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Controvérsias sociocientíficas e mineração: formação cidadã crítica no enfrentamento aos processos de desastres

Authors:
Caminhos da ciência e tecnologia no Brasil: políticas públicas, pesquisas e redes
[recurso eletrônico] / organizadoras Maíra Baumgarten [e] Julia Guivant. – Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2021.
182 p. : pdf
(Cenários do Conhecimento)
Textos construídos com base nos trabalhos apresentados no VIII Simpósio Nacional
de Ciência, Tecnologia e Sociedade.
1. Ciência e tecnologia. 2. Políticas públicas. 3. Sociologia. 4. Ciência – Tecnologia –
Sociedade. 5. Ciência – Tecnologia - Inovação. 6. Pesquisa cientíca – Brasil. 7. Inovação
tecnológica. 8. Ensino superior. I. Baumgarten, Maíra. II. Guivant, Julia. III. Série.
CDU 5/6(81)
C183
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin – Bibliotecária responsável CRB10/979)
ISBN 978-65- 5725-044-0
© dos autores
1ª edição: 2021
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Carla M. Luzzatto
A graa desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográco da Língua Portuguesa, de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 1o de janeiro de 2009.
Série Cenários do Conhecimento
O conhecimento humano apresenta variadas motivações e assume diversas
formas. Reetir sobre o conhecimento requer o exercício da transdiscipli-
nariedade, encontros entre temas, áreas, problemas. Escapar do linear em
direção ao transversal e às redes. Alargar fronteiras disciplinares, construir
cenários e pensar utopias.
Informação e conhecimento sempre foram importantes pilares dos
diferentes modos de produção da vida humana. O conhecimento, sua
busca, é parte da estratégia de sobrevivência da espécie humana. Esse mo-
vimento de conhecer relaciona-se à situação concreta de cada sociedade,
ao seu estado da arte, suas práticas de vida, sua cultura, suas técnicas, sua
ideologia.
As formas contemporâneas de sociedade se fazem acompanhar por
profundas reestruturações organizacionais e culturais. Vivemos em um
tempo em que a ciência não mais apenas estuda, desvenda, mas também
cria objetos empíricos e produz teorias que os sustentam enquanto fe-
nômeno. A natureza urbana está cada vez mais repleta de objetos “não
naturais” que funcionam como projeções físicas ou psíquicas do ser hu-
mano. Vivemos um processo de hibridação entre o natural e o humano e
o articial.
Nesse contexto, recoloca-se permanentemente o desao para o desen-
volvimento de conceitos e teorias que permitam compreender e intervir
sobre processos que têm grande repercussão sobre a vida cotidiana, pois
na sociedade mundializada atual — híbrida de arcaísmos, modernidades
impossíveis e pós-modernidades instáveis — é preciso encontrar sendas para
o entendimento das novas questões sociais, novos instrumentos teórico-
-metodológicos para pensar um mundo cada vez mais complexo.
A reexão sobre o conhecimento e seu papel na sociedade impõe desa-
os à imaginação cientíca: a complexidade e a dialeticidade do conheci-
mento, a atitude dialógica e a complementaridade entre incomensuráveis,
a hibridação e a ética.
A série Cenários do Conhecimento originada no Laboratório de Di-
vulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social do Programa de Pós-
-Graduação em Sociologia da UFRGS pretende ser um espaço de inter-
locução entre as diversas perspectivas e disciplinas que tratam do conhe-
cimento cientíco, da informação, sua produção, difusão, das redes de
conhecimentos e da inovação social. Cenários nos falam de atores, pessoas
que agem e reetem sobre sua ação, o mundo, a sociedade. Surgem da
necessidade humana de compreender e exprimir a complexidade da vida
e expressam composições de seres que sentem, pensam, que são natureza e
cultura e que interagem em e a partir de estruturas complexas, articiali-
dades sempre renovadas e uma natureza viva e mutante.
Essa linha editorial tem por objetivo trazer à tona as problematizações
mais atuais do campo da pesquisa cientíca, da informação, da tecnologia
e da inovação social, ocupando um espaço que se faz progressivamente
estratégico pela necessidade crescente de dar conta das questões relacio-
nadas aos processos de produção de conhecimentos e de sua apropriação
social. Nessa síntese entre sociedade e conhecimento, também chamada
de sociedade ou era da informação, emerge cada vez mais a necessidade de
construir cenários que indiquem novas direções.
A série Cenários do Conhecimento tem um Conselho Diretivo for-
mado por sua fundadora, professora Maíra Baumgarten (FURG/LaD-
CIS-UFRGS) e os professores José Vicente Tavares dos Santos (IFCH-
-UFRGS) e Ivan da Costa Marques (UFRJ).
Nossa proposta parte da perspectiva da complexidade e busca orga-
nizar trilhas, caminhos que iluminem a realidade através desses objetos
que são a expressão mesma do conhecimento: os livros, em uma coleção
de cenários. O livro Caminhos da Ciência e Tecnologia no Brasil: políticas
públicas, pesquisa e redes, em parceria com a Associação Brasileira de Es-
tudos Sociais das Ciências e Tecnologias – ESOCITE.BR, apresenta-nos
um cenário de estudos que relacionam ciência, tecnologia e sociedade e
políticas públicas no setor e busca ampliar o acesso ao debate sobre esses
temas estratégicos para a inclusão social e a busca de formas sustentáveis
de produção da vida.
Ivan da Costa Marques, José Vicente Tavares dos Santos e Maíra Baumgarten
Sumário
Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil, alguns caminhos 11
Maíra Baumgarten
PARTE I – ESTUDOS CTS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE CTI: PARA ONDE VAMOS?
Livro, periódico e conhecimento cientíco: questões sobre avaliação
e políticas no Brasil 19
Daniela Alves de Alves e Maíra Baumgarten
A periferização da ciência e os elementos do regime de administração
da irrelevância 47
Fabrício Neves
Ciências “duras” e normais: objetivos móveis (in)alcançáveis para
um “programa” no Brasil 77
Henrique Cukierman, Márcia Regina Barros da Silva e Ivan da Costa Marques
PARTE II – CONDIÇÕES DE PESQUISA, REDES SOCIOTÉCNICAS,
PRÁTICAS EXTENSIONISTAS NOS ESTUDOS CTS
Infraestrutura, arranjos sociais e produção cientíca e tecnológica 93
Adriano Premebida
Os estudos CTS diante dos desastres ambientais 109
Lorena Cândido Fleury
Controvérsias sociocientícas e mineração: formação cidadã crítica no
enfrentamento aos processos de desastres 127
Daniela Campolina, Clarissa Rodrigues e Fábio Augusto Rodrigues e Silva
Engenharia e extensão universitária numa perspectiva CTS: teoria e prática
no processo ensino-aprendizagem 153
Fábio Luiz Tezini Crocco, Denise Stefanoni Combinato, John Bernhard Kleba,
Cristiano Cordeiro Cruz e Nilda Nazaré Pereira Oliveira
Autores 177
Introdução
Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil,
alguns caminhos
O livro Caminhos da ciência e tecnologia no Brasil: políticas públicas, pes-
quisas e redes é um dos resultados do VIII Simpósio Nacional de Ciência,
Tecnologia e Sociedade e foi construído com base em material recebi-
do em chamadas de trabalhos apresentados em mesas-redondas e fóruns
do evento ou de colaborações a partir dessas chamadas. Organizada por
Maíra Baumgarten e Julia Guivant, a obra está composta de duas partes,
subdivididas em capítulos. A primeira trata de estudos que relacionam
ciência, tecnologia e sociedade (CTS) e políticas públicas em ciência, tec-
nologia e inovação (CTI). A segunda aborda condições de pesquisa, redes
e práticas extensionistas nos estudos CTS.
Estudos CTS e políticas públicas de CTI: para onde vamos?
Nessa parte do livro são apresentadas e debatidas algumas questões
que perpassam os estudos CTS e sua relação com políticas públicas de
ciência e tecnologia, buscando vislumbrar caminhos seguidos por essas
políticas no Brasil.
No primeiro capítulo, Daniela Alves e Maíra Baumgarten analisam
aspectos da importância do livro e do periódico na produção e comu-
nicação do conhecimento cientíco. Algumas das questões abordadas
são: a relação entre os sistemas de avaliação, de fomento e de produção
Maíra Baumgarten
12
acadêmica, notadamente no que se refere às humanidades e ciências so-
ciais aplicadas; que políticas vêm sendo formuladas para o setor e como a
coletividade cientíca está incluída (ou não) no processo de formulação
dessas políticas; quais principais gargalos e estrangulamentos podem ser
identicados nesse contexto.
Fabrício Neves, no segundo capítulo, discute a constituição e repro-
dução de regimes de administração da irrelevância na ciência. Segundo
o autor, em contextos de produção cientíca considerados periféricos,
o conhecimento produzido é reduzido a uma condição de inferioridade
ante outros contextos. A prática cotidiana da ciência é, de acordo com o
estudo, orientada por valores e procedimentos, conscientes ou não, de
periferização, processo cientíco com conteúdo valorativo e pragmático
próprios, cujos elementos constituintes são apresentados no capítulo. Tais
elementos foram identicados a partir de pesquisa de campo em labora-
tórios e de entrevistas com interlocutores-chave (líderes de pesquisa) de
grupos de biotecnologia no Brasil. Para Fabrício Neves, trata-se de não
tomar a diferença entre centro e periferia como estrutura objetiva do sis-
tema cientíco, abordagem comum nos estudos sociais da ciência e da
tecnologia, mas sim como expectativa com repercussões práticas.
No terceiro capítulo, os autores analisam os conceitos ciência normal
e ciência revolucionária, derivados do famoso livro de omas Kuhn, A es-
trutura das revoluções cientícas, que seriam a denição de dois momentos
complementares na descrição do funcionamento das ciências. Segundo
Henrique Cukierman, Márcia Regina Barros da Silva e Ivan da Costa Mar-
ques há, nessa descrição, uma espécie de “divisão do trabalho cientíco
que denota uma visão apriorística dos papéis reservados àqueles identi-
cados por cada uma dessas alcunhas, sendo as comunidades de cientistas
delimitadas pelos paradigmas compartilhados entre si, responsáveis pelos
critérios de inovação das suas áreas de pesquisa, pela denição das regras e
modelos a seguir e até mesmo dos modelos a rejeitar.
Os autores questionam o quanto a aceitação desses parâmetros é cons-
tituída de modo a rejeitar visões criativas e disruptivas e discutem se é
possível fazer no Brasil uma ciência não normal – aquela em que as comu-
nidades partiriam de outros referenciais, situados no tempo, no espaço e
na cultura em que se inserem. Isto é, referenciais opostos à ideia de univer-
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salidade cientíca que encobre a marca euro-norte-americana que, hoje,
no país, afasta a criação de conhecimentos cientícos das questões locais,
regionais e nacionais.
Condições de pesquisa, redes sociotécnicas,
práticas extensionistas nos estudos CTS
Na segunda parte do livro são debatidas diversas características pre-
sentes nos estudos que trabalham a relação entre ciência, tecnologia e so-
ciedade, abordando mais detidamente a questão das redes sociotécnicas e
das práticas extensionistas.
No quarto capítulo, Adriano Premebida analisa as relações entre in-
fraestrutura e redes sociotécnicas, com suas circularidades de conhecimen-
to, replicação de experimentos e estabilização de entidades instituídas em
ambiente cientíco e tecnológico. Segundo o autor, o conjunto de interes-
ses mobilizados para formar o conteúdo de conhecimentos especializados
não se faz sem sistemas materiais. Assim, a partir de exemplos de alguns
projetos de pesquisa na área de biotecnologia e mudanças climáticas na
Amazônia, discute como as infraestruturas incorporam sistemas técnicos,
padrões de certicação, legislação, rotinas normativas, comunidades de
práticas e formas de vida no seu funcionamento. De acordo com o autor,
em termos de políticas públicas, as relações estabelecidas pelas infraes-
truturas na produção do conhecimento podem apresentar limites para a
manutenção e gestão de instituições laboratoriais, afetando rotinas e pes-
quisas. Além disso, se a condição de transparência das infraestruturas pode
torná-las pouco visíveis, já sua inuência na coordenação de visões de
mundo, ação política e agência material e simbólica é inescapável.
Lorena Fleury, no quinto capítulo, traz o aporte dos estudos CTS para
a análise dos desastres ambientais. A autora argumenta que o desastre,
como regra constante, é uma das formas pelas quais se pode caracterizar o
Antropoceno, essa nova época geológica que se apresenta com frequência
crescente no cotidiano. De acordo com Fleury, os estudos sobre proje-
tos de desenvolvimento e conitos têm utilizado a Teoria Ator-Rede para
demonstrar as associações que tornam possível a vida em um determina-
do lugar. E indaga: ao colocar tais estudos em diálogo com as discussões
14
recentes a respeito dos desastres sociotécnicos e/ou socioambientais, quais
agenciamentos se demonstram presentes? Seu interesse é destacar os ganhos
analíticos ao abordar esses processos sob uma perspectiva dos estudos CTS.
No sexto capítulo são abordados os impactos dos rompimentos de
duas barragens de minério que tornaram Mariana e a bacia do rio Doce,
Brumadinho e a bacia do rio Paraopeba, em Minas Gerais, cenários de
crimes socioambientais continuados e revelaram a faceta mais cruel da
exclusão e da vulnerabilidade de populações marginalizadas. De acordo
com Daniela Campolina, Clarissa Rodrigues e Fábio Augusto Rodrigues e
Silva, algumas dessas populações foram totalmente cooptadas pela explo-
ração minerária, o que favorece e intensica violações de direitos humanos
e ambientais diversas.
Os autores chamam atenção para o potencial papel de uma educação
cientíca que incorpore a mineração e suas consequências socioambientais
como tema a ser tratado nas aulas da educação básica por meio de uma abor-
dagem de ensino que considere as relações entre Ciência, Tecnologia e So-
ciedade. Uma educação de caráter sociopolítico, que desvele a complexidade
e os problemas desse modo de produção da vida e que traga o debate sobre
os riscos e as incertezas que acompanham o desenvolvimento tecnocientí-
co, pode, de acordo com o estudo, ajudar os jovens a problematizar essas for-
mas de exploração da terra que têm gerado exclusão, desastres e destruição.
No sétimo capítulo um grupo de pesquisadores do Instituto Tecnológi-
co de Aeronáutica (ITA) aborda a Engenharia e a extensão universitária em
uma perspectiva de CTS. Segundo eles, os estudos em Ciência, Tecnologia
e Sociedade (CTS) contribuem de forma expressiva para a formação em
Engenharia e, quando suas mediações teóricas e sua criticidade se articulam
com a prática extensionista, há um salto qualitativo no processo ensino-
-aprendizagem. O texto, a partir de um estudo de caso, aprofunda o debate
teórico e metodológico sobre a prática extensionista fundamentada nos es-
tudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade e sua relevância para estimular a
engenharia engajada.
Esperamos que este livro possa contribuir para os estudos sobre as mútu-
as relações entre sociedade, ciência e tecnologia e os caminhos dessa relação
no Brasil em termos de pesquisa, redes e políticas públicas. A ESOCITE.
BR, como locus privilegiado de discussões sobre o tema, busca compartilhar
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e possibilitar seu acesso a um público ampliado, com base na perspectiva
de que esses são debates estratégicos para a inclusão social, a democracia e a
busca de formas solidárias e sustentáveis de construir a vida.
Abril de 2021
Maíra Baumgarten
Presidente da ESOCITE.BR
Estudos CTS e políticas públicas
de CTI: para onde vamos?
Parte I
Livro, periódico e conhecimento cientíco:
questões sobre avaliação e políticas
no Brasil
Daniela Alves de Alves e Maíra Baumgarten
Neste capítulo analisamos aspectos da importância do livro e do periódico
na produção e comunicação do conhecimento cientíco. No Brasil, dis-
tintas áreas do conhecimento apresentam diferentes formas de publicar
seus resultados de pesquisa – livros, periódicos, anais de congressos –,
entretanto, os processos de avaliação da pós-graduação brasileira,locuspor
excelência da pesquisa, vêm progressivamente exercendo inuência nas
formas de publicar e até nos conteúdos publicados, posto que a avaliação
da pós-graduação é elemento fundamental para o fomento aos programas
e até mesmo para sua manutenção ou não. Esses processos de avaliação
têm se alterado, acompanhando a priorização de determinadas áreas, o
que leva a mudanças nos indicadores e instrumentos da avaliação para
todas as áreas de conhecimento. As ciências humanas e sociais, cuja tra-
dição de publicar está principalmente voltada ao livro, têm sentido essas
mudanças, como também aquelas decorrentes do contexto atual de ensino
remoto e as implicações em termos de uso de materiais didáticos sob a
regulação da lei brasileira de direitos autorais.Algumas das questões que
abordaremos são: a relação entre os sistemas de avaliação, de fomento e
de produção acadêmica, notadamente no que se refere às humanidades e
sociais aplicadas; que políticas vêm sendo formuladas para o setor e como
a coletividade cientíca está incluída (ou não) no processo de formulação
dessas políticas; quais principais gargalos e estrangulamentos podem ser
identicados nesse contexto.
20
Na primeira parte do texto abordaremos as políticas de gestão e avalia-
ção em ciência, tecnologia e inovação (CTI) no Brasil, desde a perspectiva
histórica até o momento presente, enfatizando o papel das coletividades
cientícas nesse processo. Na segunda parte daremos destaque ao papel
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
nesse processo. Na terceira subunidade enfatizaremos o papel do livro
como artefato de comunicação cientíca nas ciências humanas e sociais e
como ele tem sido abordado no sistema de avaliação.
Políticas de gestão e avaliação de ciência, tecnologia e inovação
no Brasil. Para onde vamos?
A relação entre Estado e coletividades cientícas no Brasil, nas últi-
mas décadas, expressa-se em políticas públicas pelas quais o Estado, com
o apoio parcial dos cientistas, instituiu a “excelência” como o centro da
reorganização do desenvolvimento cientíco e tecnológico brasileiro,
tomando-a como condição essencial para a obtenção dos níveis de com-
petitividade considerados pelos gestores como exigência para a inserção
do país na ordem econômica mundial. Um dos elementos centrais dessas
políticas é a avaliação.1
Ao longo do século XX gerou-se um padrão único, passível de ser uti-
lizado internacionalmente, para a avaliação da qualidade cientíca. Nesse
processo não se consideram as diferenças na organização da ciência, nos
sistemas de comunicação e no comportamento e condições de atuação
dos cientistas das diferentes áreas do conhecimento e de diferentes países
(Cueto, 1989; Davyt; Velho, 2000). A partir do processo de construção
das bases de dados internacionais, separam-se, por um lado, a literatura
mainstream, ou seja, aquelas publicações que passam a ser consideradas os
canais mais importantes de comunicação cientíca internacional (Gareld,
1983) e que sintetizam o padrão de excelência; e, por outro lado, a peri-
feria cientíca, ou seja, uma ciência que não apresenta padrão e prestígio
internacionais e que, portanto, é vista como não excelente.
Os indicadores bibliométricos partem da suposição mertoniana de
que a meta principal da ciência é o avanço de um tipo de conhecimento
1 Esta parte do capítulo utiliza o artigo “Avaliação e gestão de ciência e tecnologia: Estado e
coletividade cientíca” (Baumgarten, 2004), que pode ser consultado para mais elementos
teóricos, metodológicos e históricos sobre a avaliação e seus fundamentos. Ver, também,
Baumgarten (2008).
21
universal e desinteressado, que, por sua vez, é medido pela excelência.
Daí a importância da avaliação e, também, ser esta vista como um ins-
trumento para a formulação de políticas. Para compreender o signicado
dessa ideia de excelência, é necessário retomar o conceito de autonomia
de Merton, para quem o objetivo da ciência é “a extensão do conheci-
mento certicado” (1942, p. 270). A partir dos pressupostos dessa linha
de pensamento, é considerado como periférico o cientista que dirige suas
pesquisas para outros objetivos como, por exemplo, a solução de proble-
mas práticos. Lea Velho (1994) chama atenção para o fato de que, embora
o m imediato da atividade cientíca seja, indiscutivelmente, a produção
de novos conhecimentos, isso não pode ser considerado a única meta da
ciência, pois a solução de problemas práticos, a educação de novos cientis-
tas, a transmissão de uma perspectiva cientíca à população de um país, a
educação de especialistas em diversos campos, a garantia da autonomia de
um país em campos, setores ou atividades especícas, são, também, metas
da atividade cientíca.
Além disso, a noção de uma dinâmica própria e de uma lógica inter-
na especial, intrínsecas à ciência e independentes da sociedade, tem sido
questionada no âmbito da abordagem dos estudos da ciência, tecnolo-
gia e sociedade (CTS) como nos apontam autores como Knorr-Cetina e
Mulkay (1983), Latour e Woolgar (1997) e Latour (2011).
A outra suposição, também fundada em Merton (1974), é de que o
produto da ciência se reete totalmente nos instrumentos escritos formais
dos cientistas, especialmente em revistas. Assim, as investigações produ-
zem novos conhecimentos, tornados conhecidos por meio de publicações
cuja função é incentivar a produção cientíca e obter reconhecimento da
coletividade, compartilhando resultados (Velho, 1994). Ambas as supo-
sições têm como fundamento uma perspectiva positivista sobre o conhe-
cimento cientíco (Velho, 1994) que o desvincula do momento histórico
em que é produzido e das necessidades e interesses concretos que subja-
zem à sua produção, o que leva a pensar sobre a adequação da ideia de
excelência (em abstrato) como elemento central e norteador da avaliação
de CTI e, mesmo, de formulação e condução de políticas, notadamente
nos países periféricos.
Pode-se armar que a obtenção de uma pesquisa básica com exce-
lentes níveis de qualidade (e é inegável que apenas uma ciência de boa
qualidade pode encontrar aplicação) não garante, por si só, inovação eco-
nômica ou social, pois a transformação do produto da investigação em
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inovações nesses campos depende de fatores socioeconômicos e políticos
que se encontram fora do processo de investigação (Velho, 1994; Porter,
1990; Maciel, 2001). Por outro lado, altos níveis de concentração da base
cientíca e da produção de conhecimento e pequena massa de pesquisado-
res dicultam a produção, acumulação e distribuição do conhecimento,
sem o que não há inovação.
As transformações que acompanham as novas formas de produção da
vida material e do próprio conhecimento (Gibbons et al., 1994; Castells,
2000) dependem de capacidade de inovação tecnológica e social, tanto em
termos de país quanto de regiões, localidades (Figueiredo, 1989; Maciel,
2001), além de um ambiente institucional e cultural e de acesso a recur-
sos materiais. Nesse sentido, a ampliação de possibilidades de produção e
de disseminação do conhecimento cientíco e a preservação de seu locus
privilegiado – a universidade e os institutos de pesquisa – são ações estra-
tégicas, não só para a estrutura cientíca e tecnológica e para a economia
de um determinado país, mas também para o funcionamento do próprio
Estado e da sociedade.
A histórica vinculação entre a ideia mertoniana de autonomia da ci-
ência e o conceito de comunidade cientíca,2 bem como os limites desse
conceito para analisar as relações entre os cientistas e desses com a socieda-
de e o mercado no chamado “novo modo de produção de conhecimento
(Gibbons et al., 1994),3 sugerem a importância de buscar outro conceito
para expressar essas relações, posto que, nesse “novo modo”, o contexto
que direciona e impulsiona o desenvolvimento cientíco e tecnológico
é caracterizado por mercadorização e comercialização do conhecimento,
competitividade e diversicação dos locais de pesquisa. Por sua vez, o pro-
cesso de produção do conhecimento caracteriza-se, cada vez mais, pela
heterogeneidade institucional e transdisciplinaridade, tendo como ponto
de partida, além dos interesses cognitivos, problemas práticos, ou de de-
2 A visão da ciência como autônoma, regida por uma dinâmica própria, independente da so-
ciedade em que se desenvolve, e dos cientistas como uma comunidade cujo objetivo é a busca
desinteressada de novos conhecimentos está na raiz do conceito de excelência que vem sendo
empregado no Brasil, orientando também as propostas de avaliação em CTI, como se verá re-
sumidamente adiante.
3 Em 1994, Gibbons e colaboradores publicaram o livro e new production of knowledge: the
dynamics of science and research in contemporary societies, que aponta mudanças importantes na
forma de produzir conhecimentos e nos próprios conhecimentos produzidos, acompanhando
mudanças no contexto social.
23
mandas econômicas ou sociais. Os pesquisadores são atores, assim como
os empresários, a mídia, ONGs, entre outros, que se articulam na produ-
ção de fatos cientícos e artefatos tecnológicos. E, além das regras acadê-
micas, o pesquisador deve seguir outras, como, por exemplo, o preço de
mercado (Sobral, 1997, 2001; Barros, 2001). Essas características tornam
difícil a utilização do conceito de comunidade cientíca e a perspectiva da
autonomia da ciência relativamente ao contexto social.
Entre as diversas alternativas conceituais4 à ideia de comunidade cien-
tíca que têm sido propostas para a análise das relações entre cientistas e
desses com a sociedade, foi escolhida, portanto, a de coletividades cientí-
cas (Yahiel, 1975), que se baseia na análise das inter-relações sociais, in-
cluídos os diversos componentes existentes na estrutura social investigada.
A formação e o desenvolvimento da coletividade cientíca no Brasil
sofreram forte inuência das opções do Estado nas políticas de CTI, nota-
damente da escolha, feita pelo Estado, de buscar legitimidade na coletivi-
dade cientíca ao incluí-la nas decisões sobre as destinações do fomento,
mantendo-a, entretanto, apartada da decisão sobre o montante de recur-
sos e dependente das verbas das agências. Essa opção contribuiu para que a
coletividade cientíca assumisse uma face predominantemente acadêmica
e buscasse formas de sobrevivência e de crescimento, a partir de uma pro-
gressiva atuação dentro das próprias estruturas do Estado.
As relações entre Estado e cientistas tiveram, sempre, como espa-
ço privilegiado, as agências de fomento como o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), as quais se caracte-
rizam por longa história de interação com a coletividade cientíca através
dos canais de representação desta, que se constituem nessas instituições
– formalmente – segundo critérios embasados na competência técnico-
-cientíca. Dessa forma, planejar e implementar as políticas de ciência e
tecnologia (C&T) vêm sendo atividades compartilhadas pelos próprios
cientistas, ou melhor, por uma parcela desses – aqueles que estão dentro
dos padrões de excelência aceitos. Há que considerar, também, que algu-
mas áreas da ciência, historicamente, são mais inuentes do que outras.
4 Campo cientíco (Bourdieu, 1983); redes sociotécnicas (Latour; Woolgar, 1997); arenas
transepistêmicas (Knorr-Cetina; Mulkay 1983); mundo da ciência (Nunes, 1996), entre ou-
tras. Para um debate sobre o tema ver Baumgarten (2008).
24
Por outro lado, a opção por uma política educacional privatizante (em
termos de ensino superior), aliada à ênfase conferida à pesquisa tecnológi-
ca em termos de destinação de recursos durante a década de 1970, moldou
uma das características fundamentais da pesquisa universitária brasileira:
o nanciamento (primordialmente) com recursos externos à universidade.
Cabe lembrar aqui que um dos problemas acentuados por essa caracterís-
tica foi a seletividade, em termos de regiões e de instituições, de equipes de
pesquisadores e de áreas prioritárias (Sobral; Pinheiro; Dal Rosso, 1987).
Nesse contexto, e a despeito das diculdades oriundas do autorita-
rismo e do planejamento centralizado, a coletividade cientíca brasileira
cresceu e se fortaleceu, buscando as armas políticas adequadas ao momen-
to, fugindo ao enfrentamento e, dessa forma, alcançando avanços na ex-
pansão do setor de CTI. Através de suas sociedades representativas, como
a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), a coletividade cientíca passou a ser um
elemento fundamental para o planejamento e gestão de CTI, atuando di-
retamente nas agências de fomento e, inclusive, no Ministério de Ciência
e Tecnologia (MCT),5 implementando políticas e ações de investigação e
desenvolvendo critérios de avaliação, por meio da participação de pesqui-
sadores em comitês, comissões e conselhos, cujas indicações passaram a ser
feitas mediante consultas às sociedades e associações.
O efeito da presença da coletividade cientíca no setor de CTI, seja
através da ação direta de representantes, seja por pressões exercidas sobre
o governo (no sentido de preservar instituições, obter mais recursos, or-
ganizar o setor), foi inegavelmente benéco. Essa atuação, não obstante,
construiu-se no interior de uma política clientelista, fortemente associada
a ações de grupos de interesses e numa perspectiva excessivamente endó-
gena e fragmentária da realidade (baseada em áreas e disciplinas).
Até o início dos anos 1990, no Brasil, a experiência de acompanha-
mento e avaliação sistemáticos em ciência e tecnologia, com objetivos (ex-
plícitos) de planejamento, foi irregular e bastante pobre. Existiam poucos
instrumentos ecientes para subsidiar uma avaliação mais global do setor
5 O nome dessa pasta foi alterado para Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação pela presi-
dente Dilma Rousse, em 2011. Em 2016, Michel Temer extinguiu o Ministério das Comuni-
cações, criando o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Os
representantes de área são escolhidos a partir de indicações dos programas de pós-graduação, de
associações cientícas e de associações de pós-graduação.
25
de CTI, de maneira a informar o seu planejamento. Não obstante, havia
signicativos processos de avaliação nas agências de fomento, subsidiando
a destinação dos recursos e a gestão de inúmeras atividades do setor.
Considera-se que a conjuntura entre a década de 1990 e o início do
novo século, no Brasil, – em que se alinhavam, por um lado, as questões
decorrentes da crescente importância de CTI nos processos de acumula-
ção, em âmbito internacional, resultando em novos patamares de compe-
titividade; e, por outro lado, os sérios limites aos gastos públicos, impostos
pela crise scal no país e a perspectiva de reforma do Estado – levou à
crescente necessidade de justicação do apoio às atividades de pesquisa e
de instrumentos de legitimação e priorização orçamentária. Esse contexto
e as orientações vindas de organismos internacionais favoreceram uma
atitude crescentemente avaliativa do Estado. As atividades de avaliação fo-
ram, a partir daí e cada vez mais, vistas como instrumentos fundamentais
para a obtenção de um maior controle político da orientação a imprimir-
-se ao progresso cientíco e tecnológico do país.
Visando cumprir o objetivo deste capítulo, de reetir sobre a ava-
liação no que se refere à produção de livros e periódicos, vamos analisar
como essa situação se reetiu na Capes.
Avaliação: Capes e a coletividade cientíca em perspectiva histórica
Na Capes, a coletividade cientíca acadêmica está presente nas co-
missões de área, nas quais apenas os representantes de área6 têm mandato
e “cumprem uma pauta de trabalho regular e sistemático junto à Capes”
(Nicolato, 2000, p. 29). Os consultores não têm mandato, são escolhidos
a cada avaliação.
Os representantes de área têm por tarefa formar as comissões de área
(escolhendo, via de regra, os integrantes das comissões) e coordenar a ava-
liação em suas respectivas áreas, bem como eleger entre si os representantes
(dois) para cada uma das oito grandes áreas (Ciências Exatas e da Terra,
Ciências Biológicas, Engenharias, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias,
Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas e Linguística, Letras e Ar-
tes). Esses representantes passam a integrar uma instância colegiada, o
Conselho Técnico Cientíco (CTC), responsável pela “articulação das ati-
6 Ver Spagnolo e Calhau (2002).
26
vidades dos representantes de área de seus respectivos campos de ação,
intermediação das relações entre tais representantes e o CTC e estabeleci-
mento de elo de ligação entre a comunidade acadêmica e a direção e co-
legiados superiores da Capes” (Nicolato, 2000, p. 29). O CTC subsidia
a Capes no planejamento, coordenação e decisões referentes a todas as
etapas dos processos de avaliação da agência.
A coletividade cientíca tem, ainda, assento no Conselho Superior,
colegiado que delibera sobre a condução geral da agência, tratando de te-
mas tais como as propostas de planos de desenvolvimento da pós-gradua-
ção e de formação de recursos humanos de alto nível, escolha de represen-
tantes de área, programação anual e execução orçamentária, entre outros.
O sistema de avaliação da Capes iniciou em ns da década de 1970, e sua
estruturação decorreu do crescimento acentuado da pós-graduação no
país. Hoje, além da sua atuação como agência de fomento, a Capes é res-
ponsável pela avaliação do Sistema Nacional da Pós-graduação, em âm-
bito nacional, e pela alocação de bolsas aos programas de pós-graduação.
Na origem da avaliação da Capes encontrava-se o objetivo de alocar
mais bolsas aos melhores programas de pós-graduação (um processo sele-
tivo). Sua unidade de análise eram os cursos de mestrado e doutorado do
país. Desde a fase de implantação do sistema, a avaliação ocorria através
do julgamento por pares. A partir da década de 1990, a Capes se conso-
lidou como a principal agência do sistema nacional de pós-graduação.
Em meados da década, o processo de avaliação dos cursos sofreu mo-
dicações, sendo ampliado o leque das áreas, subdividindo-se algumas.
Por outro lado, os resultados de avaliação, que indicavam crescimento
dos conceitos A, levaram a debates entre agência e consultores, visando
estabelecer critérios mais rígidos (política mais seletiva) para a atribuição
do grau máximo.
No terço nal da década foi elaborado pela Capes um documento
que apresentava um diagnóstico do modelo a ser superado e propunha
uma política de desenvolvimento da pós-graduação voltada a uma maior
inserção no contexto mundial de produção do conhecimento cientíco
(Capes, 1998). As alterações propostas para o sistema de avaliação foram
feitas, gerando um novo modelo que passou a avaliar os programas de
pós-graduação e não mais os cursos por eles oferecidos. Como referência
para avaliação, passaram a ser adotados os padrões internacionais de qua-
lidade das respectivas áreas do conhecimento, estabelecendo-se, com isso,
27
o princípio de revisão periódica dos parâmetros do processo de avaliação,
visando ajustá-los aos contínuos avanços do conhecimento em cada área.
As avaliações gerais passaram a ser feitas a cada triênio e foi adotada uma
escala de notas de 1 a 7. As notas 6 e 7 passaram a ser exclusivas para pro-
gramas com doutorado e com nível de excelência internacional; a nota 5 é
a nota máxima admitida para programas que não oferecem doutorado; e
a nota 3 representa o padrão mínimo de qualidade aceito para a validação
dos diplomas pelo Ministério de Educação (Nicolato, 2000).
A ênfase na adoção de padrões internacionais de qualidade como
parâmetro para avaliação dos programas (com base em uma perspectiva
baseada na produtividade, visando competitividade), aliada a uma cres-
cente utilização de indicadores quantitativos e de critérios padronizados,
parece, entretanto, ter vindo em prejuízo de algumas áreas (Humanas e
Sociais aplicadas, Saúde), regiões (Norte, partes da Região Sul, partes do
Nordeste) e instituições (universidades e institutos de pesquisa menos
consolidados).
Algumas questões levantadas por ex-dirigentes da agência e por
membros da coletividade cientíca nacional e internacional corroboram
as armativas acima. Um dos problemas mais evidentes identicado é a
hegemonia de algumas áreas (e da perspectiva disciplinar) na denição de
critérios e de níveis de excelência. Na alteração que foi efetuada a partir
da avaliação de 1998, os critérios para medir qualidade (por exemplo,
para selecionar os periódicos) foram redenidos pela grande área e parte
signicativa ou a totalidade da produção de pesquisadores de áreas ou su-
báreas não hegemônicas cou de fora, pois não se adequava aos critérios
assumidos.
Outro problema importante, apontado até mesmo por avaliadores
internacionais7 além dos próprios programas de pós-graduação, diz res-
peito ao critério de publicação internacional em revistas reconhecidas,
que se torna problemático quando generalizado. Segundo alguns avalia-
dores: “a manifesta preocupação de aproximação às exigências de pro-
gramas internacionais consolidados deve ser vista como uma meta, sem
prejuízo das particularidades do ensino superior brasileiro e do estado de
desenvolvimento em que este se encontra” (Spagnolo; Calhau, 2002, p. 29).
E, ainda,
7 Ver Spagnolo e Calhau (2002).
28
utilizar os mesmos critérios para todas as subáreas pode causar uma
série de problemas, pois há diferenças objetivas entre elas na medida
em que tendem a focar problemas locais ou nacionais mais do que
internacionais. Publicar tais resultados em revistas internacionais pode
ser muito difícil. Nesse sentido as comissões deveriam ter um pouco
mais de exibilidade (p. 20).
De acordo com Loyola (2002), esse modelo incorporado pela Capes
tem origem no modelo utilizado pelos pesquisadores do CNPq que, por
sua vez, se inspira na área das Ciências Exatas. As características especícas
da área das Ciências Exatas permitem um alto nível de internacionalização
em sua produção cientíca, caso semelhante ao de áreas biológicas e bio-
médicas. Outras áreas como as Humanas e Sociais aplicadas, entretanto,
são mais voltadas para questões nacionais e locais ou, mesmo, encontram
mais diculdade de publicar fora.
Ao lado disso haveria, também, o risco de uma postura centrada
“numa visão tecnológica de ciência”, que vem se armando como domi-
nante e pode levar a uma drástica redução do investimento na formação de
pessoal em um sentido humanista e no recrudescimento ou radicalização
de uma perspectiva tecnológica e produtivista que acabe levando ao des-
monte das agências e, mesmo, das universidades (Loyola, 2002).
Outrossim, se o sistema de mérito vem possibilitando manter o alto
nível de agências como a Capes e de seu sistema de avaliação, esse é tam-
bém um sistema perverso, tipo “bola de neve”, no qual quem mais tem
mais leva. Daí a necessidade do estabelecimento de políticas compensató-
rias e, poder-se-ia agregar, de um planejamento a partir de uma perspecti-
va menos parcializada.
Outro problema bastante discutido é a crescente quanticação. Para
Castro (2002), a avaliação da ciência é qualitativa e, ao avaliar pela média,
corre-se o risco de mediocrizar. Há diversas manifestações de avaliadores
internacionais com relação ao problema da excessiva quanticação e da
grande quantidade de dados que não necessariamente servem para a ava-
liação. Observam, ainda, que deveria haver coletas diferenciadas e não um
conjunto universal de dados para todas as especialidades, argumentando
que solicitar informações padronizadas a todas as áreas é supor uma igual-
dade que não existe (Spagnolo; Calhau, 2002, p. 23-27).
29
Os esforços no sentido de desenvolver e aplicar sistemas quantitativos
para a avaliação em ciência, visando obter subsídios para o planejamento
e a gestão de C&T, têm assumido importância crescente nos países perifé-
ricos (Velho, 1992). Um dos mecanismos mais utilizados atualmente para
atribuir excelência às pesquisas é a indexação das revistas em bases de da-
dos internacionais, tais como Scopus (da Elsevier), Web of Science (WoS
– da Clarivate Analytics) e Directory of Open Access Journals (DOAJ).
Cumpre destacar que a demanda crescente por elaboração de meca-
nismos que acompanhem e avaliem o crescimento expressivo da produção
cientíca de qualidade no Brasil tem estimulado instituições brasileiras
a desenvolverem bases de dados e de indexação que geram informações
e permitem construir indicadores para a produção cientíca brasileira.
Entre as diversas iniciativas desenvolvidas nesse sentido, encontram-se a
Scientic Electronic Library Online (SciELO), o Diretório dos Grupos de
Pesquisa do CNPq e a base Qualis (Souza; Paula, 2002).
A base de dados Qualis,8 tema muito debatido na avaliação da Capes,
é um sistema de classicação de periódicos e livros, integrado ao Sistema
de Avaliação dos Programas de Pós-graduação através da Plataforma Su-
cupira. Seu objetivo original era permitir a composição de indicadores de
qualidade da produção dos programas de pós-graduação, a serem utiliza-
dos na avaliação desse nível de ensino. A base Qualis foi implantada em
1998, estando, desde então, em processo de construção (Capes, 2003).
Foi criada também uma base Qualis especíca para livros. Presentemente
a Qualis está passando por uma reformulação substantiva, a ser abordada
mais adiante.
Diversas críticas têm sido dirigidas à avaliação da Capes e, especi-
camente, à base Qualis, não só pelos programas avaliados, como também
por outros integrantes da coletividade cientíca. Os principais questiona-
mentos referem-se aos critérios utilizados na classicação dos periódicos
e ao problema da inserção internacional e da relação periódicos nacionais
versus internacionais. Quanto aos critérios, esses são vistos como pouco
claros, bastante subjetivos e com variação muito frequente, tanto no âm-
8 A base Qualis periódicos é composta, exclusivamente, pelos títulos dos periódicos utilizados
pelos programas de pós-graduação para a divulgação de sua produção docente e discente e tem
como fonte primária de informação os relatórios dos programas enviados para a Capes.
30
bito de uma mesma área (quando se alteram as comissões) quanto entre
as áreas. No que se refere à questão da inserção internacional, as críticas
dirigem-se à importância exagerada que estaria sendo atribuída à publi-
cação em periódicos internacionais, apontam a existência de conitos na
interpretação do que é artigo internacional e a necessidade de serem con-
sideradas as condições especícas de cada área (Souza; Paula, 2002; Capes,
2003).
Atualmente, há uma nova mudança: a imposição de um único siste-
ma de avaliação de programas, acompanhado pelos novos indicadores do
chamado Qualis Referência – alteração que vem sendo implementada na
base Qualis e que não resolve as críticas apontadas, mas sim cria novos
entraves a uma avaliação considerada paritária entre as áreas, pois qualica
a produção cientíca brasileira utilizando indicadores de citação externos,
sem levar em consideração as especicidades de cada área, e com uma
baixa participação das áreas na discussão e implementação das mudanças.
O fato de que cada área do campo cientíco e tecnológico tem suas par-
ticularidades, propósitos, meios de publicação, velocidade de produção e
aceitação do conhecimento produzido é ignorado para possibilitar uma
padronização com critérios que são adequados apenas a algumas das áreas,
as chamadas ciências “duras” (Manifesto, 2019, p. ii).
