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ISSN: 2237-1427
Vol. 11 | Nº 2 | Ano 2021
Páginas 185-200
Dados para contato:
Eduardo Carneiro Lima
Universidade Estadual do Ceará
Av. Dr. Silas Munguba, 1700 - Itaperi,
60714-903, Fortaleza, CE, Brasil.
URL da Homepage:
http://www.uece.br/
Recebido em: 07/03/2020
Aprovado em: 18/02/2021
DOI:
http://dx.doi.org/10.23925/recape.
v11i2.47473
FENÔMENO SLASH: CARTOGRAFANDO
TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DE
TRABALHADORES CONTEMPORÂNEOS
SLASH PHENOMENON: CARTOGRAPHING PROFESSIONAL
TRAJECTORIES OF CONTEMPORARY WORKERS
FENÓMENO SLASH: CARTOGRAFÍA DE
LAS TRAYECTORIAS PROFESIONALES DE LOS
TRABAJADORES CONTEMPORÁNEOS
RESUMO
O fenômeno slash – sinal gráco da barra diagonal (/) – refere-se
a uma geração de prossionais que acumula e pratica múltiplas
atividades, como: administrador/fotógrafo; arquiteta/atriz/
cantora. Nesta pesquisa – que tem como objetivo compreender,
numa perspectiva interdisciplinar, as características das
trajetórias dos slashers – conduzimos uma investigação com
orientação integralmente qualitativa. Na expectativa de apreender
a aparente complexidade do nosso objeto de estudo, passamos
a trabalhar inspirados pelo método cartográco, investigando
e mapeando as trajetórias prossionais de 06 slashers nas
cidades de Fortaleza e São Paulo, no período de setembro de
2017 a janeiro de 2019. Como resultados, cartografamos um
mapa com as possíveis rotas prossionais dos slashers, além
de duas sínteses provisórias – (i) conrmando algumas das
características desses sujeitos abordadas na literatura e (ii)
crítica a uma possível “glamourização” dessa dinâmica – e uma
proposição reexiva – a respeito do sentido de “lugarização” no
mundo desses trabalhadores.
Palavras-chave:
Fenômeno slash. Cartograa. Carreira.
ABSTRACT
The slash phenomenon - graphic sign of the diagonal bar (/) -
refers to a generation of professionals who accumulate and
practice multiple activities, such as: administrator / photographer;
architect / actress / singer. In this research - which aims to
understand, in an interdisciplinary perspective, the characteristics
of the slashers’ trajectories - we conducted an investigation
with an entirely qualitative orientation. In the expectation of
apprehending the apparent complexity of our object of study, we
started to work inspired by the cartographic method, investigating
and mapping the professional trajectories of 06 slashers in the
cities of Fortaleza and São Paulo, from September 2017 to
January 2019. As results, we mapped a map with the possible
professional routes of the slashers, in addition to two provisional
syntheses - (i) conrming some of the characteristics of these
subjects addressed in the literature and (ii) criticizing a possible
“glamorization” of this dynamic - and a reective proposition -
regarding the sense of “localization” in the world of these workers.
Keywords:
Slash phenomenon. Cartography. Career.
Eduardo Carneiro Lima
Pesquisador da Universidade
Estadual do Ceará (Brasil)
educl.lima@gmail.com
Ana Cristina Batista
dos Santos
Professora da Universidade
Estadual do Ceará (Brasil)
ana.batista@uece.br
Patrícia Passos Sampaio
Professora da Universidade
de Fortaleza (Brasil)
patriciap@unifor.br
Eduardo Carneiro Lima, Ana Cristina Batista dos Santos, Patrícia Passos Sampaio
ReCaPe | Vol. 11 | Nº. 2 | Ano 2021 | mai./ago. | p. 186
RESUMEN
El fenómeno slash (signo gráco de la barra diagonal (/)) se reere a una generación de profesiona-
les que acumulan y practican múltiples actividades, tales como: administrador / fotógrafo; arquitecto
/ actriz / cantante. En esta investigación, cuyo objetivo es comprender, en una perspectiva interdis-
ciplinaria, las características de las trayectorias de los slashers, realizamos una investigación con
una orientación totalmente cualitativa. Con la expectativa de comprender la aparente complejidad
de nuestro objeto de estudio, comenzamos a trabajar inspirados por el método cartográco, investi-
gando y mapeando las trayectorias profesionales de 06 slashers en las ciudades de Fortaleza y São
Paulo, desde septiembre de 2017 hasta enero de 2019. Como resultados, mapeamos un mapa con
las posibles rutas profesionales de los slashers, además de dos síntesis provisionales: (i) conrmar
algunas de las características de estos temas abordados en la literatura y (ii) criticar una posible
“glamourización” de esta dinámica - y una propuesta reexiva - respecto al sentido de “localización”
en el mundo de estos trabajadores.
Palabras clave: Fenómeno slash. Cartografía. Carrera.
