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19 | 16 junho 2021
AS ARTES ENTRE AS LETRAS MÚSICA
Axiomas enigmáticos
A brêtema, esse nevoeiro que vem do mar,
nem sempre nos oculta o que está para além,
porque além de nós há outros sentires que a
névoa molda, amolda, adequa e acomoda em
silenciosas saudades.
Encontrar padrões é a essência da matemáti-
ca, assim como a da música. Os matemáticos
e os músicos dedicam-se a procurar modelos,
mas a matemática, tal como a música, não é
perfeita e, por isso, uma e outra são ciência e
não crença. Em 1931 – quatro anos após ser di-
vulgado o Princípio de Incerteza por Heisen-
berg – Kurt Gödel provou, com os Teoremas
da Incompletude1, as limitações intrínsecas
dos sistemas axiomáticos, exceto os mais ba-
nais, e mostrou as ssuras da lógica matemá-
tica, acabando, assim, com a proposta de Da-
vid Hilbert para demonstrar que a aritmética
era consistente e sem contradições internas,
ou seja, que qualquer axioma ou declaração
verdadeira sobre as matemáticas sempre te-
ria uma prova, ainda que fosse muito dicil
de encontrar, como aconteceu com o último
teorema de Fermat, que precisou de 350 anos
para ser provado.
Gödel permitiu que as matemáticas falassem
de si mesmas, como um sistema autorreferen-
cial, e orientou a sua tese de doutoramento
a demonstrar que há declarações verdadei-
ras que nenhum sistema matemático pode
demonstrar. Provou aquilo que na música,
os compositores eruditos, fazem, desde há
séculos, com uma série de regras que permi-
tem deduzir utilizações lógicas e consistentes,
conformando os axiomas das obras mas sen-
do conscientes de que nem todas as proposi-
ções de uma obra de arte podem ser demons-
tradas. Entre a verdade e a sua prova há uma
fenda. A genialidade do compositor está, pre-
cisamente, em criar obras consistentes, sem
contradições, mas razoavelmente imprevisí-
veis, e isso só se consegue com axiomas que
não podem ser provados. Um famoso exem-
plo é o acorde do Tristão e Isolda de Wagner.
É um axioma que gera grandes controvérsias
analíticas. É consistente e coerente no discur-
so mas ninguém o consegue provar de modo
irrefutável dentro do sistema axiomático da
música.
Os musicólogos, sendo de letras, têm tendên-
cia a usar linguagens hermenêuticas para
falar das verdades que não se podem provar,
numa espécie de mística sobrenatural, mas
a música, por ser a expressão mais formosa
da ciência matemática, também é abstrata
e autorreferencial, e só no seu próprio siste-
ma é que se pode descrever com precisão.
No século XIX, quando nas ceu a musico-
logia europeia, proliferaram os intentos de
demonstrar que todas as músicas contavam
uma história literária, e se a partitura não ti-
vesse texto ou programa explicativo, inventa-
vam um para que aquela burguesia triunfante
acreditasse que também possuía os segredos
da arte sonora. Era uma interpretação que
menorizava o próprio sistema musical e que
teve alguns detratores notáveis como o críti-
co austríaco Eduard Hanslick, que enfrentou
com coragem “aquela apodrecida e stética do
sentimento” em favor do conteúdo musical2.
Mas a incompletude não atinge só as ciências
matemáticas, e portanto a música erudita,
mas também as outras artes e mesmo a litera-
tura, onde os axiomas que não podem ser pro-
vados estimulam o imaginário coletivo e nos
elevam por cima da prosaica realidade.
Na cultura que se estende pelo território do
antigo reino suevo, a incompletude da vida
manifesta-se na integração natural da presen-
ça da morte num contínuo vital, em harmonia
de existências paralelas a socorrer-se mutua-
mente. “A brêtema veio do cemitério”, “o ne-
voeiro era o alento da morte”, “a festa no adro
é dos vivos e dos mortos”3 escreve Iolanda Al-
drei em Entrecontar, onde evoca esse mundo
de cá e de lá sem qualquer contradição nem
recurso a folclorismos, provando que a essên-
cia de uma cultura não reside na expressão
dos seus populares mas na capacidade de re-
criar o seu imaginário.
Outro exemplo, radicalmente diferente, é
seique de Susana Sanches Arins, que trata a
repressão da ditadura franquista, com o seu
interminável regueiro de corpos sem vida, e
com os próprios assassinos a apagar as pro-
vas. Refere que “os fundos da falange estão
higienizados, depurados, tosquiados, purga-
dos, mundos e limpos. quem não quis gu-
rar neles teve tempo de apagar as pegadas, o
nome, as fotograas, o endereço e o trabalho.
o tio manuel deveu de ser desses”4. A escrita,
consistente, utiliza só letras minúsculas, tal-
vez porque uma história de barbárie tão cruel
só pode ser contada desde a perspectiva mi-
norada das vítimas, e essa transgressão das
regras ortográcas gera um novo axioma que
não pode ser provado no seu próprio sistema,
mas potencia o imaginário antifascista.
Theodor W. Adorno diz que “as obras de arte
que se apresentam sem resíduo à reexão e
ao pensamento não são obras de arte”5 por-
tanto não basta encontrar padrões, há que
preenchê-los de axiomas enigmáticos pois
“toda a obra autêntica propõe a solução do
seu enigma insolúvel”6 onde se acomodam as
silenciosas saudades.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
O Bardo na Brêtema
NO TA
1 Gödel, K. (1986). Collected Works,
Volume I, Publications 1929-1936. New York:
Oxford University Press, pp. 144195
2 Hanslick, E. (2002). Do Belo Musical.
Lisboa: Edições 70, p. 11.
3 Aldrei, I. (2020). Entrecontar.
Santiago (Galiza): Através Editora, pp.14, 28.
4 Sanches-Arins, S. (2019). seique.
Santiago (Galiza): Através Editora, p. 157.
5 Adorno, T.W. (2008). Teoria estética.
Lisboa: Edições 70, p. 188.
6 Ibid. p. 197.