A referência para o Qualis é o Web of Sciences da Clarivates (Fator
de Impacto-FI)9 e o CiteScore da Scopus/Elsevier (Relx Group), empre-
sas comerciais, que são fechadas ao público geral. Essas empresas multi-
nacionais não têm interesse em reconhecer adequadamente revistas que
não sejam de sua propriedade ou com as quais não possam auferir lucros.
Outra característica da nova classicação é a priorização do idioma inglês
em detrimento do português, pelo inadequado entendimento de que in-
ternacionalizar é publicar em inglês. Na grande área de humanidades é
importante a publicação em português e espanhol, pois a produção dessa
área é principalmente lida e aceita nos países do Sul que são o objeto de
investigação principal.
9 “Utilizado contra o critério do próprio criador (Eugene Gareld) para medir a qualidade das
revistas mediante suas citações. A medida é tendenciosa, pois reconhece apenas artigos de re-
vistas que estão dentro da base de dados da Web of Science e não representa todos os campos
da ciência igualmente. Tanto o FI, quanto o CiteScore são indicadores pensados para classicar
as revistas internamente nas plataformas não em sistemas de avaliação de revistas em geral”
(Manifesto, 2019, p. ii).
31
Publicar em português e em espanhol é importante não só porque os
leitores do Brasil e da América Latina entendem esses idiomas, mas tam-
bém por causa das raízes culturais e linguísticas. É claro que publicar em
um idioma que tem alcance mundial (o inglês) permite levar a produção
cientíca latino-americana para Europa, América do Norte e, também,
para África e Ásia, regiões que, estando ao Sul, partilham algumas das espe-
cicidades da região (Baumgarten, 2016). Pode-se também, armar que,
por outro lado, entre os principais problemas na tendência de inter-
nacionalização via padronização no idioma inglês estão: 1) o risco de
aprofundar a elitização da ciência, pois a grande maioria de estudantes
e mesmo de pesquisadores no Brasil e América Latina não domina esse
idioma e, portanto, terá dicultado o seu acesso ao conhecimento pro-
duzido e difundido nessa língua; 2) o risco de aprofundar a dominação
cultural pela consolidação do idioma inglês como a “língua da ciência”.
Isso aumenta o risco da “assimilação” que descaracteriza e acaba com
culturas e conhecimentos locais (epistemicídio). O Sul produz teoria a
partir de sua própria perspectiva e especicidades, e a obrigatoriedade
de vertê-la para o inglês para que seja reconhecida internacionalmente
desrespeita e discrimina as culturas não anglo-saxônicas. A isso se po-
deria chamar racismo cultural (Baumgarten, 2016, p. 153).
Uma importante questão levantada pelo Manifesto sobre o novo Qualis
2020, publicado em Encontros Bibli (Manifesto, 2019), é que, ao privile-
giar as revistas das editoras comerciais, classicando-as no primeiro extrato
do novo Qualis, os gestores ignoram o modelo brasileiro de comunicação
cientíca que é exemplar em termos mundiais para periódicos em Acesso
Aberto. Diferente de outros países, o acesso aberto no Brasil não envolve
custos para a população e nem para a publicação, valorizando a academia
(notadamente universidades públicas) que edita e publica os periódicos
cientícos. Essa política de avaliação também desvaloriza canais de circu-
lação de informação que representam pesquisadores brasileiros, deixando
de inserir indicadores de qualidade especícos das áreas ou regiões, como
Latindex, Redalyc ou SciELO (Manifesto, 2019).
As políticas formuladas e implementadas no setor de CTI não fo-
ram na direção de resolver as questões ligadas às disparidades regionais ou
os graves problemas relacionados à exclusão social. Ao contrário, pode-se
armar que a tendência de copiar “modelos” e aplicar políticas e estraté-
32
gias de análise e de ação moldados na realidade dos países centrais (Maciel,
2002; Baumgarten, 2008) levou ao domínio de uma perspectiva produti-
vista nas direções dos órgãos de CTI, o que – aliado à posição autonomista
e centrada em uma certa miticação da ideia de excelência por parte de
parcela da coletividade cientíca acadêmica que participa da gestão do
setor – acabou resultando em políticas e ações que tendem a agravar as
distorções da base técnico-cientíca brasileira, reforçando a oligopoliza-
ção de oportunidades e recursos por parte de alguns grupos e instituições.
As atuais políticas têm se focado em reduzir progressivamente o orça-
mento do setor de ciência e tecnologia, ao mesmo tempo em que favore-
cem uma parcela da coletividade cientíca em detrimento de outras, con-
centrando recursos em tecnologia e inovação com tendência a priorizar as
áreas de pesquisa aplicada e tecnologia em detrimento das ciências básicas
e das Humanidades e Sociais Aplicadas.10 Ao mesmo tempo, a circulação
das Ciências Humanas e Sociais produzidas no país (por meio de perió-
dicos e livros) vem sendo restringida por políticas que valorizam a publi-
cação em periódicos de editoras comerciais (Sage, Elsevier, entre outras),
classicando-as no primeiro estrato do novo Qualis. Esse tipo de periódico
não tem como foco os trabalhos relacionados com questões que teorizam
ou aplicam técnicas em estudos mais direcionados à América Latina.
Até aqui, procuramos demonstrar como o modelo excelentista/pro-
dutivista, adotado historicamente para a gestão do setor de CTI, tem le-
vado a diversos problemas para o desenvolvimento de regiões, equipes e,
mesmo, áreas do conhecimento (o que se agravou a partir de 2019). A
seguir, debateremos o papel do livro na circulação e divulgação do conhe-
cimento produzido no país, sua importância para as Ciências Humanas e
a situação comparativa dos periódicos.
O livro e os sistemas de fomento e produção acadêmica
A leitura e o acesso ao livro são essenciais à formação das pessoas e,
como tal, conguram um direito humano fundamental (Candido, 2004).
Entretanto, quando olhamos para as políticas públicas brasileiras nesse
campo, vemos que essas são bastante tímidas, assim como os processos de
formação de leitores.
10 Ver portaria MCTI nº 1.122 de 19 de março de 2020.
33
A história da leitura não é uma história fácil, especialmente em países
com décit educacional e ausência de políticas. Tornar a prática da leitura
mais acessível a todos foi uma luta dura, como nos dizem Horellou-Lafarge
e Segré (2010). No Brasil ainda estamos longe de tornar a prática da leitura
acessível, mesmo aos estudantes de âmbito superior, pois o livro é caro e
não há políticas adequadas que implementem a formação de leitores desde
a infância e que rompam com a concentração de capital cultural das elites
intelectuais.
Alguns indicadores, que surgem de distintos estudos na área, demons-
tram a fragilidade das políticas de incentivo ao livro e à leitura e seus
efeitos no campo editorial e no mercado editorial. De acordo com dados
da pesquisa Nielsen Book, sobre a performance do mercado editorial, os
livros CTP (Cientícos, Técnicos e Prossionais) têm apresentado queda
no número de exemplares vendidos no mercado desde 2014.11
Segundo a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, o número de leitores
diminuiu de 2015 a 2019 em 4,6 milhões.12 Nos últimos anos, também
enfrentamos uma crise do mercado editorial, o que, para os atores envol-
vidos, seria responsabilidade, principalmente, da concentração de editoras
e livrarias em grandes conglomerados, bem como da entrada da Amazon
no mercado brasileiro (Nóbrega, 2020).
Para os jovens estudantes de graduação em ciências humanas, o livro
ainda compõe uma fatia signicativa das leituras obrigatórias. Os progra-
mas analíticos das disciplinas dos cursos de graduação em Ciências Sociais
no Brasil apresentam uma forte presença do livro, embora muitas vezes se
trate de uma leitura fragmentada, algo já apontado como recorrente por
Horellou-Lafarge e Segré (2010). O fenômeno de fotocopiar fragmentos
de obras é uma realidade cotidiana nos cursos de graduação. No contexto
da pandemia, podemos perceber, enquanto professores de universidades
públicas e privadas, a nossa dependência do uso de fotocopiadoras – à re-
velia da lei brasileira de direitos autorais, na sua aplicação para a educação,
que é apontada como sendo das mais restritivas em limitações e exceções
da região, e em descompasso com o avanço das tecnologias de informação
e comunicação (Valente; Pavarin; Luciano, 2019).
11 Ver https://snel.org.br/wp/wp-content/uploads/2020/07/SERIE_HISTORICA_PCR2019_
Final.pdf. Acesso em 20 out. 2020.
12 Retratos da leitura no Brasil. 5ª edição (2020). Disponível em: http://plataforma.prolivro.org.
br/retratos.php. Acesso em 20 out. 2020.
34
Desde o século XIX conhecemos a expansão dos suportes em maga-
zines e periódicos. Ainda assim, o livro foi, até o início do século XXI, o
principal veículo da leitura. Hoje, o livro perdeu a supremacia enquanto
suporte (Horellou-Lafarge; Segré, 2010). E mesmo que incluamos o li-
vro digital, esta realidade não muda substantivamente, especialmente no
Brasil. Outros suportes audiovisuais competem diretamente com o livro.
No meio acadêmico são os periódicos. À alta restrição da lei brasileira e às
incidentes políticas locais de incentivo do livro e da leitura, soma-se a falta
de uma política de valorização da produção intelectual, tendendo a qua-
licar os artigos cientícos como os veículos adequados para a divulgação
de estudos, como já vimos.
De qualquer forma, o livro é um artefato cultural de importância cen-
tral, um patrimônio de uma coletividade cientíca. O livro é um artefato
de comunicação acadêmica que precisa ser visto como a validação de uma
coletividade, seja ela acadêmica ou cultural.
O livro tem papel fundamental na institucionalização das áreas de
conhecimento e linhas de pesquisa, atuando como ponto de passagem
obrigatório da produção do conhecimento. Um exemplo pertinente é o da
Sociologia. A importância do livro Regras do método sociológico, de Emile
Durkheim, para além da sistematização do conhecimento sociológico, é
a formação de um domínio com identidade própria. Regras foi escrito
para “garantir um campo de coesão disciplinar” (Pais, 1996, p. 88). A
sistematização e consolidação de domínios ou subdomínios exclusivos nas
ciências sociais é cheia de exemplos em que uma obra de fôlego tem papel
ativo como manual normativo e objeto cognitivo central.
A institucionalização de novas ciências ou a consolidação de progra-
mas de pesquisa depende de um conjunto organizado de ações como orga-
nização de eventos e de revistas, organização de cursos nos diversos níveis
de formação, criação de linhas de pesquisa em programas de pós-gradua-
ção, e incremento sistemático de publicações de dissertações e teses nessas
linhas, organização de associações cientícas e publicação de textos em
eventos. Alguns livros fazem parte desse conjunto de elementos hetero-
gêneos que são amarrados, alinhados e que sustentam um fato cientíco
– muitas vezes, o livro é propriamente um ponto de passagem obrigatório
(Latour, 2011).
35
A publicação de livros no Brasil – sejam eles a sistematização de uma
nova abordagem para temas antigos, a apresentação de novos temas e hi-
póteses de trabalho ou a apresentação de um conjunto de dados robustos,
resultado de pesquisa empírica – é sistematicamente negligenciada em
uma política de avaliação que sobrevaloriza o artigo cientíco.
Podemos exemplicar com o clássico A estrutura das revoluções cientí-
cas, de omas Khun (2017). Ian Hacking, em ensaio escrito por ocasião
do quinquagésimo aniversário daquela obra, arma que ela mudou para
sempre a imagem da ciência, pois Khun estava empenhado em “mudar
nosso entendimento das ciências, isto é, das atividades que tornaram nossa
espécie apta – para o bem ou para o mal – a dominar o planeta” (Hacking
apud Khun, 2017, p. 11).
O livro também é parte constitutiva da formação das novas gerações
dentro de linhas ou abordagens. Utilizando mais uma vez a Sociologia
como exemplo, como poderíamos pensar a trajetória de Florestan Fer-
nandes ou de outros intelectuais de sua geração sem o livro? Em entrevista
concedida em 1975 para a Revista Transformação, Florestan ilustra o lugar
do livro e da biblioteca, em destaque na sua formação.
Nós não tínhamos um ponto de partida para começarmos com aquele
tipo de universidade. Aquela universidade foi implantada em um meio
mais ou menos agreste, exigindo uma base e uma tradição que nós não
tínhamos; e a consequência foi que todos tínhamos que improvisar,
uns mais, outros menos. É claro que pessoas que vinham de famílias
de intelectuais e nas quais o trato com o livro era mais frequente do
que pessoas que vinham de famílias pobres, provavelmente tiveram
menos diculdade nesta transição. Essa não era minha situação pesso-
al. Eu vinha de uma família pobre e o trato com o livro foi adquirido
às minhas próprias custas. Eu não tinha ligação com ninguém que
pudesse, em termos de situação de família, me ajudar e servir de apoio.
Só para vocês terem uma ideia dessa contradição, vou dar um exemplo.
Terminado meu curso na Faculdade de Filosoa, a minha crise — não
a de crescimento psicológico — era uma crise moral. Porque eu me
perguntava: o que é a Sociologia?; o que são as Ciências Sociais?; posso
ser um sociólogo?; sei o suciente para ser um sociólogo? Assim, tive
de armar um programa de trabalho que envolvia no mínimo 18 horas,
e às vezes mais, de leituras intensas, todo dia. (Fernandes, 2011, p. 26).
36
O livro tem papel signicativo nos programas analíticos das discipli-
nas na graduação e na pós-graduação nas Ciências Sociais, realidade que
tende a mudar lentamente com a ênfase na publicação de artigos em re-
vistas “qualicadas”. Nas humanidades, em muitas trajetórias acadêmicas,
o livro está presente também como objeto de consagração. Mas o que isto
tem signicado na produção intelectual da pós-graduação?
Como vimos, os sistemas de fomento e avaliação da produção cientí-
ca e da pós-graduação brasileira – inuenciados por um modelo de ciên-
cia hegemônico, baseado na produtividade e competitividade no âmbito
global – dão pouca atenção e peso para a publicação em livros resultantes
da pesquisa cientíca brasileira, afetando sobremaneira o modo de fazer
a divulgação do conhecimento. Temos armado que as políticas recentes
de CTI têm dado destaque à inovação tecnológica e à internacionalização,
através da expansão do nanciamento ou do peso dessas dimensões na
avaliação da pós-graduação e dos pesquisadores.
Destacam-se no mercado competitivo da publicação os grupos edi-
toriais internacionais, que reúnem editoras de periódicos lucrativos e, ao
mesmo tempo, empresas de consultoria em pesquisa, tais como Elsevier
e Clarivate. Assim, um número reduzido de empresas mantém uma alta
lucratividade no segmento, produzindo orientações de como a produção
pode ser mais qualicada e concentrando os artigos, sob condições desfa-
voráveis aos produtores/autores. Para alguns autores, a indústria dos pe-
riódicos cientícos (e, também, a indústria do copyright), embora tenha
como objetivo a produção e circulação de novos conhecimentos, sofreu
um processo de concentração nas últimas décadas, passando a atuar como
oligopólio, acumulando altas taxas de lucro em poucas e já consolidadas
empresas, e não estimulando a competitividade (Ramello, 2010; Camargo
Junior, 2012). Como reação aos lucros exorbitantes13 e ao alto custo do
acesso às revistas, que limita a difusão do conhecimento, várias universi-
dades vêm rompendo seus contratos de assinaturas com a Elsevier, desde
2012, quando foi iniciada uma petição de boicote à editora.14 O modelo
de funcionamento da indústria do copyright também impacta a circula-
13 Segundo matéria do e Guardian de 27 de junho de 2017, seria um rendimento anual supe-
rior a oito bilhões de dólares. No ano de 2010, a margem de lucro das publicações cientícas
da Elsevier superaram as da Apple, Google e Amazon. Consultar https://www.theguardian.
com/science/2017/jun/27/protable-business-scientic-publishing-bad-for-science. Acesso em
30 dez. 2020.
14 e real cost of knowledge. In: e Atlantic, 04 de março de 2019. Consultar: https://www.
theatlantic.com/science/archive/2019/03/uc-elsevier-publisher/583909/. Acesso em 30 dez. 2020.
37
ção do conhecimento em livros, embora de maneira menos decisiva para
produção de novos conhecimentos, já que os artigos circulam, de maneira
mais rápida, métodos e resultados de pesquisa a serem consultados por
pesquisadores da mesma área de conhecimento.
Outro aspecto a ser destacado no prestígio dos artigos em relação aos
livros é que a pressão pela publicação dos discentes faz com que esses op-
tem por publicar partes de seus trabalhos, muitas vezes de forma precoce,
em inúmeros artigos. Cada vez mais, as teses assumem um modelo de
conjunto de artigos, com vistas a facilitar este processo. Assim, os livros,
quando editados, tendem a reunir coletâneas de artigos já publicados em
outros veículos.
O papel secundário do livro na engrenagem da divulgação do conhe-
cimento é um dos efeitos das lutas internas ao campo cientíco entre as
áreas de conhecimento, na disputa por prestígio e recursos, que prejudica,
sobretudo, as áreas de ciências humanas, sociais, sociais aplicadas, letras e
artes no Brasil – situação agravada pelo aprofundamento da distribuição
de recursos a partir da denição de áreas estratégicas pelo Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.15
Nos últimos anos, o Brasil vem sofrendo crescente instabilidade das
políticas macroestruturais, em termos de diretrizes e dotação orçamentá-
ria, com redução substantiva nos investimentos em CTI e em educação
por parte do governo federal. A orientação atual de busca de fomentos
privados para a pesquisa cientíca, nas instituições públicas, faz com que
pessoal e tempo sejam investidos na busca das parcerias com perl mais
aplicado do conhecimento, relegando a produção de segunda ordem às
áreas de ciência básica. Inovação tecnológica tem sido um eixo norteador
das políticas de CTI.
As vantagens comparativas de algumas áreas de pesquisa em detri-
mento de outras são dadas, portanto, pelo direcionamento estratégico da
política, priorizando inovação tecnológica – pesquisa aplicada e interna-
cionalização –, mas também pelo acirramento da disputa em torno dos
recursos, a cada ano mais restritos, devido ao teto orçamentário dos gastos
(emenda constitucional nº 95).
Como vimos, a avaliação da pós-graduação no Brasil dá um alto peso
ao número de publicações qualicadas de artigos cientícos. As críticas
15 A Portaria MCTIC n° 1.122, de 19.03.2020, torna prioritários os projetos de pesquisa das
seguintes áreas: Estratégicas; Habilitadoras; de Produção; para Desenvolvimento Sustentável e
para Qualidade de Vida.
38
ao quantitativismo deste modelo suscitaram estudos para uma revisão do
modelo de avaliação, considerando uma ênfase em dimensões tidas como
qualitativas. O ponto mais polêmico refere-se à classicação de referência
Qualis única para as revistas. Os esforços recentes da Capes têm sido no
sentido de homogeneizar a avaliação entre as áreas. Em que pesem os ar-
gumentos que enfatizam o deslocamento da abordagem quantitativa para
uma avaliação mais qualitativa, há uma tendência deletéria de homogenei-
zação das áreas no que se refere à avaliação dos periódicos.
A classicação Qualis das revistas, embora tenha sido criada para
avaliação dos programas de pós-graduação, tem sido utilizada pela co-
letividade cientíca para outros ns, como a avaliação individual do de-
sempenho cientíco. Alguns atores envolvidos com as mudanças atuais,
e defensores do novo modelo de avaliação, argumentam que na próxima
avaliação quadrienal, em que começa a vigência da indicação de obras
destacadas por pesquisador e pelo programa, tanto a produção qualicada
do pesquisador (em que se deve destacar um produto por ano por docente
permanente) quanto a produção qualicada do programa (em que se deve
destacar cinco a dez das melhores produções do programa) não estão ne-
cessariamente atreladas à métrica do Qualis referência (Capes, 2020). No
entanto, é possível que a importância convencionada dos periódicos Qua-
lis acabe inuenciando o preenchimento do formulário de avaliação pelos
programas. É preciso avaliar as mudanças que esta dimensão “destaque da
produção” terá nos relatórios futuros e se, na prática, não será mantido o
status da classicação das publicações no Qualis referência internamente
à coletividade cientíca, o que provavelmente induzirá os programas a
indicarem apenas publicações dos estratos superiores A1 e A2.
A fusão do Qualis em uma classicação única, aprovada no Conselho
Técnico Cientíco da Capes, teria como principal objetivo o aumento da
comparabilidade entre as áreas e, como uma das principais premissas, a
internacionalização na publicação de artigos e na indexação de periódi-
cos. Haveria dois modelos de referência nas métricas: o dos Colégios de
Vida e Exatas (indicadores internacionais) e do Colégio de Humanidades
(índice H do Scholar).16 Um dos aspectos que a lista única teria subtraído
16 Cf. palestra de Paulo Jorge Parreira dos Santos, coordenador do grupo de trabalho Qualis
Periódicos e Membro do Conselho Técnico Cientíco da Capes. Disponível em: https://youtu.
be/HCcGSMF1-ms Acesso em 30 dez. 2020.
39
é a dimensão avaliativa das áreas, buscando eliminar critérios como per-
tinência e relevância interna para a área, considerada incomparável pelos
defensores do novo modelo. As grandes áreas de Artes e Letras, Ciências
Sociais Aplicadas e Ciências Humanas utilizam, no modelo vigente até o
momento, um ranqueamento baseado na relevância da revista dentro do
campo (Barata, 2016).
Independentemente do modelo mais qualitativo ou mais quantitati-
vo, o processo de avaliação – ao medir a produção de conhecimento uti-
lizando determinados parâmetros (ditos internacionais que, entretanto,
vêm recebendo acirradas críticas em seus países de origem) – contribui
para um modelo de conhecimento cientíco cada vez mais fragmentado,
ultraespecializado e colonizado pelas hierarquias dos rankings euro-ameri-
canos. Segundo Strathern (2000), em sua análise da cultura de auditoria
nas instituições superiores britânicas, os mecanismos que dão visibilida-
de à produtividade dos pesquisadores funcionam como instrumentos de
controle e auditoria, já que exigem o planejamento das ações a partir de
critérios externos de produtividade. Como a autora alerta, nem sempre
publicações de pesquisa reetem os objetivos comuns compartilhados
pela coletividade, independentemente das trajetórias individuais. Em ge-
ral, processos invisíveis que contribuem para a operação de uma organi-
zação são deixados de lado. A auditoria não consegue acompanhar como
realmente se dá a produção do conhecimento.
Estudo de Caballero-Rivero, Santos e Trzesniak (2019, p. 5) já mos-
trava que o nanciamento e o reconhecimento com base em desempenho
acadêmico inuenciam as práticas de publicação. Eles chamam a atenção
para o estímulo da quantidade em detrimento da qualidade, mas também
mostram que a ênfase em sistemas de indexação como fator de impacto
(FI) e Journal Citation Report (JCR) está promovendo uma concentração
de produção em artigos de revistas, inclusive nas ciências humanas (ciên-
cias brandas).
O contexto pelo qual passa a avaliação da produção do conhecimento
cientíco no Brasil, portanto, é fruto de um duplo movimento. Se, de
um lado, há a mimetização de indicadores internacionais e comerciais
para ranquear a qualidade da produção nacional, fruto de orientação da
própria Capes desde a década de 1990 (Baumgarten, 2004), por outro
lado, há uma disputa interna na coletividade de pesquisadores no Brasil,
40
que estabelece hierarquias simultaneamente cognitivas e econômicas na
alocação de recursos e na avaliação da produção do conhecimento.
Também é possível argumentar, como Caballero-Rivero et al. (2019,
p. 24), que basear a avaliação em fator de impacto não estimula pesquisas
voltadas para a solução de problemas sociais e subordina o interesse social
ao interesse das editoras comerciais. Além disso, os fatores de impacto es-
tão diretamente relacionados ao tamanho da base utilizada (Barata, 2016).
Coletividade cientíca, Estado e avaliação
Os argumentos levantados e as análises efetuadas neste capítulo
mostram uma histórica ligação entre a coletividade cientíca e o Estado.
Quando recusamos utilizar o conceito de comunidade cientíca, é pela
imprecisão que contém e por sua incapacidade de compreender e explicar
as relações entre cientistas e sociedade em nossa época. Os cientistas, como
todos os integrantes da sociedade, carregam consigo uma história e forma-
ção especícas, relacionadas ao contexto social em que se inserem e a suas
circunstâncias de vida. São eles, também, uma coletividade heterogênea,
inclusive na capacidade de se articular politicamente e impor prioridades
na denição de políticas e na distribuição de recursos.
Esse grupo social é muito importante para a busca de respostas aos
problemas e necessidades com que nos deparamos, na relação com a na-
tureza que nos circunda e com os demais seres que habitam nosso pla-
neta. Entretanto, os cientistas não são os únicos atores envolvidos nesse
processo, assim como o Estado também não é. Recentemente, podemos
identicar um movimento no Estado no sentido de tolher a participação
dos cientistas na gestão das agências. Esse movimento acompanha outro,
relacionado a uma perspectiva que apresenta o mundo como resultado de
invenção, opinião e manipulação, que não acredita na ciência e em seus
processos e que constrói “verdades” diretamente com base em interesses
econômicos e políticos (fake news).
Assim, quando nos dedicamos a reetir sobre o livro e o periódico
como instrumentos de circulação e divulgação de conhecimentos, tornou-
-se importante reetir também sobre as relações entre aqueles que produ-
zem a ciência e o Estado e sobre como essas relações podem ter repercus-
41
sões signicativas no tipo, qualidade e quantidade de conhecimento que
produzimos e como ele circula na sociedade.
Será que nossa proposição de entender cada objetivo de conhecimen-
to como simultaneamente dotado de natureza e cultura, e também de
aproximar ciências da natureza, ciências da cultura e ciências exatas, re-
duzindo o abismo entre elas, pode se reetir na avaliação da produção
do conhecimento? Perguntamos como defender um modelo de ciência
que prime pela produção de um conhecimento situado e plural, voltado
para os interesses da sociedade brasileira na sua heterogeneidade. Quais
mecanismos de participação democrática podem servir aos objetivos da
produção do conhecimento? Essas questões nos parecem relevantes para
pensar um sistema de fomento e avaliação do conhecimento acadêmico
que, para além de inovação tecnológica, produza e coproduza inovações
sociais, artísticas e culturais.
Sem historicizar e localizar “dispositivos de conhecimento”, tais como
os “índices de citação” e “revisão por pares”, não é possível sua desnatu-
ralização (Marques, 2019). A realidade apresentada parece reeditar, em
outros termos, a guerra das ciências entre o grupo que acredita que há
uma natureza unicada e universal capaz de resolver e denir o mundo
comum, e que por isso pode ser medida por indicadores universais; e um
grupo oposto que defende que ninguém, em especial os cientistas, possui
o direito de simplicar o processo histórico pelo qual o mundo comum se
compõe pouco a pouco (Latour, 2008).
Levando em consideração que políticas podem modular as formas de
produção e de exposição do conhecimento, podemos imaginar um efeito
indireto de censura a determinadas produções ou textos (Horellou-Lafarge;
Segré, 2010), quando estamos diante da fragilidade na condução e na im-
plementação das políticas públicas para o fomento e a avaliação da produ-
ção cientíca no Brasil.
O sistema de avaliação é um fator chave nas tomadas de decisão de pes-
quisadores individuais (o que pesquisar) e de programas de pós-graduação
sobre em que investir seus recursos de pesquisa. Nesse sentido, avaliar não
signica unicamente medir a qualidade e excelência de produtos e ins-
tituições, mas também produzir orientações, nem sempre formalizadas,
sobre que tipo de ciência deve ser feita para sobreviver na competição por
42
recursos. Uma discussão mais ampla do sistema deveria repousar não em
denir qual a métrica mais adequada para medir a excelência da produção,
mas sim em problematizar para que e para quem serve o conhecimento a
ser produzido.
Por outro lado, a reconstrução histórica dos processos de gestão e ava-
liação do setor de CTI mostra que, a despeito do volume sempre baixo
de recursos e de problemas diversos ocasionados por interesses e disputas
dentre os grupos presentes no interior do Estado e os cientistas (com seus
interesses diversos), o sistema de CTI cresceu e se consolidou, notada-
mente nas últimas décadas do século vinte e na primeira década do novo
século, e que esse resultado se deve, em grande medida, ao trabalho efetuado
pelos cientistas dentro das agências de fomento do Estado. O que temos
defendido é que os canais de comunicação entre Estado e sociedade sejam
ampliados, incorporando outras vozes e interesses à arena política para a
tomada de decisões sobre problemas que têm repercussões diretas na vida
das pessoas, tais como aquelas na área de produção e divulgação da ciên-
cia. Ampliar os porta-vozes da sociedade nas estruturas do Estado inclui
inserir e respeitar a participação de não só especialistas no debate sobre as
prioridades da política, mas também segmentos como, produtores, agri-
cultores, usuários, entre outros.
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Fabrício Neves
A periferização da ciência e os elementos
do regime de administração
da irrelevância1
O imaginário corrente nos contextos da prática cientíca assume expli-
citamente uma geopolítica do conhecimento que reforça hierarquizações
a respeito de “boa e má ciência”, “ciência avançada e ciência atrasada”,
“centro e periferia”. Fazer ciência é também instaurar uma ordem hie-
rarquizada, mais ou menos aceita, de procedimentos epistemológicos e
metodológicos que percorrem instituições cientícas pelo globo, na maior
parte das vezes, tomando-os como garantidos. Tal ordem legitima-se le-
gando aos mais distintos espaços de prática cientíca a condição periférica
ou central.
O processo de legitimação de hierarquias na ciência, como argumen-
tarei, sustenta-se na construção prática, rotineira, disciplinada, incenti-
vada, nanciada, que reforça expectativas a respeito de como a ciência
deveria ser e do que ela deveria produzir. A prática, por sua vez, repercute
expectativas hierárquicas, atribuindo-se a condição de centro ou de peri-
feria, o que, necessariamente, traz outras consequências que incidem, por
exemplo, no julgamento de projetos, objetos relevantes, resultados do co-
nhecimento. Trata-se, neste trabalho, de discutir essa autoatribuição, seu
conteúdo e consequências para as práticas cientícas cotidianas.
Em contextos supostamente periféricos, o conhecimento cientí-
co produzido é diminuído a uma condição de inferioridade ante outros
1 Este texto foi apresentado na “Mesa-redonda 2, Internacionalização da ciência: teorias, concei-
tos e prática” do VIII Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Sociedade (VIII ESOCITE.
br). Foi publicado posteriormente na Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35 n. 104, 2020.
48
contextos. A prática cotidiana da ciência, naqueles contextos, é orientada
por valores e procedimentos, conscientes ou não, de subalternização. A isto
dou o nome de periferização, processo cientíco com conteúdo valorativo
e pragmático próprio, cujos elementos constituintes serão neste trabalho
apresentados.
A periferização, para que tenha ecácia, deve tornar-se prática rotineira
nos espaços de produção de ciência. Não necessariamente é consciente, nem
a sua consciência é capaz de direcionar as práticas a outros caminhos, em
decorrência das resistências contextuais cotidianamente enraizadas. Esta di-
culdade de superar tal estado de coisas ocorre devido ao reforço que os pro-
cessos interacionais, políticos, econômicos locais desenvolvem.2 Forma-se,
assim, uma ordem cientíca autodepreciada, de baixa autoestima, periférica
e estável, um regime de administração da irrelevância.
Este ensaio busca elencar alguns elementos do regime de administração
da irrelevância, ordem cientíca de contextos supostamente periféricos da
ciência. Tais elementos foram identicados a partir de pesquisa de campo
em laboratórios e de entrevistas com interlocutores-chave (líderes de pesqui-
sa) de grupos de biotecnologia no Brasil.3 Esses laboratórios apresentavam
performance editorial acima da média mundial, em um período em que o
Brasil gurava entre os países de maior produtividade cientíca, fato recor-
rentemente reconhecido pelos interlocutores da pesquisa. Entre eles havia
inclusive aqueles cujo impacto dos trabalhos (medidos em termos de cita-
ções) se equivalia ao de colegas que trabalhavam em contextos supostamente
centrais indicados (localizados sempre no hemisfério norte). As entrevistas
com esses interlocutores foram selecionadas como representativas do des-
compasso que aqui se pretende mostrar, entre alta performance cientíca e
2 As interações com os colegas em laboratório, nos congressos e bancas, as políticas de ciência
e tecnologia, o fomento empresarial em pesquisa, tudo isso encontra uma existência local que
reforça padrões valorativos e práticas na atividade cientíca.
3 As instituições visitadas foram: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Belo Horizon-
te), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Porto Alegre), Pontifícia Universida-
de Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS, Porto Alegre), Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUC-PR, Curitiba), Embrapa Centro Nacional de Recursos Genéticos e Biotecnologia
da Embrapa (Cenargen, Brasília), Embrapa Agroenergia (Brasília), Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz, Rio de Janeiro), Universidade Federal de Viçosa (UFV, Viçosa, Minas Gerais), Uni-
versidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Juiz de Fora, Minas Gerais), Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE, Recife), Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP, Ouro Preto, Minas
Gerais), e Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF, Campos dos Goytacazes, Rio
de Janeiro).
49
autoatribuição periférica, que condiciona a emergência de um regime de
prática periferizado.4
A justicativa da escolha do campo de biotecnologia relaciona-se com
minha própria experiência de pesquisa de mais de 15 anos na área, convi-
vendo com pesquisadoras e pesquisadores de renome. Justica-se, também,
porque essa área conferiu ao Brasil expressiva notoriedade internacional,
principalmente por pesquisas em agricultura tropical e doenças negligen-
ciadas, legando ao país um papel importante no conjunto das pesquisas
globais na área (Bound, 2008). Foi a partir dessas vivências que passei a
me interrogar: “como, a despeito da notoriedade, depreciam tanto sua pró-
pria ciência?”. Mais do que expor e aprofundar os achados empíricos da
pesquisa, buscarei aqui trazer à luz os valores e os elementos que motivam,
intencionalmente ou não, o processo de periferização. Nesse sentido, trata-
-se de um ensaio que pretende especicar e melhor denir processos de hie-
rarquização na ciência, por meio da dinâmica de subjetivação da diferença
centro/periferia, fundamentando os conceitos de periferização e regimes de
administração da irrelevância.
Este trabalho está dividido em quatro partes, além desta introdução
e da conclusão. Na seção seguinte, discute-se a diferenciação hierárquica
centro/periferia na teoria dos sistemas sociais, buscando, principalmente,
articulá-la com a dinâmica prática dos sistemas de interação. O propósito
consiste em mostrar como um regime de administração da irrelevância se es-
tabiliza e se generaliza mesmo em processos interacionais. A seguir, a discus-
são anterior é relacionada com a abordagem dos estudos sociais em ciência
e tecnologia, ressaltando que esses estudos discutem a ciência por meio de
sua prática contextual, localizada. Esta “contextualidade” da ciência é fun-
damental para se pensar as implicações que a diferenciação hierárquica tem
nos processos cientícos de produção de conhecimento. Em seguida, aden-
4 Faz-se necessária uma nota metodológica. A discussão que aqui proponho é o resultado de
diferentes pesquisas que empreendi nos últimos 15 anos, duas delas nanciadas pelo Conse-
lho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico (CNPq). Basicamente, utilizei dos
mesmos métodos de pesquisa qualitativa, que combinam entrevistas semiestruturadas com
interlocutores-chave (em um total de 63 entrevistas), sistematização do material por meio do
programa de análise de dados QSR-Nvivo, codicação simples e análise de conteúdo. Fiz então
o cruzamento de informações objetivas – relativas ao local, nanciamento, experiência interna-
cional, objeto de pesquisa, local de publicação, bibliograa utilizada e agenda de pesquisa, que
poderiam ser encontradas nos respectivos Currículos na Plataforma Lattes do CNPq – com as
entrevistas. Arquivei também material jornalístico, cujo tema era a ciência nacional, de forma
não sistemática, para ilustrar o argumento e sensibilizar o olhar para a construção conceitual
resultante no artigo em tela.
50
tra-se a dinâmica processual de diferenciação hierárquica, chamada aqui de
contextualização, denindo o que chamamos de processos de periferização e
centralização, substratos práticos dos regimes de administração da irrelevân-
cia e da relevância. Na última parte, chega-se ao cerne do argumento, onde
são apresentados alguns elementos da ordem cientíca de contextos supos-
tamente periféricos de ciência, o regime de administração da irrelevância.
Centro/periferia
A diferença centro/periferia ganhou notoriedade conceitual ao ser abor-
dada em suas dimensões geográca, econômica ou política, como foi praxe
nos enfoques clássicos do problema5 – em geral estruturalistas, como na Co-
missão Econômica para a América Latina (CEPAL) –, teorias da moderni-
zação e da dependência. Essa forma de observar a hierarquia caracterizava-se
pela abordagem macrossociológica, construindo análises sobre a “economia
capitalista global”, “inuência territorial e política”, que assumiam clara-
mente uma heurística baseada em marcadores de intensidade, linha tem-
poral e padrões culturais divergentes. Falava-se em capitalismo avançado
e atrasado, metrópole e colônia, modernidade central e periférica. Usou-se
também tal critério para diferenciar regiões como Ocidente e Oriente, Sul e
Norte globais, indicando conteúdo geográco determinista.6
5 Ver Shils (1992) para uma inuente abordagem e Cueto (1989), visando a uma discussão sobre
o conceito na ciência.
6 É nesse contexto intelectual e político que surgem os estudos pioneiros do assim chamado pen-
samento latino-americano em ciência, tecnologia e sociedade (PLACTS). Tais estudos passaram
por diversas fases, basearam-se nas mais variadas vertentes teóricas e modelos empíricos, o que
diculta sua sistematização no espaço deste artigo. Assim, para os propósitos aqui indicados,
ainda é útil a síntese oferecida por Dagnino, omas e Davyt (1996). Os autores identicaram
a relação desses estudos com os pressupostos analíticos da teoria da dependência, e podemos
armar, portanto, que tais estudos zeram uso abundante da diferença centro/periferia a par-
tir do marco analítico da geopolítica e da economia. Posteriormente, os autores identicaram
uma guinada conceitual em direção ao instrumental heurístico criado em outros contextos não
latino-americanos para o estudo de fenômenos locais. Os assim chamados estudos de ciência,
tecnologia e sociedade (CTS) aplicados à América Latina, segundo os autores, diferenciaram-se
das abordagens “dependentistas” e claramente se diversicaram em várias agendas de pesquisa.
Esse novo marco de estudo, podemos dizer, relacionou-se, a partir da década de 2000, com va-
riadas agendas CTS, sem encontrar um projeto comum que as unicasse, embora, atualmente,
os estudos decoloniais latino-americanos, em suas mais variadas formas (Medina; Marques;
Holmes, 2014) e as discussões sobre tecnologias sociais (Dagnino; Brandão; Novaes, 2004) te-
nham assumido uma parte importante dessa agenda. Ambas as agendas lidam com a questão da
diferença hierárquica centro/periferia, tomando-a em um sentido estrutural e sem, no entanto,
explicitar os pressupostos teóricos envolvidos em sua conceituação.
51
Alguns estudos recentes atualizam a diferença centro/periferia a partir
de novas bases conceituais, enfatizando principalmente a circulação do
conhecimento nas ciências sociais, correntes contra-hegemônicas, hierar-
quias cognitivas, divisão do trabalho intelectual, imperialismo acadêmico
e décits materiais. Wiebke Keim (2008, 2014), por exemplo, para tra-
balhar com o tema da circulação do conhecimento nas ciências sociais,
desenvolve um modelo de três dimensões, inspirado na Teoria da Depen-
dência de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto. A autora carac-
teriza a periferia a partir de contextos de subdesenvolvimento material,
institucional e de pessoal; de dependência cognitiva (de teorias e métodos)
em relação ao centro; e de marginalidade quanto ao prestígio, reconhecida-
mente localizado no centro/mainstream.
Da mesma forma, Syed Farid Alatas buscará um modelo centro/perife-
ria, por meio de uma “economia política das ciências sociais” (Alatas, 2003,
p. 601), privilegiando diferenças no plano da divisão do trabalho intelectual,
ou seja, países que se especializaram na produção teórica e outros na produ-
ção de dados empíricos; trabalhos realizados nos seus contextos e trabalhos
que se estendem para outros contextos; e diferença entre estudos de casos
locais e estudos comparativos. Beigel (2013, p. 112), também ressaltando
aspectos da economia política das ciências sociais, atenta para outros três
elementos da dicotomia, a saber, “a ‘universalização’ da bibliometria como
ferramenta de avaliação, a supremacia do inglês e a concentração de capital
acadêmico em certos polos”.
A meu ver, tais formas de pensar a diferença centro/periferia localizam-
-se, primeiramente, na dimensão estrutural, relativa, grosso modo, à infra-
estrutura da pesquisa e às relações de poder no sistema internacional da
ciência, especicamente, na forma hierarquizada de circulação da ciência
social. Dá-se pouca, ou nenhuma, ênfase a aspectos relacionados às expec-
tativas e aos valores, enm, a aspectos subjetivos do cientista e ao enraiza-
mento dessa dimensão na prática cotidiana, em que se selecionam teorias e
métodos, privilegiam objetos e submetem artigos para publicação. Soma-se
a isso a pouca existência de estudos que aplicam tais modelos à dinâmica das
ciências naturais.7
7 Em recente trabalho publicado, Ferreira (2019) pesquisou a área de genética humana e médica
no Brasil, enfatizando o imaginário dos cientistas da área sobre os locais centrais e periféricos de
sua especialidade. Os centros seriam lugares aonde se vai para aprender, com velocidade e efer-
vescência e com recursos abundantes. Seu estudo leva à ideia de periferia “pensada em termos de
falta”, enfatizando questões institucionais, nanceiras, técnicas, culturais e, também, cognitivas
(Ferreira, 2019, p. 83)
52
Tal diferença, com sentido estrutural, também é percebida quando se
observa a forma como expectativas sobre a ciência se constituem. São formas
cortadas por valores hierárquicos que se manifestam como diferenças biná-
rias reais (boa e má ciência, ciência de ponta e atrasada).8 Como esta forma
de observar se congura em expectativa, importa, mais que tomá-la como
estrutura real, compreender as consequências práticas que isso tem para a
construção das pesquisas. Escolher um lado é produzir identidade (central
ou periférica) e, consequentemente, induzir o direcionamento prático de
suas ações, periferizando-as ou centralizando-as. Nesse sentido, pode-se fa-
lar em ciência central ou periférica, sem que se introduzam marcos territo-
riais, nacionais, econômicos e geopolíticos.
