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Revista Investigações, Recife, v. 33, n. 1, p. 1 - 27, 2020
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A representação na obra ficcional de Frei Betto
André Jorge Catalan Casagrande*
Resumo: O presente artigo analisa a representação na obra ficcional de Frei Betto. Além de
constatar os tipos de personagens e grupos presentes nos romances bettianos, investigará como
o externo, isto é, o aspecto social, cultural, histórico, psicológico etc., é utilizado como matéria-
prima pelo autor para construção tanto de suas personagens quanto dos grupos sociais
representados em seus romances. O intuito é perceber como Betto transpõe a realidade para a
ficção ou o modo pelo qual ele constrói os sujeitos por ele representados. Tal análise será feita a
partir das mais recentes teorias da representação literária.
Palavras-chave: Representação. Tortura. Literatura contemporânea brasileira.
Abstract: This article analyzes the representation in the fictional work of Frei Betto. In addition
verifying the types of characters and groups present in Bettian novels, will investigate as external,
that is, the social, cultural, historical, psychological etc., is used as a raw material by the author
to build his characters and of the social groups represented in his novels. The aim is understand
how Betto transposes reality to fiction or the way that he builds the subject by him represented.
The analysis will be based on the most recent theories of literary representation.
Key-words: Representation. Torture. Contemporany brazilian literature.
Resumen: Este artículo analiza la representación en el trabajo ficticio de Frei Betto. Además de
verificar los tipos de personajes y grupos presentes en las novelas bettianas, investigará cómo el
autor utiliza el aspecto externo, es decir, el aspecto social, cultural, histórico, psicológico, etc.,
es utilizado como materia prima por el autor para construir sus personajes e los grupos sociales
representados en sus novelas. El objetivo es comprender cómo Betto transpone la realidad a la
ficción o la forma en que construye los temas que representa. Dicho análisis se realizará a partir
de las teorías más recientes de la representación literaria.
Palabras-clave: Representación. Tortura. Literatura brasileña contemporánea.
Introdução
* Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. http://orcid.org/0000-0002-5705-0792
CASAGRANDE, André Jorge Catalan
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Frei Betto é um autor popular, contando atualmente com mais de 60 títulos
publicados individualmente - somados a outros 46 escritos em coautoria - entre
romances, contos, crônicas e ensaios sobre os mais variados assuntos. O êxito de sua
carreira como escritor pode ser constatado pelas largas tiragens, reedições e traduções
de seus livros ao longo de uma carreira literária com aproximadamente 50 anos. Embora
a obra de um autor vivo não tenha passado pelo crivo do tempo a fim de ser testada, o
estudo de Frei Betto se justifica pela circulação significativa de suas obras há algumas
décadas. Se compreendermos a literatura como uma maneira de intervenção no mundo,
faz sentido o estudo desse autor para que se conheça sua obra, pergunte-se pelas suas
principais características e se procure compreender que tipo de representação da
realidade ela sugere. Este artigo, portanto, tem intenção de investigar a representação
presente na obra deste escritor mineiro partindo de três de seus romances: O dia de
Ângelo (1987), Hotel Brasil (2010)
1
e Aldeia do silêncio (2013).
Teorias modernas da representação
Segundo as teorias modernas, a representação sempre se dará a partir de um
quadro ideológico. Sendo assim, é inevitável que a representação ofereça uma
cosmovisão da realidade. A conceituação moderna nos leva a apreender que o processo
de “representação” estará sempre alicerçado em uma disputa dialética por poder. As
reflexões de Christopher Prendergast estão focadas não no objeto representado, como
ocorria nas antigas teorias da representação, mas, sim, no sujeito da representação
propriamente dito. Nas palavras do próprio Prendergast:
Para Barthes, a imagem do triângulo da representação é expressamente
designada para realçar a economia de autoridade e hierarquia, uma relação de
poder na qual o sujeito da representação comanda o sistema de conhecimento
e a crença dentro da qual o mundo é interpretado e as interpretações validadas
socialmente (PRENDERGAST, 2000, p. 11, tradução nossa).
1
O romance Hotel Brasil foi publicado pela primeira vez em 1999. Neste artigo, no entanto, para fins de
citação utilizaremos a edição de 2010, publicada pela editora Rocco, conforme referência bibliográfica.
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O que significa dizer que é o sujeito da representação – no caso da literatura, o
autor
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– quem, a partir de seu ponto de vista, de sua classe social, de suas crenças, de seu
posicionamento político-ideológico etc., sugerirá o retrato daquilo que há de ser
representado. Não há, portanto, neutralidade no processo representativo. Não podemos
imaginá-lo como mera “imitação” da realidade. A representação se torna, desse modo,
revestida de uma conotação política, em que o autor será dono de uma perspectiva social
própria que norteará seu processo criativo. Segundo Prendergast, é justamente a
mudança de foco do objeto para o sujeito da representação que, de alguma forma,
alterará as concepções modernas acerca das teorias representativas. Há outro excerto de
Prendergast que pavimenta ainda mais o caminho que estamos trilhando:
Na descrição tradicional da representação, o foco está naquilo que é
representado; na teoria contemporânea, o foco está no processo da
representação, na questão de quem faz a representação, quem delimita e
controla o campo da representação; em resumo, há um deslocamento do objeto
da representação para o sujeito da representação (PRENDERGAST, 2000, p. 9,
tradução nossa).
Por essa conceituação da representação como um triângulo, “no ápice do
triângulo há o sujeito da visão, um sujeito centrado e unificado que corta, delimita e
controla o campo” (PRENDERGAST, 2000, p. 10, tradução nossa). Será, portanto, a
perspectiva do autor que encontrará representatividade em sua obra, ou pode ser ainda
que o autor represente a perspectiva ideológica de um grupo, por exemplo. A questão
aqui não é simplesmente questionar o engajamento da arte – até porque, toda arte é
necessariamente engajada, sem, contudo, necessariamente ser panfletária –, mas
compreender que as escolhas de um autor têm consequências sociais, históricas,
culturais e ideológicas.
2
É preciso dizer que nem sempre o sujeito será necessariamente um indivíduo (no caso da arte, um autor),
podendo ser até um grupo. Para Prendergast (2011), esse sujeito pode estar ligado “à moda, a uma
ideologia, a uma tradição ou convenções, frequentemente conectadas a um conjunto dominante de
interesses (um grupo social, uma classe dominante, que privilegiou o acesso aos recursos culturais de uma
sociedade). O que não significa que a representação possa estar separada de intenções individuais [...]” (p.
11, tradução nossa).
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Quanto ao sujeito da representação, é necessário afirmar que ele sempre é
produzido social e culturalmente; daí o entendimento de que as representações serão
mais plurais e menos estereotipadas quando houver uma maior democratização do fazer
literário. Contudo, segundo Prendergast (2000), há sempre uma tendência de se
mascarar a relatividade desse sujeito – em um gesto de poder –, pela qual cultura e
história acabam sendo transformadas em imagens naturais. Isso significa que a cultura
e a história acabam por ser vistas como verdades absolutas e universais, como se não
houvesse outras possibilidades de se pensar a realidade. As representações, por sua vez,
nessa ótica interpretativa, tornam-se mera imitação de um universo monocromático. É
contra a imposição de uma representatividade autoritária e opressiva – seja ela literária,
artística ou cultural – que Prendergast emerge. Em seus apontamentos, ele questiona:
“se representação é o processo pelo qual “a” significa “b” (onde “a” e “b” podem ser termos
de um sistema linguístico, literário ou político), por meio de que autoridade isso se dá?”
