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14 feverei ro 201 8
AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 20
MÚSICA
Dionisíacos e apolíneos
Alguém pensou que eu poderia vir a ser um
diretor de orquestra e, na mesma semana em
que cheguei a Madrid pela primeira vez, leva-
ram-me a estar com um Maestro no início da
carreira, mas já reconhecido na interpreta-
ção da música de vanguarda. S ei que desilu-
di aquelas pessoas porque eu começava a ter
claro que um futuro de reprodução, de intér-
prete, ainda que fosse economicamente pro-
metedor, não despertava qualquer motiva-
ção em mim. Não queria ser um ator à procu-
ra do aplauso do mundo, queria ser eu a criar
um mundo capaz de vibrar num aplauso, ain-
da que para isso precisasse de mais do que
uma vida.
O primeiro ano em Madrid, 19701971, foi a
imersão total na vida musical da capital. Pa-
ra além das aulas e atividades do Conservató-
rio, assistia a mais de um concerto diário, por
vezes três e até quatro no mesmo dia. Abs or-
via tudo o que se programava de música eru-
dita. Os três concertos semanais da Orques-
tra Nacional de Espanha e os dois da Orques-
tra da Rádio e TV Espanhola, com os respeti-
vos ensaios, permitiram-me conhecer ao vivo
e em direto as primeiras guras mundiais da
interpretação e, sempre que possível, seguia
os concertos com as partituras. Ainda recor-
do os ensaios do Maestro Sergiu Celebidache
como aulas magistrais que me abriram múlti-
plas portas do conhecimento musical.
Para além das duas orquestras com sede no
Teatro Real, na altura a sala de concertos mais
luxuosa da Europa, havia muitos concertos
de câmara que devorava de modo insaciá-
vel. O repertório, obviamente, era maioritaria-
mente conservador mas eu estava sedento de
cultura musical e ávido por conhecer e expe-
rimentar a paisagem sonora de toda a histó-
ria da música. O romantismo era omnipresen-
te mas não faltavam os recantos de músicas
mais antigas e das do século XX. A vanguarda
tinha uma grande força e foi o que mais me ca-
tivou e marcou para o resto da vida. A ópera é
que faltava naquele Madrid tardofascista.
O meu mentor e mecenas nesse momen-
to era Monsenhor Federico Sopeña –padre e
musicólogo, catedrático de Estética e História
da Música e Secretário, depois Diretor da Real
Academia de Belas Artes de São Fernando – o
qual orientou as minhas leituras e audições
para compreender a modernidade e a van-
guarda, cujo farol, na altura, eram as propos-
tas rompedoras da programação cultural do
Instituto Alemão de Madrid. Em outubro de
1971, Sopeña foi nomeado Comissário Geral
da Música e teve um papel fundamental na re-
novação dos repertórios das orquestras e das
programações musicais. Pela primeira vez a
Orquestra Nacional programou a integral das
sinfonias de Mahler. Mais tarde, já como dire-
tor do Museu do Prado, Sopeña deu-me uma
carta de recomendação que me valeu uma
bolsa de estudos na Suíça por três anos.
A notícia da morte de Igor Stravinsky chegou-
-me quando viajava de auto-stop para a Sema-
na de Música Religiosa de Cuenca, um festival
de formalismos austeros – não se permitiam
os aplausos nos concertos – mas que sempre
prestou atenção ao presente com encomen-
das e apresentações de obras infrequentes.
No ano seguinte, 1972, pude ouvir lá a integral
da música religiosa de Stravinsky.
Frequentei o Curso de Pedagogia Musical de
Castro Urdiales (Santander) em 1971 onde des-
cobri, com diversos especialistas, os segredos
de Emile-Jacques Dalcroze, Edgar Willems,
Justine Bayard Ward, Zoltan Kodaly, Maurice
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
O Bardo na Brêtema
21 | 14 feverei ro 201 8
AS ARTES ENTRE AS LETRAS MÚSICA
Martenot ou Ireneu Segarra, e nesse mesmo
ano assisti ao Curso Manuel de Falla de Gra-
nada para estudar composição com Rodolfo
Haler, compositor espanhol exilado no Mé-
xico com quem travei uma forte amizade. No
festival paralelo, ouvi pela primeira vez o gru-
po Les Percussions de Strasbourg que me cau-
sou um grande impacto. Voltei no ano seguin-
te em que, para além de Rodolfo Haler, tam-
bém lecionava o compositor italiano Franco
Donatoni. Eram dois mundos inteiramente
diferentes mas complementares. Dali z dois
mil quilómetros em auto-stop até Siena pa-
ra assistir ao curso de composição da Acade-
mia Musicale Chigiana com Donatoni. Coinci-
dindo com o Curso de Granada, em 1972 cele-
braram-se os Encontros de Pamplona, o mais
internacional dos festivais da vanguarda, en-
quadrado no movimento Fluxus e que a re-
trospetiva do Museu Reina Soa em 2010 ape-
lidou de “n de esta del arte experimental”.
A incultura de esquerda e direita manifestou-
-se contra, mesmo com atos terroristas que
provocaram muitos feridos, mas contou com
mais de 350 artistas de todas as artes e de to-
do o mundo, destacando a presença de novas
tecnologias artísticas como computadores e
vídeos, e na música, a comparência de nomes
emblemáticos como John Cage, David Tudor,
Steve Reich, Silvano Bussotti ou Zaj. Não pu-
de participar em direto mas tive informação e
documentação em primeira mão que me ze-
ram repensar conceitos e práticas.
