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Edição Especial – ANAIS I Semana de Arqueologia - Unicamp
“Arqueologia e Poder”
ISSN 2237
-
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Anais I Semana de Arqueologia. “Arqueologia e Poder”. Campinas: LAP/NEPAM. 2013.
Arqueologia Subaquática e Poder
Questões sobre a Ciência Arqueológica
Marina Fontolan1
Resumo
O objetivo deste artigo é notar como se dão as relações de poder no que tange a construção da
noção de Arqueologia Subaquática como uma ciência. A discussão será realizada por meio da
análise de imagens publicadas em obras voltadas tanto para um público em geral quanto para
um especializado na área. Elas são, respectivamente, "Beneath The Seven Seas", organizado
por George Fletcher Bass e publicado em 2005; e "Underwater Archaeology: the NAS guide
to Principles and Practices", organizado por Amanda Bowens (2009). Pensando a imagem
como um discurso e seu uso em um livro, busca-se pensar - num estudo de caso - como duas
esferas editorias constroem a ciência arqueológica.
Palavras-chave: Arqueologia Subaquática; Poder; Arqueologia da Imagem.
Quando lidamos com livros, trabalhamos com objetos permeados por relações de
poder. Afinal, não apenas temos contato com as ideias e discussões de um determinado autor,
mas com uma obra que passou por revisões tanto por parte do próprio escritor ou da editora,
além, claro, da nossa própria leitura, que é permeada por nossas interpretações e julgamentos.
Assim sendo, ao estudarmos uma determinada obra, levar em conta as relações de poder
presentes durante sua criação e usos posteriores nos faz suscitar questões sobre a
epistemologia do conhecimento.
Ao lidar com obras sobre uma ciência em específico, como é o caso da Arqueologia
Subaquática, nos envolvemos nas mesmas questões. Desta forma, o objetivo deste artigo será
tentar perceber quais são as relações de poder presentes em imagens que foram publicadas em
duas obras: "Beneath the Seven Seas: Adventures with the Institute of Nautical Archaeology",
1 Aluna de Mestrado em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com apoio da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Colaboradora do Laboratório de
Arqueologia Pública Paulo Duarte, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (LAP/NEPAM) da
UNICAMP.
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organizado por George Fletcher Bass e publicado em 2005; e "Underwater Archaeology: the
NAS guide to Principles and Practices", organizado por Amanda Bowens (2009). Ou seja,
busco entender como a ciência arqueológica é construída nestas duas obras, que são voltadas
para diferentes públicos. No entanto, já devo avisar o leitor que, como as imagens publicadas
nas obras estão protegidas por direitos autorais, de modo que não poderei divulgá-las até que
me sejam concedidas as devidas autorizações, farei análises quantitativas, de modo a não
perder a documentação.
A escolha delas deu-se, sobretudo, por trazerem uma grande quantidade de imagens,
que as tornam boas fontes para a análise do discurso imagético, além de terem sido publicadas
recentemente e serem consideradas obras de referência na área. Claro que, embora textos
importantes para a Arqueologia Subaquática, tenho consciência de que se trata de uma
pequena amostragem ante às obras escritas sobre o tema e que as conclusões a que cheguei
com as análises delas não podem ser, de forma alguma, generalizada para toda a disciplina.
Assim sendo, a análise será realizada da seguinte maneira: primeiro, farei uma
discussão sobre os pressupostos teóricos. Depois, seguirei com o estudo de caso sobre as duas
obras escolhidas, indo de uma análise geral das imagens até interpretações mais específicas
sobre fotografias tiradas dos sítios e dos objetos neles encontrados. Por fim, busco ligar todas
as análises realizadas.
Teorizando o Objeto de Estudo
Este trabalho parte de uma perspectiva pós-moderna. Ou seja, ele faz parte de uma
forma de epistemologia que se tornou forte nas ciências humanas no final da década de 1970 e
que vai na contra mão dos saberes positivos e dos modelos racionalizadores (FUNARI e SILVA,
2008: 85).
