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Conquistar seu tempo através da formação
dos ritmos da própria vida1
Conquérir son temps par la formation des
rythmes de sa vie
Conquering your time through training
rhythms of your life
Gaston Pineau*
Hervé Breton**
RESUMO
Se as pesquisas de Gaston Pineau sobre histórias de vida em formação são
reconhecidas na Europa e amplamente divulgadas no Brasil, como em outros
lugares do mundo, aquelas sobre a relação entre temporalidades e processos
de formação são igualmente importantes. O objetivo desta entrevista é
apresentar, utilizando uma abordagem genealógica, as etapas pelas quais
este trabalho sobre o tempo foi sendo constituído ao longo da pesquisa de
Gaston Pineau e, em seguida, examinar as dimensões contributivas destes
trabalhos sobre os modos de formação das correntes de autoformação,
formação por alternância, formação experiencial e abordagens narrativas
e antropoformativas.
Palavras-chave: Alternância. Autoformação. Histórias de vida em formação.
Temporalidades. Narrativa.
RÉSUMÉ
Si les recherches de Gaston Pineau sur les histoires de vie en formation sont
reconnues en Europe et largement diusées au Brésil, comme ailleurs dans
1 1 Traduzido por Camila Aloisio Alves. E-mail: camila.aloisioalves@gmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.77919
* Université de Tours. Tours, France. Université Du Québec à Montréal. Montréal, Québec,
Canada. E-mail: gaston.pineau@univ-tours.fr - https://orcid.org/0000-0002-0060-0669b
** Université de Tours. Tours, France. E-mail: herve.breton@univ-tours.fr - https://orcid.
org/0000-0003-3536-566X
ENTREVISTA
Educar em Revista, Curitiba, v. 37, e77919, 2021 1
le monde, ceux sur les relations entre les temporalités et les processus de
formation sont tout aussi décisifs. L’enjeu de cet entretien est de présenter,
en empruntant une démarche généalogique, les étapes par lesquelles ces
travaux sur le temps se sont constitués au l des recherches de Gaston
Pineau, pour ensuite examiner les dimensions contributives de ces travaux
sur modes de constitution des courants de l’autoformation, de la formation
par alternance, de la formation expérientielle, et des approches narratives
et anthropoformatives.
Mots clés: Alternance. Autoformation. Histoires de vie en formation.
Temporalités. Récit.
ABSTRACT
While Gaston Pineau’s research on the history of life in adult education is
recognised in Europe and widely disseminated in Brazil, as elsewhere in the
world, his research on the links between temporalities and training processes
is equally crucial. The aim of this interview is to present, using a genealogical
approach, the stages through which this research on While Gaston Pineau’s
research on the history of life in adult education is recognised in Europe
and widely disseminated in Brazil, as elsewhere in the world, his research
on the links between temporalities and training processes is equally crucial.
The aim of this interview is to present, using a genealogical approach, the
stages through which this research on temporalities has developed in the
course of Gaston Pineau’s research, and then to examine the contributory
dimensions of this work on the construction of “self-training” paradigms,
pedagogical device between professional practices in work situations and
formal education courses, the experiential process of vocational education
and narrative and anthropoformative approaches.
Keywords: Experiential learning. Life stories in training. Temporalities.
Narrative.
Hervé Breton: Olá, Professor Gaston Pineau. Esta entrevista compõe o
dossiê Educar em Revista que coordeno junto com a Profa. Dra. Maria Amália
Cunha, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de Belo Horizonte,
Brasil. A revista comporta uma seção de entrevistas, cujo objetivo é pensar a
relação entre temporalidade e formação. Como você arma no artigo que me
enviou, “Conjuguer les temporalités pour en faire des rythmes formateurs”
(Conjugar temporalidades para torná-las ritmos formativos) publicado na revista
Éducation Permanente, no. 217/2018-4 Rythmes et temporalités en formation -
Ritmos e temporalidades em formação PINEAU, 2018, p. 9-21), trabalhar sobre
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a questão do tempo signica engajar-se em um campo monumental de pesquisa.