A teoria dos sistemas é a base metateórica que orienta a discussão sobre
a diferenciação centro/periferia aqui tratada.9 De Giorgi (2017), no marco
da teoria dos sistemas, desenvolve um conceito muito próximo ao que aqui
se defende, embora ele não o desenvolva no nível mais basal da microsso-
ciologia e das dinâmicas práticas de construção e reprodução da diferença
hierárquica. O autor fala de “periferização”, porém ainda fazendo referência
a dinâmicas macro desse processo. Para o que mais nos importa aqui, o autor
se refere a periferias e centros utuantes, que não encontram limites geográ-
cos de qualquer ordem.
Nas condições de seu normal funcionamento, a racionalidade ima-
nente a essa forma da diferenciação social, que é a racionalidade da
inclusão universal de todos, produz continuamente exclusão, amplia
pequenas diferenças originárias e, sem garantias externas, produz um
contínuo excesso de alteridade que se acumula no seu interior. A alte-
ridade que foi produzida no início da modernidade e que estava loca-
lizada é agora substituída por uma produção deslocalizada, utuante,
desmaterializada de alteridade, produzida pelo funcionamento racio-
nal da sociedade moderna, pelo normal funcionamento de sua forma
de diferenciação. […] As periferias agora são lugares sociais utuantes
8 Vemos isso, por exemplo, no reconhecido trabalho de Hebe Vessuri, que trata analiticamente a
diferença hierárquica como forma real estruturada. Para a autora, periferia da ciência quer dizer,
no nível do conhecimento, ciência normal – resolução de quebra-cabeças cujos paradigmas se
desenvolveram no centro; no nível dos temas, ciência pura contra aplicada, a periferia se carac-
terizaria pela aplicação das ciências centrais; e no nível institucional, a periferia se caracterizaria
por instituições frágeis, sujeitas a rupturas institucionais mais gerais.
9 Para uma discussão da diferença centro/periferia na ciência a partir do marco sistêmico de
Luhmann, ver Neves (2009, 2014) e Neves e Costa-Lima (2012).
53
da “periferização”, do depósito da exclusão, da produção de excedente,
da discriminação de alteridade. (De Giorgi, 2017, p. 44).
Embora seja teoricamente salutar repensar a diferença centro/periferia
a partir de sua “produção deslocalizada, utuante, desmaterializada”, isso
não é suciente para compreender a construção de centros ou periferias nas
dinâmicas da sociedade contemporânea. Prero falar de processos autoin-
igidos de periferização ou centralização, quando me rero especicamen-
te ao sistema funcional da ciência, o foco deste trabalho. Aludo, também,
diferentemente da maioria dos teóricos sistêmicos, a um nível especíco de
formação sistêmico-social, as interações.
Luhmann conceitua interações, diferentemente das organizações e so-
ciedades, como sistemas sociais simples, caracterizados pela presença física
dos interlocutores; “eles incluem tudo aquilo que pode ser tratado como
presente, e podem em certos casos decidir entre os presentes o que deve e o
que não deve ser tratado como presente” (Luhmann, 2016, p. 467). Nes-
ses contextos de copresença (laboratórios, congressos, reuniões, colóquios),
uma forma hierárquica de seletividade orienta o curso interativo da comu-
nicação na direção denida pelo lado da forma selecionado pelos presentes
(centro ou periferia), estabilizando as comunicações posteriores nessa dire-
ção e reforçando expectativas hierárquicas.
Embora a interação seja acima apresentada como, praticamente, um
jogo aberto ao curso livre das relações episódicas, ela obtém, em deter-
minadas situações, níveis estruturais mais amplos e transcendentes, e seu
episódio eventual passa a ser selecionado e disponibilizado pela sociedade,
compatibilizando processos de mudança e permanência. Os episódios de
interação na sociedade não interferem direta e ininterruptamente na estru-
tura da sociedade, mas são selecionados ocasionalmente e podem, assim,
ter consequências estruturais para organizações e sociedade. Fala-se aqui de
uma forma hierárquica estabilizada que encontra generalização nas expec-
tativas mais amplas da sociedade e que, portanto, se estabiliza para além das
próprias interações: regimes de administração de irrelevância.
Ciência e espaço de práticas
São muitas as imagens que circulam ainda hoje a respeito da prática
cientíca, seus valores, comunidades, laboratórios, normas, regras, dispo-
sições, linguagens, regimes de ação. Um conjunto de imagens, em geral
54
reverentes, trata o cientista como uma pessoa treinada arduamente, um
especialista em um campo de conhecimento, alguém possuidor de valores
universalistas, portador de um corpo adaptado às condições exotéricas dos
laboratórios e da linguagem cientíca. Faz-se alusão a essas características
nos parlamentos, nas mídias, nas salas de aula, nos congressos internacio-
nais, nos livros. Tais imagens ignoram a localização e as condições sociais
que sustentam a ciência, o cientista e o laboratório, e que imprimem espe-
cicidade onde se propagandeia universalidade.
Parecia que qualquer esforço mais abrangente para situar a ciência nos
locais de sua produção seria tomado como um ataque à integridade e à
autenticidade do conhecimento cientíco. De fato, a invenção moder-
na do laboratório pode ser interpretada como um esforço consciente
para criar um lugar “sem lugar” para fazer ciência, um local universal
onde a inuência da localidade é eliminada. Garantir a credibilidade
e alcançar a objetividade exigiram a “falta de localização”, e o triunfo
do laboratório como o local por excelência da plausibilidade cientíca
desde meados do século XIX testemunha essa convicção predominan-
te. (Livingstone, 2003, p. 3).
O laboratório é o lócus onde esta prática assume suas características
mais disseminadas: livre de interesses, neutra, objetiva, plausível, univer-
sal. A indicação de um laboratório é um mecanismo de garantia de cre-
dibilidade e excelência, atestando ao conhecimento produzido, por meio
de seus cientistas, técnicos e aparelhagens, relevância. Laboratórios, no
entanto, nunca são assumidos em sua acepção geral. Ao contrário, fala-
-se em laboratório de genética molecular da universidade de Cambridge,
laboratório de física teórica do Massachusetts Institute of Technology, la-
boratório de genética funcional da Embrapa. Tais centros de pesquisas
são localizados em instituições, estados e países, possuem determinados
pesquisadores, ganhadores de prêmios Nobel, movimentam recursos de
determinadas agências e empresas nanciadoras, têm laços com tais outros
centros, publicam em tais revistas, com determinados índices de impac-
to. Essas características são correntes na identicação da excelência e da
relevância, e importam para a formação de hierarquias na ciência, notada-
mente aquelas que separam “centros” e “periferias”.
A imagem de um centro concentrado – e suas numerosas pesquisas
e esforços –, portanto, domina todas as nossas análises da ciência. Tais
55
análises ocorrem seja na forma de artigos cientícos, livros, ou na forma
popular de escrita da ciência. Assim, quando pensamos em ciência, ge-
ralmente nos restringimos a pensar acerca de um centro, que é pensado
normalmente como incorporado em alguma comunidade cientíca euro-
peia ou norte-americana. É a partir de tais comunidades centrais que se
espera que as pesquisas inovadoras emerjam, incluindo aquelas pesquisas
que levam a novas descobertas. Vamos chamar esta imagem de modelo de
comunidade central de ciência (Dasgupta, 2016, p. 382).
Os estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT), no entanto,
evidenciam uma outra imagem da ciência, do laboratório e da prática
cientíca. Eles atentam para a máxima contextualidade e contingência si-
tuacional da prática cientíca (Knorr-Cetina, 2005); o conhecimento daí
resultante alcança universalidade somente em função de processos práticos
de expansão de redes de sustentação, ao mesmo tempo sociais e técnicas
(Latour, 1987). Os ESCTs não só relativizaram a superioridade cognitiva
do conhecimento cientíco em face de outras formas de conhecimento
(Barnes; Bloor; Henry, 1996), como relativizaram também os modelos e
teorias no interior da própria ciência ocidental, considerando seu caráter
controverso e não consensual, histórico e situado.10
Em grande parte, como resultado desses estudos, colocou-se em ques-
tão a própria validade do modelo da comunidade central da ciência, aten-
tando-se para os contextos de interação prática no interior dos laborató-
rios e seus produtos decorrentes. Assim, “eles [conhecimentos cientícos]
não são o produto de qualquer racionalidade cientíca especial que possa
ser contrastada com a racionalidade da interação social” (Knorr-Cetina,
2005, p. 112).
Ao trazer à tona os processos práticos de constituição de legitimida-
de, hierarquia e universalizações, os ESCTs chegam a uma imagem mais
controversa, paroquial e mundana da ciência: uma em que se age, interage
e comunica da mesma forma como se faz em outros contextos sociais de
prática (Pickering, 1992). O que importa é que se demonstrou o profun-
do enraizamento do espaço sagrado do laboratório nos processos mais
gerais da sociedade.11 Além disso, o contexto laboratorial era também um
10 Esta posição é tributária da tradição historicista iniciada por Fleck (2010) e seguida por Kuhn
(1978, 2006).
11 A tradição desses estudos vem da década de 1970, e uma vasta literatura se formou em torno da
ideia de que o relevante sobre o conhecimento cientíco estava em seu processo de construção, daí o
abundante uso do método etnográco para a observação da ciência em construção (ver Hess, 2001).
56
ponto de passagem obrigatório para legitimar a verdade cientíca, um ló-
cus de referência sem o qual o universal se reduziria ao paroquial (Latour,
1987; Livingstone, 2003).
No entanto, como lidar com o fato de que algumas teorias, métodos
e práticas superam as paredes dos laboratórios, as mesas do café e dos co-
lóquios regionais e nacionais, e repercutem no mundo todo? Como pen-
sar a prática cientíca deslocando-se, juntamente com suas justicativas,
e acessando legitimidade além do grupo de pesquisa do qual emergiu?
Os ESCTs responderam a essas interrogações das mais diversas formas,
nenhuma delas admitindo que a produção cientíca transcendesse seu
contexto de descoberta somente pela força heurística de suas armações
sobre o mundo. Teorias, métodos e práticas espalhavam-se a partir de re-
gimes de práticas, traduções, colóquios internacionais, intercâmbios de
pesquisadores. Ou seja, criação de situações de práticas que permitem ati-
vidades linguisticamente mediadas, ostensivamente ou de forma justicada
(Pickering, 1992).
Nesses espaços de prática, a pequena rede laboratorial vai se esten-
dendo ao alistar porta-vozes, os quais passam a constituir outros espaços
e a alistar outros porta-vozes. A extensão da rede, entretanto, não traduz
somente teorias e métodos, mas também performances apropriadas, apa-
relhos técnicos, hierarquias cognitivas e linguagens hegemônicas. Desse
modo, refaz, inevitavelmente, o espaço e as práticas dos n locais onde quer
que o conhecimento produzido em um laboratório X encontre acolhi-
da. Assim, aceitação e resistência aos conhecimentos, a despeito de boas
evidências a seu favor, enraízam-se em tradições locais de pesquisa, nas
dinâmicas interacionais in situ.
O resultado de controvérsias é frequentemente moldado por batalhas
de evidências; assim, não há dúvida de que um critério de decisão
técnico e universalista é inuente e de que o mundo tem um tipo de
agência na tomada de decisões desse tipo. No entanto, a capacidade
de produzir boas evidências é moldada por tradições de pesquisa que
governam sua interpretação, acesso a recursos que governam sua pro-
dução, controle sobre o que conta como bons métodos e capacidade de
mobilizar retórica e colegas para vencer argumentos sobre a interpreta-
ção de dados. (Hess, 2001, p. 235).
57
Os ESCTs legam-nos esta imagem de ciência e de mundo social, na
qual interagem tradições locais de pesquisa, aporte de recursos, rede de
pesquisadores, retóricas, valores, crenças culturais. Uma imagem, como
dito, nada parecida com o generalizado modelo da comunidade central
da ciência. Esta imagem faz com que a diferença hierárquica centro e pe-
riferia seja compreendida a partir das dinâmicas de expansão de redes:
como práticas situadas de legitimação e hierarquização. Nesses processos
práticos, assume-se tacitamente a hierarquia e passa-se a operar cienti-
camente por meio desse pressuposto. Cria-se, nas interações situadas,
um imaginário geopolítico do conhecimento, com pressuposições que se
estruturam como senso comum, que reproduzem ideais de “ciência de
centro” e “ciência de periferia”. Um imaginário com ecácia simbólica
para inuenciar a prática cientíca.
O que se propõe é que o generalizado modelo da comunidade central
da ciência impera, na prática, como imaginário, ideia orientadora, como
valor, como pressuposto. É por meio desse modelo que cientistas atribuem
valor ao que fazem e ao que os outros fazem. Deve-se levar em conta,
assim, como tais pressupostos são contextualizados e como inuenciam
práticas cientícas. Como aponta Helen Longino,
[o] papel dos pressupostos na investigação signica que a análise epis-
temológica da teoria e da pesquisa cientícas deve incluir a análise
do contexto social e intelectual em que a investigação é buscada e as
teorias e hipóteses são avaliadas. O contexto intelectual é constituí-
do de pressupostos de fundo e recursos investigativos ‒ instrumentos,
amostras, protocolos experimentais. O contexto social é o conjunto de
instituições e interações em e através do qual os pressupostos e recursos
circulam, bem como o ambiente social mais amplo no qual as insti-
tuições e interações são incorporadas. (Longino, 2002, p. 176-177).
As consequências do uso desses pressupostos hierárquicos são múl-
tiplas; neste trabalho, gostaria de focar na dinâmica de ignorância que
decorre da diferenciação centro e periferia. Operar em um dos lados dessa
diferenciação, por meio de processos de autoatribuição, envolve ignorar o
outro e, portanto, envolve processos de atenção e ignorância. Para Luhmann
(1986), cada observação é resultado de uma seleção entre dois lados de um
código binário que serve de base pressuposta a outras observações. Ao
58
operar de um lado do código, o outro lado permanece como uma pos-
sibilidade não selecionada, ignorada. Portanto, cria-se um ponto cego à
observação: o lado não selecionado no processo de reprodução da socie-
dade ou, de forma mais especíca, no processo de reprodução de sistemas
sociais, como a ciência. Nesse sistema social, ignoram-se muitas possibi-
lidades de verdade, notadamente aquelas consideradas periféricas. Neste
capítulo, assumo que parte dessas possibilidades se refere à ignorância dos
espaços supostamente periféricos por parte do “centro”, mas também da
“periferia”. A base da ignorância não se relaciona a questões morais, mas
a determinados processos estruturais da prática cientíca, como se verá.
Contextualização
“Tem a ciência lugar?” ou “o lugar importa para a ciência?” são per-
guntas que sempre vêm à cabeça quando observamos os dados altamente
concentrados da produção cientíca global. Tais perguntas trazem outras,
como: “quais recursos?”, “qual língua?”, “qual objeto?”. Esta rede de ques-
tões articuladas e suas respostas imediatas formam um pano de fundo
valorativo – muitas vezes não reexivo – que contextualiza o cientista e
sua prática não somente em uma situação ou laboratório, mas em uma
dada região no mapa político do conhecimento. O processo de localizar-se
no “centro” ou na “periferia”, acarretando uma dada posição hierárquica
no sistema de reconhecimento da ciência, é chamado “contextualização.”
(Neves, 2014).
Em certos contextos de prática cientíca, a “contextualização” equi-
vale a processos de “centralização” em que se valoriza positivamente o co-
nhecimento gerado, com expectativas de reconhecimento e circulação, de
publicação; enm, com condições para a universalização de como fazer e
do que produzir. Ao ser produzido nesses espaços “centrais”, o conheci-
mento assume um valor positivo imediatamente, superando seu espaço de
construção e transcendendo disciplinas, línguas, laboratórios, países. Isso
decorre, também, para além do valor que o contexto (laboratório, gru-
po de pesquisa, universidade etc.) assume historicamente, das estratégias
acadêmicas que emergem a partir do pressuposto inerente ao contexto de
considerar-se “central”. Nos termos de Karin Knorr-Cetina (2005, p. 255),
administra-se a relevância: “[o]s autores estabeleceram que eles têm algo re-
59
levante a dizer, dada a sua descrição do estado atual do problema antes de
sua contribuição. Dessa forma, legitima-se sua inserção desde as escrituras
redigidas em um campo mediante a publicação.
Em outros contextos de práticas cientícas, “contextualização” signi-
ca “periferização”. Não se trata somente de disponibilidade de recursos
materiais. Antes, trata-se da atribuição de um valor negativo ao que se faz e
como se faz, o que conduz a expectativas de não reconhecimento, não pu-
blicação, de circulação restrita, muitas vezes, ao próprio contexto. O que
importa neste texto é, em especial, a periferização, as expectativas e as prá-
ticas decorrentes. Nesses contextos de prática, administra-se a irrelevância
ao fundir as expectativas contextuais de insignicância, generalizando-as.
Resumirei tais práticas a um “regime de administração da irrelevância”,12 o
qual reforça as expectativas locais por meio das interações em um mesmo
espaço de prática local, ou por meio do entrecruzamento em espaços de
práticas globais, como congressos internacionais.
Para exemplicar as tramas indicadas aqui a respeito do processo de
administração da irrelevância, toma-se o caso recente da neurocientista
brasileira, Suzana Herculano-Houzel, reconhecida internacionalmente
por suas pesquisas com neurônios. Após uma carreira no Brasil cheando
o Laboratório de Neuroanatomia Comparada, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, a autora aceita um convite da Universidade de Vander-
bilt, em Nashville, para trabalhar nos Estados Unidos. Ao deixar o país,
Suzana concede entrevista que oferece um quadro sintético do imaginário
cientíco que pude acessar em minhas entrevistas, como se verá à frente.
Ela fala: “fazemos ciência no Brasil em condições miseráveis” (Herculano-
-Houzel, 2015), “os reagentes e equipamentos brasileiros são caríssimos e
ruins” (Herculano-Houzel, 2015),
eu tenho duas pós-doutorandas estrangeiras no meu laboratório, uma
francesa e uma alemã, e é vexaminoso quando eu tenho de dizer que a
água do banheiro acabou, ou que a energia caiu, ou que a internet está
piscando. “Lamento, mas essa é a nossa realidade”, eu digo para elas. O
máximo que posso fazer é tentar ver pelo lado positivo: “é ruim, mas se
vocês forem capazes de trabalhar nessas condições, vai ser maravilhoso
12 Esse exercício de conceituação se inspira nas ideias de Ramos (1996) sobre a redução socioló-
gica. Busca-se, por meio dessa reconceitualização, a assimilação crítica da produção cientíca
estrangeira, apontando para sua limitação, ao tempo que se assume sua inspiração.
60
quando voltarem para o país natal. Vocês vão dar um show”. Por-
que aprenderam a trabalhar da pior maneira possível. É vexaminoso.
(Herculano-Houzel, 2015).
O lugar aparece de forma incontroversa, o “lá” e o “aqui” são articula-
dos de modo a mostrar um quadro hierarquizado da ciência com base em
elementos como “caríssimos e ruins”, “falta de água e energia” “ausência de
sinal de internet”. Após isso, a pergunta que nos vem à cabeça é a mesma
que a repórter atenta faz: “e qual é o segredo para tantas pesquisas bem re-
conhecidas, mesmo com esses problemas de falta de recursos e infraestrutu-
ra?”. A resposta nos indica possibilidades que, muitas vezes, são ignoradas
devido a elementos atávicos em nosso imaginário cientíco que reforçam
a ideia de que pouco recurso é sinal de ciência periférica, miserável e de
baixa qualidade.
Tudo depende do tipo de pesquisa que você consegue fazer, do tipo
de questão que você coloca e da abordagem que você usa. Estudar
genética molecular nesse país, por exemplo, é impensável. No meu
laboratório, a gente tem sido tão bem-sucedida nos últimos anos
porque descobriu um nicho de perguntas e respostas superbásicas da
neurociência ‒ que por isso são impactantes e interessam a um grande
número de pessoas ‒, que podem ser abordadas com um método ba-
rato, inventado por mim em meu laboratório. Só por causa disso. Se
eu precisasse de qualquer coisa a mais, a nossa produção seria muito
menor do que é hoje. (Herculano-Houzel, 2015).
Invertendo o argumento da autora, podemos articular um parágrafo
com as mesmas expressões ‒ “tão bem-sucedida”, método “barato”, “im-
pactante” ‒ para indicar um contexto de extrema importância em termos
cientícos. Um centro da pesquisa neurocientíca global, já que o impacto
de seu trabalho se manifestou amplamente. Em termos do conhecimento
gerado, é isto o que querem dizer seus artigos e índices de impacto. No en-
tanto, assume-se outra narrativa, que diminui o valor da ciência brasileira
com base nas suas diculdades nanceiras e burocráticas.13 Neste ponto,
13 As diculdades são bem documentadas na literatura da sociologia da ciência na América La-
tina e ainda hoje são amplamente indicadas nas pesquisas sobre a infraestrutura laboratorial,
editais de fomento e burocracia (ver a pesquisa recente de Ferreira, 2018). Não se trata aqui de
contestar a existência das limitações evidentes para a pesquisa cientíca na América Latina, mas,
tão somente, de mostrar que sempre que se usa o critério das diculdades, diminui-se o valor
cognitivo da ciência feita.
61
aspectos cognitivos se misturam com materiais, e o conhecimento passa a
ser medido a partir das necessidades econômicas dos institutos, universi-
dades e laboratórios de pesquisa.
Desse modo, assume-se aqui que os pressupostos hierárquicos que es-
truturam o imaginário da ciência acham-se atravessados por uma diferen-
ça básica centro/periferia que, por meio de processos de autoatribuição,
opera, na prática, contextualizando os resultados cientícos. Periferizar-se
ou centralizar-se envolve também as outras pessoas que interagem nos
espaços da ciência, que são julgadas a partir dessas expectativas hierar-
quizadoras. Essas expectativas se reforçam em contextos de interação e se
generalizam, informando as práticas cientícas e atribuindo valor positivo
(centro) ou negativo (periferia) ao que se faz e é feito. Assim, por regime
de administração da irrelevância compreendem-se expectativas e práticas
generalizadas, orientadas por um valor negativo autoatribuído.
Elementos do regime de administração da irrelevância
O primeiro elemento a compor tal regime é a referência posterior. Das
práticas de construção de agendas de pesquisa até os padrões de citações
bibliográcas, tudo se passa como se fossem posteriores, atrasadas. Desse
modo, tende-se a referir o “centro” da produção como se lá estivesse o
produto cognitivo legítimo, digno de referência, ignorando o que se pas-
sa na “periferia”. Isso explica a adesão generalizada a agendas cientícas
globais, que circulam pelos espaços de prática como se fossem universais.
Peter Burke uma vez escreveu que “a antecedência faz a referência” (Burke,
1997). Na abordagem aqui discutida, tanto a antecedência quanto a refe-
rência são consequências da formação prática de regimes de administração
da relevância/irrelevância.
Ao reconhecer e atribuir antecedência ao centro, às agendas globais,
cria-se um parâmetro, um referente, a ser seguido. É a partir desse parâ-
metro, supostamente internacional, que surgem estratégias de competição
cientíca “periferizadas”. Nesses espaços de práticas, o “parâmetro inter-
nacional” – ou, como acima, a ideia de comunidade central de ciência –
desestimula a pesquisa sobre alguns temas e objetos antecedentes, levando
ao direcionamento das investigações para temas e objetos negligenciados
pela ciência “central”, que não formam agendas globais ou de fronteira, e
que, por isso, obtêm pouco impacto no sistema de publicação internacio-
62
nal. Vejamos abaixo as falas de dois pesquisadores brasileiros reconhecidos
na área de biotecnologia de “doenças negligenciadas”.
Nossa expectativa é que, ao trabalhar com doenças causadas por para-
sitas, Schistosoma mansoni, que ocorrem em regiões com baixo nível de
desenvolvimento, em regiões tropicais e subtropicais, trabalhando com
doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica, pelo mercado far-
macêutico, e isso é uma coisa que motiva bastante, é uma possibilidade
de manter um nível de competição com grupos localizados fora do
país, principalmente em termos farmacêuticos. Doenças como diabe-
tes, Alzheimer, obesidade, doenças coronárias, tudo isso é pesquisado
intensamente pela indústria farmacêutica, então é muito difícil você
entrar numa competição dessas. Por outro lado, pesquisando parasitas
negligenciados você tem um pouco mais de tempo e você consegue
fazer a sua pesquisa sem ser atropelado. Mesmo assim, desenvolver
um medicamento é uma coisa que para nós demora, é uma pesquisa
para trinta anos, vinte anos; na indústria farmacêutica, com toda a
tecnologia e recursos, dura doze anos, dez anos. (Entrevista ao autor,
número 6).14
Se eu pego projeto para analisar e vejo temas ambiciosos, ou pretensio-
sos, que exigem tempo, dinheiro, pessoal, maquinário, já olho torto.
E se são objetos muito alheios a nossa realidade eu reprovo. Aviso para
orientandos, seja modesto, você está no Brasil. Isso pode, aquilo não.
Não se pode jogar dinheiro fora. (Entrevista ao autor, número 31).15
O que nos interessa é a contradição manifesta entre a relevância in-
contestável da agenda “negligenciada” e o termo usado para caracterizá-la,
o qual indica descompasso, descentramento, alheamento, alienação. Ou
seja, são pesquisas assumidas como pouco relevantes, já que a relevância
estaria nas pesquisas com “diabetes, Alzheimer, obesidade, doenças coro-
nárias”. Assumir tais agendas é ter “critério nenhum”, seria “jogar dinheiro
fora”. Notam-se mecanismos de localização evidentes (“seja modesto, você
está no Brasil”) quando assume que esses temas e objetos negligenciados
interessam a locais de “baixo nível de desenvolvimento, em regiões tropi-
cais e subtropicais” e, supostamente, somente à ciência desses locais. Olhar
14 Entrevista ocorrida na PUC-RS, Porto Alegre, professor sênior, fundador de laboratório de
pesquisa em instituição privada após se aposentar em instituição pública.
15 Entrevista ocorrida na UENF, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Professor pesquisador
CNPq, área de genética funcional.
63
“torto”, assim, resulta dessa dinâmica de localização. Sua consequência
prática é a reprovação de projetos “alheios à nossa realidade”, os quais se
relacionariam com agendas globais de ciência, que atraem mais interesse
editorial de revistas internacionais.
Referência posterior leva-nos ao segundo elemento a compor tal re-
gime, a saber, a escolha do objeto, ou, como ouvido nas entrevistas, ao
exotismo. Em regimes de administração da irrelevância, em geral com
poucas fontes de nanciamento, concentra-se o incentivo à ciência em
alguns objetos que respondem por interesses especícos. Trata-se de dire-
cionamento também prático dos interesses de pesquisa, atribuindo a si e
aos outros a incapacidade de seguir protocolos supostamente centrais de
pesquisa, a inabilidade de reproduzi-los em nível de excelência e inovação
comparáveis ao “centro”. Os critérios de seleção dos objetos devem aten-
der às expectativas sobre pesquisas periféricas; deve-se ter consciência do
local no qual se pesquisa.
Nós temos critério aqui dentro, mas tem laboratório que não tem cri-
tério nenhum. O laboratório de uma professora aqui pegou dinheiro
público, e o que ela quis fazer? Ela quis fazer pesquisa com câncer de
seio (sic). Genética de câncer de mama é a coisa mais pesquisada no
mundo. Em geral, hoje, você tem que estar ao lado de um hospital, ao
lado de uma equipe médica, tudo ajeitado para que a coisa funcione.
Ela não pensou nesses detalhes, foi um fracasso. É algo bonito, funda-
mentado teoricamente [...] (Entrevista ao autor, número 20).16
Você me pergunta o que eu escolho, fazer mal o que os outros fazem
bem, ou fazer o meu, fazer bem, digamos, fazer algo exótico, de inte-
resse para menos pessoas, revista... Eu faço o exótico. Ah, mas não é
relevante, ninguém cita. Nós temos que nos conformar, não dá para
querer o Nobel pesquisando cana (Entrevista ao autor, número 33).17
Quando eu vim para o Brasil, eu tive que ver onde eu poderia contri-
buir e a partir daí denir minha área de atuação. [...] A área de pesquisa
que a Embrapa me propôs acaba voltando para o que eu tinha feito
durante o doutorado. Não era exatamente a mesma coisa, mas bas-
16 Entrevista ocorrida na UFMG, Minas Gerais, Professor pesquisador CNPq, área de medicina
tropical.
17 Entrevista ocorrida na Embrapa Cenargen, Professor pesquisador CNPq, área de Genética
Molecular e de Microrganismos.
64
tante relacionado ao tema de biocombustíveis, compostos químicos
renováveis. [...] O trabalho que eu desenvolvi no doutorado na Suécia
era voltado para produção de biocombustíveis de etanol, de segunda
geração, a partir de madeira, o que a gente chama de biomassa. É o
que eles tinham para produzir a partir de fontes renováveis. No Brasil,
tenho o interesse de fazer pesquisa com etanol de segunda geração, mas
nossa biomassa principal é a cana-de-açúcar. Dadas as especicidades
de cada país e da estrutura industrial de cada país. [...] A gente tem es-
pecicidade. Toda a produção de biocombustíveis no Brasil que come-
çou na década de 70 com o etanol, isso é único no mundo. Eu tenho
que ver quais são os problemas brasileiros, da indústria brasileira. Mas,
ao mesmo tempo, do ponto de vista técnico, das melhores técnicas e
melhores estratégias, [tenho que ver] a literatura mundial. (Entrevista
ao autor, número 18).18
Nesses contextos, cientistas sentem-se localizados entre o exotismo e
a submissão; neste último caso, relegando-se ao atraso, ao descompasso,
como sugere o primeiro elemento do regime. Tem-se que objetos fora da
agenda global são também classicados como exóticos, e aqueles inseri-
dos em tais agendas seriam supostamente incapazes de contribuir com a
fronteira do “centro”. Isso tem consequências práticas, já que esta localiza-
ção entre o exótico e o submisso é um espaço de prática não demarcado,
sem estratégias de carreira claras, sem expectativas de reconhecimento,
um limbo, principalmente editorial. Nesses dois casos, o refúgio editorial
ocorre, em geral, em periódicos de pouca circulação internacional.
Eu acho que tem um preconceito sim com publicações latinas. Já
aconteceu de ter questionamento e a gente ter um trabalho a mais para
explicar, “olha, aqui no Brasil é diferente. Isso realmente não é desse
jeito”. Tem uma colega que citou um caso clássico [de um parecerista
que armou] que o cerrado é isso, isso e isso, e não é isso. Ela teve que
explicar para ele o que que era o cerrado porque [o parecerista] mos-
trava um certo desconhecimento. Eu te garanto, o problema não era a
linguagem. A colega nasceu nos Estado Unidos, foi criada nos Estados
Unidos, era nativa. Você vê que era um posicionamento ríspido. Por
quê? “Ah, são pesquisadores brasileiros, instituição brasileira”, e aí você
tem aquela crítica mais exacerbada. Isso eu acho que acontece. Eu já
vi isso acontecer com outros países, não só com o brasileiro. Não em
18 Entrevista ocorrida na Embrapa Agroenergia, pesquisador CNPq.
65
laboratório, mas colegas durante o congresso falar “se eu recebo artigo
de determinado país, eu sempre co com pé atrás”. Nós não podemos
pegar toda uma população e falar que todo trabalho que sai de lá é de
qualidade questionável. (Entrevista ao autor, número 45).19
O exotismo, no geral, relaciona-se com a percepção aguda da irrele-
vância editorial e da contestação, muito em função também de preconcei-
tos editoriais de periódicos de alto impacto, com suas agendas denidas,
linguagem própria, metodologias especícas.20 A publicação é incerta, já
que objetos exóticos não seguem agendas globais, convivendo ainda com
o baixo impacto da citação e com a diculdade da recepção posterior em
outros textos. Como escreveu Latour (2000 p. 70), “[...] há algo ainda pior
do que ser criticado ou demolido por leitores descuidados: é ser ignorado.
Uma vez que a situação de uma asserção depende das inserções de quem
a utiliza, o que acontecerá se não houver quem a utilize?”. As expectativas
cientícas nesses contextos, portanto, articulam “negligência”, “exotismo
e “ignorância”, consolidando um espaço de prática regido pela sensação
de irrelevância.
Você escreve um bom artigo, seus colegas leem, seus alunos de dou-
torado leem, eu escrevo bem em inglês, sou uente, nunca tive pro-
blema. Aí envia para aquela revista internacional conceituada e recebe
pareceres, vamos lá, medíocres, sem sombra de dúvidas, de quem não
conhece do seu riscado... sabe? “Ah, no Brasil é assim, mas então me
explica isso, explica aquilo ali”. Você coloca a mão na cabeça e diz:
“tanto esforço para isso?”. Tem preconceito, sabe? Tem, sim. Eles ig-
noram o Brasil. Bem, sou parecerista de periódico internacional, meus
pareceres são melhores que os que recebo (Entrevista ao autor, número
41).21
A percepção aguda de ser ignorado é um dos elementos que caracte-
rizam as expectativas em um regime de administração da irrelevância. A
dinâmica de ignorar contextos supostamente periféricos de ciência – que
não pode ser atribuída simplesmente ao ato deliberado de disputa por
19 Entrevista ocorrida na Embrapa Agroenergia, pesquisador CNPq, área de Genética Molecular
e de Microrganismos.
20 Sobre a relação centro/periferia na editoria de periódicos internacionais ver Pinheiro (2018).
21 Entrevista ocorrida na Embrapa Cenargen, Professor pesquisador CNPq, área de Genética
Molecular e de Microrganismos.
66
poder e prestígio, já que envolve também questões ligadas à língua e à
proximidade – é um elemento fundamental para se compreender a for-
mação de hierarquias cientícas. Tal dinâmica se estabelece a partir da
desatenção, muitas vezes inconsciente, dos produtos cientícos gerados
em outros espaços, supostamente periféricos. A desatenção a esses espaços
e produtos é resultado do processo de formação que, após a socialização
cientíca, direciona o interesse para produtos cientícos especícos, ne-
gligenciando outros.
Vejamos como o processo de “atenção” funciona, a partir da discus-
são fenomenológica empreendida por Zerubavel (2015, p. 4): “atenção,
em outras palavras, funciona como um holofote. O que quer que esteja
dentro de seu foco é bem notado, enquanto o que permanece fora dele é
efetivamente ignorado.” Mas, além de uma condição de nossa experiência
sensorial, a atenção também é um modo cognitivo deliberado de interesse
pelas coisas que socialmente são construídas como relevantes.
Em suma, notamos e ignoramos as coisas não apenas como indivídu-
os e como seres humanos, mas também como seres sociais. Embora
seja certamente a natureza que nos equipe com os nossos órgãos dos
sentidos, é, no entanto, o nosso meio social que, com tanta frequên-
cia, determina como os utilizamos para acessar o mundo. (Zerubavel,
2015, p. 52).
A determinação de nosso foco de interesse deve ser compreendida por
meio de investigação que indique, em um plano macro, os produtos cultu-
rais mais valorizados por determinadas culturas; no plano interacional, as
dinâmicas de interesse pelos produtos e processos valorizados que se cons-
tituem relacionalmente; e no plano individual, a biograa da pessoa que
observa. A ignorância cientíca, desse modo, se constituiria a partir dos
produtos e processos valorizados e reproduzidos nessas dimensões, consi-
derados relevantes cultural, relacional e individualmente. Tudo o mais é
pano de fundo, irrelevante, periferia. A dinâmica da atenção estrutura o
regime de administração da irrelevância, formando uma “comunidade de
atenção”, e o reproduz sempre que, nas dimensões acima, o foco continue
em processos e produtos “centrais”.
Delineando efetivamente o escopo de nossa atenção e preocupação,
estão as comunidades de atenção que frequentemente determinam o
67
que consideramos relevante e ao qual, portanto, atendemos. Tais co-
munidades têm suas próprias tradições atencionais distintas e, por-
tanto, também hábitos e preconceitos de atenção distintos, conforme
manifestados em seus membros. [...] São convenções especícas do
que é digno de nota, por exemplo, que fazem da Capela Sistina e do
Coliseu atrações “obrigatórias” para os visitantes de Roma. (Zerubavel,
2015, p. 52-53).
Uma ordem autodepreciada, formada a partir da atenção a outros
elementos, exteriores, um regime de administração da irrelevância, cons-
titui uma comunidade de atenção, na medida em que o modo como se
constitui o foco de atenção segue a forma como os outros o fazem. Isso
se manifesta, na prática, na escolha dos objetos a se pesquisar e daqueles
dignos de referência. Nesses espaços, há reforço mútuo de expectativas au-
todepreciativas na prática, ao se generalizar a atenção voltada para espaços
coletivamente considerados centrais.
Acontece de você colocar coautor de fora, do centro, e ele garantir [a
publicação d’] o artigo. Eles reforçam a posição deles e nós a nossa.
Ora, isso mantém como tudo está, o prestígio e o atraso. “Ah é fulano
escrevendo aqui”, tudo bem. Mas o fulano nunca somos nós. Já teve
casos de chamar gente de fora para publicar o mesmo artigo, só para
dar o nome. Sabe? Ninguém presta atenção. Bem, nem a gente, né?
Meu colega aqui do lado publica, e nem sei do que se trata (Entrevista
ao autor, número 12).22
A dinâmica da ignorância e atenção é também uma das causas do
terceiro elemento do regime de administração da irrelevância, o qual diz
respeito ao intercâmbio de pesquisadores. Tal elemento é fundamental
para legitimar espaços de prática e justicação, por meio da intensidade
dos uxos de pessoal entre os espaços de produção de ciência. Para Burris
(2004), a visão mais tradicional da hierarquia acadêmica – que relacionava
diretamente prestígio departamental a publicações importantes, à existên-
cia de teorias aceitas, ou a algumas “estrelas acadêmicas” que se destacavam
– não conseguia explicar as percepções de prestígio que, muitas vezes, não
se coadunavam com os dados obtidos em pesquisas cientométricas. Para o
autor, prestígio departamental seria um efeito das redes e do intercâmbio
22 Entrevista ocorrida na UFRGS, Professora pesquisadora CNPq, área de Genética funcional.
68
de pesquisadores entre instituições, ou seja, um efeito do capital social
acumulado em determinados espaços.23
Na dinâmica das redes acadêmicas, são esperados uxos departamen-
tais, principalmente doutores e pós-doutores, que seguem na direção dos
departamentos de menor prestígio para aqueles de maior prestígio, para
cursos de curta duração e intercâmbios de pesquisa (Xie, 2014). Assim,
os departamentos mais prestigiados tendem a aumentar ou estabilizar
seu prestígio, ocorrendo o contrário com aqueles de menor prestígio.
Tal processo é bem documentado pela sociologia da ciência por meio do
Matthew eect (Merton, 1968); este “signica que cientistas eminentes
recebem reconhecimento e recompensas desproporcionalmente maiores
por suas contribuições à ciência do que cientistas menos conhecidos por
contribuições comparáveis” (Xie, 2014, p. 2). Fluxo e prestígio caminham
juntos na constituição e no reforço das dinâmicas atencionais promotoras
de hierarquias na ciência.
Eu z doutorado no exterior, bolsa pós-doc e tudo. Se você pegar meus
trabalhos mais citados, são aqueles que publiquei quando eu estava no
doutorado. Meu doutorado em Wisconsin, sem sombra de dúvidas
teve mais impacto em minha carreira. Você é desaado o tempo intei-
ro por temas novos, áreas diferentes... Eu observava meu orientador,
superfamoso, e via como a ciência se desenvolvia em um lugar top.
Ele era referência. A ideia de excelência eu encontrei em Wisconsin.
Tinha uma sala de seminários que se chamava Howard Temin, o cara
que descobriu a transcriptase reversa, o livro de bioquímica mais usa-
do no mundo era da minha universidade, o Lehninger. Eles incutiam
muito isso em você. Quando eles estavam trazendo novos alunos para
o doutorado, eles faziam os alunos que estavam lá na época ajudar a
persuadir eles de vir. Teve gente fantástica antes de você, mas você tem
que garantir que outras pessoas fantásticas virão, para que isto se man-
tenha. (Entrevista ao autor, número 46).24
23 Xie (2014) discutiu o efeito das redes acadêmicas no aumento das desigualdades globais em
ciência. Indica que universidades “centrais”, ao atraírem mais pesquisadores estrangeiros, fazem
com que esses prossionais bem treinados trabalhem para seus pesquisadores seniores, cujas
parcerias redundam em mais prestígio para esses últimos.
24 Entrevista ocorrida na Embrapa Bioenergia, Professora pesquisadora CNPq, área de Genética
Molecular e de Microrganismos.
69
A assimetria nos uxos de pesquisadores leva às ideias de “atualização
metodológica”, “atualização teórica”, “modernização”, muito comuns nos
vocabulários de programas de mobilidade internacional em ciência, ofe-
recidos por países supostamente periféricos em ciência. No caso do Brasil,
embora não só, priorizam-se os Estados Unidos e a Europa, assumindo-
-se tacitamente tais locais como centros da produção cientíca relevante,
na maioria das vezes despendendo somas desproporcionais aos já escassos
nanciamentos internos à ciência e à tecnologia.25 São esses uxos de es-
tudantes e professores da “periferia” ao “centro” que rearmam posições
hierárquicas e que reproduzem o modelo da comunidade central da ci-
ência em seus países de origem. Esses uxos, ademais, funcionam como
meios de transporte de recursos simbólicos, como teorias e métodos, que
muitas vezes são recebidos sem a devida mediação das condições locais
de produção cientíca e tecnológica, ganhando imediata visibilidade e
atenção local.