Uma das características que considero básicas do pós-modernismo é a crença cada vez
menor na objetividade do conhecimento histórico (JENKINS, 2005: 96). No entanto, crê-se
cada vez mais nas subjetividades da interpretação, da escolha da documentação a ser estudada
e, também, na fluidez das teorias. Afinal, segundo Keith Jenkins, “vivemos num mundo pós-
moderno e que essa condição afeta o que eu ou você podemos conversar sobre a história”
(JENKINS, 2005:93). Creio, então, que esta condição nos obriga a contextualizar nossos
objetos de estudo e, também, as premissas teóricas escolhidas para realizar análises.
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A questão da contextualização dos objetos de estudo atinge todas as disciplinas. Na
Arqueologia, estudiosos sobre o desenvolvimento da ciência colocam esta discussão no cerne
de suas análises. Assim, trabalhos como os de Margarita Díaz-Andreu (2007), Richard
Hingley (2000) e Michael Shanks (1996), argumentam em favor de se utilizar o contexto para
mostrar que a Arqueologia é uma ciência social e se evitar que sua história seja escrita de
maneira positivista (DÍAZ-ANDREU, 2007:2). Embora o trabalho destes pesquisadores seja
baseado, de forma majoritária, em documentos escritos, as ideias teóricas podem, facilmente,
ser utilizadas para este estudo de caso.
No caso das imagens analisadas, será levado, de forma majoritária, em consideração o
contexto de publicação delas. Não que a conjuntura de produção delas não seja importante ou
de todo descartável, pelo contrário: para análises mais aprofundadas, é de total importância
que todo o tipo de contexto possa ser levado em conta. No entanto, como o objetivo aqui é
entender como se dão as relações de poder no que tange à construção da ideia de Arqueologia
Subaquática nessas obras em específico, analisar o contexto de publicação das imagens torna-
se fundamental para entender a questão colocada em debate.
Além do aspecto contextual da imagem, temos de considerar, como já dito, a questão
da produção da imagem em si. O professor de arte Frederick N. Bohrer afirma o seguinte em
relação à produção da fotografia sobre Arqueologia:
Ao invés de capturar ou gravar completamente, o valor do fotógrafo está em filtrar,
reorganizar e melhorar fundamentalmente sobre as condições reais. [...] Minha ideia
é que apenas que a escolha das imagens pelo fotógrafo esteja relacionada à seus
interesses e preconceitos, nem que a imagem fotográfica seja tão inocente e objetiva
quanto foi afirmado. (BOHRER, 2005: 184 e 186 - tradução minha).2
Ou seja, a fotografia não é algo neutro. Ela é permeada por escolhas, conscientes ou não, por
parte do fotógrafo ou daquele que está pedindo para que a imagem seja feita. Assim como
Jonathan Bateman, penso que as imagens são produzidas e utilizadas através de "[...] ações
mediadas socialmente" (BATEMAN, 2005: 195).3 Portanto, de uma forma mais geral, a
produção e uso posterior de uma fotografia são permeados por saberes e poderes.
2 Original: "Rather than completely capturing or recording, the photograph's value is its filtering, reorganizing,
and fundamental improvement upon real conditions. [...] My point here is not merely that the photographer's
choice of images is related to his interests and prejudices, nor that photographic image is thus not as innocent or
objective as might have been claimed".
3 Original: "[...] socially mediated actions".
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Uma Análise Geral das Obras Escolhidas
Como já mencionado, analisarei as obras "Underwater Archaeology: the NAS guide to
Principles and Practices" (2009) e "Beneath the Seven Seas: Adventures with the Institute of
Nautical Archaeology" (2005). A primeira levanta problemas referentes à área - como a
discussão do que é Arqueologia Subaquática, o quê não é e quais as discussões no que confere
à legislação de proteção do patrimônio submerso -, além de descrever e exemplificar técnicas
de uso em campo e no trabalho após a conclusão de uma escavação. Ou seja, de uma forma
geral, o "Underwater Archaeology: the NAS guide to Principles and Practices" (2009) pode
ser visto como um manual introdutório sobre Arqueologia Subaquática, voltado para os
profissionais que atuam na área.
