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31 | 27 junho 2 018
AS ARTES ENTRE AS LETRAS ANO IX
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
Desenhei no quadro uma linha vertical e ou-
tra horizontal. Perguntei aos alunos qual das
duas linhas representaria melhor a socieda-
de na qual vivem; a resposta foi unânime. A vertical
era descrita por eles como a representação do poder
de uns indivíduos sobre os outros. Quanto mais baixa
é a posição nessa linha, maior é o peso do poder, di-
ziam os mais esclarecidos. Repeti a pergunta em tur-
mas diferentes e a resposta era sempre a mesma.
O arquiteto renascentista, Leon Batista Alberti, que
construía harmonias baseando-se na música dos nú-
meros, formulou no livro IX de De Re Aedicatoria o
conceito de ‘consensus partium’ como a interdepen-
dência do todo e a parte, ou uma conspiração das par-
tes e o todo, de acordo com um número, uma ordem e
um lugar denidos, “princípio absoluto e primeiro da
natureza”1.
Esse poder vertical, justicado durante séculos pela
oposição entre o divino e o humano, subjaz nas par-
tes e no todo duma sociedade que, desde o grande re-
nascimento, se quer humanista, mas que permanece
coberta por uma densa nuvem teocêntrica que pas-
sou de focar-se nos valores do ser, para ressaltar os va-
lores do ter. Na essência do poder vertical está sem-
pre o referente masculino como valor moral inques-
tionável.
Foi preciso espicaçar a imaginação e a inteligência
dos alunos para encontrar algo, nesta sociedade, que
pudesse ser representado pela linha horizontal. Her-
bert A. Simon, em As Ciências do Articial, arma que
“a complexidade ou simplicidade de uma estrutu-
ra depende criticamente da maneira como a descre-
vemos”2 e num artigo posterior introduz o conceito
de ‘parcimónia’, que seria a relação da complexida-
de dos dados observados com a complexidade da
fórmula que os representa, explicando muito a par-
tir de pouco3. Assim como a ciência procura parcimó-
nia, não simplicidade, a linha horizontal acabou por
representar, na parcimónia da aprendizagem, o po-
der colaborativo da negociação, do respeito pelas di-
ferenças, da aceitação do outro, e onde os valores têm
como referente o feminino, numa neo-modernidade
sem dominações.
O património cultural em masculino, que nos legou
a história, não pode ser negado nem esquecido, mas
sim deve ser reinterpretado à luz do feminismo. A
perceção, como diz Pierre Boulez em Les Neurones
Enchantés, é uma experiência de aprendizagem prá-
tica e também teórica4. Se recebemos uma aprendi-
zagem baseada no poder vertical, teremos diculda-
des em interpretar as formas, as complexas subtilezas
e os benecios de um poder horizontal.
A linha vertical começou a inclinar-se entre o nal
do século XIX e o início do XX, num novo período re-
nascentista, o Modernismo, que reagiu ao individua-
lismo romântico com uma nova harmonia das pro-
porções clássicas. Na música, o opressivo poder fáli-
co da tonalidade foi desmantelado por Debussy, Stra-
vinski, Schönberg, Bartok e os seus seguidores. Sig-
mund Freud interpreta os sonhos. Albert Einstein
mede a Energia. A poesia ultrapassa a rima. Wassily
Kandinsky descobre que a beleza não precisa de gu-
ração. Antoni Gaudí constrói monumentos com colu-
nas inclinadas e formas desaantes. A mulher veste e
age, pela primeira vez, ao seu gosto e começa um s é-
culo de lutas pelos direitos de género. A vertical cur-
va-se, mas resiste a ser derribada.
Com a queda das torres gémeas de Nova Iorque, em
2001, um novo período de recuperação da harmo-
nia das proporções está reagindo contra o ‘tudo vale’
do pós-modernismo. A novidade é que agora são as
mulheres as que começam a comandar o desenvol-
vimento social. Na música erudita, as mulheres es-
tão a modernizar o repertório e, quando olham para o
passado, reinterpretam as obras sem os estereótipos
masculinos. Na ciência, na literatura, nas artes, e até
na política as mulheres começam a exercer o poder;
na Espanha já há um governo com maioria de mulhe-
res, e até o jornal El País é agora dirigido por uma mu-
lher.
O novo património cultural é o poder horizontal
construído desde o respeito pela diferencia e, ainda
que o poder vertical continue presente, o feminismo
está a esvaziá-lo de argumentos. A parcimónia, como
o artista, numa aprendizagem cidadã colaborativa,
expressará a beleza “explorando uma economia ex-
trema dos meios”5.
Que o equilíbrio e o sossego da linha horizontal orien-
tem o percurso dos alunos e o de As Artes entre As Le-
tras, na parcimónia de mais um aniversário em femi-
nino, o nono. Parabéns!
Património
em feminino
no ta
1 Alberti, L. B. (1553). L’architecture et art de bien bastir
(Vol. IX, cap. 5, f. 192). París: J. Kerver.
Obtido em 10 de junho de 2018, de http://architectura.cesr.univ-
-tours.fr/Traite/Textes/CESR_4781_9.pdf
2 Simon, H. A. (1981). As ciências do articial.
(L. M. Pereira, Trad.) Coimbra: Arménio Amado, p. 336.
3 Simon, H. (2002). Science seeks parsimony, not simplicity;
Searching for pattern in phenomena. Em A. Zellner,
H. A. Keuzenkamp, & M. McAler, Simplicity, Inference
and Modeling (pp. 3272). Cambridge University Press.
4 Boulez, P., Changeux, J.-P., & Manoury, P. (2016).
Las Neuronas Encantadas. Barcelona: Gedisa, p. 99.
5 Ibid. p. 75.