Tal assimetria nos uxos nos leva ao quarto elemento do regime de
administração da irrelevância, a saber, a capacidade de tradução/difusão,
processo bem documentado por Medina (2013). O autor reconhece as
extensas redes de difusão do conhecimento cientíco que se estruturaram
por meio de uxos assimétricos entre espaços de produção de ciência. Esse
processo nos legou o modelo de comunidade central de ciência, nossos
pressupostos atencionais e as concepções de hierarquia cognitiva que se
estruturam em torno da diferença centro e periferia.
Se, como sustenta a teoria do ator-rede, uma ideia pode ir tão lon-
ge quanto o alcance da rede que a contém, é possível armar que a
aceitação de uma ideia por acadêmicos de países em desenvolvimen-
to depende da força, densidade e escopo da rede que permitiu que
o conhecimento chegasse a lugares distantes de onde foi produzido.
(Medina, 2013, p. 9).
25 Vide o caso do Programa Ciência Sem Fronteira. Entre 2012 e 2016, foram nanciados pelo
programa cerca de 93 mil estudantes brasileiros no exterior, com cifras superiores a 13 bilhões
de reais, em bolsas de graduação, sanduíche, doutorado, pós-doutorado e doutorado pleno no
exterior e pesquisador visitante. Cerca de 60 % dessas bolsas foram destinadas a universidades
de países supostamente centrais, como Estados Unidos (27,8 mil), Reino Unido (10,7 mil), Ca-
nadá (7,3 mil), França (7,2 mil) e Austrália (7 mil) (Marques, 2017). Tal montante de recursos
tomou grande parte dos investimentos estatais em ciência no país, mesmo que a grande maioria
das bolsas fosse paga a instituições de pesquisa com o mesmo status acadêmico das brasileiras.
70
De forma oposta, a restrição do acesso aos espaços globais de prática,
o baixo impacto editorial e uxos inexistentes produzem “traduções assi-
métricas” (Medina, 2013) do conhecimento cientíco. Medina preocupa-
-se com as hierarquias e particularidades que se apresentam quando “os
ambientes (campos, mundos sociais ou dependências de uma corporação
ou governo transnacional, para mencionar apenas algumas áreas) estão
desigualmente equipados em termos de recursos simbólicos e materiais”
(2013, p. 16). Essas diferenças importam para a efetividade das traduções/
recepção; elas apontam para a resolução, por exemplo, de controvérsias e
para a legitimidade de teorias. Decorre, então, que algumas traduções te-
riam mais chance de se tornar legítimas que outras. Neste ponto, Medina
(2013, p. 17) refere-se a “traduções assimétricas”.
O que acontece quando as áreas que condicionam os atores são dife-
rentes? O que acontece quando os atores estão desequilibrados com
recursos simbólicos e materiais? Quão viáveis são as traduções e que
efeitos produzem? Para começar a esclarecer, chamaremos de traduções
assimétricas aquelas que são produzidas por atores cujo poder não é
comparável.
Para a questão que aqui se coloca, importa acrescentar a essas assi-
metrias indicadas por Medina o seu enraizamento nos espaços de prática
cientícas, tornando-as naturais, valores cientícos legítimos. O que aqui
se quer dizer é que tais hierarquias não se constituem somente a partir dos
uxos acadêmicos assimétricos, mas a partir da legitimidade que as hierar-
quias cientícas adquirem nos espaços de prática. A atenção aos produtos
da ciência alheia com a concomitante ignorância de sua própria é o cerne
valorativo hierárquico que estrutura os regimes de administração da irre-
levância em torno de “ciência de centro e de periferia”. Os uxos e as tra-
duções assimétricas tanto reforçam como são consequência desse regime.
Assim, o poder de traduzir (Medina, 2013), na conceituação que
aqui se busca, referir-se-ia à reprodução dos pressupostos valorativos e
atencionais enraizados em regimes de administração da irrelevância. Nes-
te regime, não está em questão a legitimidade e a validade da tradução,
mas a capacidade de reprodução dos conteúdos e práticas suspostamente
centrais que circulam no contexto. Ocorrem, em tais contextos, tentativas
regulares de “apropriação” e “assimilação”, muitas vezes deslegitimando
71
inovações conceituais que ali, recorrentemente, emergem. A imagem que
se utiliza, quase como um julgamento moral, para se referir a processos
mais autônomos de construção cientíca em tais contextos supostamente
periféricos, é a de “atraso”.
Alguns apontamentos nais
Neste trabalho, buscou-se investigar a prática cientíca em contextos
supostamente periféricos, nos quais o conhecimento cientíco produzi-
do é diminuído a uma condição de inferioridade ante outros contextos.
Mostramos que a prática cotidiana da ciência nesses contextos é orientada
por valores e procedimentos, conscientes ou não, de periferização, ou seja,
processo cientíco com conteúdo valorativo e pragmático próprio, cujos
elementos foram acima discutidos. A periferização é ecaz na medida em
que se torna prática rotineira nos espaços de produção de ciência, reforça-
-se por meio da trajetória dos cientistas, nas interações cotidianas e na
estrutura material que sustenta a ciência em seus mais diversos contextos.
Essas dimensões articuladas produzem uma ordem cientíca autodepre-
ciada, de baixa autoestima, periférica e estável, aqui chamada de regime de
administração da irrelevância.
Os elementos acima discutidos se reforçam, constroem-se como causa
e consequência uns dos outros, o que garante a estabilidade do regime
no tempo. Eles mostram uma adesão generalizada a agendas cientícas
globais nesses espaços, enraizadas por meio de diversas práticas que, por
serem posteriores, são compreendidas como produtoras de conhecimento
atrasado e de menor qualidade. Como consequência, tem-se estratégias de
direcionamento das pesquisas para temas e objetos que atraem pouca ou
nenhuma atenção da ciência “central”, sem potencial de formar agendas
globais, de pouco impacto no sistema de publicação internacional.
As estratégias identicadas acima acabam por “exotizar” os objetos
cientícos nesses espaços, supostamente por serem incapazes de seguir
protocolos “centrais” de pesquisa, pela inabilidade de reproduzi-la em
nível de excelência e inovação comparáveis ao “centro”. Os regimes de
administração da irrelevância, paradoxalmente, operam localizando tais
espaços de prática entre o submisso e o exótico. Esta localização, assim, é
um limbo editorial para cientistas, que se percebem entre a desatenção do
“centro” e o desinteresse da “periferia”.
72
Esta dinâmica atencional, seguindo a discussão feita por Zerubavel
(2015), produz uxos assimétricos de pesquisadores que, por estarem
atentos aos “centros” legitimados, tendem a preferi-los em detrimento
da “periferia”. Como consequência desses uxos, a ordem hierárquica na
ciência é reproduzida sem questionamento e o regime de administração
da irrelevância reforçado. Os uxos funcionam também como meios de
transporte de recursos simbólicos – objetos, teorias e métodos – que são
recebidos sem a devida mediação das condições locais de produção cien-
tíca e tecnológica. Essa recepção segue a dinâmica de “traduções assimé-
tricas” (Medina, 2013), ou seja, com base na reprodução dos pressupostos
valorativos e atencionais enraizados em regimes de administração da irre-
levância, não se coloca em questão a legitimidade e a validade dos recursos
simbólicos trazidos/traduzidos do “centro”, que são tomados como legíti-
mos e válidos espontaneamente.
Os quatro elementos acima, experimentados cotidianamente por pes-
quisadores, compõem um regime de valores e práticas que opera no sen-
tido de legitimar e sustentar uma divisão geopolítica do conhecimento.
Para o caso da dinâmica de periferização, emerge um regime especíco que
administra a irrelevância do que é feito em todas as dimensões da atividade
cientíca nos contextos nos quais opera. Nesses contextos, a originalidade
pode acarretar muitas consequências para a legitimação e o nanciamento
da pesquisa: a inovação pode ser punida, agendas nacionais abandonadas
e objetos deslegitimados.
A dinâmica entre “local” e “global”, enraizada nos contextos de prá-
tica cientíca, deve ser observada a partir de processos de “centralização
e “periferização” sem limites territoriais denidos, ou seja, não se deve to-
má-la em função do contexto nacional, nem como estável. Quer-se dizer
que os processos de “centralização” e “periferização” e a formação de regi-
mes de administração da relevância/irrelevância não respondem a critérios
geográcos, podendo ocorrer em um laboratório na Suécia, nos Estados
Unidos ou no Brasil. O modelo da comunidade central da ciência ultra-
passa fronteiras políticas e instaura-se mesmo em laboratórios renomados.
O que se quis dizer é que a ideia de “centro” e “periferia” circula como
expectativa, como um valor (Luhmann, 1986), que orienta as seleções na
prática cotidiana dos cientistas e estrutura a dinâmica da atenção.
Mais que orientar a prática para processos de subalternização cientí-
ca, os regimes de administração da irrelevância são portadores de concep-
73
ções políticas a respeito do lugar que ciência e tecnologia têm e deveriam
ter em tais contextos. Nesse sentido, os pressupostos hierárquicos assumi-
dos em regimes de prática cientíca informam as decisões que se consubs-
tanciarão em políticas, estratégias de investimento privado e critérios de
avaliação de ciência e tecnologia.
Tais constatações deveriam valer também para o próprio “centro” dos
estudos sociais da ciência e da tecnologia. Recorrentemente, o mainstream
da área se atualiza com categorias, valores, teorias, práticas, que são caras
aos contextos europeus e norte-americanos (Law; Lin, 2015). Há uma
completa falta de atenção e interesse para o que vem ocorrendo em outros
contextos de produção dos science studies, embora haja atualmente um mo-
vimento, rudimentar, em sentido contrário, ainda que venha de contextos
e indivíduos supostamente “periféricos”. Tal movimento poderá produzir
dinâmicas colaborativas que superem, para além de linguagens, práticas e
normas particulares, as hierarquias consolidadas cuja consequência é tão
somente o desconhecimento de si e de outros contextos de produção de
ciência.
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Ciências “duras” e normais: objetivos
móveis (in)alcançáveis para
um “programa” no Brasil
Henrique Cukierman, Márcia Regina Barros da Silva
e Ivan da Costa Marques
Como dialogar a partir dos Estudos CTS (Ciências-Tecnologias-Socie-
dades), com as ciências “duras” e as engenharias em nosso país? Mesmo
reconhecendo que, atualmente, o diálogo seja, talvez, ainda impossível –
pois considerar, como consideramos, que a tecnociência não é neutra nem
universal pode gerar rejeição incontornável –, mas na expectativa de uma
possibilidade de diálogo, este capítulo pretende propor um guia inicial
para imaginar esse diálogo quase impossível entre a comunidade brasileira
de CTS – nós, uma comunidade diminuta – e o resto da comunidade
cientíca brasileira – a imensa maioria.
Para propor esse diálogo, desejamos buscar o que de mais próximo te-
mos em comum. Imaginar começar com Bruno Latour, por exemplo, seria
demasiado arriscado – rapidamente seríamos acusados de pós-modernos e/
ou relativistas, para dizer o mínimo. Há pouca disposição para ouvir que
requalicamos, mas não desqualicamos a objetividade das ciências, pois
continuamos sendo realistas, embora se possa dizer que sejamos construti-
vistas. Muito mais recomendável, queremos crer, é começar com omas
Kuhn (1995, 2000), porque com ele a conversa com uma comunidade
majoritariamente “realista” tem de imediato um espaço para se desenvol-
ver. Aqui a referência a Kuhn é basicamente ao seu livro A estrutura das
revoluções cientícas (doravante referido simplesmente como A estrutura),
um livro de história-losoa das ciências, tornado um bestseller pela comu-
nidade de cientistas “duros”, para surpresa do próprio autor.
78
Projetos de ciências
O que há em A estrutura que interessa a nós, a comunidade brasileira
CTS? Uma breve síntese anotada por Steven Shapin ajuda nosso interesse
naquele diálogo.
A estrutura era a besta fera da losoa da ciência – era vista como ne-
gando o papel, ou mesmo a suciência na ciência, da verdade, razão,
método, realidade e progresso. O livro rejeitou o método em favor do
consenso social ou de critérios informais inarticuláveis; desaou a noção
de que a ciência era uma prática peculiarmente aberta; elevou a prática
sobre a teoria formal, a mão sobre a cabeça e a comunidade sobre o co-
nhecedor individual livre e racional. Elogiou a importância losóca de
descrever a ciência de maneira realista, em vez de como seus produtos
acabados foram consagrados nos livros didáticos (Shapin, 2015, p. 11).1
Concordamos com Shapin em sua percepção de que um dos prin-
cipais apelos d’A estrutura é o deslocamento que produz das certezas e
poderes da ciência “pronta” às fragilidades e incertezas de uma ciência “em
fazimento”. Sim, estamos perigosamente próximos de Bruno Latour que,
não por acaso, publicou em 1987 o livro Science in action: how to follow
scientists and engineers through society, dando continuidade ao seu projeto
de escrever uma obra abrangente, inspirado pelo seu livro anterior Labora-
tory life: the social construction of scientic facts.2 Latour, em conjunto com
alguns outros pioneiros dos Science Studies dos anos 1970, congurou o
que se convencionou chamar da guinada antropológica rumo ao interior
do dia a dia de um laboratório cientíco. Pela primeira vez, cientistas mo-
dernos seriam observados nos mesmos termos antropológicos utilizados
para investigar comunidades indígenas pré-modernas.
Na mesma resenha d’A estrutura, Steve Shapin (2015, p.11-12) elenca
brevemente as questões principais que, para ele, marcaram os primórdios
da obra de omas Kuhn: verdade, educação cientíca, método cientíco
e racionalidade. Vemos que as perspectivas de omas Kuhn se sustenta-
vam sobre questões que indicavam as características da formação de uma
1 Esta e todas as traduções a seguir foram feitas pelos autores. Trabalho apresentado no 8º. Sim-
pósio Nacional da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias em
2019 e no 17º. Seminário Nacional da Sociedade Brasileira de História da Ciência, em 2020.
2 Ambos traduzidos para o português em (Latour; Woolgar, 1997) e (Latour, 2000).
79
comunidade especializada. Sobre a verdade, Kuhn dizia que talvez fosse
necessário abandonar a noção “segundo a qual as mudanças de paradigma
levam os cientistas e os que com eles aprendem a uma proximidade sempre
maior da verdade” (Kuhn, 1995, p. 213).
Sobre a educação cientíca e hábitos mentais dos cientistas, Shapin
notou a rigidez que eles promovem. Para Kuhn, “trata-se, certamente, de
uma educação rígida e estreita, mais do que qualquer outra, provavelmen-
te – com a possível exceção da teologia ortodoxa” (Kuhn, 1995, p. 208).
Sobre o método cientíco, Kuhn chamou atenção para os paradigmas, que
“podem ser anteriores, mais cogentes e mais completos que qualquer con-
junto de regras para a pesquisa que deles possa ser claramente abstraído”
(Kuhn, 1995, p. 71). Do mesmo modo, sobre a unidade da ciência, indi-
cava que esta seria “uma estrutura bastante instável, sem coerência entre
suas partes” (p. 49).
Kuhn oferecia especial destaque para a racionalidade cientíca especí-
ca daquelas comunidades, que, para ele, aparecia quando: “na escolha de
um paradigma – como nas revoluções políticas – não existe critério supe-
rior ao consentimento da comunidade relevante” (Kuhn, 1995, p. 128).
A noção de comunidade era também destacada. A insuciência da lógica
como argumento para a ciência, dizia ele, deveria levar a sério “as técnicas
de argumentação persuasiva que são ecazes no interior dos grupos muito
especiais que constituem a comunidade dos cientistas” (p. 128).
E, em resumo, para Shapin, as proposições de Kuhn
[...] [eram] notáveis, tanto mais como foram escritas – não, como su-
punham alguns críticos, por alguém que pretendia denegrir ou atacar
a ciência, mas por alguém que, até onde se sabe, pensava que, é claro,
a Ciência era uma ferramenta poderosa e prática cultural conável, talvez
a maneira mais poderosa e conável de conhecer o mundo (Shapin, 2015,
p. 12, grifos nossos).
Para Shapin, o projeto apresentado por Kuhn é justamente o conjun-
to de proposições que entreabriram uma porta para permitir a passagem
ao que veio a se constituir como o campo de Estudos CTS. Apesar da pro-
ximidade de suas proposições com este campo, o próprio Kuhn questio-
nou tal análise. Em 1991, na obra e road since structure, quando omas
Kuhn atuava no Departamento de História da Ciência na Universidade de
80
Harvard, ele assim se reportou sobre os escritos de David Bloor: “estou en-
tre aqueles que consideraram absurdas as reivindicações do Programa For-
te: um exemplo de desconstrução enlouquecida” (Kuhn, 2000, p. 110).3
Apesar de estarmos à procura dos pontos de contato com omas
Kuhn, a resenha de Steve Shapin dá bem a medida do que não temos em
comum, como que a sugerir que tomemos um outro caminho em nosso
intento. Não nos interessa acompanhar a querela euro-norte-americana
sobre realismo x relativismo, mas sim propor um caminho brasileiro e, de
certa maneira, latino-americano, sobre modos de empreender os estudos
de ciência e tecnologia locais.
Por onde, então, começar esse diálogo, e como desenvolvê-lo? O que
se segue são algumas ideias – diríamos mesmo, provocações – para prover
um alento a essa possível prosa intercomunitária, entre as ciências duras
e as CHSSALLA, um acrônimo para o conjunto das Ciências Humanas,
Sociais, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes, que ganhou escala
de uso após a publicação de Diagnóstico das Ciências Humanas, Sociais e
Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes (CHSSALLA) no Brasil (CGEE,
2020). Comecemos pelo começo, a saber, pelo próprio título do livro, e
structure of scientic revolutions. De um lado, uma estrutura, um subs-
tantivo no singular, um padrão, um conjunto de regras e, de outro lado,
as revoluções, um substantivo no plural, apontando para um “além das
regras”, uma superação de modelos e padrões sempre em xeque quando se
trata de uma transformação revolucionária.
Do nosso ponto de vista, a pluralidade é, além da historicidade, a
outra questão principal do livro, em que a ciência é retratada como em-
preendimento não cumulativo, sem uma trajetória contínua em direção à
verdade, mas marcada por descontinuidades celebradas como revoluções.
Portanto, não só a ciência não poderia existir sem revoluções, sem descon-
tinuidades, como, além disso, suas “verdades” só podem ser consideradas
quando vistas de “dentro” de um paradigma, vistas como intraparadigmá-
ticas. Portanto, uma verdade cientíca não é mais uma entidade absoluta,
que habitaria a própria natureza, mas tem um valor vinculado a um para-
digma. E, nessa condição, já que é intraparadigmática, perde seu valor de
verdade assim que um novo paradigma é adotado, ou seja, assim que ocor-
3 Kuhn se referia ao Programa Forte de Sociologia da Ciência da Universidade de Edimburgo.
Ver (Bloor, 2008).
81
re uma dada revolução cientíca. Essa falta de acumulação de verdade en-
tre paradigmas, essa crítica ao acúmulo progressivo é a base das acusações
de relativismo que se zeram contra Kuhn. O que houve na historiograa
foi a passagem, a substituição, da discussão entre internalismo x externa-
lismo, para outro debate, esse entre relativismo x realismo, ainda vigente.
A singularidade d’A estrutura, nos termos de Lorraine Daston, seria a
crítica à noção de que há uma regularidade nas ciências: “a própria ideia de
procurar regularidades abrangentes na história da ciência parece bizarra,
[...] – no caso de Kuhn, a última tentativa de dar à Reason (agora encarnada
na ciência) uma história racional” (Daston, 2016, p, 117). Ou seja, para
Kuhn, a própria estrutura (das revoluções) é o universal, isto é, para o autor,
o padrão das ciências é a existência do paradigma! O caminho padrão é
aquele já muito bem discutido nos debates acerca das proposições veicu-
ladas no livro: ciência normal-anomalia-crise-ciência revolucionária – e,
novamente, ciência normal-anomalia-crise-ciência revolucionária – enm,
eis o ciclo virtuoso do fazer da ciência, eis o seu universal.
Situamos agora nosso almejado diálogo com o/a leitor/a para pergun-
tar-lhe: temos essa estrutura em nosso sistema de ciência e tecnologia? Caso
estendamos a ideia de estrutura para abarcar a infraestrutura necessária
à pesquisa, indicada pela existência de museus, laboratórios, bibliotecas,
pessoas treinadas no cotidiano desses ambientes, verbas de fomento e uni-
versidades, entre outros, podemos considerar que fazemos parte desse uni-
versal? Que este universal acontece entre nós? Ou há diferenças?
Vejamos esse universal por um viés objetivo: seus números. A título de
exemplo, tomemos a tabela com os top 1000 cientistas da computação, em
que eles, como nós, aparecem como supostamente irmanados na ciência
normal (Guide2Research, 2019). Não há nenhum brasileiro entre os top
1000. Consultando a extensão da tabela por país, vemos que o número um
da ciência da computação brasileira aparece na 1543ª posição ou, dito de
outra forma, a ciência da computação normal não passa pelo Brasil. Mais
ainda, se a normalidade não passa pela ciência da computação no Brasil,
quem aqui terá legitimidade para identicar anomalias e crises? Quem
terá legitimidade para liderar uma revolução cientíca na computação?
Neste ponto fazemos a nossa primeira proposição: nós, comunidade
brasileira de CTS, para empreender um diálogo com os cientistas bra-
82
sileiros, precisaríamos começar a reunir inscrições como essas.4 Ou seja,
precisamos dizer, com a “objetividade” dos rankings, quão ausente da nor-
malidade está nossa ciência normal, ou a ciência que é normalmente feita
aqui. Ou, ainda, procurar mostrar que a ciência só é normal em alguns
lugares e, portanto, está longe de ser um universal, ao menos se insistirmos
nessas métricas de ranqueamento e nessa vontade inconfessa de ser civili-
zado, de mostrar a “eles” que “não somos macacos”, como escreveu Rocha
Lima a Oswaldo Cruz já lá se vai um século, quando o primeiro estava na
Alemanha, com ns de apresentar nossa produção cientíca (Cukierman,
2007, p. 106).
Enm, a tarefa seria a de começar a posicionar a América Latina no
rastro de um Gabriel García Márquez (1982), por exemplo, na ocasião em
que este lamentou em seu discurso, quando lhe foi conferido o Prêmio
Nobel: “a interpretação de nossa realidade com esquemas alheios só con-
tribui para fazer-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres,
cada vez mais solitários”.
Podemos introduzir mais argumentos, a partir do que se pode chamar
de uma leitura latino-americana5 de Kuhn, explorando este sentimento
de solidão, como muito bem localizado por García Márquez – a solidão
latino-americana quando medida por esses rankings e quando tentamos
nos enquadrar nessa “estrutura universal” kuhniana.6 Se apenas seguirmos
omas Kuhn, não há solução à vista para a nossa solidão, como exposto
na seguinte passagem d’A estrutura.
4 O termo “inscrição” tem um signicado preciso nos Estudos CTS. Ele se refere a uma marca
que aparece no encontro do “fora” com o “dentro” de um instrumento. Por exemplo, o rastro de
uma partícula em uma câmara de bolhas em um laboratório de física. Ou uma pegada de uma
onça em um sítio preparado para estudar os hábitos noturnos deste felino. Ou uma impressão
digital deixada por um criminoso na cena do crime. Ou uma tabela de artigos comprados pelos
clientes em um supermercado que aparecem no encontro dos clientes com o computador do
supermercado. Ou uma tabela construída no encontro de cientistas da computação com um
aparato de recenseamento demográco (que os classica).
5 Cabe observar que o processo proposto por Paulo Freire, que leva à libertação do analfabetismo
que não deixa de ser uma solidão para o adulto, começa por uma “leitura do mundo”. É a partir
da “leitura do mundo” que o educando (analfabeto) faz com que surjam as “palavras geradoras”
com as quais ele se municia para aprender a ler e libertar-se.
6 A questão universalista na historiograa das ciências brasileiras também foi discutida por Silva
(2016, p. 68): “o que está em jogo neste tipo de procedimento narrativo linear e universalista é
a direção de sentido que acrescenta às coisas cientícas. O nome desse processo pode ser sim-
plesmente interpretação, mas devemos desdobrar os signicados envolvidos no procedimento
cientíco para compreender como sua integração às noções de tempo linear e universal se dá”.
83
Cada uma das civilizações a respeito das quais temos informação pos-
suía uma tecnologia, uma arte, uma religião, um sistema político, leis
e assim por diante. Em muitos casos, essas facetas da civilização eram
tão desenvolvidas como as nossas. Mas apenas as civilizações que des-
cendem da Grécia helênica possuíram algo mais do que uma ciência
rudimentar. A massa dos conhecimentos cientícos existentes é um
produto europeu, gerado nos últimos quatro séculos. Nenhuma outra
civilização ou época manteve essas comunidades muito especiais das
quais provêm a produtividade cientíca (Kuhn, 1995, p. 210).
Então, se esse empreendimento é (ou, nesses termos, foi) basicamente
europeu, ou melhor euro-norte-americano, como camos nós, que não
somos europeus nem norte-americanos? Não seria mais recomendável que
aceitássemos a condenação à solidão de García Márquez e que tratássemos
de arrumar um outro esquema para nos avaliarmos/entendermos? E, de
forma mais radicalizada, não seria o caso de incluirmos outros saberes para
dialogarmos e nos constituirmos em novos moldes? E o que fazer com
nossa história das ciências e das tecnologias? Ou com nossas origens não
helênicas, indígenas e africanas? Para participar da ciência, teremos, então,
de ter uma comunidade de brasileiros complacentes diante da necessária
(e inalcançável) conversão ao europeísmo?
A pátina da civilidade europeia já é tema antigo para as nossas eli-
tes cientícas, como bem mostra a correspondência de 13 de outubro de
1905 de Oswaldo Cruz à sua esposa Miloca, por ocasião da sua viagem de
inspeção aos portos brasileiros do norte do país, realizada durante o últi-
mo quartel de 1905. Oswaldo Cruz, após descrever a chegada a Aracaju,
conta que foram para a residência do Dr. Pondé, uma casa luxuosa que
servia ela mesma de sede à Inspetoria do Porto.
Sentamos à espera do café, que foi servido em taças de porcelana, em
bandejas de prata com pequenos guardanapos. O café estava saborosís-
simo [...] quando apareceu-nos a dona da casa, que fez-me car embas-
bacado. Imagine uma mulatinha, não muito bonita, mas trajada com
o mais apurado esmero e gosto, toda de branco com uma blusa de ren-
das, de maneiras extremamente distintas, sem loquacidade exagerada
e com uma compostura rara de ver-se mesmo aí; muito bem educada,
falando muito discretamente, empregando terminologia muito ade-
quada, sem excesso, sem pose. Tal é Mme. Zuleica Pondé, née Mlle.
Doria. O segredo de tudo: Mme. Pondé é uma senhora viajada e que já
84
esteve na Europa. Aparenta 20 a 21 anos e está casada há um ano. De-
pois de todas as terríveis “sacarias”, foi para nós um lenitivo encontrar-
-se uma pessoa civilizada... (Cukierman, 2007, p. 40, sublinhado do
autor, itálico nosso).
O Brasil mulato podia conseguir ser elegante e civilizado, desde que
ltrado pelos bons modos da Europa, evidentemente a Europa do Nor-
te! Assim reciclada, uma Zuleica poderia tornar-se Mme., mesmo tendo
nascido em uma família qualquer. Refeita em esmero e gosto, em gestos
e vocabulário, madame Zuleica era o exemplo agrante de que havia uma
solução para o Brasil e sua gente. A solução seria a europeização, branquea-
mento e alheamento de sua brasilidade. Mas qual o nosso papel na mise en
scène internacional da ciência, o papel da nossa euro-norte-americanização?
A depender de uma lista como aquela dos top 1000, onde estaria a nossa
visibilidade? É isso o que chamamos de internacionalização? A nossa invi-
sibilização? A nossa solidão?
Mas há mais a dialogar, se observarmos os transbordamentos apon-
tados pelo próprio omas Kuhn, a começar pelo prefácio do seu mais
famoso livro.
Mais importante ainda, com exceção de breves notas laterais, eu nada
disse a respeito do avanço tecnológico ou das condições sociais, econômicas
e intelectuais externas no desenvolvimento das ciências. [...] penso que
[considerações] desse tipo não modicaria[m] as teses principais de-
senvolvidas neste ensaio, mas certamente adicionaria[m] uma dimensão
analítica primordial para a compreensão do avanço cientíco. (Kuhn,
1995, p. 15, grifos nossos).
Como nós, comunidade cientíca brasileira, podemos entender essas
“condições externas” sem o concurso das ciências humanas e sociais? Se
o que ca “de fora” nas análises de omas Kuhn é justamente o que
recai aitivamente sobre o lado de “dentro”, a sociedade, dos fazeres
tecnocientícos em terras brasileiras, como vericar o que Kuhn chama
de condições sociais, econômicas e intelectuais externas “adequadas” ao
avanço tecnocientíco em um Brasil cada vez mais, e somente, exporta-
dor de commodities e importador de tecnologias? A questão torna-se ain-
da mais intrincada se retomarmos o que o próprio Kuhn apresentou como
condições problemáticas – que ele trata como saberes pré-paradigmáticos
– para o status das ciências humanas e sociais, quando se vale do conceito
85
de “ciência madura”, usado, aqui e ali, ao longo d’A estrutura, o qual,
embora não declare explicitamente, parece estar exclusivamente relacio-
nado às ciências duras e até contrastar com a ciência pré-paradigmática.
Citando Kuhn,
ao contrário do engenheiro, de muitos médicos e da maioria dos teó-
logos, o cientista não está obrigado a escolher um problema somente
porque este necessita de uma solução urgente. Mais: não está obrigado
a escolher um problema sem levar em consideração os instrumentos
disponíveis para resolvê-lo. Desse ponto de vista, o contraste entre os
cientistas ligados às ciências da natureza e muitos cientistas sociais é
instrutivo. Os últimos tendem frequentemente – e os primeiros quase
nunca – a defender sua escolha de um objeto de pesquisa – por exem-
plo, os efeitos da discriminação racial ou as causas do ciclo econômico
– principalmente em termos da importância social de uma solução.
Em vista disso, qual dos dois grupos nos permite esperar uma solução
mais rápida dos problemas? (Kuhn, 1995, p. 206-207).
Em grande medida, o termo “ciência” é reservado para campos que
progridem de maneiras óbvias. Nada exprime isso mais claramente do
que os debates recorrentes sobre se uma ou outra das ciências sociais con-
temporâneas é realmente uma ciência. Esses debates têm paralelos nas
discussões sobre períodos pré-paradigmáticos, de campos que hoje são ro-
tulados como ciência, sem hesitação. Latour (2000, p. 82-83) aponta, por
exemplo, a historicidade da escrita cientíca, quer dizer, a “transformação
da prosa linear numa, digamos, formação entrelaçada de linhas de defesa
[que] é o sinal mais seguro de que um texto se tornou cientíco.” Esse é o
caminho apontado em várias ciências e, para o autor, a Primatologia é uma
dessas. Ao comparar dois momentos muito diferentes dos estudos na área,
a profundidade dos textos entre o momento inicial e aquele considerado
nal se altera, com “tantas camadas” que o texto se torna cientíco.
Há mais a dizer sobre esse “lado de fora”, referido evidentemente às
condições de nanciamento da ciência:
as tentativas de aumentar a acuidade e a extensão de nosso conheci-
mento [...] ocupam uma fração signicativa de literatura da ciência
experimental e da observação. Muitas vezes, complexos aparelhos es-
peciais têm sido projetados para tais ns. A invenção, a construção
e o aperfeiçoamento desses aparelhos exigiram talentos de primeira
86
ordem, além de muito tempo e um respaldo nanceiro considerável. Os
síncrotons e os radiotelescópios são apenas os exemplos mais recentes
de até onde os investigadores estão dispostos a ir, se um paradigma os
assegurar da importância dos fatos que pesquisam. [...] alguns cientis-
tas adquiriram grandes reputações, não por causa de suas descobertas,
mas pela precisão, segurança e alcance dos métodos que desenvolveram
visando à redeterminação de um tipo de fato previamente conhecido.
(Kuhn, 1995, p. 46, grifos nossos).
Neste ponto, torna-se inevitável acrescentar ao nosso imaginado
diálogo a inquietante pergunta: como fazer ciência sem esse respaldo
nanceiro considerável?
Diante das diculdades acima elencadas para repensar a tecnociência
à brasileira a partir de Kuhn, é ele mesmo que parece poder nos apontar
uma saída em seus próprios termos, a saber, o da mudança de paradigma.
O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir
da perspectiva da historiograa contemporânea pode sentir-se tentado
a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda com eles o pró-
prio mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos
instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda
mais importante: durante as revoluções, os cientistas veem coisas novas
e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para
os mesmos pontos examinados anteriormente. É como se a comuni-
dade prossional tivesse sido subitamente transportada para um novo
planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se
apegam objetos desconhecidos. Certamente não ocorre nada semelhante:
não há transplante geográco; fora do laboratório os afazeres cotidia-
nos em geral continuam como antes. Não obstante, as mudanças de
paradigma realmente levam os cientistas ao vero mundo denido por seus
compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que
seu único acesso a esse mundo dá-se através do que veem e fazem, podere-
mos ser tentados a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um
mundo diferente. (Kuhn, 1995, p. 146-146, grifos nossos).
A citação insinua um convite à elaboração de um novo paradigma
para responder à compreensão e produção da tecnociência brasileira, ins-
pirado e inspirador de um país diferente – um “Brasil novo” –, ou talvez,
mais propriamente, o reconhecimento de “Brasis novos”, muito distintos
87
daquele Brasil “internacionalizado” que se tornou o mote da avaliação aca-
dêmica. Um Brasil muito mais próximo das nossas próprias circunstân-
cias, em especial, o da renovação do compromisso nacional da universida-
de pública com o enfrentamento dos graves problemas que assolam o país.
Portanto, podemos propor em nosso diálogo – de forma mais ampla e
ainda que sob a ameaça permanente de perdermos nossos interlocutores –,
tirando partido do próprio questionamento de Kuhn sobre a verdade cien-
tíca como um absoluto, que sejam reconhecidos os valores, os acordos e
as negociações que cercam os fazeres da tecnociência brasileira, procuran-
do identicar as opções à nossa disposição, sobretudo, e evidentemente,
abrindo mão daquela universalidade tanto da ciência normal como da
revolucionária.7
Por uma ciência brasileira
Vale aqui retomar a resenha de Shapin, quando descreve o contexto
histórico no qual emerge A estrutura como o da inversão na trajetória da
ciência de sua condição de fragilidade para a de poder, a partir do que o
autor identica como sentimentos que
marcam este livro como distinto de tudo que havia sido previamente
dito sobre a natureza da Ciência e de seus modos de transformação
histórica. Chamo esses sentimentos básicos sobre a ciência de natura-
listas – onde o naturalismo se opõe à normatividade, onde a intenção
naturalista é descrever, interpretar e explicar e não justicar, celebrar
ou, mais raramente, acusar. (Shapin, 2015, p. 13).
Para Shapin, esse “naturalismo” era possível porque se, no início do
século XX, a Ciência ainda era uma empresa frágil, que precisava ser pro-
tegida e defendida (lembre-se do éthos mertoniano da ciência), sua situação
começou a mudar drasticamente após a Segunda Guerra Mundial, quando
a ciência começou a car cada vez mais forte, até o início dos anos 1960,
quando era forte o suciente para lidar com um livro como A estrutura.
Assim, o relato historicamente crítico d'A estrutura só pôde ser reconheci-
do quando a ciência se tornou imensamente nanciada e totalmente im-
7 No sentido de uma busca por autores mais próximos das nossas propostas podemos citar Castro
(2004) e Sousa Santos (2007).
88
bricada na sociedade, o que pode ser visto como uma condição histórica
apresentada pela Guerra Fria.
Claro está que mesmo a fala de Shapin é uma condição histórica colo-
cada para os países centrais, não para o Brasil. E nós, temos as condições de
nutrir esses sentimentos naturalistas em relação à nossa tecnociência? En-
m, é inevitável que nos perguntemos quais seriam as condições históricas
para o desenvolvimento desses sentimentos em prol de uma descrição da
nossa ciência em ação. Será que, após tanto tempo de sua implantação, o
modelo dito “produtivista” não deveria ser reexaminado mais detidamente
em sua historicidade, especialmente frente à decepção, à solidão e à frus-
tração do tipo daquela ilustrada pela tabela dos top 1000?
A sugestão é de que nossa mudança paradigmática, ou nossa saída,
seja, de certa forma, a de retroceder à criação de conhecimentos e/ou sabe-
res. Talvez algo mais geral e menos “puricado8 do que as ciências euro-
-americanas para, eventualmente, fazermos construções de conhecimentos
locais, que poderão se assemelhar a construções de conhecimento cientí-
co, às quais seja possível creditar aquele tipo de dignidade epistemológica.
Em nossa opinião, em termos de “programa”, devemos e podemos
estudar as ciências euro-americanas na estrita medida em que isso seja
necessário para as enfrentar e, quando possível, nos apropriarmos delas.
Mas não devemos almejar nos integrar na discussão e feitura delas em seus
próprios termos, pois, como já dito acima, isso nos é impossível, dadas as
condições locais de busca constante contra a subordinação colonizadora,
que nos fará “cada vez mais solitários” (García Márquez, 1982). Temos
que iniciar nossas próprias construções de conhecimento a partir de nos-
sos problemas, construções de conhecimento e problemas situados.
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8 Aqui remetendo a Shapin (2013).
89
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Condições de pesquisa,
redes sociotécnicas, práticas
extensionistas nos Estudos CTS
Parte II
Infraestrutura, arranjos sociais
e produção cientíca e tecnológica
Adriano Premebida
A questão sobre as relações estabelecidas entre infraestrutura e produção
do conhecimento cientíco e tecnológico não é tão evidente nas discus-
sões sobre os elementos condicionantes na geração de dados, testes de
hipóteses e nos experimentos cientícos, mesmo quando equipamentos
e sistemas tecnológicos são considerados centrais nos estudos sobre redes
sociotécnicas. Esta não evidência decorre da “transparência” das infraes-
truturas. Apesar de sua materialidade, não as percebemos no dia a dia, até
que alguma ruptura, defeito ou erro aconteça. Sua pervasividade tem con-
sideráveis efeitos políticos e evidencia a não neutralidade das estruturas
materiais da ciência e tecnologia (Jensen; Morita, 2015; Star; Ruhleder,
1996). Não obstante tais elementos possam estar nas análises e contex-
tualizações sociais e técnicas de um objeto típico dos Estudos Sociais das
Ciências e Tecnologias (ESCT), sua importância é subdeterminada, mui-
tas vezes, em razão de descrições gerais, relativamente implícitas e sem a
compreensão do peso que aquelas estruturas possuem na explicação de um
fenômeno cientíco e na dinâmica de uma matriz tecnológica.
Para examinar – de forma inicial, por óbvio – este assunto, discutirei
alguns pontos que considero relevantes, a partir de exemplos de pesquisas
realizadas na Amazônia brasileira1 na área de Mudanças Climáticas, Bio-
1 Embora os programas de investigação e as pesquisas se estendam por toda Amazônia (alguns
com metas para a Pan-Amazônia), as articulações administrativas e políticas, assim como as
sedes das coordenações dos Programas de Pesquisa e a densidade de pessoas envolvidas estavam
nos Estados do Amazonas e Pará. É importante salientar que Brasília – principalmente através
do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, CNPq e Capes – era e é o ponto obrigatório
de passagem das denições políticas de recursos, acordos de cooperação e força institucional
para a conexão entre as partes interessadas, ou aquele em que se construiriam os interesses para
as pesquisas de grande vulto sobre a Amazônia.
94
tecnologia, Ecologia e Simulação ou Modelagem Computacional. O pon-
to principal desses projetos e programas, e que de alguma forma os une,
é o entendimento de alguns aspectos da entidade Amazônia, principal-
mente em cenários futuros de mudanças ambientais e climáticas. Quando
nomeio essas áreas de investigação (Mudanças Climáticas, Biotecnologia,
Ecologia e Simulação/Modelagem Computacional), o faço de modo mar-
cadamente circunscrito, embora advindo das expressões e termos mais
comuns das conversas que tive ao longo do convívio com as equipes dos
projetos, indicados mais à frente. De qualquer forma, embora este arbítrio
classicatório tenha suas limitações, essas áreas do conhecimento absor-
vem inúmeras disciplinas, lógicas de interesse, formas de aliança e atuação
próprias do campo cientíco. Ao longo da exposição desses exemplos, as
interdependências disciplinares e relações de dependência da infraestrutu-
ra material carão, espero, mais aparentes.
A infraestrutura2 será entendida aqui, de forma circunscrita e a partir
da experiência de campo que tive com alguns projetos ou programas de
pesquisa, como um conjunto de equipamentos, sistemas e serviços para su-
porte de operações de coleta, transmissão e armazenagem de informações
e dados, manutenção de condições ideais de parâmetros, como tempera-
tura, vácuo, umidade, pressão, potencial hidrogênico, entre outros, em
ambientes controlados ou no interior de equipamentos portáteis. Utilizei-
-me de exemplos mais corriqueiros, mas o leque é vasto, podendo incluir
equipamentos de geração de imagens, radares, sensoriamentos diversos,
captação de gases, microscopia, telemetria, espectroscopia, entre outros.