A obra "Beneath the Seven Seas: Adventures with the Institute of Nautical
Archaeology" (2005), no entanto, foi escrita com o objetivo de divulgar os trabalhos de
campo realizados pelo Institute of Nautical Archaeology (INA), um instituto criado no início
da década de 1970 pelo arqueólogo George Fletcher Bass. Neste, há a apresentação dos sítios
escavados pelo INA, no qual cada comentário é escrito pelo diretor da escavação. Assim, cada
capítulo do livro irá contar, normalmente, com uma descrição de como o sítio foi encontrado,
do período da escavação, de alguns achados e, também, da vida no sítio durante os trabalhos
de escavação. Ou seja, podemos ler esta fonte como uma obra de divulgação da disciplina.
As imagens, como discurso, são responsáveis por transmitirem ideias. No entanto, é de
grande importância pensar a relação delas com o texto. O uso das imagens nestas fontes pode
nos suscitar diversas leituras. No caso do "Underwater Archaeology: the NAS guide to
Principles and Practices", notamos que as imagens são referidas no próprio corpo do texto e
são colocadas como exemplos de aplicação de certas técnicas descritas. No entanto, na obra
"Beneath the Seven Seas: Adventures with the Institute of Nautical Archaeology" (2005), o
uso delas é diferente. O texto não faz menções diretas às imagens publicadas, embora
relacionem-se com ele. Assim sendo, numa primeira leitura que aqui fazemos, podemos dizer
que as imagens operam de modo mais ilustrativo.
Para que a leitura deste corpus seja mais apurada, faz-se necessário analisar o conjunto
de imagens que cada publicação nos oferece. Assim, ele foi divido em quatro categorias:
sítios, objetos, pessoas e outros. Elas englobam as seguintes temáticas:
- Sítios: imagens que apresentam sítios arqueológicos, sem que haja presença de
pessoas.
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- Objetos: fotografias de cultura material encontrada e escavada de sítios submersos.
- Pessoas: profissionais da Arqueologia, realizando diversos tipos de trabalhos, tanto
in-situ quanto em treinamentos.
- Outros: mapas, fotografias antigas, pinturas, reconstruções, figuras esquemáticas,
imagens de sonar.
É importante notar que essa categorização não é dada, mas construída de acordo com
os parâmetros que serão aprofundados durante a análise. Serão eles: a questão dos objetos e
dos sítios e como as imagens e seus usos estão permeadas de saberes e poderes que nos
ajudam a construir a ideia do que é a Arqueologia Subaquática.
Os gráficos gerados pela contagem das imagens ficaram assim:
Sítios; 8
Pessoas; 45
Objetos; 16
Outros; 115
Underwater Archaeology: the NAS guide
to Principles and Practices
Sítios
65
Pessoas
109
Objetos
136
Outros
121
Beneath the Seven Seas: Adventures with
the Institute of Nautical Archaeology
O total de imagens contadas na primeira obra foi de 183, enquanto, na segunda, de
430. Como se pode notar a partir da análise dos gráficos, a quantidade de imagens publicadas
é de uma diferença bastante considerável. Ora, uma obra de divulgação científica, contendo a
descrição de diversos sítios já escavados, publicando uma grande quantidade de imagens por
página - uma média de duas por folha- (cf., por exemplo, Bass, 2005: 234-235), pode nos
remeter à ideia de que estas imagens não são apenas ilustrações, como uma primeira leitura
poderia nos sugerir. Elas possuem um propósito didático: o de apresentar a prática da
Arqueologia Subaquática para aqueles que não praticam Arqueologia ou mergulho.
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A questão de haver menos imagens numa obra dedicada aos profissionais da
Arqueologia pode estar ligada não apenas a uma questão de baixar custos de publicação. A
meu ver, o menor uso das imagens pode estar vinculado à já inserção do leitor no mundo da
Arqueologia, de modo que não seja necessária uma apresentação formal do leitor às bases da
disciplina, muito menos criar um imaginário do que seja a prática arqueológica. O
conhecimento específico acaba sendo dado via texto.