1 INTRODUÇÃO
O trabalho sofre, historicamente, fortes inuências das mudanças vividas pelo homem. Pres-
supondo que o homem produz a sua existência por meio do trabalho, percebemos que, ao longo da
história, notadamente sob a contínua luta pela sobrevivência, conquista da dignidade e felicidade
social, o trabalho assumiu signicativa importância, sendo preservada sua centralidade na vida (An-
tunes, 2009; Alcadipani; Medeiros, 2016).
Novos cenários mercadológicos, organizações e prossões surgem, requisitando novas formas
de organizar o trabalho. Nessas novas formas, percebemos que a lógica da construção de uma car-
reira tradicional e linear, sustentada pela alta especialização e vocacionada pelo exercício de uma
única habilidade, cultivando um currículo verticalizado com experiências e trajetórias similares, tem
sido substituída por concepções modernas de trabalho no campo das experiências e experimenta-
ções, principalmente por jovens (Chanlat, 1995; Cavazzote; Lemos; Viana, 2012; Eugenio, 2012;
Almeida, 2012).
Essa conjuntura que demonstra mudanças nos padrões de percepção, orientação e inclinação
das trajetórias prossionais, indica o aparecimento de um “novo agente criativo contemporâneo” (Eu-
genio, 2012, p. 238). Esse novo agente surge em um contexto onde o mundo do trabalho tem requisi-
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tado novas formas de construção de sua carreira, horizontalizando e acumulando, simultaneamente
ou não, experiências de trabalho, com organizações que esperam dele uma atuação e um domínio
de múltiplas atividades, rompendo com os padrões tradicionais da especialização (Ferreira, 2012).
Discussões atuais sobre esse tema ganham campo à medida que o número de prossionais
inseridos nessa nova dinâmica das relações de trabalho aumenta. Assim, novos conceitos ligados
a trajetórias prossionais emergem, a exemplo da geração slash (Eugenio, 2012). Geração slash,
objeto de estudo dessa pesquisa, ganhou esse nome devido ao sinal gráco da barra diagonal (/), em
inglês. É utilizado para designar a geração que acumula e pratica múltiplas atividades, aparentemen-
te sem qualquer correlação, como: administrador/fotógrafo; arquiteta/atriz/cantora; advogado/chef de
cozinha/DJ/produtor musical (Eugenio, 2012). Presumimos que são prossionais que encontram na
prática slash alternativas de enfrentamento e construção de uma teia entre o que se gosta e o que é
preciso fazer (Alboher, 2012), muito embora o nosso interesse esteja muito mais em investigar “o que
eles gostam de fazer”, mas sem deixar escapar outras possíveis dimensões.
Propomo-nos a observar esses trabalhadores não como sujeitos-integrantes de uma chamada
“geração slash” pela literatura, mas como sujeitos-participantes que se identicam com um “fenôme-
no slash”, na expectativa de contribuir com uma ciência social aplicada que considera as práticas
desses sujeitos como elas são, de aproximar teoria e empiria de trabalhadores que se descobrem
no campo das experiências e das experimentações e de fornecer subsídios para tentar elucidar essa
nova dinâmica laboral no mundo contemporâneo.
Tem-se, portanto, como objeto de estudo as trajetórias prossionais dos slashers na contem-
poraneidade. Tomamos como questão orientadora: Como se caracterizam as trajetórias prossionais
dos slashers na contemporaneidade? O objetivo geral é compreender, numa perspectiva interdisci-
plinar, as características das trajetórias prossionais dos slashers.
2 DA CARREIRA LINEAR AO FENÔMENO SLASH
A literatura revela que carreira, emprego formal e ocupação em uma rma eram, até pouco
tempo, tidos como sinônimos de trabalho (Tolfo, 2002). O estudo sobre carreiras contempla a com-
preensão da individualidade dos prossionais ao relacionar o par “trabalho-carreira” às práticas de
atividades laborais ao longo da vida prossional (Hall, 2012). Essa individualidade indica, ainda, dis-
tintas possibilidades de trajetórias prossionais, inclusive as consideradas tradicionais, a exemplo da
carreira linear (Eugenio, 2012). De forma sequencial, o trabalhador estabelece, a partir de certa ha-
bilidade especíca, uma linha de condução da trajetória prossional. Esse modelo esteve fortemente
presente até meados da década de 1970, “caracterizado pela estabilidade e progressões lineares e
verticais” (Sant’anna; Kilimnik, 2009, p. 34), associado à vocação pessoal (Cordeiro, 2012).
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As novas práticas prossionais surgem rompendo com padrões tradicionais de trabalho e apon-
tando para o surgimento de um sujeito que constrói de forma particular as trajetórias prossionais.
Esse prossional enfrenta um mercado de trabalho diferente, com cenários competitivos, conside-
rando, principalmente, a tendência de mudança do que se pensa sobre trabalho para um modelo que
inspira independência e autonomia (Bauman, 2001; Cordeiro, 2012). É nesse contexto mutante que
emerge o fenômeno slash.