Além dos sistemas técnicos mais especícos utilizados em laborató-
rios e em instrumentos especializados de campo, móveis ou xos, é pre-
ciso levar em consideração algo quase onipresente, mas pouco lembra-
do: sistemas de energia elétrica (redes dedicadas), hidráulicos, sanitários,
euentes químicos, controle e segurança, condicionadores de ar especia-
lizados, dados e telefonia (tecnologias da informação e comunicação). Se,
em determinados contextos nacionais ou regionais, essas “infraestruturas
secundárias” se mantêm em silêncio na maior parte do tempo, pois estão
funcionando, em outros contextos, por oscilações orçamentárias e proble-
mas de manutenção, elas se transformam em diculdades que paralisam
2 Para uma introdução sobre as relações e perspectivas entre infraestrutura e ESCT recomendo
Miguel (2020).
95
atividades e desaam o poder de articulação e a paciência das pessoas en-
carregadas da gestão e da pesquisa.
O conjunto de características e especicações de serviços considera-
dos básicos3 no dia a dia não é trivial em ambientes de pesquisa, pois é
através desses serviços que todo o restante dos processos dependentes de
equipamentos (de uma geladeira convencional a uma central analítica)
estará conectado para pleno funcionamento e moldando formas de pro-
dução do conhecimento.
Se a estabilidade de uma rede sociotécnica é considerada uma mani-
festação de interações simultâneas de diversas entidades e atores (Miguel;
Mahony; Monteiro, 2019), é interessante ouvir de quem responde pela
gestão e pela pesquisa – geralmente pessoas responsáveis por laboratórios
ou experimentos que dependem de equipamentos – a importância das
condições materiais de determinadas pesquisas. Talvez, certo viés sociali-
zante, derivado de questões disciplinares das ciências sociais e humanas,
condicione uma perspectiva que suavize, mesmo em abordagens relacio-
nadas ao ESCT, a maneira como essas condições materiais estabilizam
identidades e entidades nos sistemas de interesses mobilizados para formar
o conteúdo do conhecimento. Interpretações extrínsecas sobre a produção
do conhecimento, que identicam o contexto social, sobre como surgem
as ideias, ainda possuem um campo interessante de pesquisa aberto pelas
infraestruturas. É tão comum não vermos mais a infraestrutura (seu efei-
to de transparência) na sustentação do mundo humano, que a deixamos
passar, inclusive nas análises. Outra suposição, não necessariamente exclu-
dente de proposições ou explicações alternativas ou complementares, é a
posição de atividade meio, e não nalística, ocupada pela infraestrutura, o
que faria dela objeto de interesse menos saliente.
O entendimento das redes de relações nos laboratórios e nos expe-
rimentos de campo, seja a partir de controvérsias sociotécnicas, seja nos
arranjos e alianças em torno de problemas cientícos e tecnológicos emer-
gentes, é um domínio consolidado de investigações, pelo menos desde
o nal da década de 1970 (Premebida; Neves; Almeida, 2011; Mattedi,
2006). A relevância da infraestrutura nas pesquisas não é questionada,
3 Utilizo o termo básico como algo corriqueiro, mas nem de perto um sistema hidráulico la-
boratorial, por exemplo, é o mesmo utilizado em nossas residências. Em um laboratório será
necessário, para o tratamento de euentes ou resíduos, ltros, atenuadores de pressão/válvulas,
bombas e dispositivos reservas ou auxiliares.
96
mas é módica em termos de análise, tendo em vista o potencial de con-
ceitos e abordagens teórico-metodológicas nos ESCT, principalmente em
contextos periféricos (Neves, 2020). Nesses contextos, como o brasileiro,
em especial, as agendas de pesquisas e os desenhos experimentais, embora
emulem e repliquem investigações dos países centrais, possuem caracte-
rísticas peculiares, geralmente ligadas justamente ao grau de manutenção
da infraestrutura experimental. Além dos estudos para a compreensão das
dinâmicas de interações das redes sociotécnicas, políticas públicas na área
seriam beneciadas com pesquisas sobre essas relações, de modo a auxiliar
o corpo técnico ligado à gestão de ciência e tecnologia na elaboração/revi-
são de normas e projetos de lei, regulação, compras de insumos e serviços
de manutenção especializados, planejamento e elaboração de projetos e
fomento de bases industriais nacionais e empresas de serviços em ativida-
des cientícas e tecnológicas.
Matriz econômica, ensino superior e transbordamento
nas políticas cientícas e tecnológicas
O décit da balança comercial brasileira na área cientíca e tecnológi-
ca para aquisição de componentes, equipamentos, projetos técnicos, ma-
terial de consumo e serviços de manutenção é crescente nos últimos anos,
principalmente quando comparado aos períodos de 2004 a 2015 (Koeller,
2020). As diculdades de não se ter fornecedores de serviços e insumos
nacionais são sempre lembradas nas conversas com as equipes responsáveis
pela coordenação, suporte e gerenciamento dos equipamentos essenciais
para realizar experimentos mais complexos. É importante recordar que
muitas atividades de coleta de dados na Amazônia não são feitas em labo-
ratórios em áreas urbanas, com sistemas de dados e energia plenamente
ajustados e estáveis. A pressão sobre os quadros de gestão e logística são
muito maiores nas atividades desenvolvidas nessa região, principalmente
em experimentos remotos.
No projeto Green Ocean Amazon (GoAmazon),4 por exemplo, que
acompanhei desde o seu início (implantação) até a fase de desmobiliza-
ção, em sua conclusão (2014-2015), uma das ações mais triviais na coleta
4 Ver página web do projeto: Observations and Modeling of the Green Ocean Amazon. GoAma-
zon. https://campaign.arm.gov/goamazon2014. Acesso em: 15 jan. 2021.
97
de dados era o lançamento de balões meteorológicos com equipamen-
to de telemetria e captação de informações sobre umidade, temperatura,
turbilhonamento e pressão atmosférica, ao longo de 24 horas. Compa-
rativamente às atividades de radares e espectrometria, o lançamento de
balões meteorológicos era simples, mas isso envolvia estoque substancial
de equipamento, como gás (hélio) e sensores, gerenciamento de compras
e logística, armazenagem e treinamento de equipe. Para esse tipo de ação
corriqueira, era preciso muito planejamento, como plano de compras,
exame minucioso no mercado nacional e internacional para aquisição do
melhor equipamento e negociação para ajustes – de acordo com as exigên-
cias do experimento –, atenção à legislação e normas brasileiras ligadas à
aquisição, transporte e armazenagem de produtos sensíveis.
Existe um ponto interessante aqui, relacionado às correspondências e
interdependências entre ciência e tecnologia ainda na fase de concepção
de experimentos. A fase de planejamento do desenho experimental é cru-
cial, com envolvimento de diversas áreas do conhecimento e, dependendo
do tipo de pesquisa, com necessidade de soluções que ainda não existem
disponíveis no mercado (prateleira). Embora a maioria dos grandes proje-
tos que acompanhei seja replicação de pesquisas elaboradas nos países cen-
trais, sempre existe um grau de adaptação, principalmente em atividades
com experimentos em campo.
As saídas para diculdades técnicas, sejam na obtenção de dados con-
áveis, por exemplo, ou relativas a outros problemas (como a segurança
de pessoas quando equipamentos de medição em balões meteorológicos
caem em locais povoados, ao nal de sua curta vida de utilização),5 de-
penderão de negociações com empresas especializadas em construção de
novas tecnologias e expedientes técnicos. Uma solução de melhora em ar-
mazenagem e capacidade de geração de dados envolve soluções tecnológi-
cas concomitantes. Um sensor projetado para utilização em áreas adversas,
como Antártida e desertos quentes, na região amazônica tinha problemas,
além de umidade e altas temperaturas, com algo que só surgia após o início
do experimento, como casas de vespas e maribondos. O interessante é que,
geralmente, pequenas empresas emergentes na área tecnológica ajustavam
5 Problema resolvido com um acelerômetro que ativa um sistema, quando em queda livre (ace-
leração da gravidade na Terra), que explode o equipamento em pedaços menores sem risco para
pessoas, animais ou propriedades.
98
seus produtos a essas demandas e depois se tornavam referências no forne-
cimento de produtos e serviços para a replicação desses experimentos no
resto do mundo.
Os contornos do domínio da ciência e da tecnologia dependem, em
grande parte, da matriz econômica de um país e da forma como estão
politicamente amarradas por legislação ou regulamentações ordinárias. A
tendência brasileira, nos últimos anos, de abrigar um arranjo produtivo
baseado em commodities agrícolas, minerais, serviços de baixa complexida-
de e no universo de operações do mercado nanceiro cobrará um enorme
preço pela redução tanto da diversidade de investimentos nas áreas cien-
tícas e tecnológicas e do padrão heterogêneo, em termos institucionais
(Vught, 2009), do ensino superior. As infraestruturas não estão alocadas
em um vazio institucional e muito menos são neutras em relação a políti-
cas educacionais e cientícas.
Uma possível redução da diversidade no ensino afetará o sistema de
pesquisa, já que fatores como o grau de dependência administrativa, as
formas de composição e inter-relacionamento entre instituições de ensino,
os modelos de titulação, a variedade da oferta de programas de formação e
áreas de concentração do conhecimento, os instrumentos e procedimentos
de ingresso no ensino formal e os tipos de estatutos e formas de trabalho do
corpo docente (Sampaio, 2014) estão interligados com o sistema nacional
de ciência e tecnologia. Caso esse contexto perdure, as disposições políticas
e econômicas inclinam-se para a redução de áreas do conhecimento, de
modelos alternativos de instituições de ensino e centros de pesquisa em
um país com grande isomorsmo institucional. A tendência é uma simpli-
cação da pauta cientíca e de ensino, tendo como efeito uma redução de
pesquisas de vulto, baixa estabilidade institucional e capacidade de respos-
ta na abordagem de temas estratégicos, resoluções de problemas concretos
e interdisciplinares (Vught, 2009).
Essa pauta ou agenda de interesses do ensino é incontornável para a
compreensão do circuito de funcionamento das ciências, embora o nível
de nanciamento seja um indicador premente para o suporte de infraes-
truturas de pesquisas que dependam de volumosos sistemas tecnológicos.
Retirando as desiguais maneiras de inserção em programas de pesquisa
internacionais, por conta de origem nacional, étnica, gênero e outras bar-
reiras de exclusão (Barreto, 2015), existe um fator importante relacionado
a padrões de conformidade tecnológica. Ouvi diversas vezes de um dos
99
coordenadores de laboratório do Centro de Biotecnologia da Amazônia
menção à quase impossibilidade de publicação de resultados de pesquisa
sem esta conformidade.
Biotecnologia e infraestruturas laboratoriais
No período em que me envolvi com gestão e questões ligadas à esta-
bilização de redes sociotécnicas no Centro de Biotecnologia da Amazônia
(CBA),6 no Estado do Amazonas, a apreciação cuidadosa do desempenho
dos laboratórios nos aspectos de manutenção, conformidade e seguran-
ça era incessante. A lógica orientadora dos critérios de seleção e escolha
de modelos de equipamentos/fabricantes, padrões funcionais de opera-
ção, custo/benefício, política de manutenção/pós-venda e conhecimento
prévio de utilização/treinamento em laboratórios associados era coligada
a dois motivos gerais de procedimento técnico: eciência na geração de
dados experimentais e garantia de validade/acurácia dos equipamentos na
publicação dos resultados.7 Os periódicos referenciais da área têm uma po-
lítica editorial clara quanto à relação entre vida útil e acreditação dos equi-
pamentos utilizados em experimentos, padronização de modelos de siste-
mas no mercado cientíco e instalações certicadas por organizações com
atestação internacional. Antes de, ou concomitante a, discussões sobre de-
senho experimental, métodos e técnicas de pesquisa, existem preocupações
sobre as exigências rotineiras acerca dos equipamentos laboratoriais. Os
métodos de pesquisa estavam condicionados a isso. Uma proposta de arti-
go na área de biotecnologia que não tenha uma base de equipamentos em
conformidade com exigências do campo ou da zona de inuência de um
periódico, como tratado anteriormente, reduz suas chances de publicação.
Nas constantes trocas de informações gerenciais entre as instituições
nanciadoras e gestoras do CBA (Fundação Amazônica de Defesa da
6 O CBA é um típico programa de pesquisa básica orientado por demandas sociais e tecnoló-
gicas e não apenas pela pesquisa em si ou pela curiosidade acadêmica. Parte da discussão deste
tópico é fruto de resultados da pesquisa “Consolidação e integração de redes sociotécnicas no
Estado do Amazonas: o caso do Centro de Biotecnologia da Amazônia”, nanciada pelo CNPq,
processo n. 483539/2012-0.
7 Junto com a retórica, peso institucional, experiência e prestígio da equipe de pesquisa no cam-
po de atuação, a qualidade da estrutura de equipamentos era evidente para o fechamento de
uma potencial controvérsia cientíca, seguindo o princípio da exibilidade interpretativa do
Programa Empírico do Relativismo (Collins, 1981).
100
Biosfera – FDB, Superintendência da Zona Franca de Manaus – Suframa
e Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços – MDIC, prin-
cipalmente), a centralidade das ações em relação à infraestrutura era evi-
dente. O conjunto de artefatos do Centro formava uma rede de relações
inseparáveis – pois constituidoras – do ambiente social e cognitivo das
pesquisas. A constituição dos sentidos da realidade no laboratório – como
a bioprospecção, o isolamento, a síntese e testes de moléculas de interesse
da biota amazônica – era orientada, em grande parte, para a formação de
consensos sobre ecácia e segurança farmacológica, por exemplo, dada
pela capacidade de mobilização em torno dos equipamentos e animais
de biotério. Sem essas tecnologias materiais, embora não sucientes em
si (Shapin; Schaer, 2005), a exposição de fatos derivados de medições,
testes, experimentos e simulações seria impossível.
Apenas para se ter uma ideia do que seria apenas uma seção do CBA,
e para carmos com o núcleo principal de equipamentos que formavam
sua infraestrutura cientíca experimental, cito a Central Analítica. Essa
era constituída por cromatógrafo a gás-espectrômetro de massas, espectro-
fotômetro de absorção atômica, espectrômetro de ressonância magnética
nuclear, espectrômetro de massas de alta resolução. Além da computação
envolvida, insumos e toda a “infraestrutura secundária”, seu funciona-
mento dependia das agendas experimentais e relações com outros labo-
ratórios do Centro. A independência funcional de um laboratório não o
livrava de uma paralisação sem a coordenação precisa e o funcionamento
ordenado dos equipamentos (e agenda de pesquisa) dos demais.
Embora não seja o âmago do meu argumento, é impossível separar
esta coordenação entre humanos e não humanos. O relevo dado à infra-
estrutura é apenas estratégia de apelo para lembrar-nos de questões ge-
ralmente secundarizadas nas análises CTS.8 É inevitável perceber o papel
condicionador das tecnologias na geração dos dados cientícos e como o
contexto social e político para a manutenção de uma infraestrutura mate-
rial estável é inescapável. Esse tipo de descrição e discussão não é novidade
para cientistas experientes e gestores de projetos na área. Talvez sua impor-
tância resida num anco de discussão aberto para os estudos em CTS e seu
transbordamento para a área de políticas públicas em ciência e tecnologia.
As particularidades da gestão de laboratórios e infraestruturas correlatas
8 A sigla para estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) será utilizada aqui como
sinônimo dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESCT).
101
para pesquisas eram temas que pairavam no ar em relação à necessária
formação prossional especíca, tanto na administração pública, como na
privada, nos corredores do Centro.
Os maiores “problemas de comunicação” não estavam apenas entre
nanciadores e parceiros externos, mas “dentro do Centro” ou do pro-
jeto CBA, já que este nunca conseguiu autonomizar-se. Formalmente,
era uma espécie de departamento da Suframa. Este formato institucional
representa um importante sinal de sérios problemas no Brasil para orga-
nizar juridicamente instituições públicas de pesquisa em áreas estratégicas
do conhecimento. De alguma forma, esses problemas de comunicação
são diferenças de ação no mundo da vida, não baseadas simplesmente em
divergências de linguagem. É algo mais profundo, pois implica, além de
questões ligadas à formação prossional, modos de organização da ciência
e, mais profundamente, condicionamentos da linguagem na construção
do mundo, impossibilitando encontro de interesses pelas formas de ação
das áreas funcionais (técnico-administrativo e propriamente nalística/
investigativa) no sistema de trabalho cientíco.
Para reforçar o exemplo do CBA em relação à importância da estabi-
lidade da rede sociotécnica em torno de sua infraestrutura, reproduzo a
lógica de manutenção trivial de equipamentos: reparo e troca de bomba
a vácuo do espectrômetro de massas Micro Q-TOF, troca de óleo das
bombas a vácuo, abastecimento de gases liquefeitos no espectrômetro de
ressonância magnética nuclear; ar sintético, hélio e hidrogênio no cro-
matógrafo a gás-espectrômetro de massas e no espectrômetro de massas
de alta resolução. É importante indicar que para cada manutenção dos
equipamentos era necessário contratar o serviço de calibração dos mes-
mos para manter seu desempenho e dedignidade dos resultados. Se, por
alguma razão, os espectrômetros pararem de funcionar por falta de manu-
tenção adequada (gases, por exemplo), seus custos de operação aumentam
excessivamente. Ou seja, o uxo de custeio e manutenção não pode ter
períodos em que se pode desligar um equipamento desse tipo como se
fosse uma televisão ou eletrodoméstico.
O Biotério do CBA é um caso interessante, pois, apesar de não ter
equipamentos sosticados em uma disposição clássica de laboratório, ele é
em si um grande sistema técnico – praticamente uma sala limpa com um
alto nível de controle para manutenção da biossegurança e bem-estar dos
102
animais. Essa seção do Centro chega a ser intrigante, pois representa o me-
lhor exemplo da sensibilidade e inuência exercida em toda coordenação
administrativa e técnica pelas infraestruturas materiais para pesquisa. O
nível de comprometimento com a funcionalidade do sistema de controle
de suporte à vida dos animais não era trivial. As exigências internacionais
e legislação especíca de animais certicados para testes de fármacos acar-
reta um uxo de responsabilidades legais para qualquer quebra de parâme-
tros mínimos da atividade do biotério.
Para a nalidade do CBA, os testes de fármacos em animais era um
ponto incontornável. A hipótese de um colapso dos sistemas vitais do Bio-
tério era da ordem das opções remotas. Como ouvi em uma conversa, res-
guardadas as devidas diferenças e grau de responsabilidade, era da “ordem
de um desligamento de usina nuclear”. Ou seja, salvo por um conjunto
de erros ou algo totalmente fora do controle humano, o desligamento do
Biotério só poderia ser controlado (primeira etapa), com a prévia auto-
rização para sacricar todos os animais (eutanásia), de várias instâncias
e instituições. Se, nos outros sistemas, uma quebra de equipamento ou
desligamento não programado por falta de manutenção ou ruptura de
alguma etapa da infraestrutura secundária (energia elétrica, por exemplo)
acarretava prejuízos materiais, no Biotério, além disso, a vida dos animais
estava em jogo. E essas vidas dependiam de uma infraestrutura peculiar,
com sistemas de ltros e condicionadores de ar altamente especializados.
Para isso não acontecer, o grau de planejamento, revisão, sistemas reservas
e disponibilidade nanceira/técnica para emergências era exemplar. Mes-
mo assim, por falta de uxo de repasses e devido a impasses institucionais
ligados, inclusive, a alterações de prioridades da política cientíca e tecno-
lógica nacional, o Biotério chegou a ser desativado.
Infraestrutura de pesquisa e mudanças ambientais
e climáticas na Amazônia
As pesquisas que modelam cenários de regimes hidrológicos, relações
trócas, conexões ecológicas, mudanças climáticas e impactos socioam-
bientais para subsidiar planejamento de políticas públicas ou mitigação/
adaptação de regiões em áreas vulneráveis (serviços ambientais) constituem
103
tendências no Brasil, principalmente na região amazônica. A demanda
por participação efetiva de cientistas sociais nessas pesquisas interdiscipli-
nares representa um potencial, também, para pesquisas CTS. Dados de
programas de pesquisa ou projetos como GoAmazon (nalizado), INCT
Cenbam, INCT Servamb, Adapta, LBA, Atto, Geoma (nalizado), Ce-
nários (nalizado), Amazonface, por exemplo, são a junção das relações
entre a infraestrutura e a coprodução da realidade cientíca. Esta se desdo-
bra para outras instâncias, moldando imagens e relevâncias de entidades
físicas, biológicas e sociais. Os sensores de uxo de seiva de árvores do
projeto Amazonface, o microcosmo do Adapta, os radares do GoAmazon,
as torres do LBA e Atto instituem uma nova forma de apreender e, depois,
organizar os processos de representação e comunicação coletiva sobre ár-
vores, proteômica de peixes, nuvens e aerossóis orgânicos. Os enfoques
privilegiados dos estudos CTS em ambientes empíricos como os acima são
variados, com preponderância na temática das controvérsias sociotécni-
cas, expertise, relações multiespécie, práticas cientícas, gênero, inovação,
produção do risco, divulgação cientíca, política pública e, de forma geral,
interesses mobilizados para formar o conteúdo do conhecimento. As aná-
lises baseadas no Programa Empírico do Relativismo sobre as negociações
que surgem no lócus da pesquisa e as maneiras de se fechar controvérsias
e criar consensos são importantes enquanto abordagem consolidada. A
Teoria Ator-rede é outra aproximação relevante nesses domínios labora-
toriais e de pesquisas de campo baseadas em descrições minuciosas de
rotinas, materiais e técnicas de investigação, em que o sistema de inscrição
e as descrições entre conteúdo do conhecimento e contexto social não têm
sentido na prática cientíca (Domenech; Tirado, 1998).
Os desaos para as pesquisas CTS na área de infraestrutura são muitos,
mas os maiores seriam inserção e tempo de pesquisa de campo, trabalho
em redes multi- e interdisciplinares e recursos nanceiros para trabalhos
empíricos relevantes. As vantagens para qualquer abordagem escolhida no
âmbito dos estudos CTS são inúmeras: i) a possibilidade de demonstrar
empiricamente a construção de dados nas ciências naturais, biológicas e
engenharias, por exemplo, através do estudo de suas práticas; ii) a foca-
lização de estudos em replicações de experimentos, geração de dados e
teorias através de laboratórios, estudos sobre coleta de dados de campo e
simulação computacional: vericação, reprodução e controle dos dados
104
experimentais e; iii) maior capacidade de relacionar processos cognitivos
da ciência e da tecnologia com estruturas e ações sociais. Geralmente, e
somente para carmos no contexto físico e temático dos projetos citados,
é em meio a controvérsias cientícas e tecnológicas (custo ambiental, mu-
danças climáticas, mercado de produtos sustentáveis, energia, mineração,
serviços ecossistêmicos e ambientais) que é possível vericar o controle e
desempenho dos experimentos, referências teóricas, negociação de com-
promissos, acordos dos grupos envolvidos e replicações de conhecimentos
em circunstâncias geográcas e culturais diferentes.
As questões trazidas pelas relações entre infraestruturas (Hetherington,
2019) e produção de conhecimento remetem a pensar, inevitavelmente, a
organização social e o exercício do poder nas sociedades contemporâneas.
Ao interagirmos com as pesquisas acima, percebemos que a escala, a co-
ordenação e a regularidade no tempo e no espaço dependem de seus mo-
delos de infraestrutura. As infraestruturas não são elementos estanques e
não podem ser entendidas como coisas, pois conguram relações sociais,
estabilizam hierarquias e ensejam a emergência de práticas sociais, espaços
de convívio, uxo e trocas de bens e informações. As infraestruturas cons-
tituem pontos de conexão material e são asseguradas por regimes legais e
normativos, sistemas políticos e econômicos, atividade institucional e uma
heterogeneidade de práticas estabelecidas, formalizadas ou tácitas.
O sistema nacional de ciência e tecnologia não foge a isso e, depen-
dendo das suas articulações de interesses com atores institucionais, mu-
danças políticas, educacionais e bases da produção econômica, a infraes-
trutura que lhe dá suporte e incorpora visões de mundo cede e se congura
de outra forma.
Os ESCT e o foco nas infraestruturas
As possibilidades metodológicas e teóricas da interface entre os estu-
dos e a infraestrutura de CTS são muito interessantes, e existe uma produ-
ção importante em etnograa das infraestruturas (Star; Ruhleder, 1996;
Miguel, 2017). As formas de conhecimento cientíco e tecnológico con-
temporâneo dependem das coordenações entre sistemas técnicos e infra-
estruturas para acomodar e dar alcance global à geração de dados massivos
105
em pesquisas de longo alcance temporal e espacial. A escala das pesquisas
sobre mudanças climáticas e biotecnologias, por exemplo, é de tal ordem
que a infraestrutura necessária para sua concretização condiciona os ar-
ranjos sociotécnicos e suas formas de atuação. Nessas redes sociotécnicas,
as infraestruturas estabelecem tal intensidade na geração e armazenamen-
to de dados e no estudo do comportamento de sistemas reais através da
computação, que a modelagem computacional se torna um componente
integrador de equipes multi- e interdisciplinares.
Os experimentos e projetos de pesquisa dependentes de infraestru-
turas tecnológicas são cada vez maiores e mais sosticados. O conjunto
massivo de dados e as modelagens levam à formulação de novas teorias
e relações entre as equipes de cientistas. Consequentemente, gargalos es-
truturais para a manutenção e gestão dessa infraestrutura tornam-se mais
sensíveis, principalmente diante de modelos burocráticos. Ou seja, as in-
fraestruturas incorporam sistemas técnicos, padrões de certicação, roti-
nas normativas, comunidades de práticas e formas de vida no seu funcio-
namento. Toda alteração nas propriedades constituidoras da organização
de uma infraestrutura se manifesta na sua maneira de atuação, desejada
ou não.
Para os ESCT, manter as infraestruturas relativamente em foco é im-
portante, pois favorece a compreensão da fenomenologia de problemas
complexos em diversas áreas do conhecimento e da propagação de grandes
empreendimentos para a manutenção de sistemas econômicos e políticos
(dimensão tecnopolítica das infraestruturas). A atenção aos elementos po-
líticos das infraestruturas facilita, analiticamente, a conectividade entre
questões básicas e emergentes, tais como mudanças climáticas, sistemas
sustentáveis de produção a partir da sociobiodiversidade, gestão de recur-
sos naturais e de riscos tecnológicos; urbanização acelerada, monoculti-
vo e regulamentação das interações entre unidades de conservação, terras
indígenas, populações tradicionais, comunidades quilombolas e controle
de patrimônio genético e tradicional; interdependência entre sistemas de
comunicação, logística, energia, educação e estrutura computacional e de
informática descentralizados.
Para questões mais práticas e vinculadas a políticas públicas, os con-
itos e tensões sociais derivados de empreendimentos econômicos em
106
infraestrutura podem ser inevitáveis, principalmente pelo desamparo
territorial legado às populações do entorno de obras,9 e pela falta de
condicionantes e conectividade, no Brasil, de determinados “planos de
desenvolvimento” com a dinâmica mais complexa de todo um conjunto
de indústrias e serviços relacionados a novos conhecimentos. Se, por um
lado, infraestruturas econômicas podem reproduzir padrões de desigual-
dade e não garantir resultados que impulsionem uma onda de inovação
e de adensamento tecnológico em setores diversicados da sociedade e
nas cercanias desses projetos, por outro, a infraestrutura cientíca tem a
capacidade de criar as condições de compreensão, em várias escalas, de
entidades humanas e não humanas (biomas, vírus, clima), e da melhor
maneira de favorecer o convívio e a capacidade de dar solução aos arran-
jos políticos e institucionais baseados, no histórico caso brasileiro, em
desigualdade e concentração de poder.
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Os estudos CTS diante
dos desastres ambientais
Lorena Cândido Fleury
Ainda que desastres sociotécnicos ou socioambientais não sejam uma no-
vidade – como atesta, por exemplo, a tragédia das enchentes de Itajaí, SC,
em 2008, na qual mais de 40 mil pessoas caram desalojadas ou desabriga-
das por alagamentos e deslizamentos de terra (Mattedi et al., 2009) –, tais
eventos têm tido visibilidade ampliada, sobretudo em função da recorrên-
cia de desastres recentes de grandes proporções, como o rompimento da
barragem de rejeitos de Fundão, em novembro de 2015, no município de
Mariana, em Minas Gerais, que causou, de imediato, 19 mortes, e libe-
rou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de resíduos minerários. Esses
resíduos (também chamados localmente de “a lama tóxica da Samarco”)
foram carreados até o rio Doce e percorreram aproximadamente 600 km,
congurando, segundo a Bowker Associates (2015), o maior desastre en-
volvendo barragens de rejeitos de mineração do mundo, em termos de
sua abrangência socioambiental (Milanez; Losekann, 2016). Mais recente-
mente, vimos acontecer o rompimento da barragem de rejeitos de minera-
ção da mina do Córrego do Feijão, da Vale, no dia 25 de janeiro de 2019,
em Brumadinho (também no estado de Minas Gerais), o qual resultou
em 272 mortes, dentre as quais ainda há 11 pessoas desaparecidas. Tais
acontecimentos sinalizam uma produção contínua de desastres, que tende
a se agravar, considerando-se a exibilização do licenciamento ambiental,
proposta na nova versão da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL
3729/2004), a discussão acerca do Novo Código da Mineração proposto
110
pelo Ministério das Minas e Energia e o Projeto de Lei 654/2015 em tra-
mitação no Senado Federal.
Diante desse contexto, qual pode ser a contribuição dos estudos CTS
para análise de tais desastres e crimes ambientais? Neste capítulo, argu-
mento que o desastre como regra constante é uma das formas pelas quais
se pode caracterizar o Antropoceno, essa nova época geológica que, goste-
mos ou não da denominação, tem cada vez mais irrompido no nosso co-
tidiano (Crutzen, 2002; Chakrabarty, 2009; Haraway, 2015; Danowski;
Viveiros de Castro, 2014; Latour, 2014), congurando o que a lósofa
belga Isabelle Stengers (2015) nomeou como “o tempo das catástrofes”.
Segundo Bruno Latour (2014), o antropoceno “é o mais decisivo conceito
losóco, religioso, antropológico e político já produzido como alterna-
tiva às noções de ‘moderno’ e ‘modernidade’”. Anna Tsing (2019), por
sua vez, arma que, cada vez mais, nos vemos defrontados com as reações
não projetadas de não humanos às infraestruturas humanas, o que nos
incita a observar o tempo como uma forma de identicar a responsividade
humana e não humana, isto é, observar as respostas temporais, através da
diferença, que produzem novas agendas.
Em termos analíticos, nos estudos sobre projetos de desenvolvimento
e conitos, já faz algum tempo que a Teoria Ator-Rede tem sido usada
para demonstrar as associações que tornam possível a vida em um deter-
minado lugar. Mas, talvez, nesse momento, seja necessário ir além. Em
meio aos desastres, às ruínas, quais são as associações que tornam a vida
possível? Quais os agenciamentos que possibilitam a produção de um fu-
turo coabitável? Essa é a tarefa etnográca que me parece urgente, para a
qual os estudos CTS podem contribuir.
Para fomentar esse debate, nas seções seguintes apresentarei breves re-
exões a partir de situações de pesquisa situadas no entrelaçamento entre
projetos de desenvolvimento, desastres e antropoceno, buscando destacar
o que ganhamos analiticamente ao abordar esses processos sob uma pers-
pectiva dos estudos CTS.
Projetos de desenvolvimento
São distintas as portas de entrada que podemos tomar para analisar
os projetos de desenvolvimento e a intensidade das transformações por
eles suscitadas. Para os objetivos da presente discussão, minha ancoragem
111
empírica será o conito em torno da construção da hidrelétrica de Belo
Monte, o qual pude pesquisar (Fleury, 2013) e que considero reunir, de
forma emblemática, muitas das características desses projetos.
Nesse sentido, uma primeira possibilidade de entrada no debate é
considerar que, como todo projeto de desenvolvimento, a construção de
Belo Monte está condicionada a um processo de licenciamento ambien-
tal. Este processo se tornou um dos principais pontos de controvérsia no
conito, havendo, por exemplo, apenas no judiciário, mais de vinte Ações
Civis Públicas que o têm como objeto, além dos embates entre experts,
Ibama, Funai e moradores da Volta Grande do Xingu. Para entender essa
controvérsia, impõe-se compreender o que vem a ser mobilizado como
ambiente no conito em torno de Belo Monte. Isso pode ser feito median-
te (i) a discussão sobre a disputa cientíca no licenciamento ambiental da
obra, protagonizada pelo Estudo de Impacto Ambiental, o Ibama e o Pai-
nel de Especialistas; (ii) a análise do que os moradores da Volta Grande do
Xingu dizem quando falam do ambiente em relação a Belo Monte; e (iii)
a análise do processo de estabelecimento de indenizações pelo empreende-
dor aos compulsoriamente deslocados pela obra (Fleury, 2016a).
Uma segunda porta de entrada que se mostra necessária, a partir daí,
é a análise do conito em torno de Belo Monte sob o viés das disputas
acerca dos signicados de desenvolvimento. Entendido pelos agricultores
familiares e ribeirinhos como produção de alimentos, pelos militantes dos
movimentos sociais como uma forma de colonialismo e pelos represen-
tantes do governo como uma técnica de gestão econômica estreitamente
vinculada à expansão da oferta energética, é no ponto de vista do Estado
que o desenvolvimento exerce papel central, sendo orientado pelo “uso
racional de recursos”. A análise permite constatar que, tendo o ideário do
desenvolvimento como ensejo, a realização de Belo Monte tem gerado
uma apropriação estatal do Xingu, a qual incide sobre as relações sociais
locais – inclusive com os não humanos – transformando-as radicalmente
(Fleury, 2016b).
Uma terceira possibilidade, ainda, seria analisar os processos de co-
produção e entrecaptura, e demonstrar como, há quase quarenta anos,
não se esgota a lista de agentes que compõem a rede na qual se situa esse
projeto, seja no sentido de construção da hidrelétrica, seja de sua rejeição.
Assim, poder-se-ia argumentar que a história de Belo Monte não é só a
história da obra (início do inventário, mudanças no projeto, início da
112
obra, impactos decorrentes), nem só a história das relações de poder entre
as pessoas, visto que essas relações se transformam em função da mediação
das coisas (Fleury, 2014).
Figura 1 - Nuvem de palavras mais frequentemente evocadas por moradores da
Volta Grande do Xingu a respeito da construção da usina hidrelétrica Belo Monte
Fonte: Fleury (2013).
Mas, para os objetivos deste capítulo, o ponto a ser aprofundado na
análise diz respeito às disputas, no projeto de desenvolvimento, no que
se refere ao controle do tempo. Ao longo de todo conito em torno da
construção de Belo Monte, pude observar como é constantemente neces-
sária a tradução, além de objetivos e interesses, de tempos muitas vezes
contraditórios. O tempo do projeto é o tempo do que é pensado de forma
exógena, visando estratégias geopolíticas de integração de bacias e dispo-
nibilidade energética anual, e que precisa ser executado rapidamente, no
ritmo do mercado. O tempo dos moradores locais, indígenas, agricultores
e ribeirinhos, é o tempo lento, do rio que sempre correu e que se deseja
possa continuar correndo sempre em seus movimentos cíclicos de cheia
e seca. Nesse embate, constata-se a imposição de um ritmo acelerado por
parte do projeto de construção de Belo Monte, de maneira perturbadora
para os moradores locais, como ilustram os seguintes relatos:
113
A gente tá recebendo técnico lá da empresa quase todo dia, toda sema-
na quatro, cinco caminhonetes diferentes de pessoas da Norte Energia
passando ali, falando com o povo que a qualquer momento tem que se
sair. Eles estão falando agora que, no máximo até outubro, não é pra
ter ninguém naquela área porque eles vão precisar dela em outubro,
e outubro tá bem aí. Porque antes tinha um debate de que a gente ia
levar ainda cinco anos lá, e agora já não é mais assim. Então a gente tá
muito preocupado, porque eles, enquanto a gente fazia uma reunião,
eles faziam dez. (Trecho de entrevista: agricultora familiar, Altamira,
publicado em Fleury, 2013).
A gente já ouvia falar de Belo Monte há muito tempo. Só que a gente
vivia meio calmo, a gente vive na propriedade da gente, tranquilo, tra-
balhando, sossegado, na minha roça. Eu planto feijão, milho, abóbora,
tudo de alimentação a gente planta na roça. E também a gente planta
o cacau, todo tipo dessas coisas a gente produz, na roça, porque ali é
onde você tira tudo que precisa pra sobreviver. Eu acho que a minha
vida, antes dessa aceleração de Belo Monte, com certeza, minha vida
era muito melhor! Muito superior! [...] Então hoje a gente vive muito
assim, não vive sossegado. (Trecho de entrevista: agricultor familiar,
Volta Grande do Xingu, publicado em Fleury, 2013).
Nesse contexto, não apenas os habitantes de Altamira e Volta Grande
do Xingu relataram se sentirem pressionados pelo ritmo imposto, mas
também aqueles que se propuseram a realizar a mediação entre as neces-
sidades locais e o projeto relataram a angústia de se sentirem atropelados:
O ritmo é alucinante, e a gente está sempre correndo atrás. Do ponto
de vista acadêmico o processo foi totalmente atropelado. (Trecho de
entrevista: pesquisador, membro do Painel de Especialistas, Altamira,
publicado em Fleury, 2013).
Eu tô angustiado, porque pô, tô sendo atropelado pelo processo. Eu es-
tava conversando com o Zé Carlo [cacique Arara] sobre o plano emer-
gencial e ele falou “a gente não tem pressa”, mas o plano não espera,
o licenciamento não espera, não dá tempo de ninguém ser ouvido, é
um projeto avassalador. (Trecho de entrevista: coordenador regional
Funai, Altamira, julho/2011).
114
Mas, talvez, quem tenha expressado de forma mais contundente a
centralidade do controle do tempo em um projeto como Belo Monte te-
nha sido o então diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, como
resume na fala a seguir:
O processo de licenciamento é uma mesa cheia de ampulhetas. E
você vai virando ampulheta por ampulheta, mas você não tem con-
dição de virar todas. E uma ali acaba, esgota [...] É isso, é em cima de
tempo que a gente trabalha. Exatamente isso. O tempo de resposta
de uma comunidade, o tempo de absorção das propostas na comuni-
dade, o tempo de absorção das propostas do empreendedor das me-
didas ambientais pelo órgão ambiental, o tempo de implementação
das medidas, e cada um tem o seu ritmo, e a essência das discussões
também é o tempo. A expectativa de cada um, a expectativa do em-
preendedor era ter essa licença de instalação em 2010 ainda. E não
foi possível. [...] É isso, é o tempo. (Trecho de entrevista: diretor
de Licenciamento Ambiental Ibama, Brasília, publicado em Fleury,
2013).
Portanto, se em um projeto de desenvolvimento como o da constru-
ção de Belo Monte existe, evidentemente, um conito pela apropriação do
espaço, é importante considerar-se que, nesse processo, é inerente também
um conito pelo controle do tempo. Com efeito, a própria ideia de de-
senvolvimento, que traz em si um imaginário de progresso, pauta-se por
uma denição sobre o tempo: os lugares a serem desenvolvidos – os quais
Escobar (2008) arma serem construídos como developmentalizables – são
geralmente apresentados como lugares atrasados, que precisam ser acelera-
dos para se sincronizarem com o moderno, o tempo que se quer presente.
Não por acaso, é justamente contra a “aceleração de Belo Monte” que se
posiciona o agricultor da Volta Grande do Xingu, no trecho acima citado.
Nesse sentido, opor-se à imposição de um ritmo é se opor também à con-
cepção de uma linearidade histórica em que os que não se identicam com
a modernidade estariam atrasados, isto é, no passado. Assim, nos projetos
de desenvolvimento, a denição mesma de quem compõe o presente se
torna parte da disputa, e isso tem sido parte dos aprendizados que os estu-
dos CTS têm sido capazes de demonstrar.
Em relação aos desastres, o controle do tempo também se impõe, mas
de forma bastante diferente.
115
Desastres
O primeiro aspecto a se destacar a respeito da temática dos desastres
é que, em oposição a uma ideia correntemente difundida, de que eles
consistiriam em situações imprevistas que virtualmente atingem todas as
pessoas e grupos sociais de forma indistinta, na prática não é isso que se
observa. De fato, em situações como os rompimentos de barragens, en-
chentes e ans, nota-se que os riscos não são equitativamente distribuídos.
Ao contrário, observa-se o que pesquisadores e movimentos sociais de-
nominam injustiça ambiental, isto é, o prejuízo sistemático é suportado
por pessoas mais pobres e não brancas na exposição a fatores de riscos am-
bientais (Herculano, 2002; Acselrad, 2010). No caso do rompimento de
barragens de mineração, no Brasil, essa divisão desigual do risco se verica
de forma explícita: 80 % das barragens existentes em Minas Gerais encon-
tram-se em setores censitários com predomínio de população não bran-
ca, caracterizando uma distribuição desproporcional do risco com base
na variável raça. Na cidade de Mariana, nos dois povoados mais afetados
pelo rompimento da Barragem de Fundão, Bento Rodrigues e Paracatu de
Baixo, 84 % e 80 % da população, respectivamente, declararam-se de cor
parda ou preta no último Censo (PoEMAS, 2015).
Esse contexto reforça o que Henri Acselrad tem chamado de políticas
de subestimação sistemática de riscos (Acselrad, 2006). Por exemplo, de
acordo com a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), de-
nida pela Lei Federal 12.334/2010 (Brasil, 2010), a Agência Nacional
de Águas (ANA) deve coordenar a elaboração do Relatório de Segurança
de Barragens (RSB). Em 2015, o Relatório listava 17.259 barragens em
todo o país, sendo 660 dedicadas a rejeitos de mineração, das quais 315
estavam localizadas no estado de Minas Gerais. Considerando que o in-
ventário da FEAM, órgão ambiental do estado de Minas Gerais, listava
um total de 442 barragens em 2015, pode-se concluir que o RSB é bas-
tante incompleto. Além da falta de barragens, o próprio relatório explicita
suas limitações. Por exemplo, do total de barragens cadastradas em 2015,
a ANA desconhecia a altura de 79 %, o volume de 41 % e o risco e danos
potenciais de 87 % e 88 % delas, respectivamente. O mais alarmante ain-
da é o fato de, em 2015, apenas 4 % (701) de todas as barragens existentes
no Brasil terem comprovadas vistorias realizadas pelos órgãos responsáveis
por promover controle de segurança (Santos; Wanderley, 2016).