Antes de começar, gostaria de lhe pedir que nos conte, em algumas palavras,
sobre a sua carreira na universidade como professor e pesquisador.
Gaston Pineau: Você está certo em dizer “na universidade”, porque em
um momento da minha vida eu nem sabia que ela existia. Portanto, vamos
car na universidade. Eu tinha trinta anos quando tudo começou, em 1968, no
Centre Universitaire de Coopération Economique et Sociale – Cuces (Centro
Universitário de Cooperação Econômica e Social), em Nancy, França, que
estava lançando programas de formação de adultos. Inicialmente, esse centro
universitário em Nancy contratou-me como conselheiro de orientação para
adultos em 1968.
Em 1969, como havia grandes programas inovadores no Quebec,
candidatei-me para a vaga de professor no departamento de educação
continuada na Universidade de Montreal, que estava em vias de se transformar
em faculdade. Eles me contrataram como responsável de pesquisa. Não havia
ainda uma distinção entre professor e pesquisador, Era um status especial. Havia
responsáveis de programas e responsáveis de pesquisa. Por isso, fui responsável
de pesquisa de 1969 até 1985 aproximadamente.
Em 1985, foi aberta uma vaga na Universidade de Tours, que solicitava
um candidato com o perl na área de alternância e educação. Candidatei-me,
pois tinha acabado de realizar meu doutorado com Georges Lerbet, precisamente
sobre “Tempo e contratempos na formação”. Fui contratado em 1985 ou 1986.
Eu quei lá até minha aposentadoria em 2007.
Estou agora “jubilado”, como dizem em espanhol. Vivendo a minha
aposentadoria com a minha esposa, reunimos nossas forças restantes em
Montreal, junto aos nossos lhos e netos.
Hervé Breton: Pode-se dizer que já entramos em uma reexão sobre
o tempo em dois níveis. Você já temporalizou ou periodizou a sua trajetória
e, ao mesmo tempo, está situando uma série de produções ou trabalhos que a
marcaram, especialmente o doutorado. Antes de abordar as suas obras, como
você procedeu para periodizar os trabalhos? Pode-se pensar que é algo natural,
mas estas divisões temporais foram produzidas por você. Você saberia dizer
como procedeu para identicar esses grandes períodos?
Gaston Pineau: Trata-se de reduzir ao essencial. Ainda é um pouco padrão
em qualquer currículo. Por outro lado, quando me aposentei, tive a sorte de ter
uma operação de co-biograzação extremamente interessante. Uma colega,
Christine Abels-Eber, coordenou toda uma operação de co-biograzação. Ela
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pediu a mais de vinte pessoas com quem eu trabalhei para escrever a história
do tempo de trabalho comigo e também fez uma entrevista autobiográca
comigo durante uma das minhas viagens. Além disso, pediu-me para reagir
ao que os 28 colegas disseram a meu respeito, o que resultou no livro “Gaston
Pineau: trajet d’un forgeron de la formation, regards croisés de compagnes et
compagnons de route” - Gaston Pineau: trajetória de um ferreiro da formação,
olhares cruzados de companheiros e companheiras de estrada (ABELS-EBER,
2010). Desejo que todos possam se beneciar desse trabalho, que permite um
retorno reexivo de cada um não só em direção à própria reexão, mas também à
reexão dos companheiros e das companheiras de estrada, que são extremamente
esclarecedores e integradores.
Por exemplo, na minha autobiograa, há três períodos principais. Comecei
com a entrada franco-quebecois na vida prossional (1965-1985). Continuei
através dos anos de juventude, entre a forja, a vinha e o engajamento, desde
meu nascimento em 1939 até 1965.
Depois veio o período tourangelle1 entre 1985 e 2007, seguido pela
transição para a jubilación (aposentadoria) em 2007.