Eugenio (2012, p. 229) arma que “slash é o nome do sinal gráco de uma barra diagonal,
utilizado em endereços web e também para indicar múltiplas habilidades ou funções acumuladas por
uma mesma pessoa” em um uxo migratório próprio ou acúmulo de atividades que, aparentemente,
não apresentam qualquer correlação. Também em 2012, o repórter Eduardo Magalhães, no website
do O Globo, lançou uma reportagem sobre a geração slash: “Eles fazem de tudo: conheça a ‘slash
generation’”. A trajetória prossional dos slashers se caracteriza de forma diferente quando compa-
rada ao modelo tradicional linear e sequencialmente similar (Rotunno, 2016). Não ser o especialista
que sabe tudo de um assunto só, mas experimentar o novo, avançar em diferentes territórios do co-
nhecimento, ter uma formação ampla, diversicada e próxima de saber um pouco de tudo, revelam o
que parece ser o perl criativo dessa nova geração prossional (Eugenio, 2012).
Outro termo relacionado a esse tema foi popularizado por Alboher (2012), que defendeu a
dinâmica de uma carreira slash como estratégia de sujeitos que buscam equilíbrio entre o que se
ama e o que é preciso fazer. Dessa forma, é possível ser advogado/comerciante/cantor, profes-
sor/empreendedor/poeta, engenheiro/blogueiro/fotógrafo. O acúmulo de atividades em paralelo
é uma das estratégias de posicionamento e principais características desse novo agente criativo
(Eugenio, 2012), que encontra na conciliação de múltiplas atividades, aparentemente distintas, a
experimentação de uma vida prazerosa, mesmo atuando em atividades consideradas tradicionais.
A vida dinâmica e repleta de atividades diferentes, que podem ser ou não complementares, pare-
cem denir o perl desses trabalhadores que têm a criatividade como marca distintiva (Eugenio,
2012). Os slashers despontam, fundamentalmente, em um cenário de experiências e experimen-
tações.
As pesquisas de Almeida (2012) revelaram que prossões distantes, como o caso da médica/
DJ/poeta/música, podem atuar em relações de retroalimentação, em sinergia no cotidiano prossio-
nal. É possível suprimir a vida pessoal e fazer algo só pelo dinheiro, “mas não a qualquer preço”,
como disse Manu, outra entrevistada de Almeida (2012, p. 242). Parecem construir suas trajetórias
prossionais balanceando o que dá prazer e o que é preciso fazer (Alboher, 2012), mas resistimos
à tentação interpretativa de observá-los apenas como sujeitos intolerantes às diculdades da vida e
que se dedicam, nesses casos, a uma simples prática de hobbies, pelo contrário, parecem aceitar
essas diculdades para depois recusá-las (Almeida, 2012).
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A dinâmica slash aponta, ainda, para outras formas de atuação prossional que se conguram
no campo da lógica de “se virar: um aprender enquanto se faz” (Eugenio, 2012, p. 230) ou, como
sugere Ibarra (2009, p. 02), “um processo de transição em uma prática de aprender fazendo”. São
prossionais que praticam outras atividades para dar vida a uma atividade principal, que “se viram”
para possibilitar a execução de outra atividade, seja pela falta de recursos nanceiros ou, ainda, pelo
prazer que vão descobrindo em participar de todo o processo criativo (Eugenio, 2012).
A imaginação ganha cada vez mais espaço como elemento natural da lógica da vida corrente
da sociedade moderna, sendo “hoje um palco para a ação e não apenas para a evasão” (Appadurai,
2004, p. 20). Observamos que são nessas sutilezas, nessas rotas de fugas e até nas práticas de
resistências onde estão os slashers. Não seriam os slashers os novos agenciadores de mudanças
no campo do trabalho, especicamente na forma de construir uma carreira? Ao que parece, não é
mais necessário ter um papel denido enquanto trabalhador, cada um pode ser criativo, inventivo,
imaginativo e ter múltiplas identidades prossionais.
Diógenes (2016) arma que conquistar o emprego dos sonhos e o prazer misturam-se de tal
forma que realizar várias atividades ao mesmo tempo parece se desconectar do ritmo enfadonho do
trabalho tradicional. E se perceber “desconectando da lógica tradicional de trabalho” pode acontecer
a partir do que Almeida, Eugenio e Bispo (2016, p. 28 e 29) chamaram de paragem e desmobilização,
onde alguns sujeitos buscam “por meio de uma tática [própria] habitar a pausa, o parênteses provisó-
rio e a paragem [...]. Desmobilizam porque preferem não fazer”, vivem um tempo onde “tudo pode”,
inclusive “poder não escolher, poder não exercitar a potência própria”, num uxo de descobertas de
si e de novos percursos prossionais.