Em 1972, com as greves gerais na Galiza, come-
ça a transição para a pós-ditadura espanhola.
A febre pós-moderna foi aumentando e o seu
sentido desagregador provocou uma profun-
da crise de valores que contribuiu muito para
o desmoronamento do regime. Cheguei a re-
pudiar o conservatório e regressei a Vigo on-
de fundei a Juventude Musical e iniciei uma
etapa de ativista cultural. A primeira ativida-
de foi uma apresentação comentada de O so-
brevivente de Varsóvia de Schoenberg, e a se-
gunda um concerto experimental que, entre
outras obras, incluía o 4’ 33” de John Cage, on-
de o público se ensarilhou numa grande bri-
ga de epítetos entre os detratores e os defen-
sores. Uma pessoa do público perguntou se
aquela era música para ser percebida com os
ouvidos da alma.
Nos inícios de 1973 fui parar à cadeia por en-
viar uma carta pós-moderna e experimental a
uma amiga e ex-aluna. A polícia intercetou a
carta e suspeitaram que eu podia ser um pe-
rigoso terrorista a escrever em código mas,
após quatro dias entre delinquentes comuns,
soltaram-me pedindo para não lhes fazer
mais brincadeiras dessas. Passei a ir todos os
domingos tocar na missa carcerária. No mês
de outubro fui levado para a tropa, obrigató-
ria, e declarei-me objetor de consciência pelo
que fui encerrado nos calabouços junto com
os Testemunhas de Jeová. Entretanto, a saúde
da minha mãe piorou e desisti para acompa-
nhá-la no leito de morte. O resto do tempo da
tropa, passei-o na banda militar, como mestre
de gaiteiros.
Organizei em Vigo dois cursos de pedagogia
musical, onde se trabalharam modelos criati-
vos para estimular a curiosidade sonora das
crianças –num deles contava com o catedrá-
tico de percussão José María Martín Porrás,
com quem eu aprendera os segredos práticos
da polirritmia– e ainda um curso de teatro in-
fantil.
Este período vai culminar em 1976 com a cria-
ção do grupo Letrinae Musica, uma expres-
são Fluxus para sacudir a infâmia que deita-
ra no país o excrementíssimo ditador. Fiz dois
únicos concertos, na Universidade de Santia-
go de Compostela e no Auditório de Caixa Vi-
go, apresentando o movimento novo-neo-
-new-dadá Quadrado de Pi, que provocaram
um sismo nas anquilosadas estruturas inte-
lectuais. [No português informal da Galiza fa-
zer pipi – quadrado de pi – é sinónimo de fazer
chichi]. Numa das obras chave daquele con-
certo, no Salão Artesoado de Fonseca da Uni-
versidade de Santiago, pus três intérpretes, de
costas para o público, cada um com seu ba-
cio na mão, em atitude de urinar demorada
e prazerosamente. O som dos três jorros cer-
teiros e percutentes no centro do penico inun-
dava o silêncio contido da sala, que crescia à
medida que se enchiam os recipientes. Quan-
do o som já indicava que estavam próximos a
ultrapassar os limites da prudência, os três in-
térpretes fazem trejeitos de acomodar as bra-
guilhas e, virando-se para a sala, lançam com
toda a força o conteúdo dos s eus penicos pa-
ra o público. O grito, berro ou bramido unâni-
me daquela sala sobrelotada foi ensurdece-
dor, mas o que lhes caiu encima foram rebu-
çados, papelinhos, caramelos, serpentinas e
confetes. A experiência emocional foi tão bru-
tal que precisaram de alguns minutos para re-
cuperar um ritmo cardíaco aceitável.
Para concluir aquele primeiro concerto, no
obscuro total emergiu uma ama de suave
cor celeste com alguém a avivar suavemen-
te. Evocava uma assembleia noturna de bru-
xas, um aquelarre de conjuros demoníacos,
um simbolismo que, com o lento crescer da
luz, se foi transformando na típica queima-
da galega – um invento folclórico para que os
turistas consigam beber a aguardente depois
de se queimar o álcool. Reparti palhinhas e
convidei o público a assinar simbolicamente
o manifesto pipiista libando o néctar dos bo-
des expiatórios que fervilhava naquele peni-
co de sanefa azul. Ninguém esperou que o ál-
cool se evadisse e sorveram tudo num piscar
de olhos. Os últimos ainda lamberam o peni-
co. No meu catálogo mantêm-se duas obras
compostas para esse concerto, o Concerto pa-
ra dois passarinhos de água e orquestra e Tuba
mirum para tuba preparada com água e deter-
gente.
O resto de obras escritas neste período de mi-
litância pós-moderna caram na gaveta – só
foram estreadas em 2009 – e deram passo a
um prolongado e criativo silêncio reexivo. A
última atividade que organizei com a Juven-
tude Musical de Vigo foi um Encontro de Ar-
tistas Jovens e depois voltei para Madrid, ao
Conservatório.
NO TA
Excerto de Sons e silêncios duma vida
- Relatório de atividade prossional do Mestrado
em Ensino de Música
(Instituto de Ciências da Educação
- Universidade do Minho).