Objetos Encontrados em Sítios: Possíveis Leituras
Quando lidamos com as imagens dos objetos encontrados, temos uma construção bem
peculiar. Para fazer a análise destas imagens, separei o conjunto em duas categorias
diferentes: a de Objetos de Uso Comum e Objetos Raros. Cada uma abarca o seguinte:
- Objetos de Uso Comum: fotografias de objetos que seriam utilizados no cotidiano por
um grande número de pessoas, como cerâmicas, ferramentas e cestaria.
- Objetos Raros: fotografias de objetos cujo uso é considerado mais restrito, como joias,
porcelanas e estatuária.
A quantificação das imagens sob estas categorias gerou os seguintes gráficos:
61
75
0
10
20
30
40
50
60
70
80
Objetos
Beneath the Seven Seas:
Adventures with the
Institute of Nautical
Archaeology
Uso
Comum
Raros
11
5
0
2
4
6
8
10
12
Objetos
Underwater
Archaeology: the NAS
guide to Principles and
Practices
Uso
Comum
Raros
Como podemos analisar a partir dos gráficos apresentados, as obras analisadas acabam
valorizando diferentes categorias de objetos. No caso da obra "Beneath the Seven Seas:
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Adventures with the Institute of Nautical Archaeology" (2005), valorizam-se objetos raros,
encontrados nos sítios. No entanto, o inverso ocorre no caso do "Underwater Archaeology:
the NAS guide to Principles and Practices" (2009), no qual se valorizam peças que seriam de
uso mais cotidiano.
Como podemos explicar essas diferenças? Analisar as relações de poder aqui pode ser
uma possível interpretação. A Arqueologia de uma forma geral, ainda está ligada a imagens
como a do personagem Indiana Jones (FUNARI, 2006: 9), protagonista de uma série de filmes
e videogames, que mostram um arqueólogo desbravador, buscando tesouros ao redor do
mundo e vivendo diversas aventuras. Além deste aspecto, para Gilson Rambelli, a
Arqueologia Subaquática ainda possui mais um problema em específico:
"Presa a uma tradição "romântica" de aventura submarina, (...) [o que] acabou por
criar uma imagem fantasiosa, e um tanto ultrapassada, de uma atividade exótica,
amadora e aventureira, sinônimo de exploração de tesouros de naufrágios - imagem
que ainda persiste na mídia." (Rambelli, 2002: 14)
A questão da valorização de objetos mais raros por parte da publicação voltada ao grande
público pode estar ligada a esses imaginários que o público tem e procura sobre o tema. Ou
seja, o próprio profissional do ramo nem sempre consegue construir a disciplina da forma
como ele pretende, ele pode estar sujeito a pressões editoriais, por exemplo, que buscam
vender obras.
No entanto, esta é uma primeira leitura suscitada pela análise quantitativa dos dados.
Quando lidamos com o contexto da publicação da obra podemos observar que estas imagens
são publicadas em conjunto com imagens do sítio sendo escavado. Ou seja, embora haja uma
valorização maior de objetos raros, a ideia de que eles não são prêmios de uma aventura
submersa é reforçada pela publicação de fotografias dos sítios. Em diversos casos (cf., por
exemplo, BASS, 2005: 42-43), os objetos escavados estão devidamente etiquetados e um
profissional continua os trabalhos em outra região, escavando sempre com cuidado.
No caso da obra "Underwater Archaeology: the NAS guide to Principles and
Practices" (2009), o discurso trazido pelas imagens, valorizando objetos de uso comum, leva-
nos a uma interpretação de que elas formam uma ideia que está bem mais próxima daquilo
que poderíamos esperar de uma obra sobre Arqueologia Subaquática. Afinal, um profissional
de Arqueologia não vai a campo apenas para buscar objetos que tenham um alto valor
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comercial, ele valoriza todo o tipo de objeto que for encontrado, já que o objetivo é o de
estudar um sítio para entender a sociedade por trás da criação dele.
