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BRAZILIAN KEYNESIAN REVIEW, 6(2), p.313-327, 2nd Semester/2020
CURRENT ECONOMIC ISSUES – BKR
Desigualdade de renda em tempos de pandemia: uma análise
da decomposição do ‹ndice de Gini a partir da PNAD Covid19
Income inequality in pandemic times: an analysis of the decomposition
of the Gini Index from PNAD COVID19
Cassiano José Bezerra Marques Trovão
*
Fabrício Pitombo Leite
†
Resumo
Esse artigo tem por objetivos: 1) avaliar os primeiros impactos da pandemia sobre a
desigualdade de renda no Brasil a partir da PNAD COVID19 do IBGE; 2) apresentar
as contribuições das distintas fontes de renda para a composição do ‹ndice de Gini,
evidenciando seu caráter de progressividade ou regressividade para o indicador; 3)
quantificar o impacto do auxílio emergencial para a evolução da desigualdade de
renda nesse período; 4) mensurar, a partir de cinco cenários, o impacto de uma
possível alteração nos valores do auxílio emergencial, pressupondo sua continuidade
em um futuro próximo ou sua extinção completa. Os resultados apontam que as
proteções sociais, permanente e emergencial, mostraram-se fundamentais para a
queda da desigualdade. Mais que isso, sua extinção ou a redução dos valores base,
por elas definidos, provocarão um aumento da concentração de renda.
Palavras-chave
: Pandemia; Desigualdade de renda; PNAD COVID19; Brasil.
Classificação JEL
: D31; E64.
Abstract
This article aims to: 1) assess the first impacts of the pandemic on income inequality
in Brazil from the PNAD COVID19 of IBGE; 2) present the contributions of the
different sources of income to the composition of the Gini Index; showing its
progressive or regressive character; 3) quantify the impact of emergency aid for the
evolution of income inequality in this period; 4) measure, from five scenarios, the
impact of a possible change in the values of the emergency aid, assuming its
continuity in the near future or its complete extinction. The results show that social
protection, permanent and emergency, proved to be fundamental for the reduction
of inequality. More than that, its extinction or the reduction of the base values, will
cause an increase in the concentration of income.
Keywords
: Pandemic; Income inequality; PNAD COVID19; Brazil.
JEL Classification
: D31; E6
*
Professor do Departamento de Economia e do PPECO e pesquisador do Grupo de Pesquisa em
Economia Política do Desenvolvimento (GEPD) e do Núcleo de Análise Econômica Multissetorial,
Estratégica e Conjuntural - NEMEC da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
c_trovao@yahoo.com.br.
†
Bacharel (UFBA, 2005), Mestre (UNICAMP, 2008) e Doutor (UNICAMP, 2012) em Ciências
Econômicas, atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
fabriciopleite@ufrnet.br
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BRAZILIAN KEYNESIAN REVIEW, 6(2), p.313-327, 2nd Semester/2020
1.
Introdução
A pandemia provocada pelo Sars-Cov-2, um tipo de coronavírus de elevado
grau de contágio e sem remédio ou vacina conhecidos, implicou a eclosão de uma
severa crise que se inicia no âmbito sanitário, levando à saturação dos sistemas
públicos de saúde, e que tem seu escopo ampliado em direção a outras dimensões,
transformando-se em uma crise econômica e social. A redução da atividade
econômica decorrente das necessárias medidas de isolamento social provocou um
expressivo choque negativo de oferta que logo se transfigurou para um choque de
demanda, provocado pela redução dos investimentos e, principalmente, pelo
consumo das famílias, que viram sua renda reduzir abruptamente, após a perda de
milhões de postos de trabalho
1
.
A resposta dada por diversos governos ao redor de todo o mundo foi no
sentido de proteger a classe trabalhadora e a renda da população mais vulnerável
2
.
