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Peter Linehan, in memoriamPeter Linehan, in memoriam: Four Portraits of an Historian: Quatro olhares sobre um historiador

Authors:
Medievalista
Online
29 | 2021
Número29
Quatro olhares sobre um historiador
Peter Linehan, in memoriam
Quatro olhares sobre um historiador
Peter Linehan, in memoriam: Four Portraits of an Historian
AndréEvangelistaMarques,MariaJoãoBranco,MárioFareloeAndré
Vitória
Ediçãoelectrónica
URL: https://journals.openedition.org/medievalista/4032
DOI: 10.4000/medievalista.4032
ISSN: 1646-740X
Editora
Instituto de Estudos Medievais - FCSH-UNL
Ediçãoimpressa
Paginação: 13-48
Refêrenciaeletrónica
André Evangelista Marques, Maria João Branco, Mário Farelo e André Vitória, «Peter Linehan, in
memoriam», Medievalista [Online], 29 | 2021, posto online no dia 01 janeiro 2021, consultado o 24 julho
2021. URL: http://journals.openedition.org/medievalista/4032 ; DOI: https://doi.org/10.4000/
medievalista.4032
Este documento foi criado de forma automática no dia 24 julho 2021.
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Internacional.
Quatro olhares sobre um historiador
Peter Linehan, in memoriam
Quatro olhares sobre um historiador
Peter Linehan, in memoriam: Four Portraits of an Historian
André Evangelista Marques, Maria João Branco, Mário Farelo e André
Vitória
NOTA DO EDITOR
Data recepção do artigo / Received for publication: 3 de Dezembro de 2020
1 Peter Linehan deixou-nos no dia 9 de Julho de 2020. O seu trabalho sobre Portugal tem
uma relevância incontestável e será por muito tempo uma referência maior para quem
estuda os temas sobre os quais ele escreveu e ensinou. Tinha muitos amigos e colegas
em Portugal, a quem inclusivamente dedicou um dos seus livros. Era, para além disso,
membro do Conselho Editorial da revista Medievalista. Estas razões pareceram-nos mais
do que suficientes para escrever, precisamente na Medievalista, um texto em sua
memória, que pudesse dar ao mesmo tempo uma visão sobre o seu trabalho como
historiador e a sua personalidade como académico.
2 Pareceu-nos assim lógico juntar os quatro elementos do IEM que mais de perto lidaram
com ele e escrevermos, cada um de nós, um texto que reflectisse a nossa imagem
particular do historiador e do homem que conhecemos e com quem privámos. Deste
esforço resultaram quatro textos muito distintos que, não obstante, apresentam uma
notória consonância. Decidimos por isso mantê-los individualizados, por nos parecer
que isso enriqueceria o retrato que queríamos traçar e faria mais justiça ao complexo
historiador que era Peter Linehan.
3 I. Peter Linehan, decanus ille
4 1. Agosto de 2007. A cena passou-se durante a segunda de várias estadias em Cambridge
que devo à hospitalidade de Peter Linehan. Recém-inscrito no doutoramento, e com a
avidez de quem ia descobrindo um oceano de bibliografia, aproveitei um dos nossos
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encontros para lhe pedir indicações sobre livrarias e alfarrabistas ingleses. Afundado
num sofá grande e rodeado por alguns milhares de livros nas paredes, mais largas
dezenas espalhadas por sofás, mesas, cadeiras e pelo chão do seu gabinete, respondeu-
me: “Livros?! Tenho demasiados. Só quero que eles desapareçam.”, e mudou de
assunto1. não consigo reconstituir o resto da conversa, mas lembro-me de ter saído
desconcertado. Pouco depois, quando me sentei ao computador na biblioteca, tinha
uma pequena lista comentada de livrarias e alfarrabistas no email.
5 Nunca esqueci este episódio. Pelo que ele diz da minha ingenuidade: tendo a
possibilidade de explorar as bibliotecas de Cambridge, estava preocupado em
açambarcar o maior número possível de livros para trazer para casa. Mas sobretudo
pelo que ele revela da personalidade de Peter Linehan, que eu viria a conhecer
melhor mais tarde. Olhando para trás, vejo na sua resposta a sagacidade com que
rapidamente percebia pessoas e comportamentos, fossem eles de jovens estudantes
postos à sua frente ou de gente cuja voz lhe chegou em textos medievais. Vejo
também a atitude desconcertante que cultivava, tanto na escrita como no trato pessoal,
e que prontamente transformava em sarcasmo quando confrontado com algum dos
seus ódios de estimação ou com qualquer forma de mediocridade intelectual. Vejo
ainda o gosto pelos jogos de ocultação e revelação, fonte do entusiasmo com que
sussurrava estórias dos fantasmas que rondavam o seu gabinete no St John’s College, ou
relatava as suspeitas de espionagem em que se viu envolvido no primeiro périplo que
fez pelos arquivos eclesiásticos espanhóis, nos anos 60. Vejo, por fim, a generosidade
com que franqueou as portas do St John’s e da sua universidade a tantos académicos de
Espanha e Portugal2.
6 2. Não posso deixar de registar aqui a minha dívida de gratidão, que vale como um
exemplo entre muitos. Em 2005, tendo participado na V Semana de Estudos Medievais
organizada na Faculdade de Letras do Porto, Peter Linehan convidou-nos, a um grupo
de alunos de pós-graduação em que estavam incluídos André Vitória, Flávio Miranda,
Joana Sequeira, Maria João Silva e eu, a fazer uma breve estância em Cambridge.
passámos, os cinco, algumas semanas do Verão de 2006; e regressei para sucessivos
períodos estivais até 2009 e por todo o ano letivo de 2010-2011. Durante estes anos, que
abrangem o final da escrita da minha dissertação de mestrado e a preparação da de
doutoramento, fiquei a dever-lhe a grande simpatia com que sempre tratou da logística
do meu alojamento e com que me permitiu aceder à incomparável Biblioteca da
Universidade de Cambridge, sem a qual a minha formação como historiador teria
resultado bem mais pobre. Devo-lhe também uma atenção discreta mas vigilante ao
meu trabalho, própria de quem passou décadas a acompanhar alunos no quadro do
sistema tutorial de Oxbridge, e uma série de pequenos favores que dão bem a medida da
atenção que dedicava aos seus hóspedes, desde a compra de livros com o seu desconto
de autor à intermediação do contacto com outros académicos ingleses. Rapidamente se
tornou claro que o meu interesse pela Alta Idade Média, e sobretudo a minha opção
pelo estudo do espaço, que lhe provocava, creio, o mais absoluto tédio, limitavam os
pontos de conversa entre nós. Mas a sua agudeza (wit é a palavra certa) e imaginação
fizeram das conversas que fomos tendo ao longo desses anos uma lição muito viva sobre
as subtilezas da análise histórica e a importância do discurso no trabalho do
historiador.
7 3. O coração da sua obra, ancorado numa tese doutoral apresentada em Cambridge em
1969 e logo transformada em livro (1971), está dedicado ao estudo da Igreja ibérica
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entre os séculos XII e XIV, não apenas como instituição que se constrói numa tensão
entre as monarquias ibéricas e Roma, mas também como corpo social e político com
uma acção própria (mas não unívoca) e um papel relevante na produção de cultura
jurídica e de memória histórica3. Assim se percebe a extensão do trabalho de Peter
Linehan à história do papado e do direito canónico, por um lado, e à história do poder
régio e da cultura letrada, por outro. A estes temas correspondem vários dos seus livros
(1971, 1993, 1997, [2003], 2004, 2019), os importantes guias/edições de fontes pontifícias
que produziu (2013, no prelo) e muitos dos artigos reunidos em quatro colectâneas
(1983, 1992, 2002, 2012), para além de outros textos que permanecem avulsos. Sendo
menos competente do que os autores que me acompanham nesta homenagem da
Medievalista para avaliar o contributo de Peter Linehan em cada uma destas áreas, opto
por chamar aqui a atenção para alguns aspectos mais oficinais que permeiam o conjunto
da obra e que acabaram por marcar em grande medida a sua originalidade.
8 4. O primeiro destes aspectos decorre do interesse de Peter Linehan pelos processos de
construção historiográfica da memória e pelos seus usos, aquilo que definiu como “the
invention of the past: the manner in which, for reasons which have seemed good to
them, (...) men have sought to appropriate and recolonize the past”4. O seu vasto
conhecimento da historiografia espanhola e uma intuição apurada permitiram-lhe
perceber, ao longo dos anos 1960 e 1970, a crise de um paradigma historiográfico
assente no binómio nacionalismo/catolicismo e a sua substituição por outro mais
europeísta, mas também mais regionalista, que foi dominante até pouco tempo. A
uma visão em que os conceitos de Reconquista e Repovoamento serviam para legitimar
um discurso identitário e político de cariz centralista (e castelhanista), sucedeu outra
empenhada em legitimar a Espanha autonómica e aberta à Europa, articulada em torno
a uma noção demasiado vaga de “feudalismo”5. A estas questões dedicou Peter Linehan
vários artigos a partir de 1982, quando o medievalismo entendido na acepção de
estudo dos usos e representações da Idade Média dava ainda os primeiros passos na
Europa e nos Estados Unidos (1982, 1992 [I e II], 1996, 2012).
9 Mas a sua grande originalidade está em ter percebido e investigado a fundo as ligações
entre os usos da Idade Média feitos pelos historiadores modernos e contemporâneos e
os usos que os próprios cronistas medievais fizeram do seu passado. Naquele que é
provavelmente o seu opus magnum, History and the Historians of Medieval Spain (1993),
traça uma panorâmica da história da Península Ibérica entre os séculos VI e os meados
do XIV centrada no espaço castelhano-leonêsna qual se entrelaçam três planos de
análise: (i) a narrativa histórica propriamente dita, ancorada nas questões políticas e
eclesiásticas que o autor vinha a estudar mais de duas décadas a partir da
documentação régia, pontifícia, episcopal e monástica; (ii) a análise detalhada das
sucessivas crónicas e cronistas que foram construindo a memória do reino de Leão-
Castela e forjando diferentes visões do passado, não raro contraditórias entre si e
usadas como arma política; e (iii) a ligação permanente entre os dois planos anteriores
e a obra dos eruditos e historiadores espanhóis que retrabalharam e usaram essas
memórias nos séculos pós-medievais. Com mestria narrativa e rara capacidade
analítica, Peter Linehan vai guiando o leitor por um longo périplo que deve ser lido
simultaneamente como uma panorâmica (certamente parcial) da história peninsular
medieval, uma síntese (hoje ultrapassada em muitas questões de pormenor mas não na
visão de conjunto) da historiografia medieval castelhano-leonesa e um ensaio de
história da historiografia que, estando longe de se limitar ao século XX, procurava
claramente mapear a herança que pesava sobre o medievalismo espanhol nos anos 90. A
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escrita deste livro obrigou o autor a trabalhar, na prática, em três campos distintos.