116
Em um contexto em que o risco é subestimado e em que suas con-
sequências recaem sobre pessoas e grupos sociais especícos, o aconteci-
mento do desastre é marcado por uma interrupção abrupta no uxo do
tempo. Os efeitos do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana,
por exemplo, não foram minimizados por nenhuma medida de segurança
que permitisse aos moradores locais um mínimo de planejamento ou or-
ganização. Ao contrário, nem mesmo o aviso sonoro do rompimento foi
emitido: Passos, Coelho e Dias (2017, p. 285) salientam o depoimento
veiculado na mídia evidenciando tal ausência: “minha sirene foi a gritaiada
na praça, a afobação do povo. Não deu tempo de correr. Quando eu vi, a
lama já estava na minha garagem”.
Diversas pesquisas, como as que têm sido realizadas no grupo de pes-
quisa Gesta/UFMG, coordenado por Andrea Zhouri (Zhouri et al., 2016;
Zhouri, 2018); pelo Organon/UFES, coordenado por Cristiana Losekann
(Losekann, 2017); e pelo PoEMAS/UFRJ/UFJF, coordenado por Bruno
Milanez (PoEMAS, 2015), têm enfatizado que, diferentemente dos con-
itos ambientais, que podem ser caracterizados como um processo de
violência lenta, a temporalidade dos desastres é outra. Norma Valencio,
referência nacional na Sociologia dos Desastres, arma que há variados
tempos e espaços entrelaçados. A respeito do rompimento da barragem de
Fundão, armou que:
Conforme a lama tóxica da barragem rompida foi descendo por auen-
tes e pela calha principal do rio Doce, os tempos e os conteúdos da afe-
tação socioambiental foram se alterando, indo da devastação completa
de lugares – com a morte e o desaparecimento de pessoas, de animais
domésticos e de criação, bem como com a destruição completa de bens
móveis e imóveis – até o colapso no serviço público de abastecimento
hídrico de várias cidades mineiras e capixabas à jusante. Isso ilustra
que a restituição da “normalidade” nem sempre é viável: vidas não se
restituem e histórias de vida mudam de rumo irreversivelmente após o
momento de um desastre. Numa cronologia mais lenta vem ocorrendo
o comprometimento do ecossistema aquático depondo contra a inte-
gridade dos estoques pesqueiros, a segurança alimentar de comunida-
des ribeirinhas e a saúde humana. Esse entremear de diferentes tempos
foi bem ilustrado por um jornalista, quando disse: “a memória de um
bairro de 300 anos levada em pouco mais de 10 minutos, ou enterrada
sob uma camada de barro, por erros de uma mineradora instalada ali
perto há 39 anos” (Valencio, 2016).
117
O sofrimento social decorrente desse acontecimento, e a formação
de sujeitos políticos em meio a tal contexto, tem conduzido a autora a
tratar o desastre como evento crítico, no sentido atribuído pela antropó-
loga indiana Veena Das (1995): o conceito envolve a ruptura provocada
pela situação traumática e sua assimilação ao cotidiano das pessoas que
a vivenciaram, sendo abordado a partir da perspectiva desses sujeitos. A
experiência do desastre surge como um “evento crítico” que expressa a
agressividade das instituições e produz uma reação que se torna necessaria-
mente um “ponto de inexão”, seja na vida de quem “sofre diretamente”,
seja na vida de quem é afetado, tanto na perspectiva histórica como na
imaginária. Conforme arma Coelho (2017), todo conhecimento supõe
uma intervenção, e o evento crítico, tal qual conceituado por Das (1995),
carrega em si a ambiguidade de parecer extraordinário e cotidiano ao mes-
mo tempo.
A partir de um olhar ancorado nos estudos CTS, temos pesquisado
os imaginários sociotécnicos que orientam as medidas reparatórias desen-
volvidas pela Fundação Renova, buscando perceber como se realiza a pro-
dução de um mundo pós-desastre e calcado no imperativo da mineração.1
Analisamos também os saberes situados e a cadeia de responsabilidades
congurada na produção consistente de desastres na mineração em Minas
Gerais.2
Enquanto isso, as pessoas que estão passando por todos esses proces-
sos têm que aprender também sobre direitos, ação coletiva e movimen-
tos sociais, criando formas de atuação política e identidades (Carvalho,
2019). Ainda, as pesquisas de campo têm demonstrado que, passado o
choque do acontecimento e a exposição midiática a ele vinculada, o maior
medo manifestado pelos grupos atingidos é o de serem esquecidos com a
passagem do tempo.3
Por m, resta discutir alguns elementos acerca do Antropoceno.
1 Trata-se de dissertação de mestrado a ser defendida em janeiro de 2021, de autoria de Leonardo
van Leeuven, sob minha orientação, no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Essa discussão está presente na tese de doutorado em andamento de autoria de Elenice Cou-
tinho, sob minha orientação, no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Depoimento colhido por Elenice Coutinho, em pesquisa de campo para a tese intitulada “A
produção dos desastres sociotécnicos na mineração: o rompimento da barragem de Fundão
(MG)”, atualmente em andamento, no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural
(PGDR/UFRGS).
118
Antropoceno
Segundo Bruno Latour, o antropoceno “é o mais decisivo conceito
losóco, religioso, antropológico e político já produzido como alternati-
va às noções de ‘moderno’ e ‘modernidade’” (Latour, 2014). Apresentado
pelo químico da atmosfera e detentor de Prêmio Nobel, Paul Crutzen, em
uma conferência do International Geosphere Biosphere Programme, em fe-
vereiro de 2000, o conceito de Antropoceno foi criado para designar uma
nova época geológica, a presente, colocando m ao Holoceno, iniciado
há 11.500 anos. Crutzen, em seu artigo publicado na revista Nature, em
janeiro de 2002, armou ser apropriado denominar o presente como An-
tropoceno para demarcar “a presente época geológica em muitas maneiras
dominada pela humanidade” (Crutzen, 2002).
Desde então, não foram poucos os debates e as controvérsias a respei-
to da pertinência do conceito (estamos mesmo em uma nova época geo-
lógica? Há dados, em escala geológica que sustentem essa armação?), da
pertinência do termo (seria antropos o mais adequado? Ou Capitaloceno,
ou Chthuluceno, como propôs Donna Haraway?) ou, pelo menos, sobre
quando seria o seu marco inicial (a revolução industrial? O uso do fogo pela
humanidade?). Nessa tarefa de produção ativa do Antropoceno enquanto
evento geopolítico do presente, os grácos atuam de maneira eloquente:
119
Figura 2 - Grácos indicando o comportamento de 24 parâmetros socioecológicos
após a revolução industrial
Fonte: Adaptado de Bonneuil e Fressoz (2016).
Para esses 24 parâmetros socioecológicos, uma “arrancada” (take o)
pode ser observada por volta de 1800, e uma “grande aceleração” após
1945. Esses aspectos fazem com que Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste
Fressoz armem que:
Contrariamente ao nal do período Cretáceo, ou ao nal do lme Me-
lancolia, do Lars Von Trier, o choque do Antropoceno não é o resul-
tado de um corpo estranho, vindo de fora, que atinge a Terra e desvia
sua trajetória geológica. É o nosso próprio modelo de desenvolvimen-
to, nossa própria modernidade, a qual, tendo apregoado se libertar
dos limites do planeta, está atingindo a Terra como um bumerangue.
(Bonneuil; Fressoz, 2016).
Falar em termos de Antropoceno trata-se, portanto, de falar sobre
geologia, mas também sobre modelo de desenvolvimento, de tal maneira
imbricados, que Adrian Ivakhiv, professor de cultura e pensamento am-
biental da Universidade de Vermont, armou ao New York Times que
120
o termo “é um esforço de união entre as ‘duas culturas [cientícas]’, de
forma a reconhecer tanto a agência humana quanto a realidade material, e
qualquer esforço nesse sentido é uma coisa boa”.
Para além da proposta de um programa de ação “interdisciplinar”,
entender agência humana e realidade material, sociedade e épocas geo-
lógicas de forma coproduzida parece-me menos uma proposta inovadora
e mais uma prática recorrente no campo das políticas e discussões sobre
mudanças climáticas. Digo isso a partir das aproximações empíricas que
me levaram, inicialmente, a interessar-me pelo tema, e aqui destaco duas
situações em particular.
A primeira, durante a 20ª Conferência das Partes da Convenção-Qua-
dro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) (COP-20/
CMP-10), ocorrida em setembro de 2014, na qual pude participar como
membro da delegação ocial brasileira. Essa delegação era composta por
representantes de entidades sindicais de trabalhadores, de confederações
da indústria, de investidores do “mercado verde”, de movimentos am-
bientalistas, de ONGs, diplomatas, e tamanha heterogeneidade propicia-
va disputas internas constantes, que iam desde posições públicas a respei-
to do REDD+ (mecanismo de recompensas nanceiras pela redução de
emissões de gases de efeito estufa) até a decisão sobre quem tem ou não
legitimidade de estar ali.
Quem coordenava as reuniões da delegação brasileira e denia os li-
mites e rumos de tais disputas era a então ministra do Meio Ambiente,
Izabella Teixeira, a qual manifestava um posicionamento claro: “Clima
não é uma questão de meio ambiente, é de desenvolvimento, de geopolítica do
desenvolvimento, que tem que negociar com as políticas nacionais” (ano-
tação em diário de campo, realizada pela autora, Lima, novembro/2014).
Para a presente discussão, é esse ponto que eu gostaria de enfatizar.
Com efeito, para além do macrodiscurso do Antropoceno, as mudanças
climáticas, entendidas como categoria abrangentemente utilizada – de
pesquisas cientícas a acordos internacionais, passando por reportagens
na mídia e panetos e hashtags de movimentos sociais – têm sido apresen-
tadas no debate público como responsáveis pela emergência de constri-
ções e necessidades de reordenamento político e instrumental, impondo
negociações até então possivelmente inusitadas, como entre clima e as
políticas nacionais. Tais negociações são inscritas, por exemplo, em relató-
121
rios de órgãos de governo, como Embrapa e o próprio Ministério do Meio
Ambiente, a respeito de mudanças no zoneamento agrícola em função de
alterações no clima, e suas decorrentes medidas de mitigação e adaptação
(Dutra, 2018).
Essas inscrições instauram rupturas no ordenamento moderno, emba-
ralhando as relações entre tempo, natureza e sociedade, produzindo novas
possibilidades de articulação entre estes. Pude observar isso, por exemplo,
em uma segunda situação de campo, quando participei de uma audiência
pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, convocada pela
Comissão de Saúde e Meio Ambiente da casa, sobre “Mudanças climáticas
e a produção de alimentos saudáveis”. Em determinado momento, en-
quanto o chefe-geral da Embrapa Clima Temperado apresentava grácos
mostrando alterações no regime de chuvas e suas consequências para safras
no Rio Grande do Sul em 2030, o deputado responsável pela audiência
deu um salto em sua cadeira. Ele, que até então parecia estar ali de forma
mais protocolar, ao ouvir o dado pediu conrmação, interrompendo o pa-
lestrante imediatamente: “2030, tem certeza?”. O chefe da Embrapa tinha
certeza, e então ao nal da palestra o deputado, visivelmente transtornado,
fez um discurso público sobre a urgência do tema, sobre a necessidade de
fazer audiências regionais, no interior do estado, para “informar sua base”,
e armava: “2030 é daqui a 13 anos, não é daqui a cem anos, mudanças
climáticas é para agora, 13 anos é amanhã” (anotação em diário de campo,
realizada pela autora, Porto Alegre, setembro/2017).
Esse espanto e consequente chamada para ação do deputado me pa-
recem ecoar uma das quatro teses de Dipesh Chakrabarty, no seu artigo
“O clima da história” (2009), no qual arma que a “crise da mudança
climática” põe em questão nossa capacidade de compreensão histórica, so-
bretudo a relação entre a história natural e a história humana. Enquanto a
distinção clássica entre essas “duas histórias” assentava-se em temporalida-
des distintas, Chakrabarty discute como, a partir do Antropoceno, os seres
humanos se tornaram “agentes geológicos”, “criadores e não prisioneiros
do clima”. “Caracterizar-nos como agentes geológicos é atribuir-nos uma
força de escala”, arma Chakrabarty, que foi atingida muito recentemente
na história da humanidade e, nesse sentido, ele continua, “podemos dizer
que apenas recentemente entrou em colapso a distinção entre história hu-
mana e história natural” (Chakrabarty, 2009).
122
Tenho minhas dúvidas sobre o quão recente é essa indistinção. Mas,
nesse momento, gostaria de me deter no seguinte aspecto. Como venho
tentando demonstrar, projetos de desenvolvimento, desastres e a “chega-
da” do Antropoceno, cada qual a seu modo, produzem irrupções no tem-
po e nos apresentam perspectivas sobre o futuro. De modo esquemático,
eu gostaria de sugerir, a partir dos três tópicos que discuto brevemente
neste capítulo, que o desenvolvimento produz uma aceleração; o desastre,
uma interrupção; e o Antropoceno, a imprevisibilidade. Ainda que entre-
laçados, no contexto atual parece-me que a imprevisibilidade tem pouco
a pouco se imposto. Como arma Anna Tsing (2019), cada vez mais nos
vemos defrontados com as reações não projetadas de não humanos às in-
fraestruturas humanas, o que nos incita a observar o tempo como uma for-
ma de identicar a responsividade humana e não humana, isto é, observar
as respostas temporais, através da diferença, que produzem novas agendas.
Em termos analíticos, nos estudos sobre projetos de desenvolvimento
e conitos, já faz algum tempo que a Teoria Ator-Rede tem sido usada para
demonstrar as associações que tornam possível a vida em um determinado
lugar. Mas, talvez, nesse momento seja necessário ir além. Eduardo Kohn
(2013), em seu livro Como as orestas pensam: por uma antropologia para
além do humano (em tradução livre), argumenta que o que distingue os
seres vivos das demais entidades é a inclusão de futuros no que fazem no
presente. De forma complementar, é possível argumentar que para que os
seres vivos possam pensar o futuro é preciso que haja assemblages, ou assem-
bleias – encontros de organismos juntos e agrupados em um lugar, na de-
nição de Tsing (2019). Essa autora nos convida a realizar a descrição crítica,
“mapear os planos, intencionais ou não, que giram em direção ao futuro,
criando mundos para o porvir e para o presente.” (Tsing, 2019, p. 43).
Em meio aos desastres, às ruínas, ou às catástrofes, quais são as asso-
ciações que tornam a vida possível? Quais os agenciamentos que possibi-
litam a produção de um futuro coabitável? Essa é a tarefa etnográca que
me parece urgente, e, portanto, são essas as questões que eu gostaria de
colocar para os estudos CTS diante dos desastres ambientais. Finalmen-
te, uma breve ponderação: quando realizava pesquisa de campo em Belo
Monte, uma das minhas muitas angústias era a de sentir-me uma cronista
de uma guerra perdida. Mas essa era uma visão bastante estreita do que
estava em jogo. Os Munduruku, povo indígena que habita a bacia do Ta-
pajós, enquanto eu escrevia minha tese, ocupavam os canteiros de obras
123
do Xingu, escreviam cartas abertas, realizavam encontros e, em 2016, con-
seguiram suspender a construção da barragem de São Luiz do Tapajós em
seu território. Nunca em denitivo, claro, o porvir sempre está em aberto.
E a contingência é a chave para histórias humanas e não humanas. Mas
disputá-lo é uma tarefa constante, da qual não se pode desistir ou deixar
para depois.
Uma abordagem CTS dos Desastres, ou um fazer antropológico no
Antropoceno, essa época geológica em que o desastre é a regra, a meu ver,
trata de posicionar-se nessa construção ativa de porvires coabitados. É esse
o convite que eu gostaria de fazer às pesquisadoras e aos pesquisadores
interessados no tema.
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Controvérsias sociocientícas e mineração:
formação cidadã crítica no enfrentamento
aos processos de desastres
Daniela Campolina, Clarissa Rodrigues e Fábio Augusto Rodrigues e Silva
A atividade minerária, que faz parte da história de constituição do estado
de Minas Gerais, tem se mostrado, cada vez mais, como um campo per-
meado por diversas controvérsias e questões sociocientícas. Segundo o
Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM, 2016), atualmente, o Estado
é destaque na produção de minério de ferro, além de ser responsável por
quase metade da produção nacional de minérios metálicos. Isso, por sua
vez, explica a grande quantidade de barragens de rejeitos em seu território
– mais de 300 (ANM, 2020) – e um histórico de vários rompimentos des-
sas estruturas, especialmente nas últimas décadas (Pinheiro et al., 2019).
Dentre esses rompimentos, citaremos, a princípio, o da Mineração Rio
Verde, em Nova Lima (2001), o da Mineração Rio Pomba Cataguases, em
Miraí (2007), e o da Mineração Herculano, em Itabirito (2014).
Pinheiro et al. (2019) informam que nos últimos 20 anos houve, em
média, um rompimento de barragem de rejeitos a cada dois anos em Minas
Gerais. Se considerarmos os dados de Davies, Martin e Lighthall (2000),
Zonta e Trocate (2016) e Santos e Wanderley (2016), a possibilidade de
novos rompimentos tende a ser cada vez mais recorrente, visto que as cavas
de mineração e as barragens de rejeitos vêm aumentando em altura, pro-
fundidade e volume em todo o mundo. Azam e Li (2010) apontam que o
risco de rompimento e/ou desestabilização é uma propensão de barragens,
pois, mesmo que venham a ser construídas com tecnologias mais atuais,
estão expostas diariamente a diversos fatores que inuenciam e modicam
128
suas estruturas; por isso, estas demandam manutenção e monitoramento
constantes.
Além disso, em decorrência dessas tragédias, fomos apresentados a
um quadro decitário e – por que não dizer? – “intencionalmente” negli-
gente dos órgãos scalizadores e reguladores da atividade minerária. Cons-
tatamos, também, como são frágeis e permissivas as políticas de licencia-
mento ambiental, que favorecem a exploração sem controle e o aumento
do potencial degradador do ambiente (Laschefski, 2020).
Campolina (2019) alerta sobre a escala temporal e geoespacial dos
impactos advindos do rompimento de barragens de mineração, bem
como seu potencial pedagógico, no sentido de trabalhar a insegurança de
barragens como uma questão sociocientíca. Os grandes rompimentos
ocorridos nos últimos anos no Brasil têm evidenciado que comunidades
localizadas a dezenas e até centenas de quilômetros de onde se localizam
as barragens – inclusive em territórios onde a mineração não faz parte da
economia e dos modos de vida – têm sido afetadas. São populações que,
mesmo sem nunca terem sido consultadas ou sequer imaginarem, estão
submetidas aos riscos associados à atividade minerária, principalmente os
relacionados ao abastecimento de água das comunidades.
Nesse aspecto, os impactos da mineração – longe de se concentrarem
apenas em torno do complexo minerário instalado – podem abranger ex-
tensos territórios e, mesmo que em intensidades diferentes, submetem
milhares de pessoas a situações de vulnerabilidade. No caso de desastres de
rompimentos, como os ocorridos nos municípios mineiros, seus impactos
se prolongam por anos e tendem a permanecer por décadas, ou por tempo
indeterminado se considerarmos os ecossistemas afetados, a qualidade da
água, as economias e os modos de vida locais.
Mariana e Brumadinho: cenários de destruição e mortes
Os anos de 2015 e 2019 foram marcados por dois crimes socioam-
bientais associados às atividades de mineração na região do quadrilátero-
-ferrífero-aquífero (QFA) de Minas Gerais.1 A região do QFA possui uma
1 A região do quadrilátero-ferrífero (QF) possui importantes jazidas de minério de ferro. Lo-
caliza-se na área central de Minas Gerais, abrangendo 33 municípios, dentre eles a capital do
Estado, Belo Horizonte, e as cidades de Brumadinho e Mariana – essas últimas, onde ocorre-
ram os maiores desastres de rompimentos de barragens do Brasil. Ver: https://qfe2050.ufop.br/
municiipios-do-qfe. Acesso em: 29 nov. 2020.
129
importância admirável para o Estado, pois abriga uma especicidade geo-
lógica em que signicativos aquíferos se formaram, ao longo de milhões de
anos, em torno das jazidas de minério de ferro (Lamounier, 2009).
Em novembro de 2015, no subdistrito de Bento Rodrigues, locali-
dade do munícipio de Mariana, ocorreu o rompimento da Barragem de
Fundão, estrutura de responsabilidade da Samarco – empresa que consis-
te em uma joint venture entre as multinacionais Vale e BHP Billiton. O
rompimento da Barragem de Fundão foi o maior desastre da mineração
na América Latina em volume de rejeitos. Com o rompimento da bar-
ragem, imediatamente espalhou-se a notícia da destruição do vilarejo e
da movimentação de uma enorme onda de rejeitos – uma onda de lama
que vitimou 19 pessoas e, no decorrer de horas e dias, traçou uma rota de
destruição pela Bacia do rio Doce, atingindo diferentes comunidades em
Minas Gerais e no Espírito Santo e impactando mais de 600 km do rio
Doce, até alcançar o oceano Atlântico (Serra, 2018). Como resultado do
rompimento da barragem da Samarco-Vale-BHP, foram destruídas vidas,
moradias, ambientes, histórias, memórias e formas de se viver e de se pro-
duzir na região atingida (Wanderley et al., 2016; Caldas, 2017).
Para as pessoas atingidas, o rompimento não cessou em 2015. Seus
impactos permanecem até hoje, em meio a uma luta intensa e despropor-
cional entre as pessoas atingidas – ações indenizatórias e de reparação – e
as mineradoras responsáveis pelo desastre. Pessoas simples que enfrentam
um sistema – o qual movimenta e articula mineradoras, entidades públi-
cas, políticos e bancadas de advogados em um processo assimétrico – que
tem como objetivo protelar as compensações mínimas exigidas pelos re-
querentes para garantir sua dignidade e minimizar o intenso sofrimento
mental e social (Zhouri et al., 2016).
O segundo desastre de grande escala nacional ocorreu em janeiro de
2019, em Brumadinho, quando a Barragem B1 da Mina do Córrego do
Feijão, da Mineradora Vale, rompeu-se. Uma enxurrada de rejeitos e lama
ceifou a vida de 272 pessoas, entre funcionários diretos e terceirizados da
Mineradora e pessoas que moravam ou que passeavam na região (Freitas
et al., 2019). Até este momento, nem todos os corpos das vítimas foram
encontrados. A onda de rejeitos avançou pela bacia do rio Paraopeba, atin-
gindo pelo menos 18 munícipios (Silva et al., 2020), impactando mais
de 300 km de rio e gerando tensão pela possibilidade de atingir o rio São
Francisco. Novamente, o quadro de devastação se repetiu: pessoas e outros
seres vivos mortos ou impactados, ambientes, histórias e modos de vida e
130
de produção destruídos, e um cenário de disputas judiciais e de medidas
que mais protegem as empresas do que as vítimas da incompetência ou
má-fé das mineradoras, além da negligência do Estado em seu papel de
scalizar essas atividades (Losekann, 2020).
Os rompimentos como processos: desinformação como produção
e perpetuação de desastres tecnológicos
Os grandes rompimentos de barragens de rejeitos em Minas Gerais
não ocorreram por acaso, assim como não foram os únicos (Pinheiro et
al., 2019) e, ao que tudo indica, não serão os últimos. Como mencionado
anteriormente, em estudos que apontam o aumento do número, volume
e altura de barragens de rejeitos em todo o mundo, Minas Gerais segue
na linha de frente de possíveis novos rompimentos (Davies et al., 2000;
Zonta; Trocate, 2016; Santos; Wanderley, 2016). Não apenas por ser o
estado brasileiro com maior número de barragens de rejeitos, mas também
pelo fato de as estruturas em território mineiro serem apontadas como de
maior risco de rompimento (ANM, 2020).2
Nesse sentido, o discurso de empresas minerárias sobre disporem de
avanços tecnológicos que garantam a segurança de barragens é, no míni-
mo, questionável. Os grandes rompimentos não podem ser considerados
acidentes. As empresas responsáveis por eles foram, inclusive, reconheci-
das como culpadas pela Justiça brasileira.
O próprio governo brasileiro reconheceu o desastre em Mariana e no
rio Doce como um desastre tecnológico,3 tendo como referencial a clas-
sicação do Banco de Dados Internacional de Desastres (EM-DAT), do
Centro para Pesquisa sobre Epidemiologia de Desastres (CRED), da Or-
ganização Mundial de Saúde (OMS/ONU). A classicação dos tipos de
2 No Brasil, segundo a Política Nacional de Segurança de Barragens (2010), as barragens que
estão em nível de emergência acionado são as que apresentam maior risco de rompimento. Há,
conforme a Portaria n° 70.389, de 2017, três níveis de emergência: nível I, em que há alterações
na estrutura das barragens de acordo com critérios técnicos estabelecidos na legislação; nível II,
quando essas alterações não são controláveis; e nível III; quando há o risco iminente de rompi-
mento ou este já está ocorrendo. Segundo dados de novembro de 2020 da ANM, no Brasil, há
49 barragens de rejeitos e mineração em nível de emergência acionado. Destas, 43 localizam-se
em Minas Gerais, sendo que todas as que estão em nível II (nove no total) e em nível III (três no
total) também se encontram em Minas Gerais. Ver: https://app.anm.gov.br/SIGBM/Publico/
ClassicacaoNacionalDaBarragem. Acesso em: 29 nov. 2020.
3 DOU de 11 de novembro de 2011 e DOU de 17 de novembro de 2011.
131
desastres adotada no Brasil, tendo os órgãos anteriormente citados como
referência, encontra-se na Instrução Normativa nº 01, de 24 de agosto de
2012,4 do Ministério da Integração Nacional. Segundo essa Normativa, os
desastres podem ser classicados “quanto à sua origem ou causa primária
do agente causador” como: I. Naturais; II. Tecnológicos (Brasil, 2012, art.
7º), sendo que:
§3º São desastres tecnológicos aqueles originados de condições tecno-
lógicas ou industriais, incluindo acidentes, procedimentos perigosos,
falhas na infraestrutura ou atividades humanas especícas, que podem
implicar em perdas humanas ou outros impactos à saúde, danos ao
meio ambiente, à propriedade, interrupção dos serviços e distúrbios
sociais e econômicos.
Essa conceituação pode ser reforçada com a armativa de Mansur et
al. (2016) de que os macrocenários pós boom dos preços das commodities
foram determinantes nas opções tecnológicas escolhidas pela Samarco-
-Vale-BHP. Wanderley et al. (2016) armam que o boom das commodities e
seu megaciclo podem ser associados ao período entre 2003 e 2013, quan-
do o preço das importações globais de minérios teve um aumento muito
expressivo (630 %). Em 2011, o preço começou a cair, o que, segundo
os autores, contribuiu signicantemente para a redução nos investimen-
tos em monitoramento e manutenção de barragens. Marshall (2018), em
um estudo comparativo entre os rompimentos de Fundão, em Mariana,
e Mount Polley, no Canadá, em 2014, arma que, em ambos os casos, a
queda drástica dos preços de minerais no mercado internacional fez com
que mineradoras, na tentativa de manter o nível de lucros, não apenas
promovessem a diminuição da força de trabalho, como também negli-
genciassem a manutenção das barragens. Na perspectiva da autora, tanto
no Brasil quanto no Canadá, as empresas mineradoras optaram por não
responder aos sinais de riscos de rompimentos evidenciados em relatórios
de inspeção.
Nesse sentido, reforçamos nossa concepção de que os Desastres de
Rompimento de Barragens de Rejeitos de Mineração (DRBRM) não po-
dem ser considerados eventos isolados e pontuais, mas sim constituem
4 Disponível em: http://www.gabinetemilitar.mg.gov.br/images/documentos/Defesa%20Civil/
Instru_Normativa_01.doc
Acesso em: 29 nov. 2020.
132
ciclos processuais que se iniciam antes mesmo do rompimento (Zhouri;
Laschefski, 2015; Zhouri et al., 2016; Zhouri, 2019; Zonta; Trocate, 2016;
Carmo et al., 2017; Campolina; Gianasi; Perkins, 2020) e que permane-
cem expondo as comunidades de diversos territórios a impactos que as
afetam de maneiras múltiplas. Nesse aspecto, Campolina e Gianasi (2020)5
associam diversos fatores já apontados como propulsores e produtores de
desastres de rompimento de barragens de rejeitos de mineração e acrescen-
tam o papel da educação nesse contexto de produção de desastres. Na vi-
são das autoras, a inuência da mineração em sistemas educacionais locais
também contribui para os processos de rompimento de barragens e estes
desencadeiam consequências em escalas espaço-temporais diversas.
Dentre os fatores que contribuem para a produção de DRBRM, as
autoras destacam o papel da desinformação e do marketing social, cujas
atividades desenvolvidas por empresas junto a escolas e gestões educacio-
nais locais merecem destaque. A seguir, um quadro-resumo elaborado por
Campolina et al. (2020) numa tentativa de ilustrar os DRBRM como
processos, e não eventos (Figura 1).
Nessa perspectiva, além da inuência do preço internacional das com-
modities na produção de DRBRM, conforme Santos e Wanderley (2016),
a inépcia, a fragilidade técnica e operacional, assim como a inação seletiva
das agências estatais de regulação pública de barragens, também inuen-
ciam signicantemente a produção de DRBRM. Para sustentar suas argu-
mentações sobre a inuência do Estado na produção de desastres, os au-
tores se baseiam em uma série de documentos que eram de conhecimento
de órgãos estatais de scalização e que indicavam a situação crítica de (in)
segurança da barragem de Fundão, da Samarco-Vale-BHP, anos antes de
seu rompimento. Eles armam ainda que a falta de monitoramento de
barragens no Brasil, tendo como exemplo o caso da Samarco-Vale-BHP,
alimenta um ciclo de “práticas empresariais inadequadas”.
Santos e Wanderley (2016) também apontam como práticas empre-
sariais inadequadas realizadas pelas empresas minerárias: a não observação
5 A Figura 1 foi elaborada para a apresentação no evento ESAC (Campolina et al., 2020). Vá-
rios estudos foram realizados para a estruturação da disciplina experimental “Controvérsias
sociocientícas e território: barragens de rejeitos”, ministrada por Lussandra Gianasi e Daniela
Campolina no mestrado prossional de Biologia, da Universidade Federal de Minas Gerais,
em Belo Horizonte, no primeiro semestre de 2020. Vários vídeos foram produzidos sobre essa
temática no intuito da formação continuada de professores. Os vídeos podem ser acessados no
canal https://www.youtube.com/user/MsLussandra. Acesso em 15 jan. 2021.
133
de procedimentos de segurança de barragens; a frequente utilização do
próprio rejeito nos diques, sem controle tecnológico e sem projeto inicial
de engenharia; a automatização de inspeções e a medição da instrumen-
tação por controle remoto; o costume de não seguirem o manual de ope-
ração, assim como a não implementação de processos de planejamento a
longo prazo. Eles armam que a não scalização e a não punição das prá-
ticas empresariais inadequadas por parte das agências regulatórias estatais
também são fatores que contribuem para a produção de DRBRM.
Figura 1 - Processos de rompimento de barragens de rejeitos
Fonte: Campolina et al. (2020).
Portanto, ao considerarmos o rompimento de barragens de rejeitos
como um processo, esse desastre catastróco decorreria de um entrela-
çamento de fatores macro e microestruturais. Dentre os fatores macro,
consideramos o preço utuante das commodities, que inuencia na redu-
ção de investimentos em segurança das barragens (micro), somando-se à
inoperância do governo na scalização e punição (seja por sucateamento
134
estatal ou por inação seletiva) e às práticas de má gestão das empresas,
que envolvem, também, questões econômicas e políticas, e não mera-
mente técnicas.
O preço utuante do minério internacionalmente tem repercussões
locais e é um dos fatores constituintes da minero-dependência (Coelho,
2012). Congura-se, pois, a forte dependência da economia local na mi-
neração devido a uma especialização econômica que, por vezes, converte
as cidades em reféns dessa atividade.
Baptista (2019, p. 14) pontua que “a extração de minerais metálicos
tem capacidade muito limitada de impulsionar outros setores da econo-
mia”, especialmente por ser uma atividade de “baixa intensidade tecnoló-
gica no processo produtivo, e [ter] seu preço estabelecido através da con-
corrência no mercado mundial”. Isto, por sua vez, torna “o setor pouco
inovador, com pouca possibilidade de impulsionar o desenvolvimento
regional através de externalidades positivas geradas por desenvolvimentos
de novas tecnologias”. Coelho (2012, p. 141) assinala que a falta de di-
versicação econômica – pela qual, muitas vezes, uma única empresa mo-
vimenta a economia por um tempo determinado em um município e/ou
região – “possibilita uma maior tolerância por parte da população frente
aos prejuízos, não só ambientais, mas também sociais, como a superexplo-
ração do trabalho”. Nesse sentido, a dependência econômica territorial
da atividade minerária inuencia, também, a estrutura das instituições
públicas, a conguração política, as relações intermunicipais e a própria
conguração do espaço social dos municípios minerários (Coelho, 2012;
IPEA, 2020).
Nesse contexto, Campolina e Gianasi (2020) destacam a inuência
da mineração também nos sistemas educacionais locais, especialmente em
nível municipal, como parte da construção do “marketing social e desin-
formação”. Segundo as autoras, a atuação das mineradoras nas escolas e
sistemas educacionais locais é um fator que contribui para os processos de
desastres de rompimento de barragens.
Já Maia e Malerba (2019) indicam o mapeamento de escolas e o de-
senvolvimento de ações de assistencialismo ligadas aos discursos de “Res-
ponsabilidade Empresarial Social” dentre as estratégias de “comunicação”
das empresas minerárias nos locais em que se instalam. De acordo com
as autoras, esse mapeamento congura-se como uma das estratégias das
empresas minerárias para minimizar possíveis resistências ao chegarem a
um território, visando “tentar convencer as comunidades locais de que
135
a empresa se preocupa com a sociedade e com o meio ambiente” (Maia;
Malerba, 2019, p. 13).
Campolina e Gianasi (2020) apontam diversas estratégias que as mi-
neradoras desenvolvem junto aos sistemas educacionais, especialmente
nos municípios onde são instalados os complexos minerários e no en-
torno, destacando, como exemplos: cursos de formação de professores,
materiais didáticos, visitas de estudantes a centros de educação ambiental,
complexos minerários, nanciamento de eventos, projetos e concursos
escolares, bem como propagandas nas grandes mídias, congurando um
ciclo de desinformação bem engendrado (Figura 2).
As autoras também apontam que as universidades localizadas em ci-
dades e/ou regiões minerárias raramente oferecem disciplinas e/ou for-
mações sobre a questão minerária e suas controvérsias como potencial di-
dático, mesmo quando possuem cursos de formação inicial e continuada
de professores. Elas indicam, ainda, a escassez de materiais didáticos e
formativos sobre a visão crítica da mineração e suas barragens de rejeitos
(Campolina, 2018). A Figura 2 mostra problemáticas envolvendo a temá-
tica da mineração no contexto de sistemas educacionais.
Figura 2 - Processos de desinformação e inuência da mineração na educação
Fonte: Campolina et al. (2020).
136
Campolina et al. (2020) destacam fatores que contribuem para a
desinformação local e que favorecem a produção de DRBRM. Dentre
eles está o desconhecimento, por parte de comunidades, professores, es-
tudantes e até mesmo movimentos socioambientais e organizações não
governamentais sobre: tipos de mineração e barragens de rejeitos de mi-
neração; formas de monitoramento e scalização das barragens; causas de
rompimentos de barragens; percurso da lama – em caso de rompimento
de barragens – e sua relação com os rios e a bacia hidrográca onde a bar-
ragem está inserida; nível de toxicidade da lama; e mecanismos de controle
social, participação e acesso à informação. Campolina, Gianasi e Oliveira
(2019) também enfatizam como o desconhecimento geográco favorece
situações de vulnerabilidade nas comunidades localizadas abaixo de bar-
ragens de rejeitos.
A complexidade, extensão e temporalidade dos impactos causados pe-
los grandes rompimentos nos ensinaram que estes não são meros eventos.
As comunidades de Mariana e Brumadinho, assim como as localizadas ao
longo do rio Doce e do rio Paraopeba, ao longo de anos, desde os rompi-
mentos, têm evidenciado isso. Observamos que comunidades localizadas
a mais de 300 km de um complexo minerário e até mesmo em estado
distinto – onde a mineração não tinha inuência na economia local – so-
freram e têm sofrido os impactos do rompimento. Atualmente, devido ao
rompimento, a atividade minerária afeta negativamente diversas formas
de geração de renda que conguravam uma economia local e circulavam
nos diversos territórios, tendo o rio como epicentro.
Nesse contexto, o Instituto Guaicuy, umas das assessorias técnicas in-
dependentes que estão acompanhando o processo de ação civil pública
contra a Vale,6 defende a tese dos danos sistêmicos promovidos pelo rom-
pimento da barragem do córrego do Feijão, em Brumadinho. O Institu-
to sustenta a ideia de que o rompimento afetou sistemicamente todas as
comunidades no entorno do rio Paraopeba, ao longo de mais de 300 km,
até chegar ao lago de Três Marias. Em um dos documentos elaborados – o
6 Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, as assessorias técnicas independentes (ATI)
têm o objetivo “de possibilitar participação e informação qualicada das vítimas nas ações de
reparação integral dos danos e reduzir o desequilíbrio entre as partes [...] Objetivando um tra-
tamento técnico adequado, considerando as especicidades de cada comunidade atingida, e,
inclusive, evitando-se o retrabalho e eternização do conito, as ATI, após entrada nos territórios,
produzirão dados/estudos/perícias com o m de promover participação efetiva e garantia da cen-
tralidade dos atingidos na concepção, formulação, execução, acompanhamento e avaliação dos
planos, programas, projetos e ações relacionados à reparação integral”. Disponível em: https://
mpmgbarragens.info/atuacao-socioeconomica/assessorias-tecnicas/ Acesso em: 29 nov. 2020.
137
Mapeamento preliminar de danos transindividuais e análise das provas a
serem produzidas na Ação Civil Pública nº 5010709-36.2019.8.13.0024
– o Instituto Guaicuy (2020) aponta os diversos danos coletivos, estrutu-
rados em 12 eixos temáticos: 1) perda de vida humanas e danos morais
coletivos decorrentes do luto; 2) direito à saúde; 3) danos à propriedade
privada; 4) direito à água; 5) segurança alimentar; 6) produção rural; 7)
cadeias econômicas e turismo; 8) direito de ir e vir e deslocamentos força-
dos; 9) danos imateriais, culturais e danos aos modos de vida; 10) direito
à informação e participação; 11) impactos nas políticas públicas; e 12)
perpetuação das violações e revitimização.
O eixo temático nº 10 indica que o processo de desinformação per-
manece mesmo após o ápice do processo de rompimento, que se dá com a
lama de rejeitos percorrendo e sedimentando-se em diversas localidades ao
longo do rio Paraopeba. Portanto, podemos considerar a desinformação
não apenas como um agente produtor do desastre, mas também como
perpetuador dos impactos do rompimento em processo contínuo.
As diversas controvérsias, inclusive sociotécnicas, manifestavam-se
desde antes do rompimento, quando documentos já apontavam para
falhas técnicas na manutenção dos diques e da estrutura das barragens.
Com o rompimento, as mineradoras apresentaram dados controversos,
armando que a lama de rejeitos não é tóxica, quando, atualmente, as
populações atingidas são obrigadas a conviver com os efeitos da lama nas
águas, ecossistemas e cadeias produtivas locais. Portanto, podemos armar
que a insegurança das pessoas atingidas quanto à situação do rio e dos pei-
xes e à desinformação promovida pela própria empresa responsável pelo
rompimento torna os DRBRM processos – eternos? – de violação de di-
reitos individuais e coletivos diversos. O eixo temático nº 10 suscita uma
reexão sobre a nossa possível contribuição como educadores no intuito
de dirimir as diversas situações de exclusão, vulnerabilidade e violação de
direitos humanos.
As controvérsias da mineração como tema para
a educação cientíca
Envoltos nesse cenário de destruição socioambiental e de violação
sistemática de direitos humanos e da legislação ambiental por grandes e
pequenas empresas mineradoras, nós, educadores em ensino de ciências
da educação básica e do ensino superior, fomos impelidos a considerar e
138
incorporar a mineração e seus crimes como tema relevante para a educação
cientíca. Partimos do pressuposto de que, ao levar esse assunto para nos-
sas salas de aula, podemos contribuir para superar a visão limitada sobre a
atividade minerária, que se assenta na relação de dependência das comu-
nidades com mineradoras e que aliena tais comunidades do conhecimento
sobre os grandes impactos da mineração a médio e a longo prazos. Anal,
[m]ultiplicam-se as evidências, em todo o continente latino-america-
no, de que a mineração tem deixado bolsões de pobreza, devastação e
contaminação ambiental, inviabilizando o desenvolvimento de outras
atividades econômicas nessas regiões e comprometendo a subsistência
das gerações futuras (Carrara, 2016, p. 138).
Nesse sentido, há esforços de professores da educação básica e univer-
sitários no intuito de desenvolver ações e atividades que procurem explici-
tar os riscos e incertezas associados a uma exploração desmedida de nossos
recursos minerais (Silva, 2018).
Concordamos com Marques et al. (2007) em que propostas de en-
sino com enfoque de Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) se apresen-
tam como possibilidade para o tratamento dos problemas ambientais em
processos de formação inicial de professores de Ciências Naturais. Souza
(2005) também considera que o enfoque CTS se apresenta como uma
maneira de viabilizar uma abordagem das questões ambientais, em que os
estudos da natureza, ciência, tecnologia, sociedade e suas interações têm
como propósito a compreensão da interdependência desses termos por
parte do aluno em formação e são voltados para interesses sociais, como,
por exemplo, as questões ambientais.