No Brasil, após elevada pressão popular e disputa política no Congresso Nacional, à
revelia da equipe econômica que permaneceu buscando seguir a cartilha da
austeridade fiscal
3
, conquistou-se por meio da MP no 937
4
um auxílio emergencial
monetário, com recursos do Tesouro Nacional, no valor de R$600,00, sendo
R$1.200,00 para “a mulher provedora de família monoparental”, destinado a atender
um público-alvo composto por: trabalhadores informais, microempreendedores
individuais, desempregados e beneficiários do Programa Bolsa Família.
Uma das questões que se apresentam, nesse contexto, diz respeito aos efeitos
dessa crise sobre a desigualdade. Apesar de se reconhecer que não se trata
simplesmente de uma desigualdade, mas de múltiplas dimensões desse fenômeno e,
portanto, de desigualdades, a pandemia tem tornado explícita a elevada desigualdade
de renda, marca histórica da sociedade brasileira. Assim, defende-se que, para além
dos desafios colocados por essa pandemia do ponto de vista da saúde da população,
a crise do coronavírus afetou, também, a renda da classe trabalhadora bem como sua
1
Ver IMF (2020).
2
Ver Seção 1.3 “
An unprecedented policy response by countries
” em OECD (2020).
3
Além de propor um valor de apenas R$200,00 para a população mais vulnerável do Brasil, o governo
insistiu, inicialmente, na continuidade das reformas e do ajuste das contas públicas enquanto melhor
resposta para a crise da COVID19. Ver FSP (2020a e 2020b).
4
A Medida Provisória no 937, de 2 de abril de 2020, destinava R$ 98,2 bilhões para o pagamento de
três parcelas ao que se estimava ser um público-alvo de aproximadamente 51,4 milhões de
beneficiários. Posteriormente, percebeu-se que a grande demanda pelo auxílio tornaria os recursos
insuficientes e, então, lançou-se a Medida Provisória no 956, de 24 de abril de 2020, que destinou
mais R$ 25,72 bilhões. A Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020 regulamentou essas medidas, definindo
o público-alvo. Ver Brasil (2020a, 2020b, 2020c).!
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concentração, impactando diretamente sua capacidade de acesso a bens e serviços
de primeira necessidade e sua própria condição de vida.
Nesse sentido, os objetivos desse artigo são: 1) fazer uma avaliação dos
primeiros impactos da pandemia sobre a desigualdade de renda no Brasil entre maio
e julho de 2020, a partir dos dados divulgados pela nova Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios COVID19 (PNAD COVID19) do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE); 2) apresentar as contribuições das distintas fontes de
renda para a composição do ‹ndice de Gini, evidenciando seu caráter de
progressividade ou regressividade para o indicador; 3) quantificar o impacto do
auxílio emergencial para a evolução da desigualdade de renda no país nesse período;
4) mensurar, a partir de cinco hipóteses, o impacto de uma possível alteração nos
valores do auxílio emergencial, pressupondo sua continuidade em um futuro
próximo ou sua extinção completa.
O artigo é composto por mais três seções, além dessa breve introdução. A
primeira apresenta as definições metodológicas a respeito da decomposição do
‹ndice de Gini e dos cenários e hipóteses que poderiam afetar o valor do auxílio
emergencial e, por consequência, a desigualdade de renda em um futuro próximo. A
segunda traz a discussão dos principais resultados encontrados para os meses de
maio a julho de 2020 para o Brasil. Já, na última seção, procura-se apresentar algumas
considerações a respeito do estudo, apontando para os desafios a serem enfrentados
em um cenário pós-pandemia.
2.
Metodologia e base de dados
Com microdados mensais, publicados a partir do mês de maio, o IBGE (2020a
e 2020b) disponibilizou sua “primeira pesquisa divulgada com o selo de Estatística
Experimental”. No entanto, deve-se registrar uma ressalva para os resultados aqui
apresentados: “A PNAD COVID19 está sendo apresentada como Estatística
Experimental pois ainda está sob avaliação, ou seja, ainda não atingiu um grau
completo de maturidade em termos de harmonização, cobertura ou metodologia”
(IBGE, 2020b, p. 4).