Mas a opção final por tecer os vários fios numa trama só permitiu-lhe mostrar como os
autores medievais criaram um conjunto de topoi que persistiram longamente na
historiografia espanhola e como a Idade Média foi usada por sucessivas gerações de
historiadores para legitimar as visões do presente que tinham a propor aos seus
contemporâneos.
10 A obra teve uma recepção tímida em Espanha, desde logo pelas dificuldades que a sua
leitura colocava a um público pouco familiarizado com o inglês sofisticado do autor,
mas também pelo desconforto que a crítica por vezes mordaz ao medievalismo
espanhol contemporâneo motivou, com historiadores destacados a denunciarem-na
como simplista em alguns aspectos, sem contudo negarem o valor do livro6. O facto de
Portugal e a construção de uma mitologia nacional portuguesa estarem praticamente
ausentes de uma obra essencialmente preocupada com os reinos de Astúrias-Leão-
Castela, e com a monarquia espanhola que lhe sucedeu, explica a relativa discrição com
que o livro foi recebido também no nosso país, com excepções que confirmam a
regra7. Mas a verdade é que History and the Historians aguentou bem a passagem do
tempo e, quase 30 anos depois do seu aparecimento, transformou-se num clássico, e não
apenas para os estudiosos da Península Ibérica medieval. A atenção à “ever shifting
relationship of past and presente over time”8 faz deste livro um precursor do muito
trabalho recente em torno das “origens medievais” do nacionalismo contemporâneo e
das “origens modernas” da Idade Média9, perspectivas que Peter Linehan soube
combinar como poucos até hoje. O historiador a quem a especulação teórica pós-
moderna provocava uma clara repulsa10 foi afinal um dos medievalistas europeus que
melhor percebeu a importância da análise dos textos como objectos que respondem a
contextos de produção específicos e cuja capacidade agente foi reactivada e actualizada
em momentos sucessivos. Mais do que tema de um livro, a contaminação entre passado
e presente foi transformada por Peter Linehan numa espécie de regra de método que
permeou cada vez mais o seu trabalho.
11 5. O interesse pelo indivíduo e pela forma como a sua acção se concretiza na moldura de
cada tempo está na raiz do segundo aspecto que quero sublinhar na obra de Peter
Linehan: o cultivo exímio da micro-história e da biografia, não só como formas de
escrever história mas sobretudo como método de análise. Foi na descrição minuciosa
das personagens em situação, procurando deslindar os mais ínfimos nexos entre a
acção individual e o contexto epocal, e nunca descurando o posicionamento e a
percepção das próprias personagens, numa espécie de “thick description” (Clifford
Geertz) em que o historiador e os textos se substituem ao etnógrafo e ao trabalho de
campo, que Peter Linehan encontrou o seu modo de aceder à realidade que lhe
interessava estudar, essencialmente a acção política e simbólica nas esferas eclesiástica
e régia. Dominando um vastíssimo corpus de fontes documentais e narrativas, Peter
Linehan preferiu sempre explorar textos ou conjuntos de textos específicos, referindo-
se aos grandes problemas a partir de descrições densas de casos concretos, do que voar
sobre largas séries documentais para traçar panorâmicas descarnadas assentes na
generalização, seja ela de base indutiva ou dedutiva, donde a sua reserva quanto à
história quantitativa e a recusa em escrever as grandes sínteses que mais do que uma
vez lhe foram propostas. À abstracção, que via como possível fonte de erro,
simplificação e anacronismo, antepôs sempre a distinção.
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12 Isto é evidente em todos os seus livros, onde a técnica micro-histórica está presente de
uma forma ou de outra, mas em especial na sua aclamada incursão pelas aventuras de
uma comunidade de monjas dominicanas em luta contra o respectivo bispo diocesano
na Zamora do século XIII. The Ladies of Zamora (1997), que viria a ser rapidamente
traduzido para francês (1998) e castelhano (2000), e mais tarde para português (2009),
tornou-se num clássico do género11. Partindo da exploração detalhada do texto de um
inquérito lançado pelo bispo Suero Pérez ao comportamento moral da comunidade e às
suas relações com os frades dominicanos da cidade, Peter Linehan foi capaz de
convocar um amplo conjunto de fontes e de personagens (peninsulares e extra-
peninsulares) para pintar um fresco muito vivo da religião e da política ibéricas nos
finais do século XIII, com todas as suas implicações e extensões europeias. Esta opção
por objectos de estudo concretos e situados é também evidente na biografia do
arcebispo de Toledo Gonzalo Pérez Gudiel que escreveu em colaboração com Francisco J.
Hernández (2004), aproveitando um conjunto extraordinário de fontes. A sensação que
fica deste e de outros trabalhos que revelam o fascínio de Peter Linehan pelo indivíduo,
pelos meandros da personalidade e pela complexidade do comportamento humano é a
de que o autor conhecia intimamente as personagens sobre quem escrevia e, como
qualquer bom escritor, foi capaz de lhes dar tal substância, ancorada num trabalho
rigoroso com as fontes, que essas personagens não só aparecem inteiras e plausíveis aos
olhos do leitor como são capazes de iluminar todo um tempo.
13 6. alguém hábil na utilização quase cubista de determinados ângulos da realidade
para evocar o todo, e muito seguro da sua própria leitura da história peninsular,
ousaria escrever um livro tão idiossincrático como o volume com que contribuiu para a
série A History of Spain da Blackwell, a que chamou Spain, 1157-1300: A Partible Inheritance
(2011). Num contraste evidente com a prosa enxuta e a narrativa política escorreita dos
capítulos sobre os reinos ibéricos nos séculos XII a XIV que escreveu para a New
Cambridge Medieval History (1999, 2000, 2004), o livro da Blackwell recusa o modelo da
síntese mais ou menos compreensiva que caracteriza os restantes volumes da série. Ao
invés, constrói-se a partir de uma composição de temas, espaços e dramatis personae
tidos como especialmente reveladores do período e das especificidades que Peter
Linehan reconhecia na realidade ibérica, quando comparada com outras regiões da
Europa medieval. Detendo-se sobretudo no século XIII, e em especial no reinado de
Afonso X, e adoptando mais uma vez o reino de Leão-Castela como ponto de observação
das forças centrífugas que marcam a história peninsular na longa duração e estão na
raiz do mito da unidade hispânica, Peter Linehan aponta os holofotes ao exercício do
poder político (desde logo régio) e converte-o no fio condutor de um enredo em que
não deixa de convocar aspectos “não-narrativos”12, como a ideia de que a Reconquista
criou uma “society disorganized by civil war”, num quadro de grande carência
demográfica e de dificuldades na manutenção das estruturas básicas do povoamento
nos territórios conquistados. Viria a utilizar a mesma técnica analítica e narrativa no
seu último livro, At the Edge of Reformation (2019), uma “sequela não oficial” do livro da
Blackwell como notou um recenseador recente13 que cobre a primeira metade do
século XIV.
14 7. Numa história tão marcadamente narrativa e autoral, o texto é chamado a
desempenhar um papel central, que se manifesta tanto na construção do enredo como
no trabalho estilístico. Chego assim ao último aspecto da obra de Peter Linehan que
procuro aqui evocar: a utilização do texto como um espaço que torna possível, e em que
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convivem, a recriação do passado e a intervenção do próprio historiador. Profundo
conhecedor de uma enorme quantidade e variedade de textos medievais, Peter Linehan
tinha bem consciência das limitações que as fontes escritas colocam ao trabalho dos
historiadores, fruto dos constrangimentos da sua produção e das circunstâncias que
ditaram a transmissão de uns textos em detrimento de outros. Leitor ávido de ficção, é
natural que tivesse moldado o seu papel de historiador a partir do posicionamento de
um narrador que, não sendo omnisciente, também não prescinde de ser um intérprete
qualificado da história que narra. Quando Juan Miguel Valero lhe perguntou quais as
suas principais influências historiográficas, Peter Linehan respondeu, subversivamente,
que Charles Dickens e Thomas Hardy terão pesado mais do que qualquer historiador, o
primeiro pelo que as suas personagens e caricaturas lhe ensinaram e o segundo por ter-
lhe mostrado o papel da contingência e a importância do inesperado na vida14. Percebe-
se assim o uso que Peter Linehan faz de recursos eminentemente literários, como sejam
a urdidura cuidada do enredo, a caracterização subtil das personagens e a evocação
detalhada de ambientes, para colmatar os muitos espaços em branco de uma realidade
passada, que as fontes reflectem de forma bastante fragmentária e esbatida. Percebe-se
também a liberdade que cultivou em matéria de estilo. Para alguém que via a história
como sendo “acima de tudo comunicação”, o estilo é necessariamente um instrumento
retórico, uma ferramenta para captar a atenção do leitor15. Mas no caso de Peter
Linehan é mais do que isso: a adjectivação certeira, um sentido de humor que não hesita
em fazer-se ironia, quando não sarcasmo, a paráfrase em que a interpretação se
sobrepõe à mera glosa das fontes, são tudo recursos que servem a afirmação da voz do
historiador/narrador sobre a matéria narrada.
15 8. Brian Catlos viu no último livro de Peter Linehan um autor tão embrenhado na sua
história que acaba por se alhear do leitor16. A crítica pode parecer justa à superfície,
mas falha o essencial. Peter Linehan nunca deixou de ter em mente os seus leitores.
não escrevia para um leitor-tipo, como os estudantes universitários que Catlos diz
serem hoje incapazes de ler com proveito At the Edge of Reformation, ou os públicos
alargados que a propaganda editorial canonizou. O seu leitor era culto, imaginativo, com
sentido de humor e sobretudo questionador; um leitor construído mais e mais à
imagem do próprio autor. “Como la poesía o el estreñimiento, la historia debe salir del
sistema del historiador”, disse17. A observação deste preceito levou Peter Linehan a
construir uma obra marcada pelos seus traços de personalidade mas também, nunca é
de mais sublinhá-lo, por extraordinários recursos intelectuais: o domínio de um volume
impressionante de fontes, que nunca deixou de ir alargando até ao final da vida, um
conhecimento muito vasto – e sobretudo crítico – da bibliografia nas principais línguas
europeias, uma capacidade analítica invulgar, que tanto lhe permitia atentar no mais
ínfimo detalhe como identificar os traços dominantes de uma personagem ou as
grandes tendências de um tempo, um talento evidente para a escrita. Peter Linehan
dividia os historiadores entre os que gostam de ler e os que gostam de escrever.