Na primeira parte, sobre os olhares cruzados, assinalo – já que existe uma
importante dimensão brasileira – que há um capítulo inteiro sobre a “Gênesis
brasileira e portuguesa”, feito por três pessoas. Sou particularmente sensível
ao “Tempo das gênesis, tempo de tornar-se, tempo do futuro”, de Maria de
Conceição Passeggi, porque ela vem de Natal e ela me inspirou muito. Sobre
as casas familiares rurais, Thierry de Burghgrave escreveu: “Gaston Pineau,
este novo nômade moderno dos itinerários formativos”. De fato, tivemos um
importante mestrado em “formação e desenvolvimento sustentável” em parceria
com o Brasil (PINEAU et al., 2009). Há também um texto de Maria do Loreto
Paiva Couceira, de Portugal, com quem tenho trabalhado muito.
Portanto, há este olhar retrospectivo e coletivo que eu realmente desejo a
todos durante um período de transição para a aposentadoria.
Hervé Breton: Gostaria de voltar à sua tese de doutorado intitulada
“Temporalidade e formação”. Esta é sua primeira grande produção sobre a
questão do tempo no campo da educação de adultos?
Gaston Pineau: Sim e não. Foi um pouco como a autorização para orientar
pesquisas que você está postulando. É uma retrospectiva sobre produções
passadas que tem uma função de síntese, o que faz surgir conexões que você
não vê no momento.
1 Referente aos arredores da cidade de Tours, França.
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A responsabilidade pela pesquisa em educação permanente abriu um
campo imenso. Foi a queda do muro escolar da educação e uma abertura para o
tempo innito, quando se pensou que a educação havia parado na infância e na
adolescência e havia sido reduzida à pedagogia, à conduta das crianças. Então,
nos encontramos diante de um faroeste. Encontrei um reitor proeminente que
me disse: “Se eu quiser que você encontre alguma coisa, é você quem decide o
que procurar”. Ou seja, liberdade total.
Isto foi nos anos 70, época de Paulo Freire e Ivan Illich. Buscávamos
não reproduzir a escola, não tornar a educação permanente uma perpetuação
segundo um modo simples de reprodução. Fácil de dizer, mas menos de fazer.
Nessa época, lancei duas ocinas: uma teórica e uma global sobre os
textos que esboçaram o que poderia ser a educação permanente. Eles foram
mais ou menos inspirados por Ivan Illich (1970) e Paulo Freire (1967). Mas
estes textos eram dispersos e marginais. Muitos deles ainda faziam parte da
literatura cinzenta e pouco socializada. Um importante reagrupamento reexivo
se impôs. Realizei uma pesquisa bibliográca sistemática, complementada por
intervenções de pessoas pioneiras quando ainda estavam vivas.
A primeira ocina gerou meu primeiro livro intitulado “Éducation ou
aliénation permanente? Repères mythiques et politiques” (Educação ou alienação
permanente? Indicadores míticos e políticos, 1977), que me iluminou muito.
Descobri que Platão, com o mito da caverna, propôs, cinco séculos antes da nossa
era, um dos modelos mais bem construídos de educação permanente, alternando
experiências práticas imersas na vida mundana, no claro e escuro da caverna,
com visões teóricas iluminadas pelo sol. Ele a chamou de circuito longo, em
oposição ao circuito curto da Academia que ele havia fundado, que já revelava
os limites de uma educação ligada apenas às idades iniciais da vida. Henri
Desroche escreveu um excelente capítulo sobre a origem utópica pré-moderna
desta perspectiva de aprendizagem ao longo da vida e em todos os setores da
vida. Então, a partir da segunda metade do século XX, vieram os discursos dos
promotores das correntes internacionais, americanas e europeias. Depois vieram
os discursos de institucionalização e os discursos críticos. E nalmente os
discursos da especicação atual, lutando com este horizonte temporal innito. Ele
recua quando avançamos. Mas nos permite avançar e permanecer caminhando.
A segunda ocina foi mais operacional. Como estávamos a serviço
da educação permanente, tivemos que ser autonanciados e, portanto, criar
programas para fazer a junção entre o que chamamos de necessidades da educação
de adultos (prossionalização, conscientização) e os recursos universitários.