Feito esse alerta e, dado o objetivo de se calcular a desigualdade para a renda
domiciliar
per capita
(RDPC) de todas as fontes, a comparação entre os diferentes
meses da própria PNAD COVID19 exigiu, inicialmente, uma agregação por
domicílio e, posteriormente, a divisão pelo número de moradores das seguintes
fontes de rendimento: i) Todos os trabalhos em dinheiro (C011A12); ii)
Aposentadorias e pensões (D0013); iii) Doação, pensão alimentícia ou mesada
(D0023); iv) Bolsa Família (D0033); v) BPC-LOAS (D0043); vi) Auxílio Emergencial
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(D0053); vii) Seguro-desemprego (D0063); e viii) Aluguel, arrendamento, aplicações
financeiras etc. (D0073). Considerou-se, portanto, a soma dessas oito parcelas como
a RDPC de todas as fontes. Nesse procedimento de agregação por domicílios, os
rendimentos de todos os trabalhos (i) dos diferentes moradores foram somados,
enquanto os rendimentos de outras fontes (ii a viii) aparecem como uma informação
disponibilizada pelo próprio IBGE na forma de somatório dos valores recebidos por
todos os moradores.
O cálculo do índice de Gini para essa RDPC e sua posterior decomposição
pelas oito parcelas de rendimento seguiu a metodologia apresentada por Hoffmann
(2009). Para tal, foram calculadas as razões de concentração para cada uma das
parcelas, que consistem, basicamente, em medidas similares ao índice de Gini, porém
computadas para cada parcela, preservando-se a ordenação original definida para a
RDPC de todas as fontes. Essas razões de concentração, ponderadas por suas
respectivas participações na renda, resultam, por definição, no índice de Gini total
para a RDPC, ou seja, pode-se verificar que o índice de Gini é uma média ponderada
das oito razões de concentração calculadas.
Como medida de progressividade das parcelas, ainda segundo Hoffmann
(2009), toma-se a diferença entre o índice de Gini e a razão de concentração de cada
parcela, o que resulta em resultados positivos para parcelas progressivas (tão mais
elevados quão menores ou mais negativas sejam as razões de concentração) e
negativos para parcelas regressivas, caso em que a razão de concentração é superior
ao índice de Gini. Essas medidas seguem a proposta de Lerman e Yitzhaki (1985,
1994).
Para a confecção dos cenários propostos enquanto hipóteses de alterações nos
valores do auxílio emergencial, os rendimentos recebidos por domicílio, conforme
captados pela PNAD COVID19, de R$600,00 e seus múltiplos mais frequentes
(R$900,00 R$1200,00, R$1800,00, R$2400,00, R$3000,00), foram substituídos por
diferentes valores que, nos distintos cenários, representariam alterações prováveis no
valor base do auxílio e em seus múltiplos, a saber, R$500,00; R$400,00; e R$300,00.
As exceções foram os cenários em que os recebimentos assumiriam um valor igual à
média do PBF ou zero, no caso de uma possível extinção do auxílio emergencial.
Nesses casos, todos os múltiplos foram substituídos pela referida média ou por zero,
respectivamente.
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3.
Discussão dos resultados
Os dados da PNAD COVID19 apontam para um processo de deterioração do
mercado de trabalho no Brasil, decorrente da crise do coronavírus que se manifesta:
1) na redução da taxa de participação na força de trabalho e do nível de ocupação até
julho, com relativa recuperação a partir de agosto; 2) elevação da taxa de desocupação
ao longo de todo o período, que subiu de 10,7% em maio para 14,2% em novembro;
3) redução da informalidade entre maio e julho, com relativa elevação a partir de
agosto, atingindo 34,5% do total de ocupados em novembro; e 4) expansão da
subutilização da força de trabalho até julho, quando mais de 31 milhões de pessoas
se encontravam subocupadas, desocupadas, desalentadas, ou haviam procurado
trabalho mas não estavam aptas a assumir o posto de trabalho na semana de
referência, e posterior redução, atingindo 27,7 milhões de pessoas em novembro (Ver
Tabela 1).