Pensamentos como esses nos ajudam a hipotetizar que os slashers podem funcionar como
nômades no mundo do trabalho e, assim como Rotunno (2016) sugeriu, buscam defender a própria
liberdade e conviver com as incertezas cotidianas.
3 O DESENHO DA PESQUISA
A pesquisa teve orientação integralmente qualitativa, desde a imersão na literatura até a aná-
lise das entrevistas em profundidade e nas vivências de observação dos pesquisadores. Inspirados
pelo pensamento de Romagnoli (2009, p. 167), entendemos que “para se conhecer realmente uma
realidade, é necessário estudá-la em todos os seus aspectos, relações, conexões, pois tudo está em
constante transformação e correlação”.
Na expectativa de apreender essa complexidade, passamos a trabalhar inspirados pelo método
cartográco, com o conceito rizomático proposto por Deleuze e Guattari (1995, p. 14), que traz a “lógica
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que privilegia as conexões e não as superfícies ou os limites externos. [...] Qualquer ponto de um rizoma
pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que xam um
ponto, uma ordem”. Cintra et al. (2017, p. 45) argumentam que “o rizoma não se fecha sobre si, é aberto
a experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam” e, por
isso, encontramos novas rotas metodológicas na própria experiência e em fases diferentes da pesquisa.
Cartografar só foi possível com o suporte do relato oral dos entrevistados. Para Queiroz (1988, p.
15), o relato oral é uma “técnica útil para registrar o que ainda não se cristalizara em documentação es-
crita, o não conservado, o que desapareceria se não fosse anotado”. Serve, por exemplo, para captar o
que não está explícito ou até mesmo o indizível. São histórias contadas com “relatos de fatos não regis-
trados por outro tipo de documentação. [...] Buscando uma convergência de relatos sobre um mesmo
acontecimento ou sobre um período de tempo” (Queiroz, 1988, p. 19). A partir das falas, utilizamos,
principalmente, a técnica de análise e interpretação dos núcleos de sentido (ANS) (Mendes, 2007).
A pesquisa de campo aconteceu no período de setembro de 2017 a janeiro de 2019, nas cida-
des de Fortaleza e São Paulo, com a participação de seis entrevistados, cujos nomes ctícios são:
Camila e Patrícia, em Fortaleza; e Felipe, Marcelo, Mariana e Joaquim, em São Paulo. As idades va-
riam entre 29 e 50 anos. Buscamos sujeitos que participavam de um mesmo modo de vida (Eugenio,
2012), isto é, que vivenciavam o fenômeno slash.
É no momento da pesquisa de campo que experimentamos grande realização do esforço
prossional enquanto pesquisadores. É como se ali, na empiria, fôssemos banhados pelos afetos dos
encontros, escritos e registros. É quando permitimos acessar, por exemplo, a dimensão do prazer ao
vivenciar, de fato, um bom encontro com os interlocutores. Por exemplo, Felipe escolheu um bar e um
m de tarde para encenar o nosso primeiro encontro. E, sem o fetiche procedimental de utilizar isso
apenas como um discurso metodológico, vivenciamos o que era importante para ele. Claro que nem
tudo ca no campo da ideia e do prazer. Existe uma dimensão do “trabalho braçal”, como desenrolar
em linhas tudo o que foi visto e transcrever horas e horas de gravações, tudo isso após um dia cansa-
tivo. O fato é que damos o devido valor e atenção à parte técnica dessa pesquisa, mas não permitimos
escorrer uma gota sequer da sensibilidade de cada história revelada. O “sentir” que suas “rotas de vida”
estavam emergindo, nesse caso, foi o critério por excelência para se identicar a saturação empírica.
Debruçamo-nos sobre os dados coletados e deixamos o “perceber” tomar conta dos nossos olhares,
fugindo das narrativas consideradas tradicionais para resumir e generalizar a vida dos sujeitos.
4 CARTOGRAFANDO AS ROTAS PROFISSIONAIS DOS SLASHERS
Cartografar desvelou-se como um mergulhar nas ideias e nos afetos que circundam os territó-
rios que desejamos conhecer, é adentrar na pesquisa e se impregnar intelectualmente do objeto de
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tal modo que se crie um traçado singular do que nos propomos a estudar (Romagnoli, 2009). Com
isso, elaboramos um mapa que chamamos de “Cartograa das rotas dos slashers” (Figura 1).
Figura 1 – Cartograa das rotas dos slashers
Fonte: elaborada pelos autores (2019).
Inicialmente, separamos um pequeno espaço para apresentar os nossos entrevistados: Ca-
mila tem 35 anos, solteira e é publicitária/superintendente de cobrança/empreendedora; Felipe
tem 36 anos, solteiro e é publicitário/sommelier de cervejas; Marcelo tem 40 anos, solteiro e é
analista de sistemas de TI/micro digital inuencer/empreendedor; Mariana tem 30 anos, solteira
e é médica/cantora/professora de capoeira; Joaquim tem 50 anos, casado e é sócio de uma
empresa que promove eventos para marcas de luxo/dono de uma pousada em Parati; Patrícia
tem 29 anos, solteira e é advogada/especialista em direito e relações internacionais/trabalha
na Cruz Vermelha/professora de inglês/tradutora/intérprete/cantora. Apesar de também terem
outras atividades, como Joaquim que também é piloto de avião e engenheiro civil, registramos,
aqui, apenas as atividades que geram renda ou, de algum modo, fazem parte do cotidiano dos
nossos interlocutores.
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As rotas, na verdade, funcionam como conceitos, identicados ou não previamente na litera-
tura, que foram vericados como escolhas possíveis dos slashers em suas trajetórias prossionais,
trazendo “um novo patamar de problematização, contribuindo para a articulação de um conjunto
de saberes, inclusive, outros que não apenas o cientíco, e favorecendo a revisão de concepções
hegemônicas” (Romagnoli, 2009, p. 169-170). E essa forma “multi” de conduzir a pesquisa – multi-
disciplinariedade, multimétodos, múltiplas rotas – sustentou nossas observações e discussões sobre
os achados, ajudando-nos a descrever o que parece ser uma tentativa de percorrer as rotas dos
nossos interlocutores em suas próprias trajetórias prossionais, trazendo a reexão a partir dos três
aspectos: observação dos pesquisadores, falas dos slashers e o que diz a literatura sobre cada tema,
aprendendo na prática a respeitar a processualidade requerida pelo método cartográco para cons-
trução de conhecimento cientíco.
4.1 Rota A: das insatisfações ao longo de suas trajetórias prossionais
A literatura não conseguiu atender a um dos nossos primeiros questionamentos: “como é des-
pertado o desejo de acumular mais de uma atividade de trabalho entre os slashers?”. Já no campo,
em contato com os nossos entrevistados, e considerando a própria cartograa como método de
pesquisa, conseguimos perceber que, possivelmente, os slashers despontem num cenário de insa-
tisfações com o modelo de trabalho considerado tradicional.
A Patrícia, por exemplo, começou a buscar outras atividades de trabalho para conciliar com os
estudos quando vivenciou algumas insatisfações com o próprio curso de Direito. À época, estagiava
como advogada em uma grande indústria na cidade de Fortaleza:
[...] eu não queria mais trabalhar no direito, [...] não me formei no tempo certo, porque não tava
mais me identicando como o direito, pelas práticas e experiências eu não tinha gostado, en-
tendeu? O Brasil, infelizmente, é um país que não é justo, a justiça é feita de uma forma muito
parcial, então isso mexeu muito comigo.
Vivenciar a insatisfação com o próprio curso fez Patrícia migrar para a área internacional que,
apesar de continuar trabalhando “com Direito”, qual seja o “Direito e Relações Internacionais”, abriu
os horizontes para que ela começasse a dar aulas de inglês, ser tradutora, intérprete e para o curso
de psicologia que pretende cursar. Assim, a insatisfação gerou movimento em direção a novas pos-
sibilidades.
Marcelo contou que o acúmulo de pequenas insatisfações o fez romper com o modelo tradi-
cional de carreira e buscar outras atividades de trabalho. Durante certo tempo, optou por conciliar as
suas funções em uma grande empresa de TI com o projeto do negócio próprio, até partir para o acu-
mulo de outras atividades em paralelo. Camila, até pouco depois de janeiro de 2019, conciliava as
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suas atividades como superintendente e empreendedora. Contou que despertou para essa dinâmica
logo após a insatisfação de vivenciar mudanças na gestão da empresa onde trabalhava e, simboli-
camente, ter sido desmoralizada pelo CEO da companhia em duas reuniões com todos os gestores.
4.2 Rota B: desmobilizações e paragens
Almeida, Eugenio e Bispo (2016, p. 15) discorrem sobre a desmobilização como a tentativa de
escapar do excesso de movimento dos dias atuais, criando, assim, uma espécie de “nova epistemo-
logia da paragem, isto é, da tomada de distância frente ao turbilhão de um mundo cuja engrenagem
parece se mover em direção à maximização incontrolável do progresso e aceleração”. Estávamos
atentos às características que surgiam nos intervalos da dinâmica slash, farejando nas brechas ou
nas ssuras aspectos que apontavam para as desmobilizações e paragens em suas trajetórias de
vida e prossional (Almeida; Eugenio, 2016).
Adentrar nas histórias contadas pelos sujeitos dessa pesquisa tornavam visíveis as diferentes
formas de paragens, suas recongurações, reexões, motivações e análises. Joaquim, considerando
as suas próprias experiências com sustentabilidade na área ambiental, arma que “parar” foi impor-
tante no processo de descobertas de si, mas sabe que nem todos têm a oportunidade de fazer isso.
Relatou, principalmente, três momentos em que conseguiu “parar”: (i) cou um tempo na Turquia
para se encontrar na engenharia civil; (ii) morou dois anos em Los Angeles quando não sabia mais
se queria continuar no mercado de moda e luxo; e, por m, (iii) cou outros dois anos em Parati dedi-
cado a pousada, até perceber que é possível encontrar prazer acumulando essas e outras possíveis
atividades de trabalho.
Patrícia, que realizou uma paragem de quase três meses na França, armou que precisava
desse momento para acelerar a uência na língua francesa, mas, principalmente,
porque estava esgotada, estava fazendo um milhão de coisas e acabava que eu não estava
concentrada no que eu queria, eu precisava de um tempo para mim. [...] foi incrível, porque eu
consegui descansar o meu cérebro. E eu vi o quanto eu tenho que ter cuidado e responsabi-
lidade com o meu cérebro. [...] você faz cinco milhões de atividades com o seu cérebro sem
entender que ele pode ter algo como burnout.
E Patrícia escolheu “parar” exatamente no momento onde conseguia fazer um bom dinheiro
acumulando tantas atividades e com “a exibilidade que poucos trabalhadores têm, anal, quem con-
segue tirar duas ou três férias por ano?”, mas entendeu que precisava parar, recalcular suas rotas e
se reencontrar em seus percursos prossionais. Retornou decidida a afunilar as suas atividades de
trabalho, preocupando-se em “diminuir a intensidade delas” e ter um direcionamento maior para o
direito internacional, com foco na ONU.
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Os relatos acima apontam para possíveis sobrecargas dos sujeitos em relação aos seus tra-
balhos. De acordo com Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994), aspectos relacionados às condições de
trabalho, quais sejam os afetivos e racionais do trabalhador, podem interferir na carga mental dos
sujeitos. Essa sobrecarga vivenciada por eles, provavelmente por não conseguirem descarregar as
tensões no exercício do trabalho, pode levá-los a desenvolverem sintomas de adoecimento psíqui-
co e físico, além do sentimento de desprazer. Além disso, Almeida, Eugenio e Bispo (2016, p. 15)
discorrem sobre a desmobilização como a tentativa de escapar do excesso de movimento dos dias
atuais, criando, assim, uma espécie de “nova epistemologia da paragem, isto é, da tomada de distân-
cia frente ao turbilhão de um mundo cuja engrenagem parece se mover em direção à maximização
incontrolável do progresso e aceleração”. Ao que parece, e nesse caso, a “paragem” funciona como
possível rota de fuga do sofrimento apontado pela elevação da carga psíquica no trabalho. Patrícia
citou, por exemplo, a síndrome de burnout.
4.3 Rota C: a lógica de “se virar”
As nossas principais inspirações sobre a lógica de “se virar” são: Ibarra (2009), sugerindo que
esse é processo transitório e que funciona sob a lógica de aprender na prática; Eugenio (2012) que
teoriza sobre essa lógica de se virar como alguém que aprende fazendo; e Alboher (2012) ao armar
que alguns sujeitos se viram entre o que gostam e o que precisam fazer.
Reetindo sobre o modo operativo desse movimento, constatamos o protagonismo desses
sujeitos para demarcar limites de atuação, o caráter inventivo quando precisam refazer rotas ou se
refazer nelas e a criatividade para encontrar novas maneiras de dar vida as suas atividades. Cami-
la armou que a sua experiência de trabalho começou muito mais cedo se comparada a realidade
dos seus amigos, conseguindo aos 15 anos “um trabalho, primeiro, por uma situação nanceira
mesmo, então não tinha nada a ver com aquilo que eu queria fazer na minha vida e carreira, era
mais por uma situação nanceira de ter que me sustentar”. Precisou dar aula particular e iniciar
como operadora de cobrança para conseguir pagar a sua faculdade. Quando Felipe decidiu pas-
sar um tempo na Irlanda para, inicialmente, aprender inglês, precisou se virar e muito, “lá eu fui
faxineiro, trabalhei em bar, [...] fazia outros bicos em fábricas, trabalhei com faxina e várias coisas,
mas meu trabalho xo que me dava mais grana era o bar”, tudo isso para continuar vivenciando
essa experiência. E Mariana, além de também praticar essa lógica, escuta, costumeiramente, de
colegas da música que gostam de tocar o ritmo MPB, por exemplo, que precisam se virar nesse
meio e acabam aceitando tocar em todos os estilos, principalmente, os que são mais comerciais,
são esses “que têm a grana”. Continuou contando que não precisa se submeter a esse sistema,
mas que, como médica,
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tem horas que tô dando plantões em lugares que eu não gosto, entendeu? Mas tem que traba-
lhar, [...] por isso, hoje, ainda consigo negar algumas coisas [na música], por causa da grana
que consigo na medicina. [Consigo] me manter nanceiramente e aí consigo não depender do
dinheiro da música, porque se não eu teria que topar tudo, você topa qualquer parada, você
tem que tocar [em qualquer coisa] para ganhar dinheiro, você tem que se virar.
Ao que parece, se virar, em alguns casos, pode ocupar apenas uma dimensão simbólica, liga-
da à subjetividade do sujeito, algo mais particular. Como percebemos nas histórias narradas por Jo-
aquim, que aprendeu sobre a sustentabilidade ainda como estudante de engenharia e hoje defende
inúmeras causas ambientais, apesar de trabalhar “com moda e luxo, imagina! Trabalho pra marcas
que produzem [cada vez mais]” em um contexto onde tem percebido que o mundo precisa “consumir
menos” e reutilizar o que já possuem. Precisou se virar em meio a esse conito ideológico para con-
tinuar trabalhando em um mercado onde precisa, mas sem deixar de defender suas causas.
4.4 Rota D: as experiências e experimentações
Eugenio (2012) fala sobre algumas das características dos slashers, destacando, principal-
mente, a lógica de que aprendem enquanto fazem. Ibarra (2009, p. 119) também destaca que “apren-
demos sobre nós mesmos testando possibilidades concretas na prática”, algo parecido com o que Di-
ógenes (2016) vericou em uma de suas pesquisas ao, metaforicamente, armar que alguns sujeitos
se descobrem a partir de uma brincadeira ou experimentação, tornando a experiência uma espécie
de camarim de ensaio, um campo ou lugar de possibilidade para a experimentação.
Sobre essa rota, percebemos em nossa pesquisa que Felipe, por exemplo, acabou descobrin-
do na prática uma possibilidade prossional ao ter experimentado trabalhar em um bar na Irlanda. Ao
retornar ao Brasil, [após dois anos trabalhando, novamente, em agência de publicidade], começou
a trabalhar em casa e conseguiu acessar tudo o que tinha experimentado ao trabalhar no bar na
Irlanda e começou a se redescobrir na experiência de se aprofundar no mundo das bebidas a partir
de alguns cursos, “primeiro de coquetelaria, [...] depois um curso básico de vinhos no Senac, [...] em
seguida um curso básico de cervejas, [...] depois de sommelier de cervejas, [...] e, por m, de de-
gustação de cervejas”. Atrelado a isso, entendeu que precisava de prática e conseguiu um trabalho
temporário em um quiosque de cervejas para conrmar, na experiência prática, a sua paixão pelo
produto.
Mariana conseguiu, também na prática, encontrar uma maneira de vivenciar a dinâmica da me-
dicina e do canto e, hoje, percebe que “as duas atividades mexem” com ela, de igual modo, sem pre-
cisar “escolher fazer uma coisa ou a outra” atividade. O processo de descobertas de si de Joaquim
parece continuar acontecendo até hoje que, graças à exibilidade que tem na empresa de eventos,
consegue dedicar parte do tempo livre para descobrir prazeres ainda desconhecidos, como o gosto
Eduardo Carneiro Lima, Ana Cristina Batista dos Santos, Patrícia Passos Sampaio
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pela culinária, fotograa, empreendedorismo, colecionismo, tendo claramente a sua posição como
ser social, “com sete bilhões e meio [de pessoas] no planeta, tem que ter coisas novas, tem coisas
novas maravilhosas”, e isso parece movê-lo em busca de novas versões de si, não descartando, por
exemplo, a possibilidade de se tornar chef de cozinha com mais de 50 anos de idade.
Eugenio (2012) fala sobre algumas das características dos slashers, destacando, principal-
mente, a lógica de que aprendem enquanto fazem. Ibarra (2009, p. 119) também destaca que “apren-
demos sobre nós mesmos testando possibilidades concretas na prática”, algo parecido com o que Di-
ógenes (2016) vericou em uma de suas pesquisas ao, metaforicamente, armar que alguns sujeitos
se descobrem a partir de uma brincadeira ou experimentação, tornando a experiência uma espécie
de camarim de ensaio, um campo ou lugar de possibilidade para a experimentação.
4.5 Rota E: os processos identitários dos slashers em suas trajetórias
Foi nessa rota onde percebemos emergir conteúdos ligados ao reconhecimento, sofrimento,
ansiedade, nervosismo e identidade entre os slashers (Goman, 1961; 2002; Dejours, 1992; 1993;
2004; 2005; 2007).
Sobre Mariana, mais do que tentar compreender possíveis crises de identidade em suas ati-
vidades, já que desde o início fez questão de dizer que nunca teve que “escolher entre fazer uma
coisa ou outra” ou, ainda, que se considera “as duas coisas”, Mariana nos sensibilizou para adentrar
e conhecer as suas representações de papéis que mudavam, principalmente, a depender do local
ou público. Contou que
em Vitória sou muito mais conhecida como cantora do que como médica, porque eu
sempre apareci na mídia por causa da música e porque é uma cidade pequena, en-
tão todo mundo me vê como cantora, acho que vai ser muito difícil quando eu voltar
pra Vitória e tentar me inserir como prossional médica. [...] Quando eu voltar pra
lá, sei vou ter que me mostrar pro mercado como médica e isso é um pouco difícil,
porque as pessoas tem preconceito em relação a isso: “será que essa cantora é uma
boa médica mesmo”.
Reconhece, também, ser “uma prossional médica e uma prossional da música. Eu me con-
sidero as duas coisas, não me excluo em nenhuma delas, [...] mas sei que, mesmo assim, vou ter
momentos de frustração”, demonstrando certa ansiedade para fazer o “ser cantora”, enquanto ativi-
dade prossional, acompanhar o ritmo do “ser médica” em São Paulo e nervosismo ao se imaginar
numa aparente situação de risco em suas atividades. As histórias de Patrícia também dialogaram
com a ideia de processos identitários e, aparentemente, ela sofre com isso. Começou relatando que
“na nossa sociedade, ainda hoje, as pessoas têm a necessidade de denir a pessoa como uma coisa
só: Patrícia é médica ou Patrícia é advogada. As pessoas ainda não entendem muito” essa dinâmica
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da carreira slash, onde todos podem ser o que desejam enquanto prossionais. E essa confusão
mexe com ela, porque “quando você vai num banco ou algo do tipo, perguntam a sua prossão, você
responde o que? Cinco coisas? Às vezes, juro pra você, coloco ‘estudante’ por não saber o que dizer
[quando fazia pós]”.
5 SÍNTESES PROVISÓRIAS E NOVOS QUESTIONAMENTOS
Considerando o objetivo do estudo - compreender, numa perspectiva interdisciplinar, as carac-
terísticas das trajetórias dos slashers - encerramos esse texto apresentando duas sínteses provisó-
rias e uma proposição reexiva.
Como primeira síntese, constatamos algumas das características dos slashers abordadas
pela literatura nas representações dos nossos entrevistados, como: (i) indivíduos que conseguem
transitar entre períodos geracionais (Forquin, 2003); (ii) a lógica de se virar (Ibarra, 2009; Eugênio,
2012); (iii) paragens e desmobilizações (Almeida; Eugênio; Bispo, 2016); (iv) as experiências e expe-
rimentações como processo de descobertas de si e de novas rotas prossionais “ao fazer na prática”
(Ibarra, 2009; Eugênio, 2012; Diógenes, 2016); e (v) o trabalho como fonte de prazer-sofrimento,
reconhecimento e identidade (Goman, 1961; 2002; Dejours, 1992; 1993; 2004; 2005; 2007; Ibarra,
2009).
Os estudos e pesquisas considerados nesse trabalho sobre os slashers trazem a dinâmica
da carreira slash em relatos que convergem para um modelo “glamourizado” ou “romantizado”, no
sentido de que esses sujeitos acionam predominantemente “o lado bonito das suas práticas pros-
sionais”. Dessa forma, nossa segunda síntese ocupa uma dimensão crítica e revela que, supos-
tamente, “nem tudo é tão bonito quanto parece ser”. Claramente, o prazer é acionado por vezes
durante a dinâmica slash, mas as dimensões de sofrimento, ansiedade, preocupação e nervosismo,
pouco exploradas pela literatura, foram bastante percebidas por nós na quase totalidade dos nossos
entrevistados.
Uma proposição reexiva que fazemos desde a lente antropológica é: como se dá a “lugari-
zação”, no sentido antropológico do termo, dos slashers? Estariam eles à procura do lugar antropo-
lógico, isto é, aquele que se caracteriza por ser identitário, relacional e histórico (Augè, 1994)? Como
arma Augè (1994, p. 24): “toda representação do indivíduo é, necessariamente, uma representação
do vínculo social que lhe é consubstancial”. Estariam as várias “barras” entre atividades represen-
tando também possíveis fragilidades do vínculo social no contexto laboral contemporâneo, donde
a procura por múltiplas atividades e lugares, ao mesmo tempo que sinaliza versatilidade, múltiplas
realizações de si pelas via das experiências e experimentações, também desvelaria “deslugarização”
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e não pertencimento? Augè (1994) articula seu pensamento sobre lugares e não-lugares antropoló-
gicos relacionando-os aos três traços de excesso da supermodernidade: i) superabundância factual;
ii) superabundância espacial; e iii) individualização das referências. Nesse sentido, seriam os slasher
exemplares dos excessos da supermodernidade no mundo do trabalho?
Novos estudos interdisciplinares podem ser realizados a partir dos resultados dessa pesquisa,
suas sínteses provisórias e sua proposição reexiva. Temas como o das representações de papéis
na vida laboral (cf. Goman, 1961, 2002) e o da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1992; 1993;
2004; 2005; 2007) no contexto especíco do fenômeno slash podem ser frutíferos. Sugere-se, ainda,
ampliar a diversicação do campo contemplando outros contextos prossionais e gerações variadas
de trabalhadores.
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