Sítios Fotografados, Arqueologias Construídas
Saindo dos objetos escavados e passando a analisar as fotografias tiradas dos sítios,
notamos, mais uma vez, uma rica documentação. Ela foi divida em três categorias: Marcação,
Pessoas e Sem Marcação. Cada categoria abrange:
- Marcação: fotografia de sítios com objetos que remetem, no imaginário comum, a uma
escavação arqueológica, como réguas e quadrículas.
- Pessoas: fotografias que mostram pessoas trabalhando ou visitando o local.
- Sem Marcação: Fotografias que mostram apenas o local já ou a ser escavado, sem
nenhum outro tipo de marcação.
Nestas categorias, foram obtidos os seguintes gráficos:
33
20
24
0
5
10
15
20
25
30
35
Sítios
Beneath the Seven Seas:
Adventures with the
Institute of Nautical
Archaeology
Marcação
Pessoas
Sem
Marcação
18
5
2
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
Sítios
Underwater Archaeology:
the NAS guide to Principles
and Practices
Marcação
Pessoas
Sem
Marcação
Como podemos notar a partir dos gráficos, os sítios fotografados com alguma marca
que remetem aos profissionais da área aparecem de forma majoritária entre as fotografias (cf.,
por exemplo, BOWENS, 2009: figura 8.2; e BASS, 2005: 51). Por que verificamos tal situação?
Ora, um dos maiores debates entre os praticantes da Arqueologia Subaquática é sobre a
proteção do patrimônio submerso, que normalmente é alvo de saqueadores profissionais,
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conhecido por caçadores de tesouros, pessoas que destroem sítios em busca de itens de alto
valor comercial para que sejam vendidos em mercados de antiguidade (cf. FONTOLAN, 2009;
RAMBELLI, 2002). Ou seja, no caso da grande quantidade de imagens que levam estas marcas,
podemos fazer a leitura de que o sítio divulgado na obra está sendo cientificamente escavado e
não sendo apenas depredado em busca de tesouros submersos.
Ora, essa discussão pode, ainda, ser passada pelos sítios que possuem pessoas. Quando
aparecem indivíduos associados ao sítio, eles estão, normalmente, realizando trabalhos de
escavação ou ocupadas com a documentação do trabalho que está sendo realizado (Cf., por
exemplo, BOWENS, 2009: figura 15.3; e BASS, 2005: 37). Ou seja, mais uma vez reforçam a
ideia de que o trabalho de Arqueologia em sítios submersos são realizados de forma a buscar
conhecimentos e não tesouros vendáveis.
Por fim, temos mais um aspecto para pensar: por que não existe uma proporção entre a
quantidade de fotografias sem marcação alguma nas duas obras? Ora, quando paramos para
pensar no assunto, uma leitura possível para tal seria o debate em torno da Arqueologia
Subaquática e da caça ao tesouro. Em uma obra dedicada ao público especializado, a
necessidade de justificar e demonstrar que um sítio fora escavado de forma científica seria
maior do que em publicações que tem como público pessoas nem sempre ligadas à área.
Considerações Finais
Da maneira como as leituras dos gráficos foram apresentadas, a construção da
Arqueologia Subaquática aparece de forma pouco problematizada. Por um lado, a obra
voltada ao grande público apresenta a disciplina em todo o seu esplendor: belos sítios, pessoas
bonitas, vários objetos encontrados e histórias divertidas sobre a vida no campo. Por outro,
temos a secura do texto técnico, cheio de imagens para ilustrar os trabalhos meticulosos da
Arqueologia.