As pesquisas realizadas entre maio e julho apontam que o número de
trabalhadores informais se reduziu de, aproximadamente, 29,3 milhões para 27,4
milhões de pessoas, o que representa uma redução da taxa de informalidade de
34,7% para 33,6%. Essa queda da informalidade poderia parecer, à primeira vista,
uma relativa melhora no mercado de trabalho. Porém, esse foi o segmento mais
afetado pela pandemia e pelas medidas de distanciamento social, que levaram a uma
redução do consumo das famílias de bens e serviços por esses trabalhadores
ofertados. A pandemia trouxe impactos negativos para milhões de trabalhadores
nessa condição, que perderam suas fontes de trabalho e renda.
A partir de julho, o emprego informal voltou a se expandir (mais de 1,8 milhão
de novos postos de trabalho foram gerados nesse segmento) o que acabou por refletir
um aumento da taxa de informalidade para 34,5% do total em novembro. Essa
relativa recuperação a partir de julho se deve ao relaxamento de algumas medidas de
isolamento social por todo o país e ao retorno de algumas atividades que favoreceram
a expansão da ocupação informal.
Um dos fenômenos que mais se destacam enquanto reflexo da crise do
coronavírus é a redução do nível de ocupação (ocupados em relação à população em
idade de trabalhar). Entre maio e junho o nível de ocupação passou de 49,7% para
47,9%, momento em que atinge seu mínimo. A relativa recuperação posterior ainda
não se mostrou suficiente para reverter o fato de a crise ter feito o país apresentar
uma situação em que mais da metade de sua população em idade de trabalhar se
encontra fora da força de trabalho ou desocupada.
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Tabela 1. Indicadores de mercado de trabalho para o Brasil (maio-novembro, 2020)
Fonte: PNAD COVID19. Elaboração Própria.
Os dados apontam, também, para um processo de expansão do contingente
de pessoas fora da força de trabalho, que chegou a atingir 76,5 milhões em julho,
puxado pelo desalento decorrente do aumento do número de pessoas que não
procuraram trabalho por conta da pandemia ou por falta de trabalho na localidade
onde residiam. A partir de agosto, as pessoas voltaram a procurar trabalho,
provocando uma redução da população fora da força de trabalho e um aumento da
desocupação, que reforçou o movimento de elevação da taxa de desocupação
(Tabela 1).
5
Os primeiros dados divulgados pelo IBGE, referentes aos efeitos da pandemia
para o mercado de trabalho, chegaram a mostrar que mais de 16,5 milhões de pessoas
encontravam-se afastadas do trabalho devido ao distanciamento social no início de
maio. Com o relaxamento das medidas de isolamento e a relativa recuperação da
atividade econômica em alguns setores específicos como o comércio e os serviços,
esse contingente se reduziu significativamente atingindo, em novembro, um patamar
de 2,7 milhões de pessoas.
Apesar de a pandemia ter afetado fortemente o mercado de trabalho, parte
significativa da composição da renda das famílias brasileiras manteve-se ancorada na
proteção social de caráter permanente, composta por programas como:
Aposentadorias e Pensões do INSS (inclusive rural), o Benefício de Prestação
Continuada (BPC) e o Programa Bolsa Família. Esse aparato de proteção social
constituído criou um colchão de amortecimento para os efeitos perversos que a
pandemia trouxe para a renda oriunda do mercado de trabalho. Ademais, essa
proteção permanente veio a se somar aos recursos destinados ao pagamento do
auxílio emergencial. É com esse processo em mente que se pretende explorar as
5
Ver IBGE (2020a; 2020b; 2020c; 2020d; 2020e; 2020f).
Indica dor Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro
Taxa de participação na força de
trabal ho (%)
55,6 56,0 55, 1 55,8 56, 5 57,4 57, 8
Nível da ocupação (%) 49,7 49,0 47, 9 48,2 48, 6 49,3 49, 6
Taxa de desocupação (%) 10,7 12,4 13, 1 13,6 14, 0 14,1 14, 2
Proxy da taxa de informalidade das
pessoas ocupadas (%)
34,7 34,8 33, 6 33,9 34, 2 34,5 34, 5
Proxy da subutilização da força de
trabalho (mil pessoas)
28.584 29.638 31. 185 30.436 29. 465 28.267 27. 690
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informações da PNAD COVID19, a respeito dos impactos para a desigualdade de
renda corrente no Brasil.
Antes de apresentar os resultados, é necessário que se faça uma ressalva
quanto aos limites que essa pesquisa possui para a mensuração da desigualdade em
sua dimensão associada à renda. Essa limitação reside no fato de a pesquisa
subestimar as rendas oriundas do capital (mobiliário e imobiliário). Apesar de possuir
uma pergunta sobre rendimentos de outras fontes como: aluguel, arrendamento,
previdência privada, bolsa de estudos, rendimentos de aplicação financeira etc., tais
dados são subestimados, refletindo um baixo peso relativo no total da renda (Ver
Gráfico 1).
Gráfico 1. Peso relativo de cada parcela no total da renda segundo suas distintas
fontes (%) no Brasil, de maio a novembro de 2020
Fonte: PNAD COVID19. Elaboração Própria.
Nota-se que, apesar dos fortes e negativos impactos sobre o mercado de
trabalho, esse se manteve como a principal fonte geradora de renda para a população
brasileira, ainda que seu peso tenha se reduzido entre maio e junho. No entanto, é
importante que se observe que o auxílio emergencial cumpriu um papel fundamental
ao assegurar uma relativa sustentação da massa de renda das famílias. Os recursos
destinados ao pagamento do auxílio chegaram a representar 10,7% da massa de
renda de todas as fontes em julho de 2020. De agosto em diante, o peso relativo do
auxílio emergencial na massa de renda reduziu-se para 10,2%, em setembro, para
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7,7%, em outubro e para 6,1% em novembro. Esse movimento decorre de dois
fatores básicos: a redução do valor do benefício de R$600,00 para R$300,00 a partir
de outubro; e a relativa elevação do nível de ocupação, que ampliou a massa de renda
do trabalho nesses meses.
Somando-se a proteção social permanente e a emergencial, os recursos
oriundos de fora do mercado de trabalho passaram a representar aproximadamente
1/3 de todos os rendimentos auferidos pelas famílias brasileiras, indicando a
relevância do papel do Estado para a composição e a sustentação da renda,
especialmente em momentos de crise.
A resposta para o que aconteceu com a apropriação da renda separada por
intervalos decílicos pode ser vista na Tabela 2. Os dados apontam para uma relativa
melhora na distribuição do rendimento domiciliar
per capita
de todas as fontes, entre
maio e agosto, que decorreu da elevação da renda apropriada pelos 20% mais pobres,
que passou de 3,9% para 4,7%, e da queda da renda apropriada pelos 20% mais
ricos, que passou de 55,2% para 53,9%. A partir de setembro, o que se observa é
uma reversão desse processo: a parcela apropriada pelos 20% mais pobres passou de
4,6%, em setembro, para 3,7%, em novembro; e a dos 20% mais ricos se ampliou
de 53,3% para 54,8%, nesse mesmo período. Esse movimento está diretamente
associado ao auxílio emergencial, que cumpriu um papel relevante na proteção dos
mais vulneráveis, sustentando a massa de renda na base da distribuição, nos
primeiros meses da crise decorrente da pandemia. Porém, sua redução pela metade,
em outubro, provocou uma reconcentração da renda, em um movimento associado
à lenta recuperação do mercado de trabalho.
Tabela 2. Participação na massa de rendimento domiciliar
per capita
de todas as
fontes no Brasil, segundo intervalos decílicos, de maio a novembro de 2020
Fonte: PNAD COVID19. Elaboração Própria.
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A esse respeito, dois comentários podem ser feitos: 1) a concentração da renda
corrente no país permanece extremamente elevada (os 10% mais ricos se apropriam
de parcela superior àquela apropriada pelos 70% mais pobres da população); e 2) o
movimento de redução da concentração da renda corrente possibilitado pelo auxílio
emergencial se mostrou limitado, uma vez que seu efeito foi revertido abruptamente
após a redução do valor do benefício, a partir de outubro.
Do ponto de vista da distribuição pessoal da renda, o ‹ndice de Gini para o
rendimento de todas as fontes caiu -3,7% entre maio e agosto, manteve-se estável
entre agosto e setembro, e passou a subir a partir de outubro, momento em que o
auxílio emergencial foi reduzido pela metade
6
. Esse movimento é reforçado pela
redução da contribuição progressiva do auxílio emergencial a partir de outubro (Ver
Gráfico 2).
A tendência de queda recente da desigualdade de renda corrente no Brasil
esteve intimamente associada à manutenção da proteção social permanente,
especialmente aquela oriunda do Programa Bolsa Família, e à proteção social
emergencial, destinada aos informais e mais vulneráveis. A principal evidência dessa
constatação está na reversão observada dessa tendência a partir de outubro.
6
!Cabe destacar que o efeito da queda pela metade do auxílio emergencial é apenas parcial, uma vez
que existem muitas pessoas que ainda receberam parcelas no valor de R$600,00.!
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Gráfico 2. Contribuição absoluta para a composição do ‹ndice de Gini para a renda
pessoal no Brasil, segundo fontes de renda (maio-novembro, 2020)
Fonte: PNAD COVID19. Elaboração Própria.
Essa argumentação pode ser reforçada pela análise da progressividade de cada
fonte de renda para a composição dos índices nos meses analisados (Ver Gráfico 3).
De acordo com a decomposição do Gini por fonte de renda, aquelas associadas à
Proteção Social mostraram-se significativamente mais progressivas, o que quer dizer
que elas contribuem para a redução da desigualdade.
As fontes de maior progressividade são justamente aquelas que atenuam a
condição de vulnerabilidade da população da base da distribuição, ou seja, os
beneficiários do Programa Bolsa Família e os do auxílio emergencial, que os inclui,
mas que, também, destina-se aos desocupados, aos trabalhadores informais e aos
microempreendedores individuais.
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Gráfico 3. Progressividade para o ‹ndice de Gini para a renda pessoal no Brasil,
segundo fonte de renda (maio-novembro, 2020)
Fonte: PNAD COVID19. Elaboração Própria.
Por fim, resta responder o que poderia acontecer caso fossem alterados os
valores definidos pela proteção social emergencial. Os dados para o ‹ndice de Gini
nos cinco cenários traçados para o valor base (R$500,00; R$400,00; R$300,00
7
; valor
igual à média do benefício do PBF; e extinção do auxílio emergencial),
comparativamente ao cenário inicial de R$600,00 definido pela MP 937, apontam
para uma elevação imediata da desigualdade de renda, no momento da imposição
dos novos valores.
As estimativas indicam que reduzir o valor do benefício, aventando-se a
possibilidade de essa proteção social emergencial tornar-se permanente, tenderia a
produzir uma piora da distribuição pessoal da renda
8
. Ao menos parcialmente
9
, esse
argumento ganha força pela reversão observada da tendência de redução da
7
!A partir de outubro, o cenário três sofreu uma adaptação para captar o efeito combinado do
recebimento por parte da população de parcelas no valor de R$600,00/R$1.200,00 – referentes aos
pagamentos descasados no tempo – e de R$600,00/R$300,00. Para tanto, manteve-se a mesma renda
para o caso em que a mulher (A003) era responsável pelo domicílio (A001A) e efetuou-se a redução
para R$600/300 caso contrário.
8
Vale ressaltar que essas estimativas foram realizadas preservando-se a cobertura do auxílio
emergencial observada na PNAD COVID19.
9
Parcialmente, pois muitos beneficiários do auxílio ainda receberam a parcela no valor de R$600,00
em outubro.
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desigualdade experimentada a partir de outubro, momento em que se reduziu o valor
do benefício pela metade
10
.
Como esse é um dos cenários traçados, nota-se que, já em maio, o índice de
Gini para o valor reduzido pela metade teria sido 6,8% maior que o efetivo e, em
julho, 7,7% maior. A partir de agosto, inicia-se um processo de convergência entre a
curva estimada para o valor reduzido à metade (reta amarela) e aquela estimada para
Gini efetivo (reta pontilhada), estabelecendo uma diferença que passou dos 7,7%,
em julho, para 2,4%, em novembro
11
(Ver Gráfico 4).
Os dados apontam para um movimento em que a estimativa do valor
reduzido à metade funciona como uma
proxy
da realidade provável que o país
encontrará, uma vez mantido o corte do auxílio emergencial, isto é, um nível de
desigualdade aumentado para o qual o valor do Gini efetivo está convergindo.
De modo análogo, os outros cenários traçados, isto é, aqueles em que o
auxílio é extinto e/ou que se leva a cabo uma política de renda mínima, que poderia
assumir a forma de um Bolsa Família expandido para contemplar o público-alvo do
auxílio emergencial, apontam para um mesmo processo. Neste, o Gini efetivo
assume uma trajetória de convergência na direção das
proxys,
em direção
a uma
realidade bastante provável em que a sociedade brasileira passará a conviver com um
nível de desigualdade de renda corrente mais elevado (reta verde no Gráfico 4).
Pelos dados apresentados, fica evidente que a extinção do auxílio emergencial,
do ponto de vista da distribuição de renda, é a pior política a ser adotada. Com a sua
eliminação, o índice de Gini que, já em maio, se mostrava 15,2% maior, tenderia
nesse processo de convergência a um nível provável em que a concentração de renda
se mostrasse 6,3% superior (novembro).
10
Ver alterações na Lei 13.982, de 2020 dadas pelo Decreto no 10.488, de 16 de setembro de 2020.!
11
Uma vez estabelecido que os valores seriam, de fato, reduzidos à metade pelo Decreto no 10.488,
de 16 de setembro de 2020, optou-se por não continuar com os cenários R$1.000,00/R$500,00 e
R$800,00/R$400,00, a partir de outubro de 2020.
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Gráfico 4. Evolução do ‹ndice de Gini para a renda pessoal no Brasil, segundo fonte
de renda (maio-novembro, 2020)
Fonte: PNAD COVID19. Elaboração Própria.
Nota-se, ainda, que uma possível continuidade da tendência de queda da
desigualdade, revertida a partir de setembro, de forma independente da política do
auxílio emergencial, dependerá do que se observará no mercado de trabalho e em
sua estrutura de remuneração no após pandemia. Mais que isso, será condicionada à
manutenção do aparato de proteção social permanente, especialmente, daquele que
atende as camadas inferiores da distribuição de renda, como é o caso da Previdência
Rural, do BPC e, principalmente, do PBF.
4.
Considerações finais
A desigualdade de renda corrente no país, entre maio e setembro de 2020,
caiu por conta do aparato de proteção social permanente e da proteção emergencial,
conquistada pela sociedade após intensa disputa no Congresso Nacional.
Em um contexto de severa crise sanitária e socioeconômica, a renda obtida no
âmbito do mercado de trabalho não se mostrou um instrumento capaz de equacionar
o desafio da elevada concentração da renda corrente no país. Pelo contrário, sua
regressividade, em um contexto de elevação da desocupação e do desalento,
evidencia que o papel do Estado e as políticas públicas associadas à renda são
fundamentais para mitigar os efeitos negativos da crise, inclusive quanto à queda do
consumo de bens de primeira necessidade.
Por fim, os dados apontam para uma trajetória bastante provável de elevação
do nível da desigualdade decorrente da redução do valor do auxílio e/ou de sua
extinção no futuro próximo. A desproteção de significativa parcela da população em
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vulnerabilidade, para além da elevação da desigualdade, certamente trará impactos
ainda mais negativos do ponto de vista do empobrecimento da sociedade brasileira.
A lenta recuperação da atividade econômica associada à desestruturação do
mercado de trabalho trará desafios para o caminho do país na direção de uma
sociedade menos desigual em um futuro pós Covid-19.
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