Presumo que reconhecesse aos primeiros uma maior necessidade de ouvir o passado e
aos segundos uma maior urgência de o dizer. Nunca percebi bem em que grupo é que se
incluía. Mas talvez esta dicotomia lhe servisse sobretudo para ocultar a genialidade de
quem reunia em si capacidades que poucos historiadores reúnem, e que ainda menos
conseguem transformar num corpo de trabalho monumental, construído de forma
persistente, consistente e consequente ao longo de uma vida.
16 André Evangelista Marques
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17 II. PAL. Historiador e amigo
18 “I hate historical conferences!” repetia enfática e ruidosamente, em Junho de 2014, um
Peter Linehan exausto por ter tido que andar a calcorrear as ruas de Évora por mais de
uma hora à procura de um restaurante onde era suposto os congressistas irem todos
jantar, mas que, kafkianamente, ninguém parecia saber onde ficava. Repetia esta frase
como um mantra, enquanto caminhávamos, e continuaria a fazê-lo durante e depois do
jantar, ficando cada vez mais divertido com o efeito de choque que as suas palavras iam
tendo nos seus interlocutores. Para com aqueles que não se chocavam com a verve da
persona linehaniana que tantas vezes gostava de projectar sobre os seus pares, a conversa
tomava rumos completamente diferentes e revelava um outro Linehan, o “Peter
Linehan”. Curioso, culto, rigoroso, erudito, irónico, dono de uma inteligência aguçada e
uma generosidade desinteressada, era um contador de histórias cativante que por vezes
parecia quase viciado no convívio, na troca e no debate – aceso e vivo – com os colegas
que trabalhavam os temas que ele próprio estudava e com quem podia estar horas a fio
a discutir, sem nunca se cansar.
19 Ao fim e ao cabo, ele gostava mesmo muito de tudo aquilo que uma “historical
conference” deveria ser... mas tinha um enorme dificuldade, quer em “suffering fools
lightly”, quer em se enquadrar nalgumas das exigências mais bizarras do mundo
académico dos últimos vinte anos, que frequentemente desvirtuam mais do que
promovem a produção de investigação e pensamento crítico de qualidade.
20 Por isso mesmo, repetia continuamente que nunca mais iria a uma conferência cujas
comunicações não fossem divulgadas antes, para dar tempo à leitura e espaço ao
debate, mas depois ia, sempre refilando, mas sempre contribuindo com
comunicações originais e feitas de propósito para a ocasião, participando de forma
ativa nos debates e nas conversas laterais que as sessões proporcionavam.
21 Apesar desta sua pretensa reserva sobre a bondade das conferências de História, a sua
história com Portugal e com a historiografia portuguesa parece ter começado
precisamente com a participação num Congresso, que ele próprio recordava como o seu
primeiro congresso no estrangeiro. Um Linehan então na fase final do seu
doutoramento, participava, um mês antes de completar 25 anos, no primeiro Congresso
Luso-Espanhol de Estudos Medievais, que comemorava a presúria de Portucale por
Vímara Peres de 868. Nesse congresso, onde se cruzou com os igualmente jovens José
Mattoso e Miguel Ángel Ladero Quesada, e com os menos jovens António Domingues de
Sousa Costa, Demetrio Mansilla, Salvador de Moxó ou José María Lacarra, esteve
acompanhado por uma notável delegação anglófona, onde se detectam as presenças de
Harold Livermore, Derek Lomax, Anthony Luttrell e Joseph O’Callaghan. Participou com
uma comunicação de 15 minutos sobre “A Igreja Castelhana e o custo da Reconquista
nos meados do século XIII”, da qual apenas resta um resumo traduzido para português,
uma vez que as atas desse Congresso se limitaram à publicação de resumos.
22 Ele retinha desse congresso o aparato de Estado, as refeições gargantuescas, uma mítica
visita às caves do vinho do Porto, as comunicações apressadas e as longas sessões
soleníssimas. Foi com agrado que regressou ao Porto, mais uma vez para outro
Congresso, em 2005, para se encontrar com um mundo académico muito diferente, e
sobretudo para conhecer um grupo de jovens e promissores investigadores – excelentes
em qualquer parte do mundo, gostava de sublinhar com quem estabeleceu de
imediato uma enorme empatia e com quem viria a conviver de perto em Cambridge,
onde todos foram fazer estadias maiores ou menores de investigação, explorando os
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recursos e as bibliotecas dessa universidade, bem como usufruindo da generosidade do
conhecimento enciclopédico, da experiência e extraordinária memória do Peter, da sua
própria biblioteca pessoal e da biblioteca do “seu” St John’s College, aberta 24 horas por
dia.
23 Também eu, como dezenas de jovens e menos jovens académicos ibéricos, beneficiara
de idêntica generosidade, em 1996, quando, na sequência de mais um congresso, em
Birmingham, aceitei o seu desafio, em início de levantamento documental para a minha
tese de doutoramento, para fazer uma estadia em Cambridge. tive acesso aos
microfilmes da documentação do Vaticano (na era anterior à digitalização, a biblioteca
do St John’s tinha microfilmado toda a documentação da chancelaria pontifícia, que se
podia ler sem restrições) e pude beneficiar do paraíso que é, para qualquer um, uma
biblioteca de acesso aberto como a Biblioteca da Universidade. Pude ainda contactar
com um conjunto de académicos hispânicos a quem o Peter também convidara para
passarem temporadas em Cambridge, a quem ajudava a encontrar alojamento, para
quem arranjava privilégios de acesso aos recursos de investigação do colégio e
Universidade e a quem ainda convidava para sua casa, levava a visitar pubs, casas de
chá e catedrais na vizinhança, para além de os receber no seu escritório para
infindáveis e profícuas tertúlias no meio dos seus inumeráveis livros, fotocópias,
separatas e microfilmes, que gostava de procurar para dividir e discutir connosco. Era
um trabalhador incansável, lia compulsivamente, livros de história e ficção, poesia e
prosa, que integrava na sua escrita da história. Era também um melómano muito culto,
partilhando com os seus convidados todo esse gosto pelas coisas do espírito com grande
sensibilidade e generosidade.
24 Tinha conhecido o Peter Linehan ainda noutro congresso, em Toledo, em 1989, quando
se comemoravam os 1400 anos da conversão de Recaredo ao catolicismo, no III Concílio
de Toledo, onde ele estava com o seu amigo de sempre, Francisco Hernández, e onde
ambos quiseram falar comigo depois da minha comunicação, pediram para ver os
documentos que eu mencionara, confirmaram as minhas referências e leram-nos num
cafezinho meio rançoso de uma viela toledana, discutiram as minhas ideias comigo
naquilo que parecia uma demonstração exemplar e imerecida de espírito académico
ideal.
25 Num congresso sobre um tema tão relevante para a construção de uma identidade
hispânica centrada na irreal ideia de grandiosidade em torno da conversão a um
catolicismo alegadamente unificador, tão característica dos sectores mais
conservadores e eclesiásticos da então historiografia hispânica, que decorreu no lugar
talvez mais simbolicamente marcante para essa mesma construção, Peter Linehan
apresentou uma comunicação que pretendia verificar qual fora o impacto do III
Concílio de Toledo na historiografia coeva e na restante historiografia medieval,
deitando por terra, em menos de meia hora e com argumentos de peso, a ideia da
magna relevância de Recaredo, dos visigodos e do III Concílio de Toledo para essa
mesma identidade, durante a Idade Média. Não esteve sozinho nessa empresa, nesse
extraordinário congresso onde se digladiaram duas concepções historiográficas e duas
mundivisões radicalmente opostas, mas impressionava a clareza, o rigor, a concisão e a
argumentação, para além da coragem de verbalizar uma realidade tão a contracorrente,
num ambiente tão hostil a tal mensagem. Esta aparente irreverência, que mais não era
do que a aplicação de uma crítica documental implacável e rigorosa a uma problemática
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que se procurava desvestir da sua secular mitificação, revelou-me desde logo o tipo de
académico que o Peter Linehan era.
26 Não sabia então, mas apercebi-me mais tarde, que Linehan estava em pleno processo de
gestação da sua magna obra History and the Historians of Medieval Spain, que veria a luz do
dia em 1993, e que teve muito menor recepção e ainda menor impacto do que
realmente merecia, então como agora. Nele, como o texto de André Marques nesta
mesma homenagem demonstra à saciedade, é todo um vintage Linehan que se pode
encontrar a cada página. Um académico maduro, crítico, original e intuitivo, que
trabalha a historiografia como uma fonte a desconstruir tendo em vista o triplo filtro
dos homens que a constroem, dos contextos em que são produzidos e aqueles que eles
procuram retratar, combinando-o com a análise dos artifícios retóricos e das
manipulações políticas usadas por quem compõe os textos e por quem os utiliza,
modifica, reutiliza e repensa.
27 Combinando a inteligência crítica do autor com o conhecimento profundo que então
tinha dos contextos que analisava, dos meandros da produção historiográfica e da
releitura sistemática e extensiva dessa mesma historiografia e das fontes documentais,
o resultado é uma obra que nunca encontrou o lugar que merecia em vida do autor,
muito embora, passados quase 30 anos sobre a sua edição em inglês, ainda não tenha
perdido a pertinência das propostas e das possibilidades que levanta. Um extenso livro
que cobre a História, os Historiadores e a Historiografia Hispânica, sobretudo centrado
em Leão e Castela do século VI ao século XIV, muito embora com muita informação
sobre Portugal, dá-nos a dimensão das suas preocupações e levanta o véu sobre o seu
método de trabalho. Percebe-se bem porque, sendo um historiador que trabalhou desde
o doutoramento a Igreja hispânica enquanto instituição e os eclesiásticos como actores
fundamentais na nessa progressiva e deficiente institucionalização, detestava ser
apelidado de historiador da Igreja ou descrito como alguém que se dedicava à História
Eclesiástica. Tinha razão, pois a obra que nos deixa vai muito para além dessas
redutoras classificações. A sua obra dispersa-se por diversos temas que vai estudando,
ao sabor do que a obra anterior lhe sugeria e do que a sua aturada e exaustiva pesquisa
documental lhe ia permitindo estudar. O seu labor historiográfico deteve-se na Igreja
hispânica, obviamente, mas sobretudo nos homens da Igreja hispânica, quer como
grupo, quer como indivíduos, nas suas múltiplas e por vezes até contraditórias facetas.
