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21 | 14 julho 2021
AS ARTES ENTRE AS LETRAS MÚSICA
A vaca não dá leite
A escola pública da ditadura franquista, que
eu frequentava, era muito cinzenta, mas aos
dez anos levaram-me, na cidade de Vigo, para
o Instituto – Masculino, como correspondia à
segregação mental do poder. Ali, no ano pre-
paratório, tive dois excelentes professores
que me iluminaram outros horizontes, Emilio
Joaquín Freijeiro García nas letras e Manuel
Copena Araújo nas ciências. Este último fez
a grande diferença na minha vida, pois, de
um modo simples e estimulador, introduziu-
-me na lógica matemática fugindo das recei-
tas memorizadas e aprendi a compreender
a abstração da sua linguagem. Sem ele, nem
eu, o sabermos, descobriu-me os segredos da
música. Curiosamente, aquele professor fora
um célebre dianteiro, avançado, e máximo go-
leador do clube Celta de Vigo, com a alcunha
de Nolete, nos anos trinta e quarenta do sécu-
lo XX. Essa parte da sua lógica, a desportiva,
nunca me cativou. Alguns anos depois, soube
que militava num partido político aberrante,
como era a Falange, talvez por cálculo de so-
brevivência, pois não conheço acusações de
ele participar nas razias falangistas que assas-
sinaram impunemente milhares de pessoas,
muitas delas ainda hoje em valas comuns
desconhecidas.
Durante todo aquele ano letivo, com o meu
colega de carteira, brincava a imaginar como
seria o mundo dentro de um milhão de anos.
Aquelas ideias disparatadas mantinham as
nossas mentes em constante excitação, crian-
do imagens com todos os pormenores sicos
dos objetos. O neurocientista António Damá-
sio refere que “as imagens que compõem a
nossa mente resultam de uma atividade neu-
ral perfeitamente regimentada que transmite
os modelos ao cérebro”1, e assim aprofundava
no raciocínio lógico da fantasia. O resultado
nal desse ano foi ter 10 valores sobre 10 em
todas as disciplinas. Então decidi ser músico,
concretamente, compositor.
Já entrara para o Conservatório de Música e
a lógica da matemática preencheu de sentido
a abstração sonora. Comecei a escrever can-
ções para os amores platónicos e percebi que
as palavras só atrapalhavam as minhas fanta-
sias sonoras. Descobri que, para além das mu-
siquetas que o meu contexto social e familiar
me proporcionava, existia uma linguagem
musical mais complexa que ativava o sistema
de recompensa do meu cérebro de um modo
muito mais intenso. Na Psicologia della musica,
Daniele Schön arma que a palavra ‘música’
não representa uma simples estrutura acús-
tica, mas é uma experiência subjetiva com-
plexa, baseada num conjunto de capacidades
mentais e que precisam de diversas funções
percetivas e cognitivas2.
Com dez anos podemos transformar qual-
quer obstáculo num desao vital, porque as
ideias borbulham espontaneamente e em
quantidades inesgotáveis. Porém, a escola-
ridade vai formatando os indivíduos e limi-
tando os contextos de criatividade, pelo que
as ideias perdem o vigor e a frescura original
para se transformarem em cópias recicladas,
toleráveis e politicamente corretas. As ideias
são gratuitas, mas a cultura economicista es-
força-se em convertê-las num bem escasso
para vender a preços elevados.
Leio num jornal espanhol que “o pintor das
vacas que colonizaram as cidades europeias
não pintava os seus quadros”3. Fumiko Ne-
gishi reclamou a autoria de 221 obras assi-
nadas pelo pintor pop Antonio de Felipe e o
tribunal reconheceu que não basta ter a ideia
porque sem execução não há arte. Fumiko
trabalhou como assalariada durante dez
anos para De Felipe concretizando em obras
terminadas os rascunhos ou ideias que ele
lhe entregava. Depois, assinadas por ele, que
considerava as suas ideias acima de qualquer
realização, mercantilizava o trabalho artístico
dela. A juíza do caso entendeu que o valor de
uma obra está na sua realização e não na in-
tenção de fazê-la, pois, como reza o ditado po-
pular, de boas intenções está o inferno cheio.
António de Felipe, que se considera o pai das
vacas da Cow Parade que invadiram tantas
cidades por todo o planeta, lamenta que de
todo o leite que elas deram não lhe tenham
pago direitos pela ideia, que, segundo arma,
era sua4. Confesso, ainda que não o possa de-
monstrar, que naquele primeiro ano no Ins-
tituto Santa Irene de Vigo eu já tivera a ideia
de pôr uma vaca a fazer uma grande bosta na
porta principal, quando nos visitou Pilar Pri-
mo de Rivera, a falangista que quiseram casar
com Adolf Hitler e que proclamava, alto e feio,
que “as mulheres nunca descobrem nada;
falta-lhes o talento criador que deus reserva
para as inteligências varonis”5, mas eu não ti-
nha a vaca para materializar aquela cintilante
imaginação. É claro que as ideias são intangí-
veis e não geram direitos. Para evitar que se
apropriem das nossas ideias luminosas, o me-
lhor é realizá-las de imediato, porque sendo
brilhantes qualquer um pode dar com elas.
Com o tempo aprendi que se quisermos o lei-
te da vaca, há que ordenhá-la. Por muito que o
pós-modernismo nos tenha dito que o mundo
era uma junção de simulacros – ctum –, ele
não deixou de ser um conjunto de realidades
– factum – e não basta pensar, há que materia-
lizar aquilo que se pensa porque a vaca, de
motu proprio, não dá leite.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
O Bardo na Brêtema
1 Damásio, A. (2020). Sentir & saber.
A caminho da Consciência. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 86.
2 Schön, D., Akiva-Kaviri, L., & Vecchi, T. (2013).
Psicologia della musica. Roma: Carocci, p. 97
3 https://www.eldiario.es/cultura/artista-antonio-felipe-conde-
nado-reconocer-no-unico-autor cuadros_1_7997769.html
4 https://www.elperiodico.com/es/dominical/20150616/anto-
nio-de-felipe-ahora-pinto-con-mas-garra-que-nunca-428043
5 Soler Gallo, M. (2018). Sé mujer antes que estudiante:
El ideal de mujer universitária de la Sección Femenina
durante el primer lustro del franquismo. Em Y. Romano
Martín, S. Velázquez Garcia, & M. Bianchi, La mujer
en la historia de la universidad. Retos, compromiso y logros.
(pp. 7587). Salamanca: Aquilafuente
– Universidad de Salamanca, p. 79.
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