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12 maio 2021
AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 20
MÚSICA
Abutres elegantes
O primeiro requisito para um compositor é es-
tar morto, e screveu em 1951 Arthur Honegger
no seu livro Je suis compositeur. A frase soa
a profeta da desgraça, ou pássaro de mau
agouro, a acompanhar a vida dos criadores
da música erudita, mas, na realidade, não
passa de uma constatação histórica. Vivaldi,
apesar de alguns êxitos em vida, morreu em
Viena num total esquecimento e só no sé-
culo XX foi recuperado o seu legado. Mozart
foi atirado numa vala comum, baixo o triste
olhar do seu cão, único amigo que o seguiu
até ao cemitério e, hoje, toda a Áustria vive
do trabalho dele. Bach, a quem agora reve-
renciamos como um deus, foi ignorado por
mais de um século.
Seguindo o Princípio Copernicano de que
“não somos o centro do universo”, podemos
amortecer a impetuosidade criativa e diluir-
mo-nos na mediania geral. Esse Princípio Co-
pernicano supõe que a localização do obs er-
vador provavelmente não seja especial e,
portanto, sentir-se o centro não é uma pers-
petiva correta. No conjunto do universo, o
planeta terra é mais um entre milhões de pla-
netas, pelo que a perceção de um terrícola,
quando observa a imensidão celeste, é relati-
va. Galileo Galilei, defensor das ideias de Co-
pérnico, foi condenado pelo tribunal da In-
quisição em 1616, por ameaçar o umbigo de
um deus sem habilitações astronómicas.
Modernamente, J. Richard Gott recuperou
aquele raciocínio Copernicano1, também co-
nhecido como o Princípio de Mediocridade,
para calcular a queda do muro de Berlin ou a
extinção da humanidade. A fórmula de Gott
também pode ser utilizada para averiguar o
tempo de vida que vai ter uma obra musical,
desde que o cálculo não seja feito por um ob-
servador especial, que assiste ao seu início
ou ao seu m, pois, como o seu nome indica,
a mediocridade não acontece nos extremos.
Neste sentido há uma certa similitude com a
curva dos valores do Quociente de Inteligên-
cia (QI) na sociedade onde, para além de que
os métodos de medição sejam mais ou me-
nos éticos e áveis, há um certo consenso em
que aproximadamente 82% da população
encontra-se nos valores entre 80 e 120. As mi-
norias acima e abaixo desses valores sofrem
uma existência de inadaptação à ‘mediocri-
dade’. Os sobredotados e génios são muitas
vezes discriminados por terem ideias ‘mui-
to complicadas’ para uma cultura medíocre.
Com muito bom olfato, os grandes tracantes
da música sabem esperar pela defunção do
compositor antes de explorar as suas obras.
O compositor morto não reclama nem im-
põe condições molestas. Se consultarmos as
grandes, e mesmo as pequenas programa-
ções de festivais, orquestras, grupos de câ-
mara e solistas que preenchem os concertos
de música erudita das diversas salas e insti-
tuições, assim como as salas de aula das ins-
tituições de ensino da música, constata-se
que, em geral, as obras de compositores vi-
vos são quase inexistentes ou puramente
anedóticas; há, contudo, meritórias exceções
que só conrmam a regra. O repertório inci-
de uma e outra vez numa liturgia necróla-
tra com cadáveres primorosos para abutres
elegantes. A desculpa para não apresentar
as obras que nos são contemporâneas e de-
veriam dizer-nos respeito, quase sempre se
baseia no hipotético gosto do público. Gos-
to que a eles corresponderia desenvolver e
aperfeiçoar pois ninguém sabe se gosta ou
não daquilo que não conhece. Na música, e
nas artes em geral, a oferta é quem cria a pro-
cura.
Nesta cultura economicista o poder de deci-
são está nas mãos de indivíduos medíocres,
adoradores do bezerro de ouro que só pro-
movem aqueles que lhes lustrem o ego. Mas
se não há compositores, escritores e artistas
que nos empurrem a imaginar outros futu-
ros possíveis, nem os abutres elegantes con-
seguem sobreviver.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
O Bardo na Brêtema
1 Gott, JR. (1993). Implications of the Copernican principle
for our future prospects. Nature 363, pp. 315-319.
Nicolaus Copernicus,
De revolutionibus orbium coelestium
(154 3)