Havia uma necessidade de novas ligações entre novas necessidades e novos
recursos. Este foi o início da engenharia de formação e dos diferentes tipos de
acompanhamento para conceber, construir e conduzir novas estratégias e novos
caminhos de formação.
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Fiz minha primeira tese sobre este aspecto: “Rôle et système nouveaux
en éducation. Essai d’application d’une approche systémique à l’analyse d’un
service universitaire d’éducation permanente” (Os novos papéis e sistemas em
educação. Tentativa de aplicar uma abordagem sistêmica à análise de um serviço
universitário de educação permanente, 1973).
Ela foi publicada sete anos depois com o título “Les Combats aux frontières
des organisations. Un cas universitaire d’éducation permanente” (Os combates
nas fronteiras das organizações. Um caso universitário de educação permanente,
1980). Estávamos realmente na fronteira entre a universidade e os movimentos
sociais. Tínhamos, portanto, que encontrar pontos de articulação.
No nal dos anos 70, uma pessoa que trabalhava sobre alternância,
interrogou-me sobre a minha experiência de vida. Na verdade, eu não me formei
de forma linear, mas através da alternância entre uma vida de trabalho, sem
trabalho e com viagens. Foi esta entrevista que me trouxe de volta ao interesse
das histórias de vida para começar a compreender seu percurso, sua trajetória.
Mas estas ocinas representavam três setores distintos. Eu não via
nenhuma conexão entre elas. Quando tive a oportunidade de fazer minha tese,
primeiro tive que encontrar um o condutor comum, ao menos que fosse pelo
título. O primeiro que encontrei foi um o epistemológico: como passar de uma
abordagem positivista para uma abordagem dialética? A abordagem dialética
tradicionalmente torna possível lidar com as contradições do tempo. Mas eu
teria que me trancar em uma biblioteca por cinco anos para passar por tudo
isso. Foi quando, encurralado, eu disse a mim mesmo que o elo era o tempo.
O elo entre os meus campos de trabalho “Educação ou alienação permanente”
(1977), “Combates nas fronteiras das organizações” (1980), “Produzir sua
vida: autoformação e autobiograa” (1983), era a temporalidade. Eu não podia
mais voltar atrás e fui, então, obrigado a me jogar neste oceano, porque não há
nada mais invisível e móvel do que o tempo. O título da tese de doutorado foi
então “Éducation permanente et temps” (Educação permanente e tempo, 1984).
Ela unicou as minhas ocinas e permitiu-me tecer uma história com elas,
trazendo para mim um o cronológico horizontal e diacrônico e um o vertical
e sincrônico de cadeia, segundo o paradigma da tecelagem, epistemologicamente
ligado à construção da história (PAUL, 2003). As ocinas continuaram.
A passagem para o ano 2000 não foi apenas uma passagem qualquer. Não
só houve uma passagem de ano, do centenário, mas também do milênio. Eu quis
marcar esta passagem refazendo uma síntese de todo o meu trabalho sobre o
tempo desde 1986. Isso havia sido há 15 anos. Tirei então uma licença sabática
de seis meses que me permitiu escrever “Temporalités en formation. Vers de
nouveaux synchroniseurs” (PINEAU, 2000, Paris, Anthropos), traduzido para o
Brasil em 2004: “Temporalidades na formação: rumo a novos sincronizadores”
(São Paulo, Triom).
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Hervé Breton: Há a tese “Tempo e contratempo” em 1986? Em seguida
a tese de Estado foi em que ano? Seria a mesma?
Gaston Pineau: Naquela época, existiam duas teses. A tese de terceiro
ciclo (1973), “Les Combats aux frontières des organisations” (Os combates nas
fronteiras das organizações), foi mais operacional. Levei sete anos para publicá-
la. Foi desenvolvida segundo uma abordagem sistêmica. Naquela época, não
estava muito desenvolvida e só fui entender isso cinco ou seis anos mais tarde.
Eu defendi esta tese na Sorbonne, com Jore Dumazedier.
