Razão téc-
nica, razão prática e razão teórica, “e com
razão, honraria as coisas belas, e com elas se
alimentaria e tornar-se-ia um cidadão per-
feito”6. A cultura, o conhecimento e o saber.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
1 Wittgenstein, L. (1996). Cultura e valor.
Lisboa: Edições 70, p. 121.
2 Einstein, A. (1954). Ideas and Opinions.
New York: Crown, p. 80.
3 Aristóteles. Analíticos segundos, livro I, §2, 71b 16-18.
Em Órganon II.
4 Morin, E. (2008). Introdução ao pensamento complexo.
Lisboa: Instituto Piaget, pp. 159-161.
5 Platão. A República. Livro III, 401d.
6 Ibid., 401e.
O Bardo na Brêtema
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