Rolo (2011, p. 24), ao discutir a formação de professores e as ques-
tões ambientais, acentua que os professores
apresentam diculdades em articular os conteúdos especícos das dis-
ciplinas com os conhecimentos ambientais em atividades demandadas
de suas práticas pedagógicas com base na transversalidade. Além disso,
demonstram carências sobre o domínio e a compreensão de conheci-
mentos inerentes à educação ambiental, e diculdades para enfrentar
o desao da complexidade em lidar com as noções de disciplinaridade,
interdisciplinaridade e transversalidade. Apresentam, também, di-
culdade de contextualização da temática ambiental às especicidades
139
socioculturais locais. E demonstram possuir dúvidas quanto à com-
preensão sobre a educação ambiental para o estabelecimento de uma
sociedade que leve em consideração a equidade social, a prudência eco-
lógica e o desenvolvimento econômico.
Rivarosa e Perales (2006) evidenciam algumas características dos pro-
blemas ambientais: i) não possuem uma solução única; ii) apresentam
complexidade, pois demonstram diferentes variáveis que podem ser in-
troduzidas nos mais diversos momentos; e iii) exigem e/ou favorecem a
investigação e reexão. Além disso, para situá-los e resolvê-los, é necessário
contar com o conhecimento cotidiano, mas também com o conhecimento
cientíco. Os problemas fazem referência a aspectos diversos da atividade
humana, tais como: saúde, consumo, ambiente, desigualdades sociais etc.,
por isso requerem uma abordagem interdisciplinar. São questões signica-
tivas para a vida presente e futura das pessoas. Assim, podem conectar-se
com os interesses e preocupações dos alunos, de modo a fazer sentido para
aqueles sujeitos. Os problemas socioambientais também podem mobilizar
conteúdos culturais socialmente relevantes.
Nesse aspecto, e contemplando os problemas socioambientais ad-
vindos da atividade minerária, nossa compreensão sobre a formação de
professores e ensino de ciências se orienta no sentido de articular a teoria
e a prática, visando à superação de uma relação linear e mecânica entre
conhecimento tecnocientíco e sociedade. Para Aikenhead (2009), é pre-
ciso que o ensino de ciências envolva a compreensão do contexto social
da ciência e da tecnologia. É importante considerarmos que a ciência é
uma prática social, impactada pelo ambiente social, político e econômico
(Hodson, 2018). Julgamos essencial que a prática docente esteja articula-
da entre a universidade e as escolas, com espaços de prática e de reexão
sobre a prática.
Quanto à formação de professores, especicamente, é imprescindível
propor atividades que possibilitem a reexão coletiva dos futuros docentes
sobre a prática, ao mesmo tempo em que se busca capacitá-los a utilizar
metodologias diferenciadas no ensino de ciências. Já em relação às aulas de
ciências, Hodson (2018) salienta ser primordial que os professores discu-
tam temas que os preparem para reetir e agir quando confrontados com
as questões sociocientícas e ambientais.
140
Uma estratégia que pode contribuir para esse processo é o uso de
questões sociocientícas relacionadas a controvérsias e pontos de vista
cientícos diferentes e interdisciplinares, em geral polêmicas. Tais ques-
tões envolvem também a tomada de decisão relacionada a conteúdos de
diversas disciplinas, valores e ideologias e à discussão de responsabilidades
individuais e coletivas (Aikenhead, 2009; Hodson, 2018).
Anal, mesmo existindo uma crescente preocupação com as questões
ambientais, muitas vezes, o tratamento dado à temática ambiental tem
se restringido apenas a citações de problemas ambientais. Dessa forma,
é importante incorporar reexões mais profundas no que diz respeito às
questões ambientais e sua relação com o ensino de ciências, consideran-
do a formação de sujeitos capazes de compreender o contexto sociopo-
lítico, interpretar as relações e os conitos e tomar decisões para a ação
socialmente responsável (Marques et al., 2007). É importante, também,
superar uma educação ambiental nas escolas com predomínio de práticas
focadas no indivíduo e que ignoram as dimensões sociopolíticas. Por isso,
é fundamental pautar a dimensão sociopolítica da educação cientíca e
ambiental, de modo a ampliar a discussão sobre a maneira como as práti-
cas produtivas dominantes estão ligadas de modo indissolúvel às práticas
das ciências naturais sob o domínio da lógica do capital (Mészáros, 2004).
No contexto do esforço para incorporar a mineração como tema da
educação cientíca, envolver pressupostos sobre as relações sociopolíticas
que essa atividade estabelece nos diversos territórios sobre os quais tem
inuência é premissa crucial para pensar processos de ensino e aprendiza-
gem que abram oportunidades para uma formação cidadã. É um ensino
permeado por controvérsias sociocientícas que tem potencial para su-
perar o ciclo de desinformação promovido pelas empresas minerárias e
possibilitar o enfrentamento aos processos de desastres de rompimento de
barragens de rejeitos de mineração.
A importância da parceria entre universidades,
movimentos e escolas
Trabalhar a mineração e a (in)segurança de barragens como questões
sociocientícas na educação com uma abordagem de ciência, tecnologia,
sociedade e ambiente (CTSA) é desaante. Todavia, diante do apresenta-
141
do nas seções anteriores, vimos que, cada vez mais, é necessário trazer essa
abordagem para as salas de aula. Nessa perspectiva, é preciso oportunizar o
acesso à informação, estabelecer espaços formativos que possam abranger
desde discussões sobre as controvérsias ligadas à atividade minerária até os
riscos e vulnerabilidades que essa atividade expõe às pessoas de diferentes
formas e em diversos aspectos.
Nesse contexto, parcerias entre escolas, universidades e movimentos
socioambientalistas podem ser articulações possíveis para estabelecer de-
bates, reexões e mesmo produção de informações sobre a mineração e
seus impactos, especialmente quanto à insegurança de barragens. Seguin-
do essa linha, apresentaremos três inciativas que exemplicam possíveis
caminhos na discussão da mineração em abordagens CTSA, visando à
tomada de decisão e à formação crítica, e no enfrentamento aos desastres
de rompimento de barragens de rejeitos de mineração.
Um projeto desenvolvido por uma das autoras deste capítulo, “Mi-
neração em Foco”, teve como objetivo promover discussão sobre o pro-
blema sociocientíco do rompimento da barragem de Fundão e a ação
predatória da atividade minerária, por meio do desenvolvimento de abor-
dagem de ensino-aprendizagem investigativa (Ensino de Ciências por In-
vestigação), com enfoque CTS, em escolas do entorno da atividade mi-
nerária e de regiões atingidas pelo rompimento da barragem. O projeto
de extensão teve a participação de duas bolsistas do curso de licenciatura
em Química da Universidade Federal de Ouro Preto. Para isso, foram
promovidas atividades que buscavam discutir com os professores das áre-
as atingidas – especicamente da escola estadual de Barra Longa, um
dos municípios atingidos – a atuação em educação ambiental em sala de
aula, utilizando questões sociocientícas relacionadas ao rompimento da
Barragem de Fundão.
Durante o projeto, ocorreram reuniões com os professores e bolsistas
envolvidos no projeto com o objetivo de discutir e apresentar propos-
tas. Além dessas atividades, aconteceram, também, palestras, minicursos
e ocinas. A etapa nal do projeto envolveu o planejamento de atividades
com os alunos, em sala de aula, usando as sequências didáticas, com abor-
dagem investigativa de monitoramento da qualidade do solo e da água.
Realizaram-se dois encontros com a equipe de professores da escola Padre
Epifânio, em Barra Longa, com a participação de 40 pessoas (equipe de
142
direção, pedagoga e professores). Foram organizadas, ainda, atividades re-
lacionadas com o tema, as quais poderiam, posteriormente, ser desenvol-
vidas com alunos do ensino médio.7
Celestino (2019), em uma pesquisa orientada por um dos autores
deste capítulo, apresenta um trabalho de dissertação de mestrado que as-
sume a mineração como tema para o desenvolvimento de uma sequência
didática investigativa (SDI), guiada por uma questão: novas formas de
exploração mineral na cidade-sede da escola são possíveis? A cidade em
questão é Itabirito, localizada no quadrilátero ferrífero-aquífero, um dos
mais importantes centros de atividades da Vale S.A., com muitas barra-
gens de rejeitos em seu território.
A SDI buscou mobilizar os alunos e alunas do terceiro ano do ensi-
no médio a desenvolver pesquisas, estudos, discussões e produções, que
abriam a sala de aula para as controvérsias que movimentavam os grupos
com diferentes visões acerca da exploração minerária e da relação de de-
pendência da população de um tipo de atividade econômica. As atividades
também abriram espaço para a introdução das ideias de risco e incerteza
(Coutinho et al., 2016), como parte do cenário de tecnociência e como
concepções que precisavam ser articuladas aos conteúdos do ensino de
biologia quando nos deparamos com os problemas socioambientais.
Em diferentes momentos da SDI, os alunos – sujeitos da pesquisa –
foram convidados a se posicionar perante situações relacionadas ao crime
socioambiental da Samarco e a estabelecer comparações ou relação com a
situação de Itabirito e as atividades da Vale no munícipio. Esse convite foi
realizado por meio de uma lista de perguntas e discussões em grupos, re-
portagens e vídeos. A eles também foi proposta uma pesquisa sobre dados
da atividade de mineração no Estado e no município, tais como: empresas,
tipos de minerais extraídos, acionistas, lucro das empresas, características
econômicas e sociais das cidades, impostos e compensações nanceiras,
sociais e ambientais. A pesquisa incluía ainda questões diretamente rela-
cionadas à extração de minério de ferro, como: etapas/fases da extração,
deposição de resíduos, tipo de minas etc.
Como atividade nal, a SDI exigia que, em grupos, eles elaborassem
um plano de ação a partir de um método de lavra denido previamente:
lavra por bancadas, lavra por tiras e/ou lavra de pedreiras. Os grupos ti-
7 Três trabalhos foram apresentados: um no Congresso Brasileiro de Extensão, um no Encontro
de Saberes da UFOP, ambos em 2016, e outro no Encontro Nacional de Ensino de Química
em 2018.
143
nham por tarefa apresentar suas propostas que deveriam se mostrar como
a opção mais viável e sustentável para a comunidade. Essa atividade, de-
nominada “Trabalho Criativo”, consistiu na etapa de socialização da SDI.
Ao nal da análise dos dados obtidos na atividade, constatou-se que a
SDI ofereceu oportunidades para a aprendizagem de conceitos cientícos.
Entretanto, o mais importante foi possibilitar que os alunos percebessem
como os temas que envolvem a mineração são amplos e complexos e mo-
tivá-los a buscar informações e checar dados provenientes de várias fontes
associadas à grande mídia.
Outra ação que destacamos se refere aos projetos interdisciplinares
desenvolvidos em escolas da cidade de Rio Acima: “Somos todos Atingi-
dos?!” e “Nós Propomos!”. Esse munícipio localiza-se no QFA. Apesar de
possuir um histórico forte da mineração como uma das atividades econô-
micas na região, em 2020, o município não tem a mineração como ativi-
dade signicativa na arrecadação. Rio Acima foi palco, por vários anos, de
uma disputa muito acirrada entre movimentos ambientalistas – apoiados
por universidades – e mineradoras, devido à possibilidade de criação de
um Parque Nacional versus um grande projeto minerário – a mina Apolo
da mineradora Vale S.A., na Serra da Ganderela. A Serra abriga diversos
patrimônios naturais, paleontológicos, geológicos, togeográcos, cultu-
rais e históricos. Além disso, é considerada por diversos grupos que inte-
gram o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) e univer-
sidades como local estratégico na garantia da segurança hídrica da capital
de Minas Gerais e da região metropolitana (Faria, 2014). Ela é uma das
últimas regiões não mineradas do QFA e possui aquíferos signicativos,
formados ao longo de milhões de anos, em meio ao minério de ferro (La-
mounier, 2009).
Depois de muita pressão da população e da comunidade acadêmica,
em outubro de 2014, foi criado por Decreto o Parque Nacional da Serra
do Gandarela.8 No entanto, para a surpresa de todos, a área decretada
como parque não coincidia com a área do projeto original. O projeto sub-
metido incluía regiões de interesse da mineração, mas partes dessas regiões
não constam na área de abrangência decretada como parque.9 Durante os
mais de dez anos de enfretamento à mineração por parte do Movimento
8 Ver https://www.icmbio.gov.br/portal/visitacao1/unidades-abertas-a-visitacao/9463-parque-
-nacional-da-serra-do-gandarela. Acesso em: 29 nov. 2020.
9 Essa problemática é bem ilustrada no documentário Aquífero: do latim aqua + ferre. Disponí-
vel em: https://www.youtube.com/watch?v=fT4MRQ6HK4s&t=58s. Acesso em: 29 nov. 2020.
144
pela Preservação da Serra da Gandarela, com o apoio de diversos outros
grupos que também compõem o MovSAM, ocorreram diversas parce-
rias entre movimentos e universidade para a produção de conhecimentos
técnico-cientícos que embasassem a disputa pela criação do Parque Na-
cional, mas que também contestavam a concepção de “essencialidade” da
mineração no território (Faria, 2014). Entre cartilhas, vídeos, produções
acadêmicas em áreas de conhecimento diversas (artigos e dissertações en-
tre outros), documentários e palestras, a produção de informações sobre
essa região também se apresentou como um campo fértil para o desenvol-
vimento de atividades didáticas.
Rio Acima sofreu ainda a pressão para a construção de uma enorme
barragem de rejeitos, pretendida pela Mineradora Vale S.A., em uma re-
gião conhecida como Fazenda Velha,10 localizada a menos de 10 km do
centro da cidade. Toda a retórica de “desenvolvimento e emprego”, dese-
nhada pela mineração como oferta – questionável – com a instalação da
barragem, foi posta à prova com o rompimento da barragem da Samarco-
-Vale-BHP, em novembro de 2015.
Em meio a esse contexto, na cidade há um histórico de parcerias entre
a Secretaria Municipal de Educação e empresas minerárias, que se expressa
por meio de cursos de “formação” de professores ofertados pelas minera-
doras, além de visitas de alunos a complexos minerários e nanciamento
de concursos de desenho e redação. Esse é um clássico exemplo de “de-
sinformação” em que as controvérsias da mineração e seus impactos são
encobertos por uma cortina de supostas benfeitorias.
Todavia, especialmente em 2019 – após o rompimento da barragem
da Vale S.A., em Brumadinho, que afetou também o rio Paraopeba, com
a sequência de grandes rompimentos, somada ao acionamento de várias
barragens que entraram em nível de emergência e à proximidade de esco-
las em relação ao rio das Velhas11 – um grupo de professores começou a
se articular com o intuito de buscar informações e desenvolver atividades
didáticas sobre a temática de insegurança de barragens. Os movimentos
10 Ver: https://fazendavelharioacima.wordpress.com/2015/12/18/barragem-pretendida-pela-va-
le-ameaca-abastecimento-de-agua-da-regiao-metropolitana-de-bh/. Acesso em: 29 nov. 2020.
11 Há um desconhecimento sobre a questão da rota da lama no caso de rompimento de barra-
gens e a localização de escolas. Uma matéria do Repórter Brasil, de julho de 2019, aborda essa
temática. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2020/07/mapas-ineditos-10-escolas-e-
-mais-de-15-mil-predios-publicos-estao-no-caminho-da-lama-das-barragens-da-vale-em-mg/.
Acesso em: 29 nov. 2020.
145
alegavam que havia mais de trinta barragens de rejeitos acima do centro da
cidade; destas, onze encontravam-se em nível de emergência acionado. O
MovSAM (2019) chegou a divulgar informativo local, com manchas de
inundação de algumas dessas barragens, o caminho da lama e sua proximi-
dade às escolas da cidade, chegando a atingir algumas delas.
Em meio a esse contexto, professores de uma escola pública dos anos
nais do ensino fundamental, sendo questionados diariamente pelos alu-
nos quanto à situação das barragens na cidade, organizaram-se na busca e
produção de informações locais. Eles enviaram diversos ofícios solicitando
informações aos gestores municipais quanto à situação das barragens, mas
sem nenhum retorno ocial. Enquanto isso, placas começaram a surgir na
cidade sinalizando rotas de fuga e pontos de encontro, mas sem retorno
algum e justicativa ocial e/ou trabalho com escolas sobre o assunto.
A partir de então, em uma escola da rede, professores de diversas dis-
ciplinas desenvolveram o Projeto Interdisciplinar “Somos atingidos?!” O
projeto teve como objetivo: “desenvolver atividades didáticas que colabo-
rassem com a construção de conhecimentos e promovessem a reexão e
análise crítica de alunos e comunidade escolar em relação à mineração e
barragens de rejeitos de mineração que afetam o município de Rio Acima
(Teixeira et al., 2020, p. 2). Dentre as diversas atividades desenvolvidas
com alunos, aconteceram: produção de poemas, paródias, saraus, charges,
quadrinhos, cartas-manifesto, Cine escola, duelo de MCs e jogos diversos.
O Projeto “Somos Atingidos?!” envolveu também uma parceria com
o “Nós Propomos” – projeto de extensão da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais – que, entre outras atividades, selecionou uma bolsista da es-
cola para o programa de Iniciação Cientíca Junior.12 Durante o projeto
interdisciplinar e a parceria citada, diversas temáticas foram trabalhadas
junto aos alunos, como, por exemplo: os tipos de barragens de rejeitos
existentes, quais seriam as menos seguras, a diferença entre barragens de
rejeitos e de hidrelétricas, o que signica uma barragem entrar em nível de
emergência, o caminho da lama no caso de um rompimento e os procedi-
mentos que devem ser tomados pelos gestores municipais e pela empresa
no caso do acionamento de uma barragem em nível de emergência.
12 Apesar do corte da bolsa, a aluna selecionada seguiu na iniciação cientíca e o trabalho desen-
volvido foi apresentado e premiado no VI Simpósio Nacional Ciência, Tecnologia e Sociedade
(Campolina; Gianasi; Santos Junior; Santos, 2020) e apresentado no Congresso Nacional Uni-
versidade, EAD e Software Livre, 2020).
146
O Projeto “Somos Atingidos?!” foi uma parceria entre movimentos
socioambientais, universidade e escola que proporcionou tanto a produ-
ção de conhecimento e materiais didáticos sobre a realidade vivenciada
pela cidade quanto uma oportunidade de formação dos professores. Estes,
no intuito de garantir o acesso a informações, cobraram, por meio de
ofícios, informações aos entes municipais gestores. Na ausência de res-
posta, a equipe docente elaborou e protocolou duas representações junto
à Coordenadoria Estadual de Educação (Proeduc) do Ministério Público
de Minas Gerais, relatando as diversas situações de não retorno dos gesto-
res e de tentativas de interferência destes no trabalho de formação crítica
desenvolvido pela equipe docente diante da problemática da insegurança
de barragens de rejeitos.
Educadores no enfrentamento à desinformação
Ao sermos movidos pelos tsunamis da Samarco e da Vale, em 2015 e
2019, nós, como educadores em ensino de ciências, mineiros e mineiras,
residentes na região do QFA, somos confrontados com enormes estru-
turas, que, em segundos, podem promover mortes e destruição em di-
mensões pouco imaginadas. Ao longo dos dias, meses e anos, encaramos
as mais diversas e perversas violações de direitos humanos e de deveres e
direitos ambientais, que se perpetuam, geradas nos territórios afetados ou
sob inuência das empresas de mineração.
Em nossos estudos, percebemos que não lidamos com as consequên-
cias de eventos pontuais, crimes ocasionais, mas com processos complexos,
com muitas variáveis e implicações. Estes têm suas origens na colonização
do Brasil. Com o desenvolvimento e o aprimoramento dos mecanismos
de dominação e exploração capitalista, criou-se um sistema de dependên-
cia, cooptação, alienação e destruição dos modos de vida e produção das
comunidades mineiras.
Esse cenário nos sensibilizou a ponderar sobre nosso papel nas insti-
tuições educacionais, como seres políticos, e nos mobilizou a reetir so-
bre como poderíamos contribuir e participar de uma luta pela resistência
e, talvez, sobrevivência dos sujeitos de nossos territórios impactados pela
mineração. A partir de então, pautamo-nos por uma ação educativa e for-
madora que explicita um panorama de riscos e incertezas, o qual permeia
a atividade minerária em Minas Gerais, e que procura abrir as aulas de
147
ciências e de capacitação docente para questionar o papel do Estado, das
empresas e da sociedade no enfrentamento dos problemas socioambien-
tais. Procuramos evidenciar as disparidades das forças que se digladiam
nesse embate, no qual o valor do lucro sobrepuja o valor da vida.
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Engenharia e extensão universitária
numa perspectiva CTS: teoria e prática
no processo ensino-aprendizagem
Fábio Luiz Tezini Crocco, Denise Stefanoni Combinato, John Bernhard Kleba
Cristiano Cordeiro Cruz e Nilda Nazaré Pereira Oliveira
Há muito tempo, os estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS)
são consagrados por sua importância na formação em Engenharia, mas
raramente ultrapassam o campo teórico – quando muito, transbordam
para a prática de forma indireta. Apesar de sua inquestionável relevância,
percebemos, ao longo de nossas experiências docentes, que a mediação
de teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem das Engenharias
é fundamental para a melhor apropriação dos conhecimentos produzi-
dos socialmente, para a produção de novos conhecimentos vinculados à
realidade objetiva e pela possibilidade de promoção de soluções técnicas
focadas nas mazelas e iniquidades sociais.
O interesse de aproximar os conteúdos teóricos e as atitudes – morais
e éticas – transmitidos pelos estudos CTS com a extensão universitária em
cursos de Engenharia está sintonizado na interação transformadora entre
a academia e a sociedade, por meio da aquisição, produção e dissemina-
ção de conhecimentos e práticas. Nesse sentido, a indissociabilidade de
ensino, pesquisa e extensão remete à ideia de engenharia engajada (Kleba,
2017).
Com foco na mediação de teoria e prática, procuramos sintetizar, neste
capítulo, reexões, debates e desaos fundamentados nas práticas desen-
volvidas pelo Laboratório de Cidadania e Tecnologias Sociais (LabCTS)
do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). De forma mais especíca,
154
abordaremos, como estudo de caso, o projeto “Formação de engenhei-
ros e cidadania” (pFEC) desenvolvido por professores e alunos do Curso
Fundamental das Engenharias (Aeronáutica, Aeroespacial, Mecânica-
-Aeronáutica, Eletrônica, Civil-Aeronáutica e Computação) na disciplina
obrigatória “HUM-70 Tecnologia e sociedade”, ministrada nos quatro
semestres de 2018 e 2019.
Portanto, com a nalidade de discutir e problematizar tais questões,
estruturamos o texto em quatro seções, sendo assim distribuídas: (i) os
estudos CTS e seu papel na formação do engenheiro, na qual expomos
importantes contribuições e fundamentos teóricos para uma formação
integral e atitudes reexivas e críticas diante das perspectivas tradicional,
essencialista e triunfalista de ciência e tecnologia e da postura tecnocrática,
comuns entre as Engenharias; (ii) a teoria e prática extensionista no pro-
cesso ensino-aprendizagem, na qual destacamos a importância da indisso-
ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, com ênfase na apropriação,
produção e aplicação de conhecimentos articulados à realidade social; (iii)
o ITA e suas práticas de extensão universitária como estudo de caso, apre-
sentando nossas experiências pedagógicas e extensionistas; e (iv) práticas,
procedimentos e metodologias participativas/colaborativas e seus desaos,
dividida em duas subseções, nas quais discutiremos a perspectiva de ex-
tensão engajada do LabCTS a partir da pesquisa-ação, cocriação, diálogo
de saberes e design thinking (social) e, por m, a articulação de todos esses
elementos na prática extensionista do pFEC.
O campo das práticas engajadas da extensão universitária não subs-
titui, nem é antagônico à tradição teórica de CTS. Ao mesmo tempo,
reexões sobre a assim chamada torre de marm (Addor; Lianza, 2015)
nos convidam a reetir sobre o compromisso da CTS com a construção
de soluções para problemas socioambientais urgentes na atualidade. Este
trabalho visa, dessa forma, abrir caminhos de diálogo e enriquecimento
mútuo entre uma pesquisa e teoria CTS rigorosa e as intervenções socio-
técnicas engajadas.
Os estudos CTS e seu papel na formação do engenheiro
Apesar de todas as condições e contradições que envolvem a produção
e a aplicação de conhecimentos, nas Engenharias ainda predominam a
concepção de neutralidade cientíca e as visões essencialista e triunfalista
155
da tecnologia. Tais perspectivas sustentam a crença em um modelo line-
ar de desenvolvimento, a qual pressupõe que o investimento em ciência
básica resultará na produção de tecnologias que, aplicadas na sociedade,
criarão riqueza econômica e, automaticamente, o desenvolvimento do
bem-estar social (Bazzo; Linsingen; Pereira, 2003, p. 120). Além disso, a
suposta neutralidade, aliada à crença da infalibilidade do método cientí-
co, alimenta o cienticismo, que mistica a ciência e a coloca num pedes-
tal superior e isolado da sociedade e de outras formas de conhecimento.
Como resultado, “a ciência é valorizada, na sociedade moderna, como
instância absoluta, exatamente como Deus é visto na Igreja. Assim como
diziam os padres que queimavam hereges na inquisição ‘não sou eu, é Deus
quem o quer’” (Auler; Delizoicov Neto, 2001, p. 124).
Aliada ao cienticismo, a tecnocracia é outra noção conveniente e per-
sistente nas Engenharias, que se baseia “no mito de que apenas cientistas
ou especialistas podem dar conselhos conáveis sobre quaisquer assuntos”
(Chrispino, 2017, p. 33). O discurso competente e neutro da ciência e de
seus especialistas oculta os elementos político-ideológicos, como se suas
atuações fossem destituídas de interesses e valores. Assim, as decisões não
partilhadas democraticamente são creditadas à ciência e não aos tecnocra-
tas que, consequentemente, se isentam das responsabilidades. O sujeito é
eliminado do processo cientíco-tecnológico e o expert (especialista/técni-
co), que atua em nome da ciência, pode “solucionar os problemas sociais
de um modo eciente e ideologicamente neutro. Para cada problema exis-
te uma solução ótima. Portanto, deve-se eliminar os conitos ideológicos
ou de interesse” (Auler; Delizoicov Neto, 2001, p.124).
Tal entendimento da ciência e da tecnologia produziu mitos e distor-
ções que dicultaram a construção do conhecimento cientíco de forma
reexiva e crítica em relação aos seus limites, interesses e nalidades. Ocul-
tar esses elementos não os elimina e torna os especialistas menos cons-
cientes de si e da sua prática com relação ao conhecimento cientíco e à
produção/aplicação tecnológica.
Revelar e analisar esses processos é um passo fundamental para melhor
formar os engenheiros, os especialistas e os cidadãos em geral e possibilitar
que esses participem politicamente das decisões tecnocientícas, a m de
que essas interajam melhor com o meio social. Nessa direção, os estudos
CTS, a partir de sua formação, entre as décadas de 60 e 70 do século pas-
sado, buscaram alternativas para enfrentar as diculdades impostas pela
156
visão clássica do positivismo, estimuladora da misticação cienticista e
da ideologização das técnicas e da sua aplicação como instrumento de po-
der, que nos remete ao corolário da tecnocracia. Assim, Bazzo, Linsingen
e Pereira (2003, p.125) resumem o escopo dessa área,
[o]s estudos CTS denem hoje um campo de trabalho recente e hete-
rogêneo, ainda que bem consolidado, de caráter crítico a respeito da
tradicional imagem essencialista da ciência e da tecnologia, e de cará-
ter interdisciplinar por convergirem nele disciplinas como a losoa
e a história da ciência e da tecnologia, a sociologia do conhecimento
cientíco, a teoria da educação e a economia da mudança técnica. Os
estudos CTS buscam compreender a dimensão social da ciência e da
tecnologia, tanto desde o ponto de vista dos seus antecedentes sociais
como de suas consequências sociais e ambientais, ou seja, tanto no que
diz respeito aos fatores de natureza social, política ou econômica que
modulam a mudança cientíco-tecnológica, como pelo que concerne
às repercussões éticas, ambientais ou culturais dessa mudança.
Assim, a partir das contribuições dos estudos CTS, a ciência e a tec-
nologia (C&T) tornaram-se alvo de um olhar mais crítico em relação aos
seus fundamentos e limites teórico-metodológicos, às suas responsabili-
dades éticas e à sua mediação com a sociedade. Nesse sentido, ciência e
tecnologia passam a ser compreendidas como processos históricos e so-
ciais, ou ainda, “como projetos complexos em que os valores culturais,
políticos e econômicos ajudam a congurar os processos tecnocientí-
cos, os quais, por sua vez, afetam os próprios valores e a sociedade que
os sustenta” (Lückemeyer; Casagrande Junior, 2010, p. 178-179). Essa
mediação, rica em complexidade, proposta pelos estudos CTS, revela e
problematiza a orientação econômica, os interesses políticos e os poderes
institucionais que respaldam a produção e a aplicação de conhecimentos
em nossa sociedade e, em consequência, questiona o reducionismo do
determinismo tecnológico. Nesse sentido, é relevante destacar a discussão
proposta por Langdon Winner (1988) sobre a política presente nos arte-
fatos e, portanto, sobre as formas de poder internalizadas nas tecnologias
que, sob a égide do capitalismo atual, materializam, muitas vezes, inova-
ções tecnocientícas baseadas em valores elitistas e procedimentos exclu-
dentes. Além disso, Winner alerta que “os que não reconhecem os modos
pelos quais as tecnologias são moldadas pelas forças sociais e econômicas
não vão muito longe” (1988, p. 20, tradução nossa).
157
Os estudos CTS compõem um arcabouço teórico-crítico, amplo e
multidisciplinar, pautado na produção de conhecimentos promotores de
reexões e práticas sociais. Em vista disso, motivados por suas potenciali-
dades educacionais, Manassero e Vázquez destacam que
no espírito desse movimento, está o desejo de oferecer, por meio da
educação das atitudes relacionadas com a ciência, uma visão mais au-
têntica da ciência e da tecnologia em seu contexto social, desvinculadas
de imagens miticadas e tendenciosas (cienticismo e tecnocracia), ao
mesmo tempo que reconhece a tecnologia, como atividade diferente,
integrada e equiparável com a ciência, e não só como mera ciência apli-
cada. A equiparação entre ciência e tecnologia aumenta imediatamente
os valores contidos na natureza das atividades cientícas, de modo que
a educação atitudinal – moral ou ética – é uma consequência inevitável
da Educação CTS [...] a debilidade da ciência tradicional não reside no
que ensina sobre a natureza, mas sim no que não ensina, em particular,
suas relações com a tecnologia e a sociedade, vazio que pretende pre-
encher a Educação CTS (2002, p. 16, tradução nossa).
Portanto, os estudos CTS contribuem para a formação do enge-
nheiro ao promover a ampliação e o aprofundamento da compreensão
de seus fundamentos cientícos e tecnológicos, em sua mediação com
os fenômenos sociais. A Engenharia, enquanto campo de produção de
conhecimento e tecnologia, exerce papel central na mediação de ciência
e tecnologia, o que reforça a necessidade de superação de concepções
superciais e simplórias, como é o caso da acima referida concepção
clássica, que fundamenta o modelo linear de desenvolvimento e a pos-
tura tecnocrática.
A Engenharia desempenha um papel crucial na sociedade, ao desen-
volver a economia a partir da criação de ideias e soluções fomentadoras
de inovações tecnológicas aplicadas aos mais diversos segmentos socio-
econômicos e com as mais distintas nalidades. Apesar de sua inegável
importância no mundo atual, é fundamental ampliar seu campo de atua-
ção, em conexão com outras prossões e áreas do conhecimento, e, con-
sequentemente, buscar responder às demandas e às iniquidades sociais.
Diante das necessidades, dos desaos e da diversidade de práticas que en-
volvem a Engenharia, faz-se imprescindível uma formação que possibilite
ao graduando uma visão profunda do mundo em que está inserido e dos
papéis exercidos pelos engenheiros na sociedade.
158
Os estudos CTS contribuem para a graduação em Engenharia apro-
ximar-se do status de formação integral e abrem um imenso leque de com-
preensão e de atuação sociotécnica e, portanto, possibilitam amplicar a
diversidade de pers prossionais. Nesse sentido, os estudos CTS estimu-
lam nos engenheiros maior “sensibilidade crítica em relação às questões
sociais e ambientais incorporadas nas tecnologias, aproximando-os de uma
imagem mais realista da natureza social de C&T e do papel político dos
especialistas nas sociedades contemporâneas” (Ferreira et al., 2017, p. 38).
Os estudos CTS tematizam esse campo de controvérsias e dinâmicas
sociais nas suas mais diversas dimensões. Entretanto, boa parte do movi-
mento CTS não ultrapassa o campo da teoria – obviamente, com todo
mérito apresentado aqui –, e pouco propõe para testar ideias e aprender
a partir do enfrentamento de mazelas e de transformação social. Para en-
frentar essa questão, propomos a articulação de teoria e prática a partir de
uma perspectiva de ensino de Engenharia que busca articular a apropria-
ção e a produção de conhecimentos com base na compreensão e solução
de problemas sociais, tendo em vista o desenvolvimento do graduando e o
comprometimento do futuro prossional com uma engenharia engajada
(Kleba, 2017).
Teoria e prática extensionista no processo ensino-aprendizagem
A extensão universitária, tal como denida pela Política Nacional de
Extensão Universitária, caracteriza-se pela “indissociabilidade entre ensi-
no, pesquisa e extensão”, sendo um processo “interdisciplinar, educativo,
cultural, cientíco e político que promove a interação transformadora en-
tre universidade e outros setores da sociedade” (Brasil, 2018).
Percebe-se nessa denição a ênfase de que a apropriação e a produção
de conhecimento devem estar articuladas à realidade social. Isso porque o
ensino promove a apropriação do conhecimento historicamente produzi-
do e sistematizado que, por sua vez, alimenta a produção de conhecimen-
to – a pesquisa –, e a materialização, problematização e ampliação desse
conhecimento por meio da atuação na realidade – a extensão. Portanto,
esses processos dialogam entre si e se retroalimentam, promovendo uma
formação mais integral e crítica do aluno. Além de fundamento didático-
-pedagógico, entendemos a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão
159
na instituição pública de ensino superior como um fundamento ético-
-político (Martins, 2008).
De acordo com Vázquez (1977, p. 155), “o conhecimento só existe
na prática”. Em outras palavras, o conhecimento caracteriza-se pelo acesso
aos objetos presentes na relação ser humano-mundo/natureza por meio da
atividade: “conhecer é conhecer objetos que se integram na relação entre
o homem e o mundo, ou entre o homem e a natureza, relação que se es-
tabelece graças à atividade prática humana” (p. 153). A compreensão dos
conteúdos, produzidos historicamente a partir da prática social e passíveis
de confrontação, recriação e ampliação, exige do sujeito uma aplicação,
uma tradução em atos, que inclui tanto um fazer material, como uma
nova maneira “de pensar, de entender e julgar os fatos”, tendo em vista
uma compreensão ampla e crítica da realidade. Nesse sentido, “a prática
transformadora é a melhor evidência da compreensão da teoria” (Gasparin,
2005, p. 144).
Essa perspectiva de formação que articula teoria e prática no processo
ensino-aprendizagem é também o que preconizam as Diretrizes Curricula-
res Nacionais do Curso de Graduação em Engenharia (Brasil, 2019), tendo
em vista o comprometimento social e o desenvolvimento sustentável.
A formação em Engenharia deve ser vista principalmente como um
processo. Um processo que envolve as pessoas, suas necessidades, suas
expectativas, seus comportamentos e que requer empatia, interesse
pelo usuário, além da utilização de técnicas que permitam transformar
a observação em formulação do problema a ser resolvido, com a apli-
cação da tecnologia (p. 29).
A formação do egresso do curso de graduação em Engenharia deve
compreender, entre outras, as seguintes características:
I - ter visão holística e humanista, ser crítico, reexivo, criativo, coope-
rativo e ético e com forte formação técnica;
V- considerar os aspectos globais, políticos, econômicos, sociais,
ambientais, culturais e de segurança e saúde no trabalho;
VI - atuar com isenção e comprometimento com a responsabilidade
social e com o desenvolvimento sustentável (p. 36-37).
160
Por meio de projetos que articulam ensino-pesquisa-extensão, os alu-
nos têm a oportunidade de apropriarem-se e produzirem conhecimentos
na relação com sujeitos concretos, comunidades reais que, muitas vezes,
encontram-se em condição de marginalização e vulnerabilidade social. O
aprendizado e o desenvolvimento de tecnologias alternativas à convencio-
nal, como a tecnologia social (Dagnino, 2014; ITS, 2004), com soluções
efetivas e inovadoras para o enfrentamento de problemas reais e comple-
xos, promovem o envolvimento dos alunos e a aprendizagem signicati-
va em relação aos conteúdos teóricos (ensino), instigando a produção de
conhecimento (pesquisa), a compreensão e solução de problemas sociais
(extensão), garantindo, assim, uma formação mais ampla e profunda, ten-
do em vista o desenvolvimento do aluno e o comprometimento do futuro
prossional com uma engenharia engajada.
Portanto, o objetivo principal da teoria e prática extensionista no pro-
cesso ensino-aprendizagem é possibilitar aos alunos a compreensão teórica
e concreta da realidade, ampliando a concepção de ser humano e mun-
do, articulando educação e sociedade, teoria e prática, tendo em vista a
transformação do mundo natural ou social para satisfazer determinada
necessidade humana e, ao mesmo tempo, proporcionar aos estudantes um
espaço de desenvolvimento de habilidades sociais, de formação cientíca e
de cidadania – de compromisso social.
Estudo de caso: o ITA e suas práticas de extensão universitária
No Instituto Tecnológico de Aeronáutica, onde atuam os cinco au-
tores deste capítulo, ministramos uma disciplina que introduz a área dos
estudos CTS aos alunos de graduação em engenharias. A disciplina possui
uma carga horária de 48 horas/aula semestrais, é obrigatória para todos os
alunos do primeiro ano de graduação do Instituto e visa desenvolver uma
visão crítica geral sobre a temática de tecnologia e sociedade. Foi aprovada
pela Congregação do ITA, em 2005, e começou a ser ministrada no ano se-
guinte, como uma disciplina totalmente teórica. E assim permaneceu por
doze anos. Como faremos muito uso da sigla, vale mencionar que a disci-
plina tem como sigla Hum-70, sendo “Hum” a abreviatura de Humani-
dades, 70, o código numérico, e a denominação: Tecnologia e Sociedade.
161
Ao nal de 2017, objetivando promover uma formação crítica e enga-
jada a partir da relação com a prática social concreta, os professores cons-
truíram um projeto de extensão intitulado “Formação de Engenheiros e
Cidadania” (pFEC), vinculado ao Laboratório de Cidadania e Tecnologias
Sociais (LabCTS). O projeto trouxe como novidade a integração de ativi-
dades de extensão ao ensino, visando promover avanços na formação em
Engenharia e desenvolver, especicamente, competências de hard e soft
skills nas áreas de cidadania e inovação.
Objetivou-se conscientizar estudantes universitários sobre questões
relacionadas à cidadania, responsabilidade social, educação e inclusão so-
cial. Além disso, a disciplina procura proporcionar aos alunos oportuni-
dades de contato com problemas reais de comunidades e organizações da
sociedade civil da região de São José dos Campos/SP.
No pFEC, buscamos uma interação prévia com grupos e comunida-
des carentes, ou em vulnerabilidade, e contamos com a colaboração da
“Rede de Ação Social de São José dos Campos”, uma rede autogestionária
e colaborativa que reúne organizações da sociedade civil com o objetivo
de promover a troca de experiências, o apoio e o fortalecimento das ini-
ciativas do terceiro setor. Foi fundada em 2004 pelo Senac de São José dos
Campos e reúne cerca de 80 entidades que atuam em diversas frentes da
área social na cidade.
Assim, a construção das parcerias e a atuação colaborativa são motiva-
das pelas distintas expectativas e interesses dos agentes envolvidos. A com-
preensão e a clareza dessas ambições direcionam a elaboração e a execução
dos projetos de extensão.
No pFEC, lidamos com uma multiplicidade de organizações e atores
muito distintos, o que torna a satisfação de todas as expectativas uma
pretensão bem complexa. Nesse caso, podemos elencar como exemplo as
expectativas das comunidades/grupos locais, das organizações da socieda-
de civil, da “Rede de Ação Social de São José dos Campos”, dos alunos,
dos professores e da Instituição de Ensino Superior (ITA). Portanto, há a
formação de uma rede colaborativa que concentra e articula expectativas e
interesses distintos que precisam ser administrados e atendidos, na medida
do possível, para a coesão do grupo e a boa continuidade das parcerias.
162
Envolver os atores para trabalharem juntos e cooperarem depende de
múltiplos fatores (objetivos e subjetivos). A estruturação teórico-metodo-
lógica que guia a prática extensionista deve focar em dinâmicas e processos
participativos de elaboração, execução e avaliação das ações. As metodo-
logias do “Como agir?” são exemplos desses instrumentos objetivos. Mas
fatores subjetivos são muitas vezes difíceis de controlar, e podem dicultar
o bom relacionamento entre os participantes. Entretanto, se não evitáveis
completamente, os fatores subjetivos ou imponderáveis podem ser mini-
mizados com a preparação da equipe (professores e alunos, por exemplo)
de como se comportar em campo.
Por isso, desenvolvemos em nossas ações o que chamamos de aula
“pré-campo”, com a nalidade de transmitir princípios básicos de proce-
dimentos e ética em pesquisa. Essa preparação envolve discussão teórica
sobre fundamentos metodológicos para a coleta de dados, compreensão
das distintas perspectivas do olhar (observação) e atitudes e práticas re-
lacionais para o aprimoramento da empatia e do respeito no trabalho de
campo. Procuramos alcançar esses objetivos a partir de debates, técnicas
de teatro, dinâmica de jogos e outras atividades que simulam a realidade.
Em nosso pFEC, o trabalho com parceiros visa não somente facilitar
o desenvolvimento comunitário de grupos vulneráveis, mas também va-
lorizar e reforçar o trabalho de organizações da sociedade civil dedicadas a
esse tipo de atuação. A escolha dos parceiros em nosso projeto tem se dado
considerando alguns critérios: conhecimento da densidade do trabalho
dos parceiros; alinhamento com seus objetivos e metodologias; interesse
mútuo na parceria; e relativa proximidade ao ITA, o que facilita o envol-
vimento dos alunos, mediante as visitas e ações.
Trabalhamos, aqui, em parceria com organizações da sociedade civil.
Em 2018, os parceiros foram a “Sorri”, que promove a inclusão de pessoas
com deciência no mercado de trabalho, e a associação “Portal Sem Por-
teiras”, como parte da “Coolab Redes Livres”, que desenvolve não somen-
te a inclusão digital alternativa na área rural, mas visa a uma apropriação
comunitária das tecnologias da Internet.
Em 2019, passamos a trabalhar com a “Cooperativa de Reciclagem
São Vicente”, que envolve a geração de renda rateada entre cerca de trinta
cooperados, e com o “Ecomuseu+”, vinculado ao “Centro de Estudos da
Cultura Popular” (CECP), e que foca na revitalização material e imaterial
de bairros da periferia de forma participativa. Todas as iniciativas se locali-
163
zam em São José dos Campos, à exceção do “Portal”, que ca em Montei-
ro Lobato, a 40 km de distância de São José dos Campos.
Em todas essas esferas, problematizam-se as múltiplas conexões entre
o macro e o microssocial. Elementos cruciais das realidades desses grupos-
-alvo, e dos próprios parceiros, tangenciam as políticas públicas de suas
atividades-foco, em conexão com as demandas e as diculdades das pes-
soas envolvidas. A “CooLab”, por exemplo, parte de uma crítica ampla da
forma como indivíduos e comunidades se relacionam com a Internet, da
imposição de relações pelas gigantes do setor, da privacidade e do marco
regulatório, para buscar formas de autogestão e compartilhamento das tec-
nologias digitais a serviço de desejos e de solução de problemas da comu-
nidade local. Já os trabalhos do “Ecomuseu+” envolvem a reapropriação
do espaço do bairro por seus moradores, promovendo o empoderamento1
comunitário, ações coletivas, deliberações e negociações de espaços para
praças e lazer com a Prefeitura e empresas do entorno.
Trabalhamos, aqui, na perspectiva de uma autonomia relativa com
respeito aos parceiros, cooperando em objetivos comuns de atuação, mas
preservando os focos diferenciados. Além de preparar os alunos para o
campo, o pFEC realiza visitas às comunidades e grupos-alvo, e desaa os
times de alunos a propor soluções para problemas relevantes locais, solu-
ções que englobam projetos de Engenharia, Gestão (por exemplo, para
artesãos locais) ou Educação. Essas propostas são validadas pelas pessoas
locais e pelos parceiros, e se persegue a cocriação na evolução dos projetos,
como veremos a seguir.
Práticas, procedimentos e metodologias
participativas/colaborativas e seus desaos
Dentre os principais procedimentos que seguem a perspectiva de ex-
tensão engajada do LabCTS, apresentaremos a seguir: pesquisa-ação, co-
criação, diálogo de saberes e design thinking. Na segunda seção desta parte,
analisa-se a articulação de todos esses elementos na prática extensionista
do pFEC (LabCTS). Cabe ressaltar que os conceitos dos quais se parte
possuem singularidades teóricas e propositivas. Contudo, a metodologia
1 Embora um conceito especíco de empoderamento seja central para o LabCTS, não o apre-
sentamos em detalhes aqui em razão do escopo do texto. Para uma exposição detalhada do
empoderamento em intervenções sociotécnicas, veja Kleba e Cruz (no prelo).
164
que se tem desenvolvido conjuga-os e adapta-os de forma crítica e prag-
mática dentro de nosso contexto de trabalho.
Pesquisa-ação, cocriação, diálogo de saberes e design
thinking
A pesquisa-ação não é simplesmente um método, mas um paradigma
de produção e uso do conhecimento que procura ser transformador ao re-
jeitar um conhecimento apenas como exercício abstrato e acadêmico, que
se contente em observar a realidade de forma distanciada como “objeto”.
A pesquisa-ação resulta na elaboração de estratégias e procedimentos de
investigação e ação, nos quais os diversos atores, incluindo a comunidade
parceira na intervenção, participam ativamente, com a nalidade de “exer-
cer uma mudança, uma inovação, uma transformação dentro de uma dada
problemática” (El Andaloussi, 2004, p. 145).
Essa estratégia de pesquisa fundamenta-se em práticas e procedimen-
tos que rompem com a pesquisa cientíca tradicional, baseada no modelo
popperiano de construção de hipóteses e teorias, experimentação e falsi-
cação, e redução da ciência ao falsicável. Dessa forma, ela aproxima
saberes, práticas e atores que outrora estavam distantes, para atuarem jun-
tos na produção de conhecimentos e nas ações transformadoras. Conhe-
cimento e ação estão mediados e resultam em avanços teóricos e práticos.
O conhecimento cientíco e o popular se complementam para buscar as
melhores soluções e as práticas mais adequadas. Nesse sentido, iollent
(1996, p. 14) arma que
[...] a Pesquisa-Ação é um tipo de pesquisa social com base empírica
que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou
com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores
e os participantes representativos da situação ou do problema estão
envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Esse método não pode ser considerado um “livro de receitas” (Pinto,
1989), mas uma prática social cognoscente e ativa, capaz de construir
novos caminhos. Trata-se de uma metodologia aberta, construída, prati-
cada e, caso necessário, recongurada no próprio processo, pelos diversos
atores envolvidos no desenvolvimento do projeto. Essa cocriação enfatiza
a ideia de participação (pensar, criar e agir em conjunto). Entretanto, di-
ferentemente daquela capitalista, que propõe o envolvimento de atores
165
sociais para a produção de bens e serviços dentro da lógica de mercado,
o que nos interessa é a cocriação transformadora, cuja nalidade é a bus-
ca de soluções sociotécnicas para os diversos problemas que resultam em
marginalização e exclusão social, e na qual os princípios de colaboração,
coletividade e solidariedade são essenciais em sua execução.
Dentre as vantagens da cocriação para a solução de problemas socio-
técnicos estão: (i) empoderamento dos atores que participam, aprendem,
ensinam e reaplicam as ações; (ii) troca de experiências durante o processo
(Kleba; Cruz, no prelo); (iii) maior ecácia da ideia, devido ao fato de os
participantes, seus saberes e costumes estarem implicados na elaboração
(omas, 2009); (iv) menores custos com testes, pesquisas de opinião e
feedbacks (evita o retrabalho); (v) apropriação do artefato, produto ou ser-
viço pelos participantes; (vi) maior chance de ser ajustado e reparado em
caso de problemas.
A rigor, toda abordagem participativa e crítica tem a pretensão de
contribuir com o empoderamento e a emancipação dos atores nela envol-
vidos. Nesse sentido, é indissociável de uma tal intervenção o desenvol-
vimento de processos como o de educação popular (Comstock, 1994),
em cujo bojo, o exercício da cocriação encontra mais um fundamento.
Ao lado dela, surge também o exercício ou imperativo do diálogo ativo
de saberes. Esse diálogo, quando autêntico, é o oposto do epistemicídio
denunciado por Boaventura de Sousa Santos (2016), colaborando com a
superação daquilo que Shiva (2003) chama de monoculturas da mente.
No contexto da reexão crítica da América Latina, seria o mesmo movi-
mento proposto pela de(s)colonização (Quijano, 1992; Mignolo, 2011;
Escobar, 2018), e que já tem sido reetido em suas aplicações para a área
sociotécnica e as Engenharias. (e.g., Kleba; Reina-Rozo, 2021).
Concretamente, em abordagens técnicas de(s)coloniais, como a enge-
nharia popular (Fraga et al., 2020), a educação popular é conformadora
da metodologia de intervenção que usualmente adota a conjugação de
pesquisa-ação com educação popular. Com ela, busca-se, dentre outras
coisas, resgatar os saberes dos atores locais, incorporando-os às soluções
sociotécnicas (co)construídas e à própria metodologia de intervenção, ao
mesmo tempo em que se oferecem a esses atores conhecimentos técnico-
-cientícos variados. O diálogo se evidencia, assim, de forma dupla: tanto
saberes populares/tradicionais quanto técnico-cientícos são reconheci-
166
dos, valorizados e partilhados, alargando a capacidade de conhecer e agir
dos atores locais e da equipe técnica (de intervenção).
Seja como for, alcançar-se um autêntico diálogo de saberes e cocria-
ção está longe de ser algo trivial em uma intervenção técnica engajada
com pretensões emancipadoras. Não raro, com efeito, as equipes técnicas
acabam se fazendo surdas aos atores locais, produzindo soluções para eles,
em vez de com eles, num exercício paternalista, que é cego para o potencial
transformador desses grupos (Pérez-Bustos; Márquez, 2016). Quando isso
acontece, a solução construída terá menos chance de ser apropriada pelos
atores locais, acabando por vir a ser abandonada (Addor et al., 2015), e,
em lugar de emancipação, produzir-se-á colonização.
Em sinergia com a pesquisa-ação, outro procedimento teórico-
-metodológico que nos auxilia em nossas ações é o design thinking,
que pode ser denido como uma caixa de ferramentas para repensar
problemas e soluções de forma imaginativa e experimental. O design
thinking representa uma concepção pedagógica que combina técnicas
de projeto e soluções inusitadas com problemas do mundo empírico
(Brown; Wyatt, 2010, p. 32). Embora essa metodologia seja utilizada
também para ns de mercado, o LabCTS a adaptou para ações social-
mente engajadas, retendo dela o seu potencial criativo.
Prática extensionista do pFEC (LabCTS)
A partir das tradições teóricas acima expostas e das reexões sobre
nossas práticas extensionistas, a intervenção do pFEC (LabCTS) segue,
em regra, as seguintes etapas:
1. Empatia ou imersão: mapeamento do contexto, da perspectiva dos
atores envolvidos e das vivências de campo junto aos atores locais;
2. Ideação: geração de ideias de soluções “fora da caixa” para problemas
identicados na etapa anterior, por meio de métodos do projeto cria-
tivo e provocações, dando espaço para ideias inusitadas;
3. Denição do conceito: seleção de soluções promissoras, dentre as ide-
adas na etapa anterior, com auxílio de uma matriz de decisões com
pesos e variáveis (p.ex., eciência, viabilidade, custo, tempo de im-
plementação, manutenção, integração do projeto na cultura local,
escalabilidade etc.);
4. Validação: avaliação, junto aos atores locais, da pertinência dos pro-
jetos propostos pelas equipes de alunos (problemas com soluções), a
167
partir do que, é escolhido, para cada equipe, o “problema com pro-
posta de solução” mais pertinente para execução;
5. Prototipagem: escolhida a solução a ser executada, ela pode requerer
renamentos no projeto, como consideração de normas técnicas, se-
leção de materiais (sustentáveis, de baixo custo), ajuste de funcionali-
dades, considerações ergonômicas ou de segurança etc.;
6. Teste e avaliação: quando possível e/ou pertinente, a solução escolhi-
da (e renada) é testada em laboratório e na situação real, antes da
nalização do projeto;
7. Renamento: quando a etapa seis é executada, retorna-se às etapas
anteriores para responder à pergunta: em que pontos podemos me-
lhorar o protótipo, atendendo aos nossos critérios de avaliação? Essa
etapa pode ser aplicada tantas vezes quanto necessário;
8. Implementação: o protótipo desenvolvido e testado é implementado em
situações reais. Pode-se voltar à etapa sete, caso se considere pertinente.
No pFEC, as ações de engenharia alcançam em regra somente até a
etapa cinco e, no máximo, a seis. A complexidade dos projetos, a inex-
periência de alunos no primeiro ano, o tempo reduzido de que os alunos
dispõem em um semestre letivo no ITA e a falta de maior integração dis-
ciplinar usualmente impedem evoluir-se até a etapa oito. Entretanto, duas
eletivas de extensão engajada, abertas para a graduação do segundo ao
quinto ano, permitem alcançar as etapas mais avançadas.
Além disso, o pFEC criou as ações pontuais na disciplina HUM-70
que, diversamente de projetos de engenharia mais elaborados, são imple-
mentadas apesar de todas as restrições acima expostas. As ações pontuais
foram criadas para não deixar os grupos e comunidades parceiras de “mãos
vazias”, pois há sempre expectativas de resultados palpáveis, não mera-
mente de “ideias brilhantes” mas sem efeito. Dentre essas ações pontuais
implementadas, tem-se: visita dos alunos da Sorri ao ITA e ao MAB - Mu-
seu Aeroespacial Brasileiro (parceria com a Sorri), apresentação e ocina
de bateria para pessoas com deciência (parceria com a Sorri), ocina de
ciências em escola do Ensino Fundamental no bairro Jardim Americano
(parceria com o Ecomuseu+) e organização de torneio esportivo no bairro
Jardim Diamante (parceria com o Ecomuseu+). Embora mais simples, tais
ações trazem uma resposta muito expressiva das comunidades parceiras,
assim como demonstram fazeres viáveis para alunos de Engenharia que
são iniciantes no ITA e que realizam esses projetos em tempo equivalente
a 16 horas/aula do semestre letivo.
168
Seja como for, ao longo de todo esse processo, os estudantes (organi-
zados em grupos de trabalho) recebem assistência de algum membro do
LabCTS e, conforme o caso, também de professor da área técnica (Enge-
nharias, Gestão, Química, Direito ou Física). A mentoria das Humanida-
des objetiva ajudar os grupos a incorporarem à sua prática a perspectiva da
pesquisa-ação, da cocriação, do empoderamento, do diálogo de saberes e
da ética de pesquisa em ciências sociais. O que se tem alcançado, por ora,
com tal mentoria é basicamente uma abertura das equipes para escutar de
forma mais cuidadosa e sem preconceitos as demandas efetivas dos atores
locais, produzindo, com isso, soluções reconhecidas como úteis por estes.
Já o segundo tipo de assistência, a mentoria técnica, possibilita que
eventuais questões técnicas possam ser devidamente integradas e supera-
das. Os desaos com essa mentoria são fundamentalmente dois: encon-
trar docentes minimamente anados com práticas técnicas engajadas e
disponíveis para colaborar com elas; construir parcerias mais profundas
que permitam que o pFEC seja parte do trabalho (e da avaliação) dos res-
pectivos alunos também nas disciplinas técnicas que eles estejam cursando
concomitantemente à HUM-70. Até o momento, professores das áreas de
Química, Gestão, Direito Ambiental e Engenharia Mecânica, bem como
um prossional de Arquitetura, têm participado dessas mentorias.
Pensada na perspectiva da formação de engenheiros engajados, a atua-
ção extensionista na disciplina HUM-70 é apenas um primeiro passo para
objetivos mais amplos. Seus impactos na formação dos alunos incluem:
sensibilização para uma prática da engenharia que se dê em prol dos mais
vulneráveis; reconhecimento de que a engenharia convencional não se de-
dica, em regra, a tal objetivo; despertar de alguma corresponsabilidade pela
situação de vida dessas pessoas e de algum dever de retribuir à sociedade
pela educação gratuita (e de altíssima qualidade técnica) que se está rece-
bendo; conexão dessas práticas e vivências com uma reexão sociológica
mais ampla sobre as relações entre o fazer tecnológico e os papéis desem-
penhados pelo Estado, mercado e pela sociedade civil na reprodução de
problemas sociais e ambientais relevantes da atualidade.
Vista a partir do resultado junto às comunidades parceiras, a mensu-
ração do impacto da atuação extensionista de HUM-70 é mais difícil de
ser feita. Por um lado, da mesma forma que em projetos extensionistas em
outras universidades (Kleba; Cruz, 2020), faltam instrumentos de ava-
liação disso e, talvez, mesmo uma busca mais clara e sistematizada nessa
169
direção. Não obstante, por outro lado, a visita de estudantes de uma ins-
tituição prestigiada socialmente, alguma solução pontual que eles tenham
construído, a associação do empreendimento local com a “marca ITA”, a
construção de uma parceria técnica com o ITA suscitada por essa interven-
ção, ou uma conjugação de alguns ou todos esses elementos têm demons-
trado impacto positivo, direto ou indireto, nas comunidades parceiras.
Resguardadas essas limitações, cabe destacar que HUM-70 é possi-
velmente a primeira disciplina obrigatória no Brasil que, já desde 2006,
insere conteúdos CTS para todos os alunos de Engenharia da instituição,
e, também, a única disciplina do ITA que, já no primeiro ano de Enge-
nharia, trabalha com práticas extensionistas engajadas, com alto grau de
exigência e rigor teórico.
Dentre as diculdades encontradas no trabalho de HUM-70, iden-
ticamos: (i) falta de interesse2 de alguns estudantes com a extensão en-
gajada; (ii) limites impostos pelos ritmos acadêmicos do ITA, com alta
carga horária de aulas, para além da carga de pressão causada aos alunos
pela falta de tempo livre e exibilidade curricular e por seu afamado rigor
avaliativo e punitivo.3 Nesse sentido, um aluno de desempenho excelente
em HUM-70 fez um relato, dizendo que a principal razão de não haver
mais dedicação ao projeto extensionista é que, embora muito interessante,
“somos sugados [com demandas acadêmicas pesadas e impostas] o tempo
todo”; e ainda, que falta experiência prática aos alunos: “nunca tinha me-
xido numa furadeira”.
2 Falta de interesse dos alunos nas Humanidades em geral, incluindo os Estudos CTS, com nossa
hipótese de que isso deriva de uma visão dominante de ensino de Engenharia convencional,
onde CTS e extensão engajada seriam dispensáveis, essa ainda espelhada no vestibular do ITA
(que não possui Conhecimentos Gerais como tema).
3 Importante ressaltar que o sistema educacional do ITA difere de outras Instituições de Ensino
Superior (IES). Apenas para exemplicar, de acordo com as normas dos cursos de graduação
do ITA, os alunos estão sujeitos às penalidades de advertência verbal, repreensão por escrito,
segunda época compulsória, trancamento de matrícula e desligamento (exclusão do curso) no
caso, por exemplo, de não comparecimento às atividades escolares, sem motivo justicado. Di-
ferente de outras IES em que os alunos têm um limite de 25 % para faltas, no ITA a presença é
obrigatória e as faltas devem ser justicadas; caso essas faltas justicadas excedam 15 %, o aluno
poderá ter sua matrícula trancada por uma única vez e, no caso de reincidência, ser excluído do
curso. Em relação ao aproveitamento escolar, a média de aprovação das disciplinas é 6,5. E o
aluno poderá ser excluído do curso caso ele tenha, por exemplo, média nal entre zero e 4,9 em
uma disciplina semestral obrigatória ou caso tenha média nal entre 5,0 e 6,4 em mais de duas
disciplinas em um semestre (Brasil, 2017).
170
A proposta formativa do LabCTS não se encerra no pFEC vinculado
à disciplina HUM-70, mas tem nela a sua porta de entrada. Em acréscimo
a ela, há disciplinas eletivas (de projetos engajados, de história, ciências
sociais e ciências políticas, de artes) e a possibilidade de se realizar trabalho
de conclusão de curso (TCC), iniciação cientíca, estágio e/ou atividades
complementares em algum tema de engenharia engajada (eventualmente,
com coorientação de professores da área técnica).
Nesse âmbito mais amplo de formação, a sistematização das atividades
e a avaliação de seus impactos (sobre estudantes e comunidades parceiras)
encontram-se menos avançadas, em geral, do que em HUM-70. De todo
modo, permanecem, pelo menos nas atividades que envolvem projetos
engajados, os mesmos elementos estruturantes da extensão desenvolvida
no pFEC: intervenção em oito etapas; mentoria de humanidades; mento-
ria técnica; foco em projetos empoderadores.
Os desaos enfrentados aqui são similares aos já mencionados para
o pFEC com relação a parcerias com docentes das áreas técnicas e ao
compromisso dos estudantes com o projeto (mesmo sendo atividades
eletivas). Além deles, em questões que também se vericam no pFEC,
mas que têm peso maior nessas atuações de intervenção mais profunda,
podem-se mencionar:
vários desaos relacionados à institucionalização da extensão enga-
jada no ITA, que vão desde a valorização dessas práticas na progres-
são funcional dos docentes (o que poderia atrair professores da área
técnica para a coorientação de projetos do LabCTS), até a garantia
de recursos para que tal prática possa acontecer (linhas de fomento
para custeio de idas a campo, da construção de soluções materiais de
baixo custo etc.);
a construção de parcerias de mais longo prazo e/ou de maior pro-
fundidade com comunidades e/ou entidades parceiras. De fato, por
um lado, se o LabCTS buscar seguir a rota de se congurar como
um núcleo de extensão, parece que o impacto dos projetos será em
alguma medida proporcional ao grau de conança e ao tempo de
aliança com os grupos locais. Por outro, se optar em fazer parceria
com coletivos tecnológicos engajados (como o Portal sem Porteiras,
os Engenheiros sem Fronteiras e a Teto), junto aos quais seus estu-
dantes realizam sua prática engajada – e com os quais aprendem ou
171
internalizam metodologias engajadas de intervenção –, esses laços
precisarão ser estreitados;
a avaliação e o aprimoramento da formação para a engenharia enga-
jada provida aos estudantes. Precisa-se ter mais clareza com respeito
ao impacto pretendido com a prática engajada que se tem oferecido
(e para a qual se tem buscado formar os estudantes que passam pelas
atividades do LabCTS): trata-se do empoderamento (Kleba; Cruz,
no prelo)? Ou seria alguma outra coisa? Em todo caso, além disso,
é necessário avançar-se em instrumentos avaliativos que permitam
alguma mensuração minimamente objetiva dos avanços, ou não,
que as práticas do Lab têm propiciado nesse(s) quesito(s), qualquer/
quaisquer que seja(m) ele(s). Será apenas a partir desses dados que as
práticas poderão ser aprimoradas e os resultados, assim, melhorados;
por m, como lembrado em Kleba e Cruz (2020), o ITA impõe um
contexto diverso de outras instituições. Não caberia esperar que o
LabCTS apenas aplicasse ideias desenvolvidas para outros contextos.
Nesse sentido, o maior desao não é teórico, mas de caráter institu-
cional, de forma a integrar a extensão engajada junto aos professores
das Engenharias, de modo a trazer as capacitações necessárias para
projetos mais complexos, e, ao mesmo tempo, ampliar o escopo da
engenharia engajada para além das Humanidades. Alguns passos já
foram dados nesse sentido, mas permanecem grandes desaos.
Para um processo ensino-aprendizagem transformador
Como vimos, o LabCTS desenvolve uma série de procedimentos e
metodologias de extensão engajada vinculada aos programas curriculares, a
partir de um trabalho de extensão que remonta a 2009 e que envolve cons-
tante avaliação reexiva, proposições e busca de aprimoramentos, ações
experimentais (Kleba; Cruz, 2020), além das reexões críticas advindas dos
estudos CTS, da engenharia engajada (Kleba, 2017) e da engenharia popu-
lar (Fraga et al., 2020).
A atuação do LabCTS e o desenvolvimento do pFEC são norteados
por princípios ético-políticos do empoderamento de atores da sociedade
civil e comunidades. A prática extensionista também visa à formação dife-
renciada dos estudantes, fundada nesses princípios. E é com relação a esses
objetivos que as práticas podem ser avaliadas, com respeito aos seus avan-
172
ços, desaos e diculdades. De forma a alcançar isso, de todo modo, em
todas as intervenções do LabCTS, asseguram-se: fundamentação teórica
e crítica; preparação dos alunos para a ida a campo; realização de visitas às
comunidades parceiras; e estímulo para os alunos proporem soluções para
problemas sociotécnicos relevantes, por meio de projetos de Engenharia,
Gestão ou Educação.
Portanto, a partir de nossas práticas pedagógicas e extensionistas, pro-
curamos reetir sobre as possibilidades de aprimoramento do processo
ensino-aprendizagem das Engenharias, articuladas ao desenvolvimento de
ações sociotécnicas focadas na solução de problemas reais de comunidades
e grupos em situação de vulnerabilidade. Além disso, essa atuação abre
um campo rico e complexo de dados e experiências para a compreensão
da realidade e a produção de conhecimentos. Assim, a extensão, como
estratégia política e pedagógica, fonte de conhecimentos e mecanismo de
transformação social, remete à ideia de uma prática engajada, inspirada
nos estudos CTS.
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Autores
Adriano Premebida
Doutor em Sociologia. Atuou, na Fundação Amazônica de Defesa da Bio-
sfera (FDB), em Manaus, com a investigação e gestão de projetos e progra-
mas de pesquisa em diversas áreas, principalmente em Biotecnologia, Eco-
logia e Mudanças Climáticas na Amazônia. Está vinculado ao grupo de
pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS) da UFRGS e
ao componente “Impactos Sociopolíticos e Econômicos”, do Programa de
pesquisa Amazonface. https://orcid.org/0000-0001-5120-0449
Clarissa Rodrigues
Professora Assistente da Universidade Federal de Ouro Preto. Mestre em
Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais, na linha de pesquisa Ensino de Ciências, com interesse em livro
didático, teoria da atividade, questões sociocientícas e abordagem CTS.
https://orcid.org/0000-0002-1303-3915.
Cristiano Cordeiro Cruz
Doutor em losoa pela USP. Atualmente realiza pesquisa pós-
-doutoral no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Possui gra-
duação em losoa pela Faculdade Jesuíta de Filosoa e Teologia,
além de graduação e mestrado em engenharia elétrica pela Unicamp.
https://orcid.org/0000-0003-2844-3439
178
Daniela Alves de Alves
Doutora em Sociologia. Professora Associada do Departamento de Ciên-
cias Sociais da UFV. Docente permanente do Programa de Pós-graduação
em Educação (UFV). Vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos
Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR). Desenvolve pes-
quisas sobre internacionalização da ciência, instituições de pesquisa e tec-
nologia, trabalho e educação. https://orcid.org/0000-0003-4614-8687.
E-mail para contato: danielaa.alves@ufv.br
Daniela Campolina
Professora da educação básica na rede municipal de Rio Acima e inte-
grante do Movimento pelas Serras e Águas de Minas. Doutoranda e mes-
tre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista de
intercâmbio doutoral no Programa Queen Elizabeth Scholars na York
University – Canadá, com interesse em questões sociocientícas, aborda-
gem CTSA, ciência cidadã e formação inicial e continuada de professores.
https://orcid.org/0000-0002-4352-618X
Denise Stefanoni Combinato
Doutora em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina de Botu-
catu - Unesp/Botucatu/SP, com pós-doutorado em Bioética. É ser-
vidora pública federal vinculada ao ITA/Departamento de Huma-
nidades, onde desenvolve projetos de ensino, pesquisa e extensão.
https://orcid.org/0000-0002-5919-0289
Fábio Augusto Rodrigues e Silva
Professor do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambien-
te do Instituto de Ciências Exatas e Biológicas da Universidade Federal
de Ouro Preto. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas
Gerais, com interesse na formação inicial e continuada de professores e ela-
boração de materiais didáticos. https://orcid.org/0000-0003-1245-2648
Fábio Luiz Tezini Crocco
Professor do Departamento de Humanidades (IEFH) do Instituto Tec-
nológico de Aeronáutica (ITA). Doutor em Ciências Sociais pela Uni-
versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) na linha
de pesquisa Determinações do Mundo do Trabalho. Desenvolveu estágio
179
doutoral no Centro de Estudos Sociais (CES) vinculado à Universidade de
Coimbra em Portugal (2014). https://orcid.org/0000-0002-1796-3060
Fabrício Monteiro Neves
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
Doutor em Sociologia. Foi vice-presidente da Associação Brasileira de es-
tudos das ciências e das tecnologias (ESOCITE), Coordenador do Progra-
ma de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UNB) e
chefe do departamento de sociologia da Universidade de Brasilia (UNB).
https://orcid.org/0000-0002-2886-0577. fabriciomneves@gmail.com
Henrique Luiz Cukierman
Possui graduação em Engenharia de Sistemas pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (1977), mestrado em Engenharia de Siste-
mas e Computação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996),
doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (2001) e doutorado sanduíche junto ao Program in History
and Philosophy of Science da Stanford University (2001). Atualmente é
professor associado da UFRJ, onde atua na graduação como professor do
curso de Engenharia de Computação e Informação e nas pós-graduações
do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da COPPE/UFRJ
e do Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia.
https://orcid.org/0000-0001-7095-5708
Ivan da Costa Marques
Formou-se em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de
Aeronáutica (1967), e obteve mestrado (1970) e doutorado (1973) em
Electrical Engineering and Computer Science em Berkeley, Universida-
de da Califórnia. De agosto de1990 a julho de 1992, visiting scholar no
Historical Studies Committee da New School for Social Research, Nova
York, NY, EUA. Atou na UFRJ como professor da COPPE, do NCE,
do IM e, a partir dos últimos anos, no Programa de Pós-Graduação de
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE). Pró-reitor
de Pós-graduação e Pesquisa da UFRJ de julho 2015 a maio 2016. Em
2009 foi fundador e eleito em 2011 primeiro presidente da ESOCITE.
BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais de Ciências e Tecnologias),
reeleito em 2013 e 2015. Membro do Conselho e vice-presidente da
180
SBHC - Sociedade Brasileira de História das Ciências de 2009 a 2014.
https://orcid.org/0000-0003-3862-644X
John Bernhard Kleba
Professor associado III do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, São José dos
Campos, São Paulo, onde leciona nas áreas de Sociologia e Ciência Política,
e coordena o LabCTS - Laboratório de Cidadania e Tecnologias Sociais.
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, com
Pós-Doutorado em Estudos Sócio-Legais e em Estudos de Filosoa Moral
e Ciência Política, ambos na Universidade de Warwick, Inglaterra. Atuou
como pesquisador colaborador junto ao Centro de Pesquisas em Direito
Ambiental Europeu, FEU, e também no Centro de Informações sobre
Direitos Humanos e Desenvolvimento, ambos em Bremen, Alemanha.
https://orcid.org/0000-0001-7978-3527
Lorena Cândido Fleury
Professora do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvi-
mento Rural (PGDR) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Doutorado em Sociologia (2013) pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, com estágio de Doutorado na Université Paris
Ouest Nanterre La Défense. É membro da Diretoria da Sociedade Brasi-
leira de Sociologia (2019-2021) e editora da Revista Brasileira de Sociolo-
gia. Coordena o Comitê de Pesquisa em Sociologia Ambiental e Ecologia
Política da SBS e o Grupo de Trabalho Conitos e Desastres Ambien-
tais da Anpocs. É também membro do Conselho Diretor da Associação
Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias - Esocite.br.
https://orcid.org/0000-0001-9659-8630
Maíra Baumgarten
Doutora em Sociologia com Pós-doutorado em Comunicação Pú-
blica. Professora aposentada da Universidade Federal do Rio Gran-
de (FURG). Presidente da Associação Brasileira de Estudos Sociais das
Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR) e membro do Conselho da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), coordena o
GT Ciencia, tecnologia e innovación da Associação Latino-Americana
de Sociologia, com Sílvia Lago e o Comitê de Pesquisa da SBS de So-
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ciologia de Ciência e Tecnologia, com Fabrício Neves. Atua nas áre-
as de Políticas de C&T, Divulgação e comunicação pública de C&T.
https://orcid.org/0000-0002-3858-0157. E-mail: mayrab@terra.com.br
Márcia Regina Barros da Silva
Possui Graduação e Licenciatura em História pela Universidade de São
Paulo (1991), mestrado (1988) e doutorado (2004) em História Social
pela USP, é Livre Docente na área de História das Ciências e da Tecnolo-
gia também pela USP (2020). Docente da área de História das Ciências
do Departamento de História da FFLCH - USP. Coordenadora do Pro-
grama de Pós-Graduação em História Social (mandato 2020-2022). Foi
diretora por três mandatos do Centro de Apoio à Pesquisa em História
Sérgio Buarque de Holanda - CAPH - da FFLCH e Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias -
ESOCITE.BR. Foi presidente por dois mandatos da Sociedade Brasileira
de História da Ciência - SBHC. Foi membro da Comissão Editorial da
Revista de História. É Pesquisadora de Produtividade do CNPq e atual-
mente coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Social
da USP. https://orcid.org/0000-0001-5849-6385
Nilda Nazaré Pereira Oliveira
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora do
Instituto Tecnológico da Aeronáutica.
... Many researchers have presented studies and evidence that support the argument that dam failure disasters are not isolated events, but processes, cycles of actions and omissions that are foretold long before the moment of the dam collapse and endure for many years after, as illustrated in Figure 8.1 (Zhouri, 2017;2018;Zonta & Trocate, 2016;Carmo et al., 2017;Marshall, 2019;Campolina, Rodrigues, & Silva, 2021;. ...
... In this context, schools have been the focus of organized disinformation processes that range from mining companies designing teacher training courses and curriculum activities on mining, to activities with students including art and writing contests and eld trips / mine visits. The mining companies may further enhance their image by nancing school equipment and infrastructure Campolina, Rodrigues & Silva, 2021;Campolina, Gianasi, et al., 2021). Many of the actions undertaken by mining companies with schools are carried out through partnerships between mining companies and local educational management bodies-the Municipal Education Departments. ...
... These activities in schools are featured in the annual Sustainability Reports published by the mining companies, complete with numbers and indicators. Mining initiatives focussed on the school system are presented positively to company shareholders and the international market Campolina, Rodrigues & Silva, 2021). Fig. 8.1 Tailings dam collapses as a process: actions and omissions before, during and after the collapse. ...
... No contexto da inovação tecnológica, os modos de organização social-urbano têm sido acompanhados de ampla reestruturação demográfica e societária, entre estas a exploração de jazidas de minérios próximas às cidades, que constroem, quase sempre, uma barragem de rejeitos. Ao reportar aos avanços tecnológicos: "Vivemos em um tempo em que a ciência não mais apenas estuda, desvenda, mas também cria objetos empíricos e produz teorias que os sustentam enquanto fenômeno" Guivant, 2021). Convém lembrar que a cultura científica e seus aportes teóricos analisam as tecnologias para além da dimensão técnico-industrial (objetos empíricos), mas sim como utilidade pública (fenômeno), a exemplo dos sistemas de notificação emergencial, destinados ao auto salvamento. ...
... No contexto das inovações tecnológicas, apresenta-se um produto que foi desenvolvido com a participação e fomento da empresa TELEVALE, situada em Uberaba-MG, a qual forneceu todos os materiais para a implementação e execução do projeto tecnológico informatizado, cujos recursos materiais e financeiros possibilitaram trazê-lo para discussão, após a coleta de dados e validação diretamente na Usina. No mercado brasileiro, é relevante que as empresas procurem fomentar ideias a partir de projetos inovadores Guivant, 2021). Em um mercado competitivo, a TELEVALE exerceu um papel decisivo ao patrocinar o desenvolvimento de uma tecnologia nacional, a fim de viabilizar um elo entre projeto, execução, testagem e validação. ...
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: Na atualidade, com o crescente número de usinas localizadas próximas a zonas habitáveis, houve a necessidade de conter os riscos e seus fatores, que podem desencadear rupturas nas barragens, colocando a população em perigo próxima às áreas a jusante, frente a um possível desastre ambiental. Este estudo teve como objetivo avaliar a implementação de um sistema de alerta sonoros de alta potência desenvolvido para notificação emergencial de evacuação da população em massa de moradores próximos a barragens da Usina do Rio do Peixe. Para tanto, na pesquisa de campo, inicialmente a Usina Rio do Peixe enviou dados sob a forma de mapeamento prévio da Zona de Autossalvamento (ZAS). Posteriormente, foram instaladas as Estações Remotas em pontos estratégicos definidos pela Usina, seguidas das simulações a campo aberto, para validar o nível de pressão sonora de no mínimo de 70 dB. Os resultados apontam que o SNE-T é eficaz, seguro e confiável, considerando que todas as três medições foram acima de 70 dB, atendendo as exigências da Política Nacional de Segurança de Barragens. Importante relatar que pelo sucesso do SNE-T, o pesquisador e a TELEVALE foram premiados, em 2022, com o Prêmio Nacional de Inovação, referendado, pelos aspectos técnicos, acústicos e tecnológicos, bem como pelo baixo custo de produção e implantação, uma vez que o SNE-T é de desenvolvimento 100% nacional. Infere-se que a tecnologia inovadora do sistema de alerta emergencial, analisado nesta pesquisa, é confiável, eficaz e seguro, além de ser financeiramente viável.
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This article presents the dynamics of collective action and the construction of claims of people affected by the rupture of a tailings dam of the Samarco mining company in Minas Gerais, Brazil in November, 2015. Our analysis focuses on affected people in Espírito Santo State and is based on interviews, observation, participant observation and a series of meetings with affected people during the year following November, 2015. We describe initial processes of mobilization which involve various actors and interactions marked by emotions and by the creation of affective bonds. We draw on a culturalist framework of social movement studies to understand the emotional mechanisms in play in the construction of collective action, in particular, claims for justice (Jasper 1997; Gamson 1992; Goodwin, Jasper and Polletta 2009; Johnston and Klandermans 1995). We conclude that emotions play fundamental roles in the process of mobilization. The manner in which the disaster on the Rio Doce was felt by activists constituted a critical emotional event.
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After the collapse of the Fundão dam, 43 million m³ of iron ore tailings continue to cause environmental damage, polluting 668 km of watercourses from the Doce River to the Atlantic Ocean. The objectives of this study are to characterize the Fundão Tailings Dam and structural failures; improve the understanding of the scale of the disaster; and assess the largest technological disaster in the global context of tailings dam failures. The collapse of Fundão was the biggest environmental disaster of the world mining industry, both in terms of the volume of tailings dumped and the magnitude of the damage. More than year after the tragedy, Samarco has still not carried out adequate removal, monitoring or disposal of the tailings, contrary to the premise of the total removal of tailings from affected rivers proposed by the country's regulatory agencies and the worldwide literature on post-disaster management. Contrary to expectations, there was a setback in environmental legal planning, such as law relaxation, decrease of resources for regulatory agencies and the absence of effective measures for environmental recovery. It is urgent to review how large-scale extraction of minerals is carried out, the technical and environmental standards involved, and the oversight and monitoring of the associated structures.
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Este artigo debate a emergência da engenharia engajada. A educação em engenharia é tradicionalmente atrelada à indústria e desconhecedora de seu papel social. Nesse contexto, surge um movimento internacional de múltiplas iniciativas advogando mudanças em escolas de engenharia e nas concepções de ensino e extensão. Reconhecendo a atual fragmentação da pesquisa na área, esse artigo destaca problemas teóricos e empíricos para o estudo do fenômeno. As seções incluem um indicativo da pluralidade das iniciativas na área, problemas conceituais da engenharia engajada e seus focos de aplicação, os desafios do design institucional, um breve panorama das novas vertentes pedagógicas e uma reflexão crítica sobre os projetos de extensão. Finalmente, debate-se o papel de ideologias conflituosas nesse campo, e recomenda-se critérios para boas práticas em projetos de extensão tecnosocial.
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A intensificação de investimentos extrativos primá-rios voltados à exportação em Minas Gerais tem resultado na multiplicação dos conflitos sociais e ambientais (1). A tendência é que este cenário se amplie, devido à flexibilização do licenciamento ambiental, tendo em vista a PEC 65/2012, aprovada em abril de 2016 pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Se-nado; a discussão acerca do Novo Código da Mineração proposto pelo Ministério das Minas e Energia; o Projeto de Lei 654/2015 em tramitação no Senado Federal; e o Projeto de Lei 2.946/2015, apro-vado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais em dezembro de 2015. Com efeito, um preocupante relaxamento na fiscalização do planejamento, construção e operação de obras desenvolvimentistas vem gerando riscos incalculáveis, os quais extrapolam as localidades onde os empreendimentos se inserem. O rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, em novembro de 2015, no município de Mariana, evidenciou de forma assustadora esse contexto crítico. A estrutura é de propriedade da empresa Samarco Mineração S.A., cujo capital é controlado paritariamente pela Vale S.A e a BHP Billi-ton Brasil Ltda. O desastre causou de imediato 19 mortes, e liberou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de resíduos minerários que, carreados até o rio Doce, percorreram aproximadamente 600 km até o litoral do Espírito Santo. Este desastre, um dos maiores do mundo em termos de sua abrangência socioambiental, não foi um evento singular. Desde 1986, o rompimento de seis barragens em Minas Gerais já havia deixado um total de 16 mortos, milhares de pessoas desalojadas e sérios problemas de abastecimento de água nos municípios situados ao longo dos rios afetados (2).Os casos chamam atenção não apenas para a negligência do empresariado e do poder público com tais empreendimentos, mas também para a imprevidência no que diz respeito à gestão das ca-tástrofes. Recentemente, a gestão desses desastres tem se deslocado do eixo da investigação de possíveis crimes ou infrações legais para o eixo do tratamento administrativo de “conflitos socioambientais”, aos quais são dedicadas tecnologias diversas de prevenção de disputas, com ênfase em acordos orientados à construção de pretensos pactos entre partes potencialmente litigantes.
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Eduardo Kohn. How Forests Think: Toward an Anthropology Beyond the Human
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Among the many problems raised by political ecology is one of language. The distribution between what is inert object and what is made of talking subjects does not do justice to science nor to literature—nor, of course, to politics. Hence, an effort to describe a relation with agency that focuses not on their characters (humans or nonhumans, animated or deanimated) but rather on their common source. This source is recognized here—both semiotically and then ontologically—as a “metaphorphic zone.” It is just such a common articulation that could allow speaking with and about former “facts of nature” in a different way, a way better adjusted to the new political situation.