Para fazer minha tese de Estado, não conseguia encontrar ninguém com
quem eu tivesse interesse em trabalhar, até que eu encontro Georges Lerbet,
que me disse: “Com toda a sua produção, você pode fazer uma tese de Estado
sobre os seus trabalhos”. Isso foi em 1984 e originou o trabalho “Éducation
permanente et temps” (Educação permamente e tempo), publicado pela primeira
vez em 1987 com o título “Temps et contretemps” (Tempo e contratempo). Foi
então revisada e concluída em 2000, com o título “Temporalidades na formação:
rumo a novos sincronizadores”.
Hervé Breton: De que forma o tempo apareceu como um sincronizador
ou um elemento ligando os três temas previamente nomeados?
Gaston Pineau: De certa forma, o tempo é um dessincronizador. É melhor
falar sobre as temporalidades. O tempo, no singular, de fato, esconde múltiplas
temporalidades que rompem nesta bela e aparentemente simples unidade.
Queremos encontrar um tempo universal quando de fato somos trabalhados por
temporalidades plurais e contratempos. A denição de tempo que me ajuda é
novamente a de Aristóteles: “É a medida do movimento” (Physique, IV, 11.219
b 1-2). O tempo é constituído por movimentos invisíveis e múltiplos.
Podemos tomar o termo “medida” no sentido cronométrico, que é a
denição de tempo universal, que consiste em dividir tudo em unidades
homogêneas; ou, no nível musical, no sentido de “medida rítmica”. De fato,
para resumir, na educação de adultos, queremos passar de uma época que
obedece à religião do relógio para a construção do ritmo a partir das diferentes
temporalidades. Por esta razão, o artigo “Conjuguer les temporalités pour en
faire des rythmes formateurs” (Conjugar temporalidades para fazer ritmos
formativos, PINEAU, 2018) com tempos e contratempos, representa uma síntese
importante. Existe, entre outras coisas, a ideia de adquirir uma competência
temporal chave, que seria a competência da formação que consiste em ritmar
os tempos de formação. Trata-se da competência ritmo-formadora. Trata-se de
ritmar os tempos e contratempos em movimentos formadores de si.
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Hervé Breton: O que você está apontando seria um gesto de apropriação
desses ritmos?
Gaston Pineau: Presto aqui minha homenagem a um pioneiro português
e brasileiro, Lucio Alberto Pinheiro dos Santos. Em 1931, ele escreveu um livro
completamente desconhecido, La ritmanalise. Ele inspirou bastante Bachelard
(1963) e Bachelard me inspirou muito. Ele diz que o ritmo é a única maneira de
unicar temporalidades contrárias, os tempos e contratempos, tempos longos
e curtos. O ritmo cria unidade com opostos. Mas quais ritmos? Por exemplo,
o ritmo cósmico ritma o nosso tempo humano, apesar de tudo. Não é apenas
o tempo dos relógios. Uma hora da meia-noite não é uma hora meio-dia. Uma
hora de manhã não é uma hora da madrugada, mesmo que aparentemente seja
homogênea. Portanto, há movimentos mais importantes que dão ritmo aos
outros. Daí a noção de sincronizador. Os músicos estão bem cientes de que, em
algum momento, há aquele que dá a medida e sincroniza os diferentes músicos.
O truque é encontrar o sincronizador para substituir o alinhamento do relógio,
a religião do relógio que dá um ritmo uniforme, entre outras coisas, o tempo
escolar. Temos que fazer tudo durante uma hora de aula, uma hora homogênea.
Trata-se, portanto, de substituir este sincronizador mecânico do tempo
horário por outros. Na verdade, existem práticas que nos permitem viver
aplicando ritmos que não o do relógio. Existem práticas rítmicas de reexo
natural. Em um dado momento, a pessoa nasce porque o ritmo biológico do
feto está sucientemente assegurado para tornar o embrião autônomo que pede
para sair e, ao sair, consegue, através de seu ritmo respiratório, sobreviver,
desligado da sua mãe.