(PRENDERGAST, 2000, p. 8, tradução nossa). A autoridade de legitimação de um
discurso se dá por meio do poder. Prendergast afirmará que poder, representação e
literatura caminham de mãos dadas:
No caso da literatura, as representações são mais bem vistas como forças de
trabalho no campo de força da cultura; nesse sentido, estão irredutivelmente
ligadas com o poder. Ficções literárias não simplesmente descrevem ou
refletem o mundo. Elas desencadeiam, precisamente pelo caminho do modo
ficcional de representação, atitudes para com o mundo que
autorizam/habilitam – ou desautorizam/desabilitam – formas de compreensão.
Esta é uma das coisas mais importantes que a literatura faz (PRENDERGAST,
2000, p. 15, tradução nossa).
Diante do exposto, resta-nos a pergunta: o que nos cabe fazer como estudiosos
da literatura? Como podemos considerar a questão da representação? O conselho de
Prendergast é o seguinte: “O que nós podemos tentar fazer – esta é uma das lições da
teoria moderna – é atenuar a relação entre representação e poder questionando todas as
representações dominantes” (PRENDERGAST, 2000, p 13, tradução nossa, grifo do
autor).
No que diz respeito, especificamente, à literatura brasileira contemporânea, na
qual Frei Betto se insere, os estudos de Regina Dalcastagnè auxiliarão na compreensão
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da representação dos grupos sociais. Para ela, as escolhas miméticas dos autores,
compostas, sobretudo, pelos grupos sociais, bem como pela forma como esses grupos
são representados em suas obras literárias, partem de uma estratégia ideológica –
consciente ou não – que pode, muito bem, vir a possuir reverberações excludentes,
quando não abarca o bojo da sociedade representada, ou includentes, quando abrange
grupos minoritários e sem representatividade social.
É justamente por meio da mimesis que se dá o processo de representação de
grupos sociais na literatura. De modo que os gays, os negros, os favelados, os menores
abandonados ou quaisquer outros grupos são transpostos para o universo literário por
meio de um processo mimético. Assim, será o sujeito da representação quem, a partir de
sua percepção da realidade, escolherá os grupos sociais que adentrarão à sua narrativa,
além da maneira como esse grupo será representado artisticamente em sua obra
literária.
Ao analisar a representação proposta por Frei Betto em sua obra romanesca, nossa
intenção é a de compreender o significado dessas representações, bem como
compreender a maneira como os indivíduos e os grupos sociais são construídos por esse
autor, a fim de transmitir uma determinada mensagem. Tenciona-se, desse modo,
entender quais grupos são alçados à posição de mais valor e quais são desvalorizados em
seus romances, além de se pensar a estratégia textual utilizada pelo autor para tanto.
A representação em O dia de Ângelo
Existem inúmeros relatos historiográficos a respeito do período da ditadura
militar que assolou o Brasil, entre os anos de 1964 e 1985. Alguns desses textos, ainda que
memorialísticos, foram escritos pelo próprio Frei Betto. Batismo de Sangue, publicado
pela primeira vez em 1983, prêmio Jabuti na categoria de melhor livro de memórias, além
de ter se tornado roteiro de filme em 2007, possivelmente seja o mais conhecido deles.
Além desse clássico, Frei Betto ainda escreveu outros livros a respeito do mesmo
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período: Cartas da prisão – 1969-1973 (1974), Das catacumbas (1976), Diário de Fernando
– Nos cárceres da ditadura militar brasileira (2009).
Se Frei Betto já havia escrito outros textos sobre a ditadura, respaldado em suas
memórias a respeito daquele período, por que escrever um romance sobre o mesmo
assunto? Qual seria o ganho (se é que ele existe)? O que O dia de Ângelo (1987) oferece
de diferente dos demais relatos memorialísticos e historiográficos do autor?
A fim de responder aos questionamentos anteriormente levantados,
recorreremos a um exercício de imaginação proposto por Richard Rorty (1999). Imagine-
se que a sociedade ocidental fosse totalmente extinta e dela nada restasse, a não ser
alguns poucos livros, revistas, filmes e obras de arte, arquivadas clandestinamente em
porões de universidades do leste asiático e da África subsaariana por pessoas
interessadas em preservar o pouco que restou da cultura ocidental. Imagine-se, ainda,
que quinhentos anos após o ocorrido, os bunkers onde foram postos os resquícios da
cultura ocidental fossem descobertos e a história do Ocidente recontada a partir dos
títulos encontrados. Quais textos dariam uma melhor dimensão da cultura, do
pensamento e da historiografia ocidental? Um texto filosófico? Um texto
historiográfico? Um texto memorialístico? Ou um romance? Segundo Rorty (1999),
Heidegger acreditava “que a essência de uma época histórica poderia ser descoberta
lendo as obras do filósofo característico dessa época [...]” (p. 97). Não obstante, na
perspectiva de Rorty, o gênero que melhor captaria a essência da civilização ocidental
seriam os romances, e não os tratados filosóficos ou historiográficos. Ao contrapor os
escritos filosóficos de Martin Heidegger aos escritos romanescos de Charles Dickens,
Rorty (1999, p. 97) faz a seguinte afirmação:
Se meus asiáticos e africanos imaginários fossem, por alguma razão, incapazes
de preservar as obras desses dois homens, eu preferiria em muito que eles
preservassem a de Dickens. Pois Dickens poderia ajudá-los a apreender um
complexo de atitudes que foram importantes para o Ocidente.
Esse “complexo de atitudes” seria aquele presente nas personagens do autor
inglês, capazes de gerar identificação com o leitor, criando um forte sentimento de
empatia desses para com aqueles. O mesmo parece ocorrer em O dia de Ângelo (1987),
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uma vez que Betto cria uma personagem pacata e angelical que sofre de maneira
horrenda e desumana nas mãos dos militares. A narrativa cria, portanto, um sentimento
de empatia do leitor para com a personagem-título, bem como um sentimento de
aversão do leitor para com os militares.
Além disso, pela ótica rortyana, percebe-se que uma obra romanesca representará
a sociedade e a cultura de um povo de maneira mais completa e mais contundente do
que um tratado filosófico ou historiográfico. Isso ocorre porque, na narrativa,
diferentemente de um texto meramente teórico, há maior riqueza de detalhes, há maior
diversidade, há diferentes pontos de vista, que acabam por tornar esse gênero literário
mais democrático e libertário. No romance não há uma verdade única, podendo-se
apresentar o mundo de forma relativa e ambígua. Além do que, o romance apresentaria
uma percepção mais aguçada do mundo, dos sentimentos humanos, das ideias presentes
em determinada época, bem como uma cosmovisão mais ampla da vida.
Um dos ganhos do romance em detrimento de outros gêneros, citando o caso
específico do romance O dia de Ângelo, é o fato de ele potencializar os sentimentos e as
emoções daquele que se encontra sob a condição de tortura. O romance aponta suas
reações psicológicas, demonstrando seu amedrontamento diante de determinadas
situações. Ao ouvir o carcereiro se aproximar de sua cela, durante a madrugada, o
narrador nos apresenta o sofrimento psicológico protagonizado por Ângelo:
Por que viria agora? A noite traz prenúncios horripilantes, principalmente
quando a imaginação não decifra ruídos, sofre-os. Nos primeiros anos, o que
não estava devidamente codificado pela rotina carcerária conduzia a
imaginação a voos que beiravam o pânico. Escutar, em plena madrugada –
quando o silêncio e a escuridão abraçam-se, conspirativos –, o arranhar de
grades que se abrem, o urro crispado de um prisioneiro, o motor acelerado de
viaturas que chegam, era suficiente para cortar o sono, agitar o sangue, dilatar
os olhos, enrijecer os músculos, multiplicar as batidas do coração e o ritmo
ofegante da respiração. Alucinado, o cérebro rodopiava como piorra sem rumo
(BETTO, 1987, p. 22).
Tal cena fornece a representação das emoções entranhadas em um prisioneiro
político encarcerado durante o regime militar brasileiro. Além do que, em outro
momento, o narrador nos diz que Ângelo se encontrava “interiormente desordenado,
não sabia se refletia, dormia, rezava ou deixava a mente vagar, como se resistisse à ideia
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de se encontrar encerrado na solitária e não quisesse enfrentar tão crua realidade”
(BETTO, 1987, p. 33). Na sequência, sentimos a aflição da personagem-título ao não
conseguir se entregar ao sono:
O sono não vinha. Virava a cabeça de um lado, virava de outro, naquele
excitante estado de entorpecimento forçado que precede e se prolonga por
todas as insônias [...] Seu corpo não cabia naquela cama. Dobrava-se à direita,
recolhia as pernas junto ao ventre, afundava a cabeça no travesseiro, puxava o
lençol sobre os olhos para tentar reduzir a claridade disseminada pela lâmpada
permanentemente acesa. Era como se uma comichão subcutânea o percorresse,
eletrizando nervos, músculos, veias, avivando o cérebro que escorregava
vertiginosamente por uma montanha-russa circular [...] Tornava a esticar as
pernas, ficar de bruços, em busca de uma posição que o relaxasse e trouxesse
sono. Mas o sono parecia longínquo à agitação interior que o remexia na
angustiante vigília [...] Irritado com a impossibilidade de desacelerar o cérebro,
como o vizinho da igreja não pode desligar o tic-tac do relógio da torre, Ângelo
P. retirou a venda dos olhos (BETTO, 1987, p. 34-35).
A narrativa fomenta ainda a ideia de que a própria mente é a maior inimiga de
um homem solitário, encarcerado e ocioso. Anteriormente à solitária, Ângelo passava os
dias lendo e escrevendo na cela da prisão, sendo esse, inclusive, o motivo de sua alta
periculosidade. Contudo, os livros, os papéis e as canetas foram retirados dele. Sua
mente, agora, se mantinha ociosa, tornando-se, por sua vez, mais suscetível a surtos
psicóticos. O narrador, então, nos diz que:
[...] em condições adversas como o cárcere, a imaginação, qual uma bomba,
explode ligada ao estopim de um ruído estranho, de uma ideia maligna, de uma
sensação incerta. Acelerada, estilhaça-se em mil reflexos [...] e engendra o
medo, a ansiedade e a insegurança, a ponto de materializar-se em objetiva
ameaça [...] Povoada pela imaginação compulsiva, a mente se transforma numa
caldeira progressivamente aquecida [...] A cabeça não desliga, não adormece,
não se desacelera, nem se pode espatifá-la a um canto da parede [...] (BETTO,
1987, p. 53).
O controle das necessidades fisiológicas é outro problema enfrentado pela
personagem-título no encarceramento. Não havia penico nem banheiro na solitária. Só
lhe era permitida uma ida ao banheiro ao dia. Sendo assim, o narrador retrata a
dificuldade do prisioneiro ao ter de conter suas excrecências:
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Sentiu a bexiga formigar. Até que viessem buscá-lo para ir ao banheiro, era
preciso controlar-se, segurar o mais possível, em meio ao absurdo esforço de
fazer a cabeça pensar em outra coisa enquanto as entranhas se liquefazem,
como alguém que insiste em continuar lendo, sentado no sofá da sala, com as
águas de uma inundação a subir-lhe pelas pernas (BETTO, 1987, p. 35-36).
O episódio referente ao corredor polonês, quando Ângelo recebeu socos, chutes,
joelhadas, cotoveladas e cuspidas de quarenta soldados, é outro momento de tensão.
Aliás, uma vez que a narrativa retrata o último dia de vida de um prisioneiro político,
praticamente todas as páginas do romance são ambientadas em um clima extremamente
tenso. Com exceção, obviamente, do segundo movimento, que apresenta uma
ambientação mais luxuosa e sofisticada. Ao término do horripilante episódio de
espancamento, o narrador nos diz:
do outro lado, estendido no chão, escutou risadas e vozes que o chamavam de
doido e de bicha e, entre dores por todo o corpo, tentou segurar com a mão a
rosa de sangue que aflorou em sua boca. Ergueu a cabeça, pediu água. Atiraram-
lhe um imundo pano de chão, nas costas uma vassoura e o obrigaram a limpar
a cela (BETTO, 1987, p. 59).
O momento fatídico é relatado pelo próprio assassino confesso de Ângelo. Um
ex-pugilista que prestava serviços escusos para os militares. Os requintes de crueldade
são pontuados em riqueza de detalhes:
afundei a cabeça dele no vaso da privada, dei-lhe uma afogada a fim de soltar a
língua e ele estrebuchou, engoliu água com mijo, fez aquela cara de pavor [...]
até que o exército ficou de saco cheio e ordenou que eu pusesse “ponto final” e
eu meti a mãozão na goela dele e apertei a sua cara na água da privada, apertei,
apertei até que ele parasse de estrebuchar, a vida foi saindo do corpo que arriou
ali no banheiro (BETTO, 1987, p. 133).
Em todos esses momentos, o leitor sofrerá com Ângelo. Sentirá a sua angústia e a
sua dor. Solidarizar-se-á com o horror por ele vivido. Segundo Rorty (2007, p.293), “a
única coisa que compartilhamos com todos os outros seres humanos é o mesmo que
compartilhamos com todos os outros animais – a capacidade de sentir dor”. A
representação da dor alheia faz com que ela seja partilhada pelos leitores, que, se não
sentem uma dor física no ato da leitura, ao menos a sentem no plano das emoções. Desse
modo, os leitores se solidarizam com a dor sentida pela personagem-título, porque eles
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mesmos, os leitores, também sabem o que é sentir dor. Cria-se, assim, um sentimento
de empatia entre o leitor e a personagem enviesada pela dor. De modo que a dor sentida
por Ângelo, se torna a dor dos leitores.
Destarte, o que se vê é a representação dramática dos últimos momentos de um
prisioneiro político, a quem foram impingidos tanto sofrimentos físicos quanto
psicológicos. Há, portanto, uma carga emocional envolvida na construção da narrativa.
O romance, diferentemente de textos historiográficos, apresenta a percepção das
reações humanas às mais diversas situações, entre elas, a dor e a tortura. Os textos
historiográficos e memorialísticos sobre o período em questão podem até expor os
sentimentos vividos pelas personagens históricas, todavia não o farão nas mesmas
proporções de um romance. Isso porque a narrativa potencializa os sentimentos de suas
personagens e intensifica a percepção de vida delas. A literatura, desse modo, tem o
poder de fornecer uma percepção mais intensa dos acontecimentos.
Em O dia de Ângelo, Frei Betto traz à baila a representação da crueldade humana
imposta por uma coletividade (um regime totalitário) a um indivíduo em particular (um
prisioneiro político). Destarte, ao escrever um romance sobre a tortura e o assassinato
desumano de um preso político, Frei Betto, de certa forma, apresenta a crueldade como
temática central da obra, que, embora escrita no período da Constituinte, enfoca as
barbáries do governo militar (1964-1985). Ao se referir à crueldade, Rorty (2007, p. 243)
dirá: “Mais importante, porém, é que ambos [isto é, os romances de Nabokov e de
Orwell] satisfizeram o critério do liberal proposto por Judith Shklar: alguém que acredita
que a crueldade é a pior coisa que fazemos”. Se a crueldade é, de fato, a pior coisa que
um ser humano pode cometer, ao enfatizar a prática da crueldade, o romance de Betto
realça aquilo que há de pior na espécie humana, denunciando, desse modo, o lado
sombrio da humanidade.
A representação em Hotel Brasil
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Entre os grupos sociais que se destacam em Hotel Brasil (2010), o das crianças de
rua ou menores infratores é um dos mais significativos para a análise da representação.
Anderson Mata, ao falar sobre o lugar da infância na narrativa brasileira contemporânea,
diz:
estudos apontam que apenas 7,9% das personagens masculinas e 6,4% das
femininas têm suas infâncias representadas nos textos. Esses dados levam em
consideração os textos em que as personagens são crianças em qualquer ponto
da narrativa, o que nos leva a supor que o número de personagens que
permanecem crianças ao longo de todo um romance seja ainda menor (MATA,
2015, p. 13).
Se as crianças, na narrativa brasileira contemporânea, têm sido relegadas ao
olvido, isso não ocorre em Hotel Brasil, ainda que as crianças representadas nesse
romance se encontrem destituídas de uma infância tradicional e pueril, assemelhando-
se mais a adultos em miniatura. É necessário frisar, no entanto, que Betto privilegia a
narração da infância no tempo presente, diferentemente de autores que a retratam a
partir das memórias de um personagem adulto. As personagens são, portanto, crianças
e se mantêm crianças ao longo de todo o romance, não havendo espaço de tempo
suficiente na narrativa para que elas se tornem adultas.
Bia, Soslaio, Bola e Taco adentram na história lá pela metade do enredo. Os
quatro são introduzidos na narrativa no episódio em que “cerca de uma centena de
meninos e meninas tinham escapado das unidades correcionais” (BETTO, 2010, p. 147).
Os policiais, com cassetete à mão, espancavam os garotos e as garotas que se
encontravam em meio à rebelião. Nesse instante, tanto Cândido quanto os vizinhos do
reformatório solicitam aos policiais que parem de surrar os menores, mas não são
atendidos.
As quatro crianças do romance tiveram sua infância ceifada tanto pela
desigualdade social quanto pela desestruturação familiar. A representação proposta por
Betto é, na verdade, a de uma não infância ou a da negação da infância. A infância
tradicional inexiste em Hotel Brasil. Aliás, na narrativa de Betto, as crianças nunca
aparecem brincando. Elas estão ou roubando, ou matando, ou se drogando ou fazendo
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sexo. O que se percebe, portanto, é que o romance narra o sequestro da infância pela
pobreza, pelo crime, pelo trabalho, pelas drogas e pela sexualidade.
No único momento da narrativa em que aparece um brinquedo, o intuito não é a
diversão nem a brincadeira. Bia retorna do Paraguai, disfarçada de filha do motorista de
um caminhão. No colo, a menina carrega um urso de pelúcia praticamente do seu
tamanho. Na alfândega, “os fiscais liberaram o caminhão, indiferentes à menina
abraçada ao urso que trazia no ventre, cocaína suficiente para abastecer, por um mês, o
tráfico na favela do Pavão-Pavãozinho” (BETTO, 2010, p. 240). Segundo Dalcastagnè
(2018), algo muito parecido acontece no romance Cidade de Deus, de Paulo Lins. Para
ela, “como lembra Anderson Luís Nunes da Mata, empinar pipa em Cidade de Deus, por
exemplo, é muito mais uma estratégia de segurança do tráfico (o sistema de alerta para
a chegada da polícia) do que uma brincadeira para crianças” (DALCASTAGNÈ, 2018, p.
182). De igual modo, o urso no colo de Bia serve ao tráfico e não à brincadeira,
demonstrando assim a infância negada àquela menina.
O sequestro da infância em Hotel Brasil é revelado também pela trajetória de vida
das próprias crianças. Bia, por exemplo, não sabia quem eram seus pais, fora criada em
um orfanato dirigido por freiras. Quando a direção da casa passou ao poder público, as
crianças sofreram maus-tratos pelos novos funcionários. A partir de então, Bia preferiu
morar na rua. Se viver nas ruas não é fácil nem digno sequer para um adulto, imagine-
se, então, para uma menina com menos de doze anos. Onde moraria? O que comeria?
Como sobreviveria, afinal? Bola, por sua vez, trabalhava como engraxate para sustentar
o vício da mãe. Além disso, ele sempre presenciara o espancamento da mãe pelo pai. Seu
irmão mais velho, por não ter tomado a vacina da poliomielite, ficou paralítico. A culpa
foi do pai. Segundo o narrador, “no dia da vacina, pouco depois do sexto aniversário de
Chico, o pai espancou a mulher porque, cedo, ela ligara o rádio [...] O pai perdeu a calma,
Chico, a vacina. Depois, a doença atrofiou as pernas do menino” (BETTO, 2010, p. 148).
Uma mãe alcoólatra e um pai espancador, o que esperar desse menino? Sobre Taco, o
narrador apresenta o estado deplorável em que ele e a avó viviam na favela: “Deram uma
espiada no barraco, um único cômodo feito de ripas, papelão e latas, obliquamente
equilibrado sobre uma poça de lama. Ali, Taco e a avó dividiram o exíguo espaço com
ratazanas e baratas vomitadas pelo esgoto aberto ao lado” (BETTO, 2010, p. 233). Além
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disso, ficamos sabendo que ele era um garoto negro (BETTO, 2010, p. 233). Desse modo,
temos a descrição precisa do menino Taco: pobre, negro e favelado.
Os quatro infantes da narrativa acabam enveredando pelo submundo das drogas
e da criminalidade. As crianças chegam a cometer assassinatos. Certo dia, pela manhã,
Taco chegou ao barraco onde morava com a avó excitado pelo uso de cocaína.
Totalmente perturbado, não se conteve diante da insistência da avó para que buscasse
pão. Pegou a panela de ferro com resto de feijão e acertou a cabeça da velha. Depois
disso, “dormiu horas ao lado da avó desacordada para sempre” (BETTO, 2010, p. 155). No
dia da reconstituição do crime, Taco acabou sendo linchado pela multidão ensandecida.
Ao fim da descrição da cena de linchamento, o narrador observa: “No chão, o que restou
de Taco formava uma pasta misturada com lama. Destacavam-se apenas as cores verde
e amarela da corda usada para estrangulá-lo” (BETTO, 2010, p. 235). As cores da corda
com a qual Taco foi morto são as mesmas cores que estampam a bandeira brasileira. Ao
que parece, o narrador culpabiliza o Estado pela morte do menino. Ao não garantir
políticas públicas que viabilizem retirar os menores de condições absolutamente
desfavoráveis e indignas, o Estado brasileiro estaria condenando suas crianças à morte.
O outro assassinato é cometido por Bia. Ela mata Soslaio pelo fato de ele ter entregado
o paradeiro dela à polícia. A fim de criar coragem para cometer o crime, Bia cheira cola
e esmalte. Chapada, a menina segue Soslaio até um cinema. O narrador nos conta que,
“na tela, tiros de rifles e o tropel de búfalos e cavalos abafaram o grito que o menino
escutou, virando-se. Ela deu o primeiro tiro. Ele se jogou no vão entre a mureta do
corredor de entrada e a última fila de cadeiras. Ela disparou de novo e acertou-o na
cabeça” (BETTO, 2010, p. 202-203).
Pois bem, as quatro personagens, até então retratadas, são crianças ou bandidos?
Vítimas ou delinquentes? Culpados ou inocentes? Em Literatura e Diretos Humanos, os
organizadores escrevem o seguinte, na apresentação dos capítulos do livro:
Enquanto se ouvem os brados lá fora, nas ruas, nas redes sociais e nos
palanques, de que “bandido bom é bandido morto” e de que defensores de
direitos humanos devem ser eliminados (como de fato são, em todos os cantos
deste país), tentamos buscar outras narrativas, que nos permitam acreditar que
a barbárie não é o nosso único futuro possível. A literatura se torna, assim,
espaço de interlocução e abrigo. Não toda ela, porque a arte também pode servir
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aos poderosos, domesticada e conivente. Interessa, aqui, a literatura que nos
ajuda a refletir sobre nosso lugar no mundo e sobre o lugar do outro, sobre
como nosso conforto pode estar atrelado à situação desesperadora de tantas
pessoas. Interessa a literatura que nos permite pensar juntos sobre como
pudemos chegar neste ponto, que nos indague sobre a nossa participação, ou a
nossa omissão, diante de perseguições, ameaças, golpes, tiros e chutes
(DALCASTAGNÈ; DUTRA; FREDERICO, 2018, p. 9).
O romance Hotel Brasil convida os leitores a refletir tanto sobre o seu lugar no
mundo quanto sobre o lugar do outro. Aqui, não se pensa especificamente em Direitos
Humanos, mas, sim, no direito à infância, tal qual preconizado pela ONU, na Declaração
Universal Dos Direitos das Crianças. Mata (2006), ao analisar a infância no romance
Cidade de Deus, observa:
Às crianças de Cidade de Deus foram subtraídos grande parte dos direitos
universais à criança, declarados em documento da Organização das Nações
Unidas em 1959. Da lista da ONU constam educação, recreação, amor,
compreensão, habitação, alimentação, assistência médica, proteção contra a
negligência, a crueldade, a exploração, e a discriminação racial ou religiosa, e,
principalmente, condições dignas e livres de desenvolvimento, estendidos, sem
exceção alguma, a todas as crianças (MATA, 2006, p. 51).
As crianças de Hotel Brasil, de modo semelhante, foram ceifadas de praticamente
todos os direitos declarados pela ONU. Não se encontravam matriculadas em escola
alguma, de modo que não lhes era facultado o direito à educação. Nunca aparecem
brincando, sendo, portanto, privadas do direito à recreação. Moram nas ruas ou em
moradias indignas, como aquela em que moravam Taco e sua avó, edificada com ripas,
papelão e latas. Além disso, eram também carentes de afeto, uma vez que não lhes era
dispensado nenhum tipo de amor e carinho. Ao contrário, sofriam maus-tratos em casa,
no orfanato, no reformatório, nas ruas, etc. Tal carência se evidencia, por exemplo,
quando Bia pergunta a Cândido e à Mônica se eles não gostariam de ser seus pais. As
crianças ainda eram exploradas, como é o caso de Bola, que trabalha para manter o vício
da mãe. Além do que, pode-se dizer que os quatro não dispõem de nenhum tipo de
proteção: nem contra a crueldade nem contra a exploração, muito menos contra a
discriminação. Aliás, eles são discriminados pelo simples fato de serem crianças de rua
e, por esse mesmo motivo, são tidos como trombadinhas em potencial.
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Outro aspecto do romance Hotel Brasil concerne à representação da crueldade.
Os mais “fracos” sofrem em demasia nas mãos dos mais “fortes”. Isso nos faz refletir
acerca da assimetria do poder. Para Foucault (1990, p. 250) “na medida em que as
relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de forças, é
evidente que isto implica um em cima e (um embaixo, uma diferença de potencial”. No
caso de Hotel Brasil, a força relativamente estabilizada dos mais “fortes” sobre os mais
“fracos” se evidencia, principalmente, por meio da violência física. O pai de Bola, por
exemplo, agride fisicamente a mãe do menino. Os menores infratores, durante a fuga da
unidade penal, são espancados pelos policiais. Bola é surrado pelos seguranças de uma
confeitaria por flertar com um doce exposto na vitrine. O faxineiro do hotel, Jorge
Maldonado, um sujeito sem eira nem beira, é torturado pela polícia a fim de confessar
um crime que não cometeu. A menina Bia é pega por um grupo de extermínio, composto
por policiais, a mando de comerciantes locais; contudo, devido a um acidente de trânsito
envolvendo o veículo no qual a menina seguia sequestrada, ela conseguiu fugir.
Além disso, Betto retoma a temática de O dia de Ângelo retratando, novamente,
a crueldade empregada pelo regime militar àqueles que lhe faziam resistência. Mônica
conta a Cândido, em detalhes, o dia em que foi violentada por engano pelos militares.
Quando estudante, ela participou de uma passeata contra a intervenção dos generais nas
escolas. Foi presa, vendada e posta em um carro. Ao chegarem a determinado lugar, foi
conduzida a uma sala onde uma senhora a aguardava. Mônica relata o que ocorreu na
sequência:
“A mulher estendeu a mão. Senti um beliscão no braço e gritei de dor. “Isso é
só o aperitivo”, alertou a mulher [...] “A senhora se enganou de Mônica”,
ponderei, mas a mulher gritou, xingou, disse que iria refrescar a minha
memória. “Tire a roupa!”, ordenou. Comecei a tremer, a sentir meu corpo gelar,
e tirei a camiseta e a calça comprida. A mulher aproximou-se e arrancou o meu
sutiã. “Tire a calcinha!”, berrou. Fiquei nua, tomada pelo pânico [...] A mulher
colou-se em mim, apertou-me o bico do seio e indagou: “Pela última vez, onde
está o Alexandre?” Empurrou-me para trás antes de escutar a resposta e me deu
um chute na altura dos rins. Encolhi-me no chão, rogando a Deus que me
permitisse antes morrer do que sofrer [...] Logo que saiu, entrou um homem
atarracado, imenso de gordo. Vestia apenas uma sunga. Caminhou qual um
urso em direção a mim e, com um sorriso sarcástico, agarrou-me pelo braço e
arrastou-me ao colchonete: “Vem, beleza, vou fazê-la gozar até decidir contar
onde está o Alexandre.” [...] Horrorizada, continuei reagindo, dando pontapés,
mas em seguida o homem tirou a sunga e me deu um safanão que me fez perder
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os sentidos. Ao acordar, vi que estava só na sala. Sentia frio, minha vagina ardia
e sangrava, meu corpo estava coberto de hematomas e arranhões.” (BETTO,
2010, p. 245-247).
Segundo Soares (2016, p. 72), “os torturadores (devidamente treinados)
conheciam os limites dos torturados, sabiam como fragilizar e atacar os corpos para
obter informações. Existiam meios de tortura psicológica para desmoralizar o preso
político, como a técnica de logo retirar a roupa do mesmo”. A nudez é uma forma de
desestabilizar o indivíduo, tornando-o vulnerável. A roupa nos serve como uma forma
de proteção. Ao sermos despidos, contra nossa vontade, nos sentimos envergonhados,
desonrados e fragilizados. Não obstante, os torturadores de Mônica não se dão por
satisfeitos simplesmente com sua nudez. Vão além, estuprando-a, transgredindo, desse
modo, o direito mais básico do ser humano, que diz respeito à sua integridade física e
mental. O estupro, antes de ter relação com a sexualidade, é uma questão de poder. Um
poder exercido à força, sem o consentimento de uma das partes envolvidas no ato.
A representação em Aldeia do Silêncio
Em Aldeia do silêncio (2013), Frei Betto aborda a representação do campo e da
cidade. Raymond Williams principia seu livro O campo e a cidade na história e na
literatura dizendo:
“Campo” e “cidade” são palavras muito poderosas, e isso não é de estranhar, se
aquilatarmos o quanto elas representam na vivência das comunidades humanas
[...] Na longa história das comunidades humanas, sempre esteve bem evidente
essa ligação entre a terra da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos
nossa subsistência, e as realizações da sociedade humana. E uma dessas
realizações é a cidade: a capital, a cidade grande, uma forma distinta de
civilização (WILLIAMS, 2011, p. 11).
Contudo, segundo Williams (2011), campo e cidade são vistos de modos diversos
ao longo da história. Se existem aqueles que enaltecem o campo, também existem
aqueles que o depreciam. O mesmo acontece com a cidade, que ora é vista com bons
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olhos, ora é representada em um tom um tanto ou quanto sombrio. Nas palavras de
Williams:
O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência
e virtudes simples. À cidade associou-se à ideia de centro de realizações – de
saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações
negativas: a cidade como lugar do barulho, mundanidade e ambição; o campo
como lugar de atraso, ignorância e limitação (WILLIAMS, 2011, p. 11).
O que Williams fará, em boa parte de sua obra, é observar como o campo e a
cidade são representados pelos escritores ingleses ao longo dos séculos. Aldeia do
silêncio, por sua vez, apontará o contraste entre esses dois tipos de comunidade humana,
o campesino e o urbano, no contexto brasileiro. Na narrativa bettiana, o local sempre
almejado é o campo em detrimento da cidade. Há uma oposição, a nosso ver
irreconciliável, entre campo e cidade em Aldeia do silêncio. O campo é, portanto,
representado sempre de maneira positiva, enquanto a cidade é representada sempre de
forma negativa.
A aldeia é para Nemo o local onde reina a felicidade: “Por laços de afinidade,
encerrados naqueles confins, estávamos condenados à felicidade, malgrado a desolação
circundante” (BETTO, 2013, p. 32). Contudo, essa felicidade é desfeita pelo progresso,
bem como pela violência por meio da qual Nemo e sua mãe são enxotados da aldeia.
Quando o pai de Nemo vem avisá-los que vendeu a aldeia e que ali seria construído um
clube de golfe, ele diz o que segue: “Já que não querem ir ao progresso”, ironizou, “o
progresso virá a vocês” (BETTO, 2013, p. 174). Como resposta, o narrador em primeira
pessoa faz a seguinte observação: “Foi então que teve início a nossa infelicidade”
(BETTO, 2013, p. 175). Em Aldeia do silêncio, cidade e progresso são termos sinonímicos
que apontam um tipo de sociedade humana desafortunada. Em relação ao progresso,
vale ressaltar o episódio no qual a aldeia foi invadida por um tufão, trazendo uma
fuligem que enegreceu o rosto de seus três moradores, ocasionando até falta de ar. O
avô, então, resmungou: “Isso é lixo do progresso” (BETTO, 2013, p. 77). Por não saber o
que era o tal progresso, o personagem-narrador pontua: “Fiquei matutando: o
progresso...” (BETTO, 2013, p. 77). Por causa da forma como o progresso é representado,
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ao longo da narrativa, não é difícil imaginar o que se passa na cabeça de Nemo ao
“matutar” sobre o progresso.
O que torna a aldeia um local tão desejado é o silêncio. Nela, o silêncio se
encontra envolto em certo misticismo. O personagem-narrador nos diz que “na aldeia,
nossa entrega ao silêncio obedecia a uma metafísica inconceituada, uma vez que o
encontro com o outro era o encontro consigo, como se a voz silenciosa do Mistério
fizesse ressoar, no íntimo, um convite à comunhão” (BETTO, 2013, p. 61). Perante a
policromia de um crepúsculo, por exemplo, o avô, a mãe e Nemo contemplavam o
entardecer sem nada dizer um ao outro. O narrador quebra o silêncio dizendo que “há
momentos tão sublimes que pronunciar qualquer palavra é profanação” (BETTO, 2013,
p. 45).
A cidade, por sua vez, é representada como um lugar barulhento, cheio de ruídos
e com um ritmo alucinado. Para o personagem-narrador, “há demasiadas palavras na
cidade. Muitos se expressam por outros dizeres: ruídos, agitação, poluição... A cidade é
tagarela e, nessa verborragia, se perde como lugar acolhedor” (BETTO, 2013, p. 183). Se a
tônica do romance gira em torno do silêncio, a cidade pode ser entendida como a grande
vilã da história. Nela não há silêncio.
É possível, no entanto, compreender a aversão de Nemo pela cidade. De certa
forma, ele representa aqueles que foram tragados pelos grandes centros urbanos. Ao ser
praticamente cuspido na cidade, sem dinheiro, sem conhecidos e sem ter como ganhar
a vida, ele se torna mendigo. Revira latas de lixo em busca de alimento. Dorme nas praças
e nas calçadas. É maltratado por outros mendigos. Enfim, Nemo se torna “apenas um
lixo ambulante travestido do que outrora fora um ser humano” (BETTO, 2013, p. 181). Em
certo momento da narrativa, ele desabafa:
Tenho medo da cidade. Voraz, ela nada tem de veraz [...] Nem cheguei a me
sentir como Jonas no ventre do peixe. Jonas sobreviveu, não foi deglutido pelo
animal que o devorou. Não tive a mesma sorte. A cidade, com sua voracidade
consumista, triturou-me [...] Tudo tem importância, menos eu (BETTO, 2013,
p. 186).
Há, portanto, uma relação entre exclusão social e cidade. Segundo consta, as
cidades possuem várias faces, e uma única cidade é capaz de abrigar, ao menos, duas
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cidades: “a oficial, na qual circulam os cidadãos, e a não oficial, restrita a grupos e/ou
segmentos sociais dela e por ela excluídos” (LIBERATO, 2007, p. 15). Ao vir do campo
para a cidade, Nemo se vê obrigado, após deixar a delegacia, a viver nas ruas. O drama
de Nemo é o drama daqueles que enfrentam o êxodo rural, sendo enxotados do campo
para a cidade. Ao aportarem nos grandes centros urbanos, essas pessoas passam a viver
à margem tanto geograficamente quanto socialmente. Isso ocorre, principalmente, em
consequência de sua condição socioeconômica, bem como da falta de qualificação
profissional que os leva a ocuparem atividades de baixo status e com baixa remuneração.
Além da relação contrastante entre campo e cidade, o romance de Betto traz à
tona a questão fundiária. Os fazendeiros ou latifundiários expulsam cruelmente os
campesinos de suas terras. Há uma reforma agrária às avessas. O que se vê no romance
é a ampliação das terras dos grandes proprietários, enquanto os pequenos são obrigados
a migrar para as cidades. Segundo o narrador,
veio a ganância, fincou estacas entremeadas de arame farpado, e delimitou
espaços. Na fazenda despontou, imponente, a casa-grande; o proprietário,
enfiado em botas de canos altos, exibiu papéis; a Justiça exigiu recibo das
famílias. Não foi aceito o apalavrado, o fio do bigode, e a traição anulou a
tradição. O que era perdeu valia (BETTO, 2013, p. 70).
Williams (2011), falando sobre a posse da terra, diz o seguinte: “pouquíssimos
títulos de propriedade, se investigados, se revelariam livres de mácula, no longo processo
de conquista, roubo, intriga, política, favoritismo palaciano, extorsão e poder do
dinheiro” (p. 87). Embora Williams fale a partir da realidade inglesa, seria a questão da
propriedade rural diferente em terras tupiniquins? Ao que parece, no excerto acima,
Betto relata a questão da grilagem de terras. Isso porque, na continuidade da narrativa,
jagunços são acionados a fim de expulsarem aqueles que habitavam as terras do
povoado. A crueldade utilizada pelos grileiros contra os camponeses é registrada pelo
narrador:
Envenenaram o curso d’água, velhos murcharam afogados em tosses, crianças
amarelecidas naufragaram em vômitos, homens e mulheres definharam.
Cortaram cercas, descarnaram o gado, roubaram porcos e galinhas. Fizeram
arder em fogo a plantação e destruíram as casas, mordidas pelos dentes gigantes
de escavadeira. Restou a capela. Um ou outro tentou resistir, mas as armas da
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jagunçada calaram os clamores. Aquela terra adubou-se de sangue (BETTO,
2013, p. 70).
A grilagem no Brasil iniciou quando os portugueses aqui desembarcaram,
apossando-se das terras indígenas. A partir daí, houve uma distribuição absolutamente
desigual das terras em solo brasileiro – em decorrência de diversos fatores, entre eles a
grilagem – formando-se, assim, os grandes latifúndios. Márcia Motta
3
(2001) nos diz o
seguinte sobre a grilagem no contexto brasileiro:
Nunca é demais refletir sobre o que herdamos no século XXI. Sobre o universo
rural, não há dúvidas: nossa herança é o espólio não partilhado, fruto de uma
história mais do que secular de um poder (às vezes sem limites) dos senhores e
proprietários de terra e de grilagens realizadas diante dos olhares cúmplices dos
representantes da justiça (MOTTA, 2001, p. 1).
No romance, a grilagem aparece associada à violência. Além do trecho há pouco
elencado, que revela a crueldade contra os ocupantes do povoado, há outro fragmento
que merece ser destacado. Nemo narra aquilo que lhe fora contado pelo avô a respeito
da brutalidade utilizada pelos fazendeiros e latifundiários contra os pequenos
agricultores:
Não consideram suficiente dar um tiro na cara do lavrador que resiste à
proposta de vender sua terra por uma ninharia. Preferem emboscá-lo na
estrada, arrancar-lhe as unhas, espremer-lhe os bagos, queimar-lhe a pele com
pontas de cigarro e, por fim, cravar-lhe uma bala na nuca para que gente como
ele aprenda, de vez por todas, que não se ousa deter a gula quando se trata de
devorar mais e mais terras (BETTO, 2013, p. 72).
A prática da tortura nos romances de Frei Betto não está associada apenas à
polícia e aos militares. Quem pratica a tortura em Aldeia do silêncio, ao menos nesse
episódio, são os jagunços contratados pelos fazendeiros e latifundiários. Na verdade, os
fazendeiros não agem com desumanidade apenas contra os pequenos proprietários de
terras, como também o fazem contra seus próprios empregados. Novamente, Nemo
apresenta as reminiscências do avô:
3
O artigo de Márcia Maria Menendes Motta, “A grilagem como legado”, foi originalmente publicado no
livro Voluntariado e Universo Rural (2001). Contudo, a versão utilizada neste artigo se encontra disponível
em: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/7MottaAGrilagemcomoLegado.pdf.
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E acrescentou que, da época do povoado, ele ainda sentia pontadas de muitas
feridas, pois se alembrava de coisas ruins, como maus-tratos do dono da
fazenda, maus-tratos aplicados não pelo próprio dono, mas por seus capatazes,
como sempre acontece quando uma pessoa poderosa faz mal aos outros: ela
nunca põe as mãos na massa, jamais as suja de sangue, dá um jeito para que
outros façam isso por ela [...] (BETTO, 2013, p. 72).
No povoado, que antecedeu a aldeia, “cada família cultivava o próprio roçado.
Ninguém padecia desventuras; frutos de um, desfruto de todos” (BETTO, 2013, p. 69).
Contudo, nas palavras da mãe de Nemo, o povoado “adoeceu de opressão”. O romance
nos conta que:
[...] a fazenda se expandiu no rumo do povoado e o burro sumiu nos matos.
Certa manhã, o encontraram morto na beira do córrego. Derramava sangue
pelo buraco do tiro que lhe abrira a cabeça. Os moradores não tinham mais
como carregar lenha, pedras ou água. Acuados pelo latifúndio, arrastaram suas
vidas até que a dama da foice viesse buscá-los. Houve o envenenamento da água
e o incêndio da casa-grande. Sobraram o avô, a mãe e o pai com o irmão que já
havia nascido” (BETTO, 2013, p. 73).
A tortura sofrida pelo personagem-narrador, preso por se recusar a abandonar a
aldeia, traz novamente à tona a barbárie cometida contra a camada mais fragilizada da
sociedade. A narrativa nos diz que, após expulsarem Nemo da aldeia, ele foi conduzido
a uma delegacia. Na sequência, lemos as palavras do narrador-personagem:
Fui recebido aos gritos por policiais enfurecidos [...]. Pediram-me documentos.
Nunca os tive. Perguntaram meu nome. Não tenho. Indagaram se eu tinha
dinheiro. Eu não sabia o que é [...] Então me golpearam para me obrigar a falar.
Quebraram-me os dentes, perfuraram-me o pulmão, atingiram meu rim
(BETTO, 2013, p. 177).
Se na época da ditadura a tortura foi utilizada prioritariamente contra
acadêmicos, intelectuais, jornalistas e políticos, pessoas com certa expressividade social,
“a tortura de ‘sempre’ atinge os ‘invisíveis’ de sempre” (BARROS, 2015, p. 49).
Historicamente, a tortura sempre foi destinada às classes menos favorecidas da
sociedade. Ao tratar sobre a tortura no Brasil colônia, Barros (2015, p. 32) afirma que a
grande maioria dos torturados naquele período eram os negros e os indígenas, ou seja,
pessoas socialmente invisíveis e desfavorecidas. Em Aldeia do silêncio, Betto adverte seus
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leitores de que, em pleno século XXI, a tortura continua sendo praticada
majoritariamente contra pessoas sem nenhuma expressão social. Mais um excerto de
Barros (2015) nos ajuda a ratificar essa questão:
No Brasil, só há intolerância contra a tortura quando praticada contra membros
das classes média e alta. A tortura dos pobres só é intolerável quando se difunde
nos jornais e televisões, e aí a sociedade e as autoridades públicas se sentem
obrigadas a se indignarem. (BARROS, 2015, p. 168-169)
Embora não haja no romance elementos concretos que nos permitam datar com
precisão o ano em que o mesmo se passa, ainda assim existem indícios suficientes no
texto para dizermos que o enredo, Aldeia do silêncio, se passa na contemporaneidade
4
.
Destarte, se em um passado remoto a tortura era uma prática comum e sem maiores
questionamentos, nos dias atuais ela se encontra em observação, embora ainda seja
praticada em larga escala. Desse modo, uma das razões, entre as sete, oferecidas por
Barros (2015, p.57) para a extinção da tortura, é a seguinte: “A terceira razão é porque há
dois séculos se aboliu a tortura. Isso é um reflexo dos avanços históricos e culturais
alcançados durante séculos, ou do que poderíamos denominar ‘processo civilizador’”. Os
romances de Betto, portanto, nos levam a refletir sobre os efeitos legais e morais da
tortura, bem como a respeito da crueldade por ela exercida, que desumaniza os
potenciais suspeitos de um crime tornando-os nada mais do que “animais”, “vermes”,
“insetos” ou “coisas” (BARROS, 2015, p. 205).
Considerações finais
Aos analisarmos a representação na obra literária de Betto, percebemos que em
seus três romances, os grupos sociais postos em evidência são grupos marginalizados ou
4
Creio que o maior indício de indicação cronológica no romance, embora, de qualquer forma, não exista
precisão, é o fato de a alfabetizadora de Nemo ter sido aluna de Erich Auerbach (1892-1957). Segundo o
narrador-personagem, “Madame A. estudara na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Tinha sido
aluna de um professor cujo nome anotei – Erich Auerbach” (BETTO, 2013, p. 102). Esse incidente, bem
como do fato de Madame A. ser viúva e ter falecido durante os anos de internamento de Nemo, nos leva
a pensar que o romance se passa nas últimas décadas do século XX ou nos primeiros anos do século XXI.
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malquistos pela sociedade. Em O dia de Ângelo, um comunista é representado de forma
positiva, enquanto os militares são vistos como vilões. Em Hotel Brasil, as crianças de
rua alcançam visibilidade e são representadas como vítimas de uma sociedade
excludente. Em Aldeia do silêncio, os camponeses, ou pequenos agricultores, são
retratados como vítimas dos latifundiários, que não poupam esforços para lhes tomarem
as terras (a qualquer custo!).
Prendergast (2000), como salientado no início do artigo, propõe uma discussão
sobre o valor da verdade na representação. Para ele, no século XIX, o termo
representação, ao menos no que diz respeito aos estudos literários, estava ligado “à ideia
de um reflexo fidedigno e preciso da realidade” (PRENDERGAST, 2000, p. 4, tradução
nossa). Entretanto, as teorias modernas sugerem exatamente o contrário. A
representação, nessa nova perspectiva, é vista como alienante ou construtiva. Quando o
que a regula é o discurso dominante, a representação é alienante. Contudo, à medida
que legitima o ponto de vista dos oprimidos e dos dominados, a representação se torna
construtiva. Ao desconstruir o discurso dominante a respeito dos prisioneiros políticos,
das crianças de rua, bem como da desapropriação indevida de pequenas propriedades
rurais (por meio da grilagem), Betto propõe uma representação desalienante em sua
obra literária.
Ao propor, nos três romances analisados, a representação da tortura, Betto parece
querer nos dizer que essa prática absolutamente condenável na atualidade se encontra
“eternizada” na cultura brasileira. Segundo Barros (2015, p.50), “quando Luciano Oliveira
muito acertadamente corrigiu o usual discurso de ‘tortura nunca mais’ e, parafraseando
Nietzsche, intitulou seu livro sobre tortura de Do nunca mais ao eterno retorno, ele já
sublinhava a constância da eternização da tortura no Brasil”. Não obstante, quando se
fala em tortura no contexto brasileiro logo se pensa no ocorrido no período da ditadura
militar (1964-1985); mas a tortura continua presente no âmbito policial até a atualidade.
A literatura de Betto apresenta essa questão, mostrando que, infelizmente, a tortura
permanece mais viva do que nunca. Nas palavras de Barros:
Temos cinco séculos de tortura, e toda vez que o tema vem à tona, aparece
alguém fazendo referência à ditadura. É legítimo e justo que algumas
organizações dediquem-se aos seus objetivos, tais como punir torturadores do
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regime militar. O que é inadmissível é os poderes constituídos, a imprensa, as
organizações sociais e a sociedade em geral agirem como se apenas houvesse
tortura política. Esquecendo que a tortura ocorre de forma sistemática e que
recai, desde sempre, sobre uma determinada classe subalternizada, sem que se
faça algo contra isso (BARROS, 2015, p. 256).
Além do que, ao trazer a representação da tortura para dentro da literatura, Betto
nos faz ponderar e refletir sobre a crueldade e a desumanidade dessa prática. Barros
(2015) diz que um dos motivos da “eternização” da tortura no Brasil é, justamente, a falta
de debate sobre o tema. Quanto a isso busca-se respaldo em suas palavras:
o problema é que, no Brasil, não há uma discussão sobre justificantes morais
para eventual prática da tortura. Chega a ser bizarro que, mesmo com toda a
nossa tortura cotidiana, é mais fácil encontrar publicações que tratam da
tortura nos EUA do que no Brasil [...]. (BARROS, 2015, p. 67)
Frei Betto, portanto, ao fomentar a discussão a respeito da tortura no campo
literário faz com que seus leitores ponderem sobre o tema em questão a partir da
representação presente em seus romances. A literatura, dessa forma, fornece sua
contribuição de intervenção no mundo e na sociedade ao promover a discussão sobre
um tema pouco discorrido em terras tupiniquins, embora, como já foi dito
anteriormente, continue a ser amplamente praticado em território nacional.
A questão da crueldade também fica evidente nos três romances em apreço. Em
O dia de Ângelo, há a ação violenta dos militares contra a personagem-título. Em Hotel
Brasil, a crueldade acomete as crianças abandonadas, o zelador do hotel, torturado pela
polícia, e Mônica, estuprada durante o regime militar. Em Aldeia do silêncio, a barbárie
acontece contra os pequenos proprietários rurais. A se pensar na questão concernente à
crueldade e sua relação com a literatura, Rorty (2007, p.243) nos diz o seguinte: “A
principal semelhança em que insistirei neste capítulo e no próximo é que os livros de
Nabokov e Orwell diferem dos que foram escritos pelos autores que discuti na segunda
parte – Proust, Nietzsche, Heidegger e Derrida – no sentido de que a crueldade, e não a
criação de si mesmo, é seu tema central”. Podemos, em consonância com Rorty, dizer
que a crueldade é o tema central nos romances de Frei Betto. Isso porque Betto nos
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“ajuda a penetrar na crueldade e, com isso, contribui para articular a ligação tenuemente
sentida entre a arte e a tortura” (RORTY, 2007, p. 244).
Entretanto, se o tema central da narrativa bettiana é a crueldade, qual seria o
intuito do autor ao trazer para a literatura a temática da tortura e da violência dos mais
fortes contra os mais fracos? Para Rorty (2007, p.281),
Escritores diferentes querem fazer coisas diferentes. Proust queria a autonomia
e a beleza; Nietzsche e Heidegger queriam a autonomia e a sublimidade;
Nabokov queria a beleza e a autopreservação; Orwell queria ser útil às pessoas
sofredoras. Todos lograram êxito. Cada um deles foi brilhantemente e
igualmente bem-sucedido.
Destarte, em nossa compreensão, Frei Betto parece querer reivindicar os direitos
daqueles que deles são privados. Se a tortura, que é um ato desumano, é tratada à
exaustão nos romances bettianos, a violação dos direitos humanos, portanto, se
apresenta como uma denúncia evidente em suas obras. Desse modo, se “Orwell queria
ser útil às pessoas sofredoras”, Betto, por sua vez, quer ser útil às vítimas da violência e
da tortura, evocando a violação dos direitos humanos não apenas pela polícia,
representantes do Estado, mas também por particulares, como os latifundiários.
Como ficou perceptível, refletir sobre a representação literária na obra ficcional
de Frei Betto nos levou a ponderar sobre a relação entre literatura e poder, literatura e
direitos humanos, bem como literatura e política. A representação na obra ficcional
bettiana convida os leitores a perceberem as agruras presentes em nossa sociedade e,
desse modo, os sensibiliza a se solidarizarem com as personagens sofredoras e
torturadas, tornando os leitores seres mais politizados e mais preocupados com a
realidade a sua volta.
Por fim, tornemos ao pensamento de Rorty sobre os romances de Dickens. Para
o filósofo norte-americano, os romances dickensianos são capazes de conduzir os
leitores a inclusão e a generosidade: “Se nós fizermos de Dickens o paradigma do
Ocidente, como eu acho que meus africanos e asiáticos fantasiosos o fariam, então nós
veremos que o aspecto mais instrutivo na recente história do Ocidente é sua capacidade
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de tolerar a diversidade” (RORTY, 1999, p. 112)
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. De modo semelhante, os romances de
Betto analisados neste artigo são um convite à tolerância (a fim de nos conduzir à
reflexão sobre o assunto). A tortura e a violência fomentadas em seus textos ficcionais
auxiliam, desse modo, nas discussões a respeito da intolerância à diversidade. O que se
percebe, portanto, é que a narrativa bettiana se preocupa em apresentar a intolerância
política, a intolerância contra os menores abandonados, a intolerância para com os
pequenos proprietários rurais, além da intolerância para com aqueles que são vomitados
nos grandes centros urbanos.
Referências
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Curitiba: Editora Appris, 2015.
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Alguém poderia questionar se existe tolerância à diversidade na sociedade ocidental. Quanto a isso, Rorty
salientará, como desenvolvimento de seu raciocínio, algo importante a se registrar: “Pode parecer estranho
atribuir esse tipo de boa vontade ao Ocidente recente – uma cultura frequentemente citada, com excelente
razão, como sendo racista, sexista e imperialista. Mas ela também é claramente uma cultura que está
muito preocupada quanto a ser racista, sexista e imperialista, tanto quanto a ser eurocêntrica, paroquial e
intelectualmente intolerante. Ela é uma cultura que se tornou muito consciente de sua capacidade para a
intolerância assassina; e, consequentemente, uma cultura que talvez tenha se tornado mais atenta frente
à sua intolerância, mais sensível ao caráter desejável da diversidade, do que qualquer outra da qual nós
tenhamos registro.” (RORTY, 1999, p. 112).
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Recebido em 07/04/2020.
Aprovado em 17/05/2020.