No entanto, quando nos deparamos com a obra "A Ordem do Discurso" do filósofo
Michel Foucault (2011), as perspectivas de análise podem mudar. Afinal, quando o autor fala
sobre acontecimento, ele afirma
[...] se é verdade que estas séries discursivas e descontínuas têm, cada uma, entre
certos limites, sua regularidade, sem dúvida não é menos possível estabelecer entre
os elementos que as constituem nexos de causalidade mecânica ou de necessidade
ideal. É preciso aceitar introduzir a casualidade como categoria na produção dos
acontecimentos (FOUCAULT, 2011: 59)
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Será que os tipos de leitura que foram aqui suscitados não estão ligados à busca por uma
causalidade mecânica ou por uma necessidade ideal? Ou seja, notar a maneira como as obras
publicam imagens de forma a criar um discurso sobre a prática de uma ciência, opondo-a
apenas a ideia da caça ao tesouro e de pressões editoriais, não seria uma forma de construir
um discurso sobre a Arqueologia Subaquática de uma forma idealizada?
Ambas as obras foram produzidas e publicadas por instituições de grande prestígio na
área da Arqueologia Subaquática. No caso da obra escrita por Bowens (2009), ela foi
publicada em nome da Nautical Archaeology Society (NAS), uma organização britânica não-
governamental que visa o treinamento e a melhora de técnicas de escavação.4 A obra de Bass
(2005) foi publicada pelo Institute of Nautical Archaeology (INA), instituto americano
responsável por diversas escavações pelo mundo.5 Neste contexto, as relações de poder que
haviam sido dadas podem ser revisitadas, de forma mais complexa e interessante: ao se
utilizar de fotografias como exemplo de aplicação de técnicas (BOWENS, 2009), o uso de
fotografias de sítios sem marcações está relacionada a mostrar como o sítio aparece para o
pesquisador. Afinal, quadrículas, réguas e pincéis são itens importantes numa escavação, mas
adicionados ao local pelo trabalho do arqueólogo. No caso da obra de divulgação (BASS,
2005) a apropriação de uma maior quantidade de imagens de objetos raros pode estar ligada a
uma comemoração: como aqueles objetos foram escavados por arqueólogos e não caçadores
de tesouros. Outro aspecto importante em relação a esta discussão é a questão de colocar a
Arqueologia Subaquática como a uma prática correta, já que a obra mostra que, hoje, os
objetos estão disponíveis para o público em geral e não numa coleção particular.
Ou seja, levar em conta apenas o aspecto da pressão editorial e da necessidade de se
criar uma Arqueologia de aventuras para um público geral e uma técnica para o especializado,
faz com que as análises percam a pluralidade de discursos e poderes que envolvem uma obra.
Assim, o quê podemos pensar no sentido de escolha das imagens neste contexto está
relacionado à pretensão de se criar verdades sobre o como se deve proceder em relação a um
sítio. Afinal, como nos lembra Foucault, "[...] creio que esta vontade de verdade assim
apoiada sobre um suporte institucional tende a exercer sobre outros discursos [...] uma espécie
de pressão e como que um poder de coerção" (FOUCAULT, 2011: 18). A criação de um
discurso sobre como proceder de forma científica em relação a um sítio arqueológico e,
depois, sobre como divulgá-lo podem gerar a coerção de outras possibilidades discursivas.
4 http://www.nasportsmouth.org.uk/
5 http://inadiscover.com/
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Entre elas, creio que um deles seria a questão do erro em Arqueologia. Afinal, o
arqueólogo Nick Shepherd nota que
[...] o quê nós encontramos em relatórios de campo são fotos estilizadas de artefatos
individuais (estrategicamente iluminado e colocados sobre fundos neutros), e fotos
de depósitos arqueológicos compostas cuidadosamente (escovados, limpos, em
quadrícula e etiquetados). Isto forma uma classe de imaginário no qual colegas de
trabalho e assistentes são deixados de fora, junto com estranhos equipamentos,
seções colapsadas e artefatos deslocados, de fato, qualquer sinal de produção ou
falha. (SHEPHERD, 2003: 350 - tradução minha)6
Ou seja, entre as mais diversas relações de poder que podemos encontrar quando estudamos
uma obra sobre Arqueologia, creio que a construção da ciência por meio das imagens
publicadas podem nos dizer muito. De que maneira a Arqueologia Subaquática está sendo
construída? Sempre foi assim ou é um discurso que se alterou ao longo do tempo? E, tão
importante quanto, que tipo de Arqueologia Subaquática queremos construir daqui em diante?