Existem, portanto, práticas que, felizmente, asseguram conexões rítmicas
vitais entre o corpo e o meio ambiente. É uma questão de encontrar as principais
práticas e pensar nelas a m de transformá-las em estratégias. Esta manhã, você
deve ter feito sua meditação. Você encontrou uma maneira de fazer deste ritmo
dia-noite o seu próprio ritmo sem ir a toda velocidade, reexivamente, porque
é a hora do dia.
Após certo número de pesquisas, surgiram três práticas naturais que devem
ser transformadas em prática pessoal. O primeiro é o tempo diário dia-noite,
repouso-atividade. Como podemos vivenciar isso? O cotidiano pode ser um
momento importante de formação ou de deformação. Pode ser completamente
entorpecido pelo fato de ser repetitivo. Como podemos transformá-lo em um
ritmo formador?
Há um tempo um pouco mais longo com as histórias de vida. Quando
encontramos um amigo, ele diz: “Então? O que você tem feito?”. Começamos,
então, a contar sobre uma parte da nossa vida para atualizá-lo. A narrativa da
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vida desenvolve uma prática natural de fazer um balanço de tempos em tempos. A
história de vida ou a linguagem da própria vida é um possível sincronizador deste
tempo e um contratempo vital para torná-lo nosso, para conquistar seu tempo.
Há também a alternância, que é mais desenvolvida institucionalmente. O
tempo escolar só é interessante se for vivido através de tempo não escolar, através
de experiência não escolar. Na maioria das vezes, é um ritmo de trabalho-estudo.
Agora, é feita uma distinção entre educação formal e informal ou não formal. Há
vinte anos, só havia educação formal. A alternativa pode ser um sincronizador e
um meio de se apropriar dos tempos e contratempos da vida (PINEAU, 2019).
Hervé Breton: Se voltarmos à vida diária, que tipo de práticas contribui
para encontrar um ritmo na escala da unidade dia-noite? Quando se fala de
histórias de vida, ca claro que a prática da apropriação passa pela linguagem,
pela narração. Quanto à alternância, podemos quase imaginar as questões de
engenharia ou de dispositivo. Com relação à experiência quase imediata do
tempo vivido na escala do dia, quais são as práticas?
Gaston Pineau: Você está certo. É a prática mais difícil de se construir
e nunca é completamente adquirida. O cotidiano é infra linguístico. São as
atividades alimentares e siológicas que primam (dormir, descansar, fazer,
comer, respirar). São realmente as atividades siológicas básicas que impõem
suas leis, às vezes de uma forma tão dominante que elas entorpecem. Estamos
reduzidos a um vegetal. Levantamos porque temos que nos levantar, comemos
porque estamos com fome. E é a repetição innita e reicada. Por muito tempo,
eu mantive isso fora da história de vida. Era muito repetitivo. Não havia eventos
que se sucediam nesse contexto. Não havia o que pensar. É por isso que é
necessária uma análise hermenêutica muito diferente e muito particular para
explorar estes fenômenos infra-conscientes.
Neste ponto, se quisermos nos situar em termos de educação, este
aprendizado não pode ser ensinado, ele pode ser aprendido através de um
processo iniciático com os três grandes momentos presentes em qualquer
processo desse tipo: ruptura, transição e integração. Tomemos o exemplo da
aprendizagem da noite. Diz-se que o cotidiano dura 24 horas. Isso é tudo o
que há. Há sempre os mesmos 60 minutos. Mas, na verdade, as horas noturnas
não são vivenciadas da mesma forma que as horas diurnas. Descobrir como
vivemos as horas noturnas, demanda quase desaprender, deixar os óculos do
dia. O noturno é o não-visual, é o desaparecimento do sentido da visão. Por
outro lado, os sentidos de proximidade (olfato, audição, paladar) tornam-se mais
fortes. Para provar algo, às vezes fechamos os olhos para nos concentrarmos
nas sensações gustativas quase imperceptíveis.
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Minha primeira experