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DESGOVERNO
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POR FERNANDO MIRAMON TES FORATTINI
© MAN_HALF-TUBE / ISTOCKPHOTO.COM
humanitas • 73
Há mais de 50 anos, norte-
americanos serviram de cobaias
em testes atômicos, e seus relatos,
hoje, mostram como os governos
podem justificar determinadas
ações com o dever de proteção
de seus cidadãos. Contudo, não
hesitam em sacrificá-los
humanitas • 73
Explosão de calor
Entre 1946 e 1962, mesmo sabendo dos efeitos
imediatos da radiação nos episódios nas cidades
japonesas, o governo norte-americano realizou
mais de 200 testes nucleares nas Ilhas Marshall e
no estado de Nevada em um grupo de mais de 400
mil soldados e marinheiros. Esses testes somente
pararam com a assinatura, em 1963, de um tratado
que baniu testes nucleares na atmosfera. Ainda as-
sim, buscando burlar o acordo, muitos países con-
tinuaram realizando testes clandestinamente sob a
água ou embaixo da terra.
Os soldados e marinheiros foram submetidos
a testes em locais muito próximos ao raio da ex-
plosão, munidos de nenhum aparato especial,
vestidos regularmente com calça e camiseta, e
sem nenhuma explicação sobre o que ocorreria a
não ser “não olhe em direção à luz” e “se abaixe”.
Como disse Frank Farmer, um dos sobreviventes
que passou por mais de 18 testes nucleares em
1958: “Você sente a explosão de calor dele […] É
tão brilhante que você realmente vê seus ossos em
suas mãos”. Podemos ouvir diversos relatos sobre
as primeiras impressões desses soldados, após a
detonação das bombas, em vários documentários,
em especial a série de documentário Retro Report
do jornal New York Times.
Inicialmente, diziam para cobrir os olhos com o
braço quando a contagem regressiva começasse.
Após a explosão todos descrevem um clarão em
que, como dizem, era tão forte que você conseguia
ver todos os ossos do braço, como se fosse um raio-
-x. Depois o vento conseguia jogar pessoas longe de
Poucos não conhecem a história dos horrores
de Nagasaki e Hiroshima em que, nos dias
6 e 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos
(EUA), buscando mostrar sua força à União Sovié-
tica, e já pensando na reconguração de forças em
um mundo pós-guerra, resolveram martirizar os
habitantes das duas cidades japonesas, com o dis-
curso de que buscavam acabar com a guerra – uma
guerra já praticamente acabada.
As mortes não só ocorreram com a detonação
das bombas, mas também por seus efeitos. O ex-
plosivo detonado em Hiroshima, em 6 de agosto de
1945, possuía a capacidade de 15 mil toneladas de
TNT, destruiu e queimou mais de 70% dos prédios
da cidade, e ainda mais de 140 mil pessoas até o
nal de 1945, sem falar dos tumores e outras do-
enças crônicas que, no futuro, manifestaram-se nos
sobreviventes. Em Nagasaki, no dia 9 de agosto,
mais de 6,7 quilômetros quadrados da cidade foram
destruídos, o que levou ao desaparecimento de 74
mil pessoas, atingidas por uma bomba que elevou a
temperatura em 4 mil graus centígrados com o seu
impacto. Ambos os episódios deixaram consequên-
cias duradouras para as próximas gerações.
Trata-se de um dos piores e mais vergonhosos
momentos da história da raça humana. O que qua-
se ninguém sabe é que os EUA também testaram
os efeitos de uma bomba atômica em seus próprios
militares. A voz dos veteranos que sobreviveram a
esse triste e revoltante episódio foi silenciada até o
momento, somente encontrando ressonância após
reportagens feitas apenas há dois anos.
“AO INVÉS DE ASSUMIR ALGUMA
FORMA DE MEA CULPA, O GOVERNO
REFORÇA A SUA TESE E ORDENA
QUE ELES COMPROVEM QUE FORAM
OS TESTES OS CAUSADORES
DOS PROBLEMAS – ALGO QUASE
IMPOSSÍVEL DE SE PROVAR”
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tão forte, muitos quebrando ossos nessa fase. Se o
susto não fosse o suciente, soldados, quando em
terra, eram mandados correr diretamente à explo-
são – muitas vezes a somente uma milha (1,6km)
de distância. “O instinto natural seria correr. Mas
não era o que nos mandavam fazer. Logo após a
explosão íamos inspecionar navios atingidos, sem
nenhuma proteção [no meio da imediata radiação]”
(veterano Lincoln Grahlfs).
Possíveis guerras nucleares
Sem serem avisados dos riscos, os marinheiros
e soldados trabalhavam em águas ou terrenos con-
taminados sem nenhuma proteção. Os marinhei-
ros, em especial, utilizavam a água contaminada
para tomar banho e se hidratar. Com o aumento
das tensões na Guerra Fria, os EUA aumentaram
seus treinamentos para possíveis guerras nuclea-
res. Não só para saber os efeitos de uma explosão,
mas, no sentido prático, para entender como tropas
reagiriam após uma explosão e se seria possível
que eles continuassem “funcionando” de acordo
com as ordens. Foram tratados como verdadeiros
“ratos de laboratório”.
Mesmo com a proibição desses testes, o gover-
no dos EUA continuou a negar que eles tivessem
prejudicado de qualquer modo a saúde desses sol-
dados e marinheiros, mas há relatos entre os vete-
ranos sobre todos os tipos de câncer, nódulos, além
de doenças congênitas que afetaram seus lhos,
com muitos casos de malformações. Tais eventos
somente vieram a público nos anos de 1980, pois
era proibido a esses homens contar suas histó-
rias. Todos eram obrigados a assinar um acordo
comprometendo-se com o silêncio, caso contrário
poderiam ser julgados por “traição”.
Entretanto, correndo esse risco, muitos deles
começaram a pedir audiências e compensações
judiciais pelos efeitos em sua saúde. Ao invés de
assumir alguma forma de mea culpa, o governo
reforça a sua tese e ordena que eles comprovem
que foram os testes os causadores dos problemas –
algo quase impossível de se provar. Mas, em 1988,
sobreveio uma lei que reconheceu o direito indeni-
zatório aos veteranos sobreviventes para doenças
muito especícas.
Indenização tardia
Graças a essa pressão, o governo dos EUA pas-
sa a desclassicar arquivos que mostram que os
testes não foram somente em militares, mas em
civis também, os quais, secretamente, sem suas
anuências, recebiam injeções, eram alimentados
ou expostos a plutônio, rádio, urânio e outras subs-
tâncias atômicas. Como diz Clyde Haberman, autor
do artigo “Veterans of Atomic Test Blasts: No War-
ning, and Late Amends” [Veteranos de explosões de
teste atômico: sem alertas e indenizações tardias],
publicado em 2016 pelo periódico NYtimes:
“O que o governo deve aos seus homens e mu-
lheres de uniforme que não são vítimas do fogo
inimigo, mas sim das decisões tomadas por seus
próprios comandantes? Em combate, vidas podem
ser apagadas em um instante. Homens e mulheres
militares aceitam isso como um dado. Mas e se o
perigo os persegue como civis, muito depois das
armas terem cado em silêncio?”
Trata-se de mais um triste episódio no qual
decisões governamentais são tomadas sob a jus-
ticativa de zelar pelo bem da comunidade, sacri-
cando-a. Tal atitude revela total desprezo pela vida
humana e grande apreço às instituições. É um
exemplo extremo, mas que pode ser utilizado para
entender outros menores, bem como a forma como
muitos governos interpretam o papel e o valor dos
seres humanos que são os cidadãos que funda-
menta m as bases do Estado, sacricando -os quan-
do bem entendem, fazendo-o por algo “maior”,
como se isso, de fato, existisse.
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FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI
é doutorando em História Cultural pela
PUC-SP, com bolsa de estudante visitante
na Universidade de Chicago. É autor de
livros como: Foi Golpe! O humor como
resistência aos discursos legitimadores
do golpe de 1964; D esmistificando o
governo Castelo Branco e sua relação com
a grande mídia. Possui especialização pela
Universidade de Michigan, Universidade
da Pensilvânia e pela Transparency
International Schoolon Integrity (Lituânia).
✉ fernandomiramontes@yahoo.com.br
DESGOVERNO