Uma disciplina certinha, com propósitos bem definidos? Ou uma que consegue se utilizar de
imaginários populares para se estruturar? Qual o papel do público leigo na construção dela?
Creio que estas questões foram suscitadas por ser este um estudo de caso, mas acredito que
sejam questões que devem ser pesquisadas e respondidas em qualquer área da Arqueologia.
Afinal, a ciência não é dada, é construída, algo que, em minha opinião, gera a necessidade de
se pensar de quais maneiras isso está sendo realizado.
Agradecimentos
Gostaria, primeiro, de agradecer ao meu orientador Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu
Funari, por todo o apoio que me foi dado desde a graduação até hoje. Também gostaria de
agradecer toda a ajuda dos Profs. Drs. Aline Vieira de Carvalho e Gilson Rambelli. Também
agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela
concessão da bolsa de mestrado e à equipe do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo
Duarte, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (LAP/NEPAM) da UNICAMP por
todo o apoio.
6 Original: "[...] what we find in site reports are stylised shots of individual artefacts (strategically lit and
arranged against neutral backgrounds), and carefully composed shots of archaeological deposits (brushed, tidied,
squared-away and labelled). These form a class of imagery from which coworkers and assistants are edited out,
along with extraneous items of equipment, signs of camp life, collapsed sections and misplaced artefacts, in fact,
any signs of production or failure".
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Bibliografia
Fontes:
BASS, George Fletcher (Editor). Beneath the Seven Seas: Adventures with the Institute of
Nautical Archaeology. London: Thames & Hudson, 2005.
BOWENS, Amanda (Editor). Underwater Archaeology: the NAS guide to principles and
practice. Oxford: Blackwell Publishing, 2009, 2nd edition.
Historiografia:
BOHRER, Frederick N. "Photography and Archaeology: The Image as Object". In: MOSER,
Stephanie; SMILES, Sam. Envisioning The Past: Archaeology and the Image. Oxford:
Blackwell, 2005. Pp. 180-191
BATEMAN, Jonathan. "Wearing Juninho's Shirt: Record and Negociation in Excavation
Photographs". In: MOSER, Stephanie; SMILES, Sam. Envisioning The Past:
Archaeology and the Image. Oxford: Blackwell, 2005. Pp. 192-203.
DÍAZ-ANDREU, Margarita. A World History of Nineteenth-Century Archaeology:
Nationalism, Colonialism, and the Past. Oxford: Oxford University Press, 2007.
HINGLEY, Richard. Roman Officers and English Gentlemen: The imperial origins of roman
archaeology. Londres: Routledge, 2000.
FONTOLAN, Marina. "Arqueologia Subaquática, Caça ao Tesouro e publicações: Um Estudo
de Caso do Journal of Field Archaeology". Publicado na revista História E-História do
dia 28 de Julho de 2009, disponível no site:
http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=215, acessado em 6 de
Junho de 2011.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio,
São Paulo: Edições Loyola, 2011, 21ª edição.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2ª edição, 2006.
________________________; SILVA, Glaydson José da. Teoria da História. São Paulo:
Brasiliense, 2008.
JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2005.
RAMBELLI, Gilson. Arqueologia Até Debaixo D’água. São Paulo; Maranta, 2002.
SHANKS, Michael. Classical Archaeology of Greece: Experiences of the discipline.
Londres: Routledge, 1996.
SHEPHERD, Nick. "`When the Hand that Holds the Trowel is Black...': Disciplinary Practices
of Self-Representation and the Issue of `Native' Labour in Archaeology". Journal of
Social Archaeology, nº3, 2003. Pp. 334-352. Disponível no site:
http://jsa.sagepub.com/content/3/3/334, acessado em 9 de Março de 2013.