É através deles que ele chega à história política, à história da relação entre o poder
régio e a Igreja, e depois ao estudo do poder régio em tantas outras vertentes, à escrita
do passado e suas manipulações, à cultura jurídica e aos canonistas hispânicos, aos
conflitos jurídicos e à diplomática, ao retraçar de percursos individuais como óbvios
representantes de conjunturas muito mais alargadas, processos mais globais que se
revelam pelos traços que nos deixam, na livraria de um arcebispo, nos rascunhos de
uma carta escritos e reescritos por uma mente torturada pelo medo de ter a sua posição
em risco, pela agência dos cardeais hispânicos em Roma, pelas ambições e dúvidas de
um bispo zamorano, pelas grandes questões que se colocam à cúria pontifícia num
Ocidente em crise ou por um escândalo num convento de dominicanas com
repercussões tais que abalaria todo um sistema de hierarquias e poderes que iriam da
Península Ibérica a Roma. O grupo e o indivíduo funcionam na sua historiografia quase
sempre como leitmotivs, como abordagens “micro”, densas de significados e
significantes, fundamentais para a compreensão dos signos de um universo muito mais
“macro”.
Peter Linehan, in memoriam
Medievalista, 29 | 2021
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28 Num estilo característico, Peter Linehan escrevia para quem sabia ler os seus textos.
Mas para saber ler os seus textos era necessário conhecer o contexto sobre o qual ele
trabalhava. Não escrevia para todos, como ele mesmo reconhecia, sobretudo não
escrevia para o grande público, por entender que essa não era a sua missão.
29 Mesmo os seus capítulos na New Cambridge Medieval History, sobre Castela, Portugal e
Navarra nos séculos XII, XIII e XIV (1999, 2000, 2004), que deveriam ser dirigidos ao
grande público e aos estudantes de licenciatura e pós-graduação, não são fáceis para
quem nada sabe sobre os assuntos que trata.
30 A década de 90, que assistiu à publicação de History and Historians of Medieval Spain
(1993) e The Ladies of Zamora (1997), dois livros que deixariam uma marca indelével na
historiografia actual, assitiu também a uma explosão de artigos sobre os temas que o
iriam ocupar de em diante: a historiografia hispânica do século XIII e seus autores,
Lucas de Tuy, Rodrigo Jiménez de Rada e Juan de Soria, que deixou o anonimato, a
historiografia alfonsina, a cultura jurídica peninsular e as relações com a cúria
pontifícia, os meandros políticos, sociais, simbólicos e rituais da construção da
soberania régia nos séculos XII a XIV e seu relacionamento com a “Igreja”, e as vidas e
percursos de eclesiásticos, legados pontifícios, cardeais, arcebispos, bispos e cónegos,
ou as peripécias jurídicas de comunidades monásticas, como as monjas de Lorvão.
31 O final da década de 90 marca também a inclusão nos seus interesses académicos da
realidade portuguesa, que uma documentação inexplorada lhe possibilitaria.
32 Podia dizer-se com verdade, embora não sem ironia, que essa reentrada no mundo da
Idade Média portuguesa, agora de forma mais focalizada, aconteceu num Congresso,
mais um congresso sobre momentos fundadores na Península Ibérica, onde o destino o
voltaria a reunir com José Mattoso, com quem se relacionava muito. O famoso
Congresso de Guimarães celebrado em 1996 foi um mega-congresso sobre o nascimento
da nacionalidade, desta vez sob o signo de Afonso Henriques. Peter Linehan participou
com uma comunicação sobre a coroação, ou melhor, sobre a não-coroação dos reis de
Portugal, com uma tese que se opunha às teorias de José Mattoso sobre a mesma
temática. Apesar de discordar de Mattoso naquele ponto, Linehan nutria por ele um
respeito tão profundo que lhe enviou a comunicação antes de a apresentar
publicamente, para saber o que ele achava e para lhe dar parte do que ia dizer. Quando
se encontraram nesse Outubro de 1996, Mattoso disse-lhe, com a qualidade de um
investigador a sério e com um ar quase divertido “Rendo-me aos seus argumentos!”. As
boas relações entre os dois nunca azedaram, pelo contrário, mas a verdade é que a
questão da coroação e unção dos reis portugueses daria azo a uma das polémicas mais
interessantes de estudar e mais profícuas da nossa historiografia, exemplar pela lisura
de estilo e trato entre dois historiadores que se estimavam muito, embora discordassem
sobre alguns tópicos importantes. O debate, que deu origem a mais dois artigos de cada
um dos dois, acabaria com uma vitória para Linehan, pelo menos por então. Mas para
quem assistiu a esse debate a seriedade, a erudição e a elegância dos argumentos então
esgrimidos foram um exemplo do que um debate académico deve ser. Não era a
primeira vez que se debruçava sobre questões relevantes para a nossa historiografia,
mas o artigo “Religion, nationalism and national identity in medieval Spain and
Portugal” (1982) tinha passado muito mais desapercebido.
33 Vinha a Portugal também para ir à Torre do Tombo procurar um selo de João de
Abbeville, cujo percurso estava a retraçar nessa altura, como ele próprio conta nas suas
palavras. Não encontrou o selo de João de Abbeville, mas deparou-se com
Peter Linehan, in memoriam
Medievalista, 29 | 2021
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documentação pontifícia original e riquíssima, bem como um conjunto de outra
documentação (nomeadamente de carácter jurídico) que lhe aguçou a curiosidade e a
vontade de regressar ao arquivo, desta vez aos arquivos portugueses, e retomar o que
fizera apenas parcialmente aquando da pesquisa para a sua tese de doutoramento.
34 Ao abrigo de um projecto financiado pela British Academy fez várias estadias de
investigação em Portugal, que tive a sorte de poder acompanhar de perto, pois
coincidiram, em alguns casos, com as minhas próprias visitas a esses arquivos, durante
o levantamento documental que fazia para a minha tese sobre o papel dos eclesiásticos
na construção do poder régio em Portugal nos séculos XII e XIII.
35 Acompanhar o Peter Linehan nas suas visitas aos arquivos foi um privilégio. Na Torre
do Tombo, onde passou mais tempo, Lips e Legs, Nun e Hairdresser, os carinhosos nomes
de código que deu aos eficientes funcionários da sala de leitura da Torre do Tombo,
traziam-lhe, de forma muito diligente, toda a documentação que pedia, parecendo
inquietar-se um pouco quando aquele investigador inglês colocava o casaco pela cabeça
e parecia mergulhar nos documentos, que ficavam completamente invisíveis para os
outros. O Peter tinha uma luz ultravioleta de bolso que funcionava a pilhas, mas
precisava de escuridão para funcionar bem, daí o aparato de tentar fazer uma câmara
escura com o casaco para poder melhor aproveitar do efeito dos ultravioletas. Aparte
estes detalhes, dos quais seguramente muitos dos então leitores da Torre do Tombo se
lembram, pude também verificar em pessoa o seu método, o seu rigor, a forma como
trabalhava cada documento, com uma atenção aturada a todos os aspectos possíveis,
desde a proveniência, produção, marcas marginais, sinais de validação, formato,
dimensão, notas contemporâneas e anotações posteriores, até aos aspectos de
conteúdo, sem falhar os detalhes sobre os processos e agentes de escrita, testemunhas e
confirmantes, sinais, selos... e tudo isso trabalhando a uma velocidade estonteante.
36 Aprendi muito, como todos com quem Peter Linehan convivia, sobre os detalhes mais
relevantes e ínfimos dos diversos tipos de documentação, sobre o olhar crítico que
temos de ter e sobre o papel dos nossos olhos e intelecto na construção do edifício
historiográfico que cada um de nós acaba por construir.
37 Para além dos debates académicos, o investigador que havia nele nunca perdia o seu
lado de professor. Muito atento à investigação de cada um, dedicava uma atenção
especial aos mais jovens, a quem sempre incentivava de forma positiva e concreta,
“perdendo tempo” com excertos de leitura difícil ou trechos de latim mais obscuros,
procurando sempre o sentido profundo do que a documentação poderia fornecer,
entusiasmando-se com as descobertas alheias e ensinando tudo o que sabia com a sua
proverbial generosidade para com aqueles cujo trabalho ele respeitava. O Peter gostava
que pensassem nele como num historiador antiquado, apenas porque achava que no
mundo actual, no qual se dá tanta atenção às “metodologias” e às “modas
historiográficas” – duas áreas que ele também dominava com à-vontade – os
historiadores se deixam seduzir com demasiada frequência pelo facilitismo das visões
apriorísticas e anacrónicas. Para ele, o que distinguia um historiador “a sério” dos
restantes era a capacidade heurística, o trabalho com e sobre a documentação, o rigor
crítico e a capacidade de construir um edifício historiográfico a partir das bases
documentais, sem esperar nada da documentação, mas sabendo retirar dela tudo aquilo
que ela tem para dar.
38 O resultado final desse trabalho de arquivo acabaria por se consumar nos volumes de
Portugalia Pontificia, Materials for the History of Portugal and the Papacy (1198-1417), que
Peter Linehan, in memoriam
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seriam dados à estampa em 2013, e no seu último livro, At the Edge of the Reformation:
Iberia before the Black Death (2019) que ainda é subsidiário dessa profunda e exaustiva
investigação.
39 Mas entre 1996-1997, quando retomou a sua investigação sobre temas portugueses e a
pesquisa documental nos arquivos portugueses, e a edição do seu último livro sobre
Portugal em 2019, muita da sua produção se centrou sobre temas que direta ou
indiretamente se ligavam com questões fundamentais para os medievalistas
portugueses.
40 A legacia do cardeal João de Abbeville, atrás de cujo selo entrara na Torre do Tombo,
deu origem a uma reconstituição notável do percurso de vida desse homem tão pouco
comum e com tantas ligações a Portugal, num artigo que só viu a luz do dia em 2001, “A
papal legation and its aftermath: Cardinal John of Abbeville in Spain and Portugal,
1228-1229”.
41 Mas o seu percurso nesse mundo começara mais cedo. Logo em 1997, num artigo muito
mal conhecido mas premonitório do que o seu trabalho com a cultura jurídica em
Portugal iria ser. Two marriage cases from thirtheenth century Iberia levantava a questão
do envolvimento relevante dos bispos de Lisboa em casos de divórcio.
42 Na verdade, nesse mesmo ano, o texto das Senhoras de Zamora também nos fornecia
muitos dados para o papel de destaque e central no mundo dos Dominicanos hispânicos
e no mundo das negociações com Roma onde também surgia o provincial dos
Dominicanos, esse Soeiro Gomes responsável pelos decretos laicales que tanto tinham
enfurecido Afonso II de Portugal em 1221, cujo percurso a historiografia portuguesa
tem injustamente negligenciado e que nos confronta de forma marcante com a
circulação peninsular e extra-peninsular destes eclesiásticos cuja esfera de influência
em muito extravasava a expectável Península. É quando trata dos dominicanos de
Zamora que Linehan detecta os sinais de uma cultura jurídica apurada e refinada, que o
seu trabalho no arquivo dessa cidade, combinado com a sua investigação nos arquivos
de Braga, Porto e Coimbra, acabaria por confirmar e aprofundar.
43 A cultura jurídica dos cónegos de Zamora, que tantas e tantas vezes apareciam como
juízes delegados nos casos portugueses que eu mesma levantara, foi tratada com
mestria em artigos em nome individual “An impugned chirograph and the juristic
culture of early thirteenth-century Zamora” (2006); “El cardenal zamorano D. Gil
Torres y la sociedad zamorana de su época” (2007); “Columpna firmissima: D. Gil Torres,
the Zamoran cardinal” (2008) e num livrinho em colaboração com Carlos Lera, Las
postrimerias de um obispo alfonsino. Don Suero Pérez, el de Zamora (2003).
44 Os processos portugueses que analisou sobre Lorvão deram mais tarde origem a um
interessante e também muito pouco conhecido processo, que publicou em conjunto
com Martin Bertram num artigo em homenagem a Domenico Maffei, “The Law’s Delays:
Two Chapters in the Thirteenth-Century History of S. Maria de Lorvão (by Peter
Linehan); Mit Bemerkungen zu einer Extravagante Gregors IX. (von Martin Bertram)”
(2014), onde aquilo que ele gostava de chamar as “maquinações da Lei” são por demais
evidentes.
45 O multifacetado legado que nos deixa é imenso. Muito embora o seu trabalho se tenha
centrado sobretudo em Leão e Castela, e numa fase posterior em Portugal, a verdade é
que as análises que faz, a forma quase holística como trata os problemas que estuda, o
brilho das suas intuições, são de interesse global para todos os estudiosos da Idade
Peter Linehan, in memoriam
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Média e seus contornos difíceis de apreender. Quase podemos suspirar de alívio ao
pensar que, detestando embora as tais “historical conferences” com tanta veemência,
não tenha resistido à tentação de participar em tantas e de converter os seus primeiros
esboços em artigos, por vezes livros com os quais nos brindou.
46 Este inglês que dedicou a sua vida ao estudo da Península Ibérica e que acaba de nos
deixar fisicamente, vai ainda continuar a acompanhar-nos nas nossas estantes por
muitos anos, como obra de consulta obrigatória e de estudo apurado.
47 Maria João Branco
48 III. Linehan, Portugal e o Papado: um testemunho
49 Conheci Peter Linehan, isto é, assisti pela primeira vez a uma das suas conferências, na
V Semana de Estudos Medievais organizada pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto em 2005. Convidado para a conferência inaugural intitulada Acta et Agenda,
impressionou-me a desenvoltura com a qual tratou de alguns aspetos das relações entre
as monarquias castelhanas e portuguesa com o Papado no século XIII e, sobretudo,
retive a apresentação que fez do projeto que tinha em mãos, já nessa altura: o da
inventariação da documentação pontifícia referente a Portugal entre 1198 e 1417.
50 Essa apresentação correspondia à ideia que eu tinha do Prof. Peter Linehan. Como
acontece muitas vezes com os jovens investigadores, eu “conhecia” o autor somente
através da sua obra. Com efeito, por esses tempos, tinha lido a sua tese de
doutoramento, na versão publicada em 1971 sob o título The Spanish Church and the
Papacy in the Thirteenth Century, assim como os artigos que tinha dedicado às queixas do
episcopado castelhano nos anos 1260, os quais me ajudaram a perceber melhor os
gravamina que, pela mesma altura, os bispos portugueses apresentavam na Cúria
romana contra o rei Afonso III.
51 O meu Peter Linehan não era tanto na altura nem ainda é hoje o cronista de um
mosteiro feminino de Zamora ou o analista inteligente da historiografia medieval
castelhana, mais sim, e sobretudo, o conferencista que vi em 2005, o especialista das
relações entre o papado e os reinos ibéricos nos séculos XIII e XIV. Sendo este o filão da
sua obra sobre a qual tenho trabalhado e aprendido ao longo desta última década e
meia, é, pois, sobre esta área específica da sua produção científica que eu gostaria de
deixar o meu testemunho.
52 Não é surpresa para ninguém que as ligações entre os reinos de Leão e Castela (menos
Aragão e Navarra) e o Papado constituíram um dos fios condutores do seu trabalho de
historiador ao longo das quase cinco décadas de investigação. Não é possível – nem faz
muito sentido neste curto testemunho proceder a uma análise fina da sua produção
nesta área, nem tão pouco, escalpelizar os seus impactos sobre a medievalística ibérica.
Ainda assim…
53 O trabalho de Peter Linehan nesta temática é o espelho da sua vontade em não ficar
prisioneiro de um tipo específico de História, nem de uma cronologia precisa, apesar do
seu trabalho se ter centrado em grande medida no século XIII e primeira metade da
centúria seguinte (com incursões pontuais para os períodos anteriores ao séc. XII e para
o século XV). Autor que se sentia à vontade com a redação de grandes síntesescomo
testemunha a sua tese –, creio que gostava sobretudo de reconstituir os meandros da
estória/História através de acontecimentos ou de documentos específicos. Para ele, o
essencial era o documento e as pistas que este último encerrava para a compreensão
das ações das personagens históricas. E ele foi um investigador que tinha as
Peter Linehan, in memoriam
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competências e qualidades para “ler” documentos medievais, sobretudo aqueles de
particularmente difícil descodificação, como é o caso da documentação latina emitida
pelas chancelarias pontifícia ou episcopais. Peter Linehan tinha, indubitavelmente, uma
intuição “heurística” ímpar, que lhe permitia mobilizar a informação contida em
documentos insuspeitos para as suas análises históricas. Acresciam a esta perspicácia, o
gosto, a paciência e o domínio que tinha da paleografia e diplomática pontifícias, como
os profundos conhecimentos de direito canónico, que lhe permitiam analisar e
publicar – com mestria intricados documentos ligados com a Sé apostólica ou a retirar
argumentos credíveis nas variantes encontradas no cotejo de diversos exemplares de
um mesmo documento. Para dar uma dimensão do seu labor (beneditino?) de editor,
veja-se, como exemplo, a inquirição realizada no âmbito de um processo entre ade
Coimbra e o mosteiro de Santa Cruz, publicada em dois exemplares no segundo volume
dos Portugalia Pontificia, que lhe ocupou a dupla coluna a soma de 104 páginas!
54 Esta última obra constitui aliás um marco do trabalho de Peter Linehan sobre as
relações ibero-pontifícias, como veremos. Importa sublinhar que este último sofreu
uma evolução ao longo do tempo, resultante dos diferentes projetos de investigação
pessoais abraçados ao longo da sua carreira. Esta evolução encontra-se bem patente nas
quatro coletâneas dos seus trabalhos – que parecem “resumir” bem a sua obra
publicados pela Variorum com uma cadência pendular a cada dez anos.
55 Não é possível saber se a elaboração da tese de doutoramento, publicada em 1971,
“secou” na década seguinte o seu entusiasmo pela questão específica das relações entre
o papado e os reinos de Castela e de Portugal. De facto, a sua produção nesse âmbito,
justamente para esse período, parece algo limitada, como atesta o facto da sua primeira
coletânea Spanish Church and Society, 1130-1300 (1983, Variorum collected studies series,
nº 184) publicar somente dois trabalhos sobre os agravos da Igreja castelhana discutidos
na Cúria apostólica.
56 Peter Linehan continuou a publicar artigos baseados em documentação apostólica ao
longo da década de 80. Capitalizando certamente o levantamento heurístico feito para
sua tese, assim como as várias incursões efetuadas nesses anos a diversos arquivos
ibéricos, aprofundou durante essa época o estudo das marcas de chancelaria da
documentação pontifícia enviada ao reino castelhano. Pôde, dessa forma, desenvolver
um trabalho fundamental de identificação dos procuradores castelhanos ou que
defendiam interesses castelhanos na Cúria pontifícia no século XIII. Interessou-se
igualmente por letras apostólicas sem selo e o seu domínio da documentação apostólica
permitiu-lhe mobilizar as fontes fiscais conservadas pela Câmara Apostólica para
estudar a missão de um coletor em Castela nos inícios do século XIV, todos trabalhos
publicados na sua segunda coletânea Past and Present in Medieval Spain (1992, Variorum
collected studies series, nº 384).
57 O desenvolvimento do projeto de inventariação dos diplomas apostólicos e outros legal
wrangles relativos a Portugal, na década de 1990, levou-o a deslocar os seus interesses de
investigação para a zona mais ocidental da Península. Contudo, ele não deixou de se
manter fiel à prática de exumar pergaminhos dos arquivos eclesiásticos castelhanos, na
maior parte dos casos de difícil acesso, com os quais produziu artigos particularmente
relevantes… para o estudo dos meandros curiais do final do século XIII. O resultado do
seu trabalho de autêntico detetive – uma vez que lhe interessava sobretudo perspetivar
as razões que levaram à conservação, nos referidos arquivos, de documentos que
aparentemente em nada se relacionavam com assuntos ibéricos encontra-se patente
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na sua terceira coletânea intitulada significativamente The Processes of Politics and the
Rule of Law: Studies on the Iberian Kingdoms and Papal Rome in the Middle Ages (2002,
Variorum collected studies series, nº 741).
58 A sua quarta e última coletânea, Historical Memory and clerical activity in medieval Spain in
Portugal (2012, Variorum collected studies series, 1011), publicada uma década mais
tarde, acentuou o trabalho do período anterior em termos de estudos sobre a
diplomacia e a diplomática pontifícias em inícios do século XIV, sem contar os trabalhos
fundamentais sobre as redes de relações dos cardeais castelhanos no século XIII ou
mesmo a legação de João Abbeville na Península (à conta da qual Peter Linehan tinha
entrado pela primeira vez na Torre do Tombo em 1997).
59 O trabalho heurístico por detrás de muitos dos textos publicados ao longo de décadas
viria a plasmar-se, em 2013, na publicação em dois volumes, pela Fundação Calouste
Gulbenkian, do tão aguardado inventário e estudo (já apresentado em 2005) com o
título Portugalia Pontificia: materials for the history of Portugal and the Papacy, 1198-1417.
Agora, definitivamente, o autor colocava no centro das suas atenções o “caso”
português, que ela abordara a espaços nos seus trabalhos anteriores. Desde a sua
publicação, os Portugalia Pontificia tornaram-se uma obra de referência imprescindível,
não somente pelos 1427 documentos aí sumariados e os 185 diplomas publicados em 843
páginas, mas também pela sua robusta introdução, que lhe permitiu passar em revista
vários aspetos das relações entre a Monarquia e a Igreja portuguesas nos tempos dos
reis D. Afonso III e D. Dinis. Sem esquecer o levantamento minucioso das marcas de
chancelaria da documentação então sumariada, com as quais identificou os
procuradores na Cúria ligados a interesses portugueses, o que lhe permitiu constatar,
simultaneamente, a existência de uma autêntica cultura de litigação por parte dos
clérigos lusos de Duzentos e Trezentos.
60 Este projeto acabou por ser fundamental na elaboração da sua última obra. At the Edge of
Reformation. Iberia before the Black Death (2019) representa de facto um retorno à
“reforma” e ao relacionamento Monarquia-Igreja abordados na sua tese de
doutoramento. Mas, desta feita, em vez de perscrutar a luta pelas liberdades
eclesiásticas que havia marcado esse relacionamento ao longo das décadas centrais do
século XIII, Peter Linehan procurou historiar as relações entre o papado e os reinos de
Castela e Portugal durante a primeira metade do século XIV. Com pontes evidentes com
a realidade ibérica ducentista que ele tão bem conhecia, este livro procura detetar e
explicar a estratégia seguida pelos reis portugueses e castelhanos desse período, com
vista ao domínio dos respetivos episcopados, em grande medida com a ajuda de legistas
pertencentes às respetivas cortes régias. As evidências sobre a semelhança das
estratégias seguidas então pelas duas monarquias são colhidas, em grande medida,
numa documentação apostólica utilizada de forma maciça e não raras vezes com o
recurso à transcrição em nota, sobretudo em termos das letras secretas dos papas
Clemente V a Clemente VI, uma tipologia documental reservada pela chancelaria
apostólica para a troca de correspondência de natureza diplomática entre o papado e os
reis, cortes e clérigos da Cristandade. O recurso frequente a esta documentação,
inclusivamente a transcrição dos passos mais significativos, tem um valor que
ultrapassa a mera prova das suas aceções. Com efeito, Peter Linehan não ignorava que
esta documentação se encontra parcialmente inédita, pelo que a sua mobilização para o
estudo do caso português permitiu ao autor divulgar e disponibilizar informações até
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então desconhecidas sobre as relações entre Portugal e a Cúria apostólica no tempo do
papa João XXII (1316-1334).
61 Foi no âmbito deste avanço mais demorado de Peter Linehan pelo século XIV que os
nossos caminhos se cruzaram, uma vez que também eu trabalhava tais temáticas.
Contudo, não se tratou de uma partilha igualitária, pois do diálogo, das trocas de ideias
e de referências de documentos, “transacionados” quase como cromos de coleção,
acabei por ser eu o mais beneficiado. De facto, foi ele que me chamou a atenção para a
existência de umas letras apostólicas em que o rei Afonso IV de Portugal solicitava ao
papa a nomeação de um cardeal português. Sempre achara estranho que a realeza
portuguesa não se tivesse embrenhado numa tal estratégia na primeira metade do
século XIV, quando a mesma foi claramente evidente, à época, no caso das monarquias
inglesa, aragonesa e castelhana. Peter Linehan não se limitou a informar-me dessa
referência, pois rapidamente chegaram às minhas mãos as fotocópias desse e de outros
documentos que me interessavam dos registos apostólicos desse mesmo João XXII.
62 Este gesto resume bem a sua legendária generosidade. Porventura mais do que a sua
produção científica, os documentos que pacientemente analisou e deu a conhecer, a sua
visão da história e dos historiadores ibéricos medievais, guardo para mim o
investigador rigoroso, paciente e generoso, que certamente retirava grande prazer da
troca de ideias e da orientação dos investigadores mais novos pelos intrincados
meandros da Cúria romana e das cortes eclesiásticas ibéricas dos séculos XIII e XIV.
63 Mário Farelo
64 IV. Peter Linehan, nas entrelinhas
“To recover anything like the full treasure of scattered, wasted circumstance was at
the same time to live over the spent experience itself, so deep and rich and rare,
with whatever sadder and sorer intensities, even with whatever poorer and thinner
passages, after the manner of every one’s experience; and the effect of this in turn
was to find discrimination among the parts of my subject again and again difficult –
so inseparably and beautifully they seemed to hang together and the
comprehensive case to decline mutilation or refuse to be treated otherwise than
handsomely”18.
65 Tive a felicidade e a honra de poder exprimir a minha admiração intelectual e profunda
estima por Peter Linehan ao contribuir, modestamente, para tornar mais acessível uma
parte da sua obra, traduzindo-a e indexando-a. Esse privilégio foi também para mim
uma forma, decerto imperfeita e insuficiente, de retribuir os incontáveis actos de
generosidade, encorajamento e afecto que ele me prodigalizou ao longo de mais de doze
anos. É-me difícil, e seria sem dúvida despropositado, explicar o que significou para
mim, aos vinte e poucos anos e intelectualmente à deriva, travar conhecimento com
uma personalidade tão subtil, cativante e inspiradora como era a dele, tal como me é
difícil separar mentalmente o diálogo sobre a história, a historiografia, a literatura,
Inglaterra, Espanha, Portugal, que mantivemos ao longo dos anos, do processo íntimo e
lento através do qual a afinidade de ideias e a discussão de interesses comuns se dilui na
amizade. Pensar e escrever sobre a tradução e a indexação, dois elementos acessórios
da actividade literária, mas que ocuparam uma parte importante da minha relação com
Peter Linehan, permite-me, de certa forma, arrumar a memória, estruturar imagens e
impressões e reflectir, discretamente, sobre algumas facetas da sua obra, do seu método
e da sua maneira de pensar.
66 Deixo assim propositadamente de lado os grandes temas em torno dos quais Peter
Linehan construiu uma obra historiográfica indispensável, singular e
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extraordinariamente coerente: a articulação política, institucional e económica entre a
Igreja peninsular, o papado e as monarquias ibéricas; a reforma eclesiástica e a sua
precária implantação peninsular; os interesses socioeconómicos e as inclinações morais
do clero medieval; os conflitos de jurisdição entre instituições eclesiásticas e entre estas
e a sociedade laica; a relação entre história, historiografia e construção ideológica do
passado, para mencionar apenas os principais. Prefiro considerar aqui a inteligência e a
sensibilidade particulares com que estes temas foram trabalhados, e que a leitura
esquadrinhadora, rente ao texto, própria da tradução e da indexação ajudam, creio eu,
a descortinar.
67 O meu ponto de partida é um livro insólito e fascinante publicado em 1870 e intitulado
Brewer’s Dictionary of Phrase and Fable. Foi este o livro que Peter Linehan, insinuando
como era seu hábito um caminho a seguir que se me afigurava então perfeitamente
nebuloso, me recomendou que tivesse à mão ao traduzir The Ladies of Zamora (1997) e
que utilizasse para deslindar a contextura da sua prosa. Porquê começar por aqui? Mais
próximo do gabinete de curiosidades que de uma enciclopédia, o Brewer’s é um fourre-
tout de anotações e micro-biografias histórico-literárias, de provérbios e expressões
vernaculares, de mitos e anedotas, de máximas latinas, epigramas, versos, frases e ditos
memoráveis, que pretendem representar o universo literário de um inglês culto da
época vitoriana. Esta erudição omnívora e idiossincrática pressupõe a ideia que a
comunicação inteligente se constrói a partir de um fundo comum de referências
culturais, susceptível de ser actualizado (a revisão mais recente do Brewer’s data de
2018) mas essencialmente estável. O carácter analógico e idiomático da escrita de Peter
Linehan donde provém boa parte do seu sabor particular e das dores de cabeça de
quem se propõe traduzi-la – explora precisamente esses espaços linguísticos e literários
que o Brewer’s cartografa, sem chegar a esgotar, servindo-se da expressividade do inglês
falado, das especificidades culturais e académicas britânicas (a vida colegial de
Oxbridge presta-se a luminosos paralelos com a vida eclesiástica na Idade Média) e da
alusão a obras e autores “canónicos” – de Dickens a Byron, de Shakespeare a Cervantes,
de Milton a Austen para ilustrar um argumento ou para introduzir uma perspectiva
histórica diferente. Apurada por uma disposição para o peculiar e um olhar nato de
miniaturista, a qualidade literária da prosa de Peter Linehan transparece com especial
vivacidade sempre que é posta ao serviço da caracterização das motivações e interesses
do ser humano e da explicação das forças e circunstâncias que os determinam. A
fórmula lapidar, a adjectivação opulenta e colorida e o gosto do paradoxo (aos quais
voltarei mais à frente), a capacidade para captar e exprimir o lado absurdo, cómico ou
grotesco de uma situação ou personagem, fazem emergir, nas páginas de The Ladies of
Zamora como em tudo o que Peter Linehan escreveu, representações vibrantes e
incisivas da freira leonesa em busca de prazer, do rei castelhano em busca de poder, do
arcebispo toledano em busca de privilégios, do papa avinhonês em busca de influência,
do pregador francês em busca de salvação.
68 Este talento de fisionomista é aplicado com admirável efeito à análise histórica. Se ela
se molda com naturalidade à forma narrativa, a sensibilidade histórica de Peter
Linehan é, a meu ver, essencialmente analítica e distingue-se em particular pela
capacidade de reconstituir e de explicar o encontro entre os indivíduos e as estruturas e
processos que organizam a época em que eles vivem – sejam eles a reforma da Igreja, a
expansão das ordens mendicantes, o processo romano-canónico, o desenvolvimento da
administração régia, a doutrina canónica do matrimónio ou a elaboração da escolástica.
A obra historiográfica de Peter Linehan pulula de gente, de homens e mulheres agindo
Peter Linehan, in memoriam
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a título próprio ou em nome das instituições a que pertencem, desde o rei e o bispo até
ao mais obscuro Petrus Martini ou Dominicus Johannis, passando pelo cónego ou
corregedor de cuja existência subsistem apenas os vestígios de três ou quatro
documentos. Esta fauna pletórica e as incontáveis relações que a animam são o seu
objecto de análise primordial. Quando penso da maneira como Peter Linehan aborda o
passado e o reconstitui, vêm-me imediatamente ao espírito a lucidez, a paciência e a
intuição com que ele restaura, esclarece e associa os laços visíveis e invisíveis que
sete ou oito séculos ligaram um mestre-escola em Coimbra a um auditor em Roma, um
rei em Aragão a um procurador em Avinhão, um civilista bolonhês a uma contenda
bracarense, um Mestre-Geral dominicano a uma bacanal conventual em Zamora. Nos
últimos dez anos, em vez de se deixar tentar por uma síntese que não o estimulava e
para a qual não se sentia talhado, Peter Linehan dedicou-se a despinçar da
documentação os fios ténues da trama histórica que se tece no dorso dos rescritos
papais, onde estão rabiscados, entre outras menções de chancelaria, os nomes dos
procuradores curiais que os obtiveram e dos escrivães, taxatores e distributores que os
produziram: uma discreta linguagem do poder (a expressão é de Olivier Canteaut) que
Peter Linehan sondou com subtileza através da sua obra e que restituiu enfim, de forma
sistemática, em Portugalia Pontificia: Materials for the History of Portugal and the Papacy
1198-1417 (2012) e na derradeira obra, actualmente no prelo, que será publicada sob o
seu nome: España Pontificia: Original Papal Letters to Spain 1198-1303.
69 À semelhança do Index Actorum Romanorum Pontificum, estas duas compilações
recenseiam (e, no caso de Portugalia Pontificia, publicam parcialmente) a documentação
papal conservada nos arquivos portugueses e espanhóis, segundo o modelo de
levantamento proposto em 1953 por Franco Bartoloni para suprir as lacunas dos
registos papais, os quais conservam, como se sabe, apenas uma parte dos documentos
produzidos pela chancelaria pontifícia. Parece-me supérfluo sublinhar a relevância
para a historiografia portuguesa de Portugalia Pontificia, uma obra que merece figurar ao
lado de Papsturkunden in Portugal, Monumenta Henricina e Documentos Medievais
Portugueses como um dos grandes monumentos de heurística e de erudição do
medievismo português desde Alexandre Herculano. Foi ao elaborar os índices de
Portugalia Pontificia e, anos mais tarde, de España Pontificia que me apercebi
verdadeiramente – para não dizer fisicamente – da excepcional abundância de matéria
histórica que Peter Linehan resgatou ao longo dos anos à poeira silenciosa dos maços e
carpetas e à custódia possessiva dos cónegos-arquivistas. As centenas de nomes
próprios, topónimos, dignidades, ofícios, igrejas, catedrais, capelas e mosteiros que
enchem as mais de cem páginas do índice de Portugalia Pontificia (deixo de parte o de
España Pontificia, que está ainda por publicar) representam um concentrado
impressionante dessa matéria histórica. Mas são mais do que isso. Tal como Peter
Linehan o concebia, um índice deve ser mais que a soma das suas entradas: um índice
deve reflectir as conexões e as solidariedades reveladas pela obra e oferecer ao leitor
que as ignora diversas portas de entrada para poder aceder-lhes. Tanto quanto possível,
as entradas são sistematicamente organizadas em arborescências, em agrupamentos
que reflectem a arquitectura institucional que emerge das fontes, e ligadas entre si por
remissões que reproduzem as ramificações da vida social e política. Assim, é possível
obter pelo simples exame do índice uma noção precisa da composição de um cabido ou
de um mosteiro, das relações e tensões de um e de outro com o resto da sociedade, do
percurso individual dos seus membros. As datas-extremas permitem abarcar, num
olhar, a existência documental dos indivíduos e das instituições, as ascensões e os
Peter Linehan, in memoriam
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declínios, os tempos fortes e fracos. Realizado nestes moldes, o índice de Portugalia
Pontificia não se limita a condensar e a sistematizar a enorme riqueza de informação
contida, mas tenta reconstituir, na sua expressão elementar, a qualidade dinâmica e
relacional dessa informação. Este duplo exercício de compilação e de associação
revelou-me, com um imediatismo e uma limpidez que a superfície polida do discurso
historiográfico por vezes encobre, o assombroso volume da massa documental que
alimenta a erudição de Peter Linehan e a delicada complexidade do trabalho de
reconstituição das interacções entre indivíduos, instituições e ideias, para o qual tende
a sua sensibilidade histórica.
70 As interacções institucionais dos indivíduos que habitam a obra de Peter Linehan
envolvem, na sua grande maioria, a Igreja e a monarquia. O contacto entre as
motivações pessoais e as expectativas, procedimentos e solenidades inerentes à
realidade institucional é altamente problemático e a sua análise presta-se a um modo
de apreciação que constitui uma das características mais salientes e memoráveis da
expressão literária de Peter Linehan: a ironia. As qualidades que fazem de Peter
Linehan um ironista puro, à imagem de um Gibbon ou de um Trevor-Roper, são
indissociáveis de uma percepção aguda da distância que separa o geral do particular, a
regra da excepção, o indivíduo da instituição. No espaço que os separa cabem inúmeros
contrastes e asperezas que uma análise generalizadora tenderia a descartar como ruído
ou mera distracção, mas que o distanciamento irónico faz sobressair, dando ênfase à
singularidade, à complexidade e à contingência das relações sociais e dos processos
históricos. Peter Linehan alcança este efeito com extraordinária mestria, recorrendo
com brio e discernimento ora à adjectivação antinómica, ora à perífrase, ora ao registo
nobre para descrever situações escabrosas, cómicas ou rocambolescas. O
distanciamento irónico concede-lhe ainda uma liberdade suplementar para especular,
para formular conjecturas, para insinuar ao leitor certa possibilidade ou alternativa,
sem exceder os limites da verosimilhança ou forçar as exigências da erudição. De resto,
o mesmo expediente que lhe permite pintar em tons crus as fraquezas de um frade ou
os paradoxos de um rei produz excelentes resultados quando Peter Linehan o utiliza
para castigar os pecados capitais dos seus colegas de profissão: o modismo acrítico, a
facilidade, a falta de audácia e de curiosidade, as querelas estéreis – jamais o erro
inteligente, os excessos de erudição, a seriedade intelectual.
71 Peter Linehan partilhava com prazer as suas peripécias arquivísticas e os azares e
circunstâncias que o desviaram do seu interesse primitivo pela Espanha dos anos 30 e o
conduziram ao estudo da Espanha medieval. Estes dois aspectos do seu percurso
intelectual e pessoal – a inclinação contemporânea do seu hispanismo e a descoberta da
Espanha franquista dos anos 60 ao mesmo tempo que os seus arquivos afiguram-se-
me inseparáveis da maneira como ele representava a história medieval peninsular, num
diálogo complexo entre passado e presente, história e historiografia, ficção e realidade.
Ao ler a sua obra, sobrevém-me frequentemente a impressão que cada argumento, cada
capítulo, cada análise, encaixa num todo, numa concepção coerente da história ibérica
em geral e da história espanhola em particular, que a contiguidade e a
complementaridade das questões que servem de objecto a esses argumentos, capítulos
e análises não explicam inteiramente. Duas outras razões contribuem, penso eu, para
criar essa impressão de unidade conceptual. A primeira é uma coerência de tom e de
perspectiva, resultante do distanciamento irónico que Peter Linehan aplica com igual
liberalidade às fontes e aos seus comentadores e que se traduz numa abordagem
historiográfica orientada para a complexidade e para a crítica e, inversamente, avessa a
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conclusões peremptórias, à síntese e ao dogmatismo. A segunda é uma coerência de
método, que se caracteriza em particular pelo lugar privilegiado da heurística na obra
de Peter Linehan. Raros são sem dúvida os medievistas para os quais a experiência
humana e intelectual do arquivo terá sido mais estimulante como princípio da crítica e
da imaginação históricas. A exploração documental dos fundos eclesiásticos espanhóis
(e mais tarde portugueses) à qual Peter Linehan se lançou aos vinte e poucos anos, e
que haveria de ocupar o resto da sua carreira académica, conduziu-o da sala de leitura
do Archivo Histórico Nacional de Madridonde os documentos eram distribuídos (de
mau grado) por dois ex-legionários fumadores de Ideales, que Peter Linehan e o seu
camarada Richard Fletcher alcunharam de Chaos e Old Night (personificações do abismo
que separa, no Paraíso Perdido de Milton, o céu da terra) – aos principais arquivos
catedralícios e bibliotecas capitulares do país, de Barcelona a Zamora, de Toledo a
Compostela, de Tarragona a Seo de Urgel. As investigações sobre a Igreja peninsular
medieval – plenas de imprevistos, de façanhas diplomáticas face à indiferença dos
cónegos-arquivistas, de novas (e duradouras) amizades e de um breve interrogatório
pela policía de seguridad foram ao mesmo tempo uma viagem através da Espanha, e
Peter Linehan um observador tão receptivo, culto e perspicaz quanto o seu predecessor
Richard Ford, autor do maravilhoso Hand-book for Travellers in Spain (1845).
72 Para um inglês recém-saído de Cambridge, esta peregrinação arquivística pelo país de
Cervantes, onde trinta anos antes se travara uma guerra civil que ele estudara através
da obra clássica de Hugh Thomas e que fora a semente do seu interesse pela história
espanhola, não foi por certo avara em exotismo picaresco, mesmo se à força de
desarrollismo a Espanha franquista se tornava cada vez menos diferente e cada vez mais
distante dos estereótipos casticistas. Ainda assim, a reminiscência da vendedora de
abajures feitos com o pergaminho arrancado aos fólios de um antifonário medieval, que
ele cruzou numa praça de Barcelona em 1966, ou da menção dos pesetas aposta ao dorso
de certos documentos papais do Archivo Histórico Nacional testemunhos ambos de
um comércio peculiar e longínquos resquícios, talvez, da desamortização de Mendizábal
ou das invasões napoleónicas não deixou certamente de estimular o seu sentido de
humor e a sua imaginação. Da sua peregrinação arquivística o estudante frustrado da
Espanha contemporânea não tirou somente anedotas e transcrições de letras papais,
mas uma concepção das relações entre a Igreja e as monarquias ibéricas na Idade Média
como elemento estruturante da construção política e ideológica da Espanha moderna, e
uma aptidão particular para examinar o passado medieval peninsular numa perspectiva
bifocal, com um olho na Idade Média e o outro na sua reconstituição historiográfica, na
sua representação simbólica e ideológica e nas vicissitudes da sua sobrevivência
documental. Na análise histórica de Peter Linehan, acontecimentos como a batalha de
Las Navas ou processos longos como a subordinação política e económica da Igreja
castelhana aos interesses do poder régio ou a relação entre a expansão deste último e a
exacerbação das tendências concubinárias e mundanas do clero hispânico na primeira
metade do século XIV para dar apenas alguns exemplos – inscrevem-se num
panorama interpretativo erudito e multiforme, que alterna a Espanha visigoda e a
Espanha filipina, a historiografia do século XIII e a historiografia do século XIX, Juan de
Mariana e Menéndez Pelayo.
73 A obra de Peter Linehan, a cuja excepcional riqueza e inteligência se vem agora juntar
infelizmente o atributo da fixidez, merece ser lida e discutida. Se os medievistas
portugueses têm a sorte de poder fazê-lo enquanto dever profissional, os estudantes de
história que aspirem a imitá-los encontrarão em tudo o que Peter Linehan escreveu o
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fruto complexo e inspirador de uma inteligência e de uma sensibilidade histórica
singulares, expresso num estilo primoroso que é, por si só, uma forma de imersão
cultural. Alegra-me imaginar os prazeres alheios do primeiro contacto com a sua obra,
provavelmente através das páginas de The Ladies of Zamora: as primeiras gargalhadas
solitárias, as primeiras dificuldades, as primeiras intuições. Como os trabalhadores na
vinha, a obra de Peter Linehan recompensa com igual generosidade neófitos e
aficionados. Para todos aqueles, enfim, que tiveram durante anos o privilégio da sua
amizade e do seu desvelo, e que compreendem com pesar o muito que perderam, a sua
obra resta um consolo tão insuficiente quanto precioso.
74 André Vitória
75 Peter Anthony Linehan nasceu a 11 de Julho de 1943 em Mortlake, no sudoeste de
Londres. Filho de um escriturário de corretagem e de uma professora, Peter Linehan fez
a sua educação preparatória e secundária como bolseiro na St Benedict’s School, em
Ealing. Em 1961 entrou com uma bolsa no St John’s College, em Cambridge, como
estudante de licenciatura em História, e aí permaneceu durante toda a sua longa
carreira académica. Eleito Research Fellow em 1966, Peter Linehan concluiu o seu
doutoramento, sob a supervisão de Walter Ullmann, em 1969, com uma tese intitulada
“Reform and Reaction: The Spanish Kingdoms and the Papacy in the Thirteenth
Century”. Esta tese, da qual resultou The Spanish Church and the Papacy in the Thirteenth
Century (1971), a primeira monografia de Peter Linehan, foi distinguida pela
Universidade de Cambridge com o Thirlwell Prize e a Seeley Medal de 1970-1971. Em
1969, Peter Linehan foi eleito Fellow & Lecturer do St John’s College, e entre as várias
funções que aí desempenhou, ao longo de mais de cinquenta anos de estreita associação
institucional, intelectual e afectiva, destacam-se as de Tutor (1977-1997), Dean of
Discipline (1999-2010) e editor da história do college, publicada em 2011. Fellow da Royal
Historical Society desde 1971, membro correspondente da Real Academia de la Historia
de Madrid desde 1996 e fellow da British Academy desde 2002, Peter Linehan foi
investido como doutor honoris causa pela Universidade Autónoma de Madrid em 2018.
76 Admirado e acarinhado por sucessivas gerações de amigos, colegas e estudantes, Peter
Linehan faleceu no dia 9 de Julho de 2020, em Cambridge, aos 76 anos de idade.
Sobrevivem-no a esposa Christine (née Callaghan), os seus três filhos, Gabriel, Frances e
Sam, e os seus cinco netos, Oliver, Zachary, Max, Alba e Beatrice.
NOTAS
1. Um comentário semelhante, ouvido pela mesma altura, é relatado por Flávio Miranda: https://
faeehp.wordpress.com/2020/07/10/peter-linehan-1943-2020-e-o-legado-historiografico/
(consultado em 11 de Outubro de 2020).
2. Também Malcolm Schofield, citado na notícia necrológica publicada pelo St John’s College,
destaca a sua “legendary hospitality”: https://www.joh.cam.ac.uk/incisively-intelligent-fellow-
st-johns-dies-aged-76 (consultado em 11 de Outubro de 2020).
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3. Este e outros títulos da sua vasta obra, citados ao longo deste texto, remetem para a
bibliografia de Peter Linehan elaborada pelos autores deste artigo, disponível na secção
“Recursos” da página web do IEM (https://iem.fcsh.unl.pt/imagens/files/
BIbliografia_Peter%20Linehan.pdf). As datas remetem para o ano de edição, em função dos quais
se encontra ordenada a bibliografia.
4. LINEHAN, Peter A. - Past and Present in Medieval Spain. Aldershot: Variorum, 1992
(sinopse).
5. A aspiração inicial de Peter Linehan a estudar a ascensão do franquismo foi rapidamente
frustrada pelo contexto político a académico espanhol dos anos 60, que o desviou para a Idade
Média, mas o seu fascínio pelo século XX permaneceu.
6. E.g. LADERO QUESADA, Miguel Ángel – Medievalismo 4 (1994), pp. 335-345; Boletín de la Real
Academia de la Historia 192 (1995), pp. 103-117; v. também BAUTISTA, FranciscoHispania LXXIV
(246) (2014), pp. 269-275, p. 274.
7. É o caso da recensão elogiosa, mas não acrítica de BRANCO, Maria João Violante Lusitania
Sacra 8-9 (1996-1997), pp. 739-744.
8. LINEHAN, Peter – History and the Historians of Medieval Spain. Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 7.
9. Cf. GEARY, Patrick J. – The myth of nations: the medieval origins of Europe. Princeton:
Princeton University Press, 2002; WOOD, Ian N. – The modern origins of the early Middle
Ages. Oxford: Oxford University Press, 2013.
10. LINEHAN, Peter; VALERO, Juan Miguel – "Peter Linehan on History and Europe, una
entrevista". Pliegos de Yuste 7-9 (2008), pp. 6-8. Disponível em http://
www.pliegosdeyuste.eu/n78pliegos/pdf/n78p5.pdf (consultado em 11 de Outubro de
2020).
11. A tradução portuguesa, a cargo de André Vitória, foi publicada por uma pequena editora
entretanto desaparecida (Fio da Palavra), cuja coordenação editorial na área da história esteve a
meu cargo. Esta edição é complementada por um estudo dedicado a uma das figuras centrais do
enredo, o bispo Suero Pérez de Zamora, que fora publicado em 2003.
12. LINEHAN, Peter – Spain, 1157-1300: A Partible Inheritance. Oxford: Wiley-Blackwell, 2011, p. 87.
13. CATLOS, Brian – Bulletin of Hispanic Studies 97 (2020), pp. 887-888.
14. LINEHAN, Peter; VALERO, Juan Miguel "Peter Linehan on History and Europe, una
entrevista", p. 6.
15. LINEHAN, Peter; VALERO, Juan Miguel "Peter Linehan on History and Europe, una
entrevista", ….
16. “the author seems so enraptured and immersed in the history he is recounting, and so
unselfconsciously delighted by it, that he seems to forget his readers” (Bulletin of Hispanic Studies
97 (2020), p. 888).
17. LINEHAN, Peter; VALERO, Juan Miguel "Peter Linehan on History and Europe, una
entrevista", p. 6.
18. HENRY, James – A Small Boy and Others.
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AUTORES
ANDRÉ EVANGELISTA MARQUES
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Estudos
Medievais. 1070-312 Lisboa, Portugal. andremarques@fcsh.unl.pt. https://orcid.org/
0000-0001-8731-6355
MARIA JOÃO BRANCO
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Estudos
Medievais. 1070-312 Lisboa, Portugal. mjbranco@fcsh.unl.pt. https://orcid.org/
0000-0002-7165-5958
MÁRIO FARELO
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Estudos
Medievais. 1070-312 Lisboa, Portugal. mario.farelo@fcsh.unl.pt. http://orcid.org/
0000-0002-2905-6564
ANDRÉ VITÓRIA
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Estudos
Medievais. 1070-312 Lisboa, Portugal. andrevitoria@fcsh.unl.pt. https://orcid.org/
0000-0002-5804-5995
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Linehan a estudar a ascensão do franquismo foi rapidamente frustrada pelo contexto político a académico espanhol dos anos 60, que o desviou para a Idade Média, mas o seu fascínio pelo século XX permaneceu
  • Peter
A aspiração inicial de Peter Linehan a estudar a ascensão do franquismo foi rapidamente frustrada pelo contexto político a académico espanhol dos anos 60, que o desviou para a Idade Média, mas o seu fascínio pelo século XX permaneceu.
  • E G Ladero Quesada
  • Miguel Ángel
E.g. LADERO QUESADA, Miguel Ángel -Medievalismo 4 (1994), pp. 335-345; Boletín de la Real Academia de la Historia 192 (1995), pp. 103-117; v. também BAUTISTA, Francisco -Hispania LXXIV (246) (2014), pp. 269-275, p. 274.
foi publicada por uma pequena editora entretanto desaparecida (Fio da Palavra), cuja coordenação editorial na área da história esteve a meu cargo. Esta edição é complementada por um estudo dedicado a uma das figuras centrais do enredo, o bispo Suero Pérez de Zamora
  • De André
  • Vitória
A tradução portuguesa, a cargo de André Vitória, foi publicada por uma pequena editora entretanto desaparecida (Fio da Palavra), cuja coordenação editorial na área da história esteve a meu cargo. Esta edição é complementada por um estudo dedicado a uma das figuras centrais do enredo, o bispo Suero Pérez de Zamora, que fora publicado em 2003.
  • Brian - Catlos
CATLOS, Brian -Bulletin of Hispanic Studies 97 (2020), pp. 887-888.
the author seems so enraptured and immersed in the history he is recounting, and so unselfconsciously delighted by it, that he seems to forget his readers
"the author seems so enraptured and immersed in the history he is recounting, and so unselfconsciously delighted by it, that he seems to forget his readers" (Bulletin of Hispanic Studies 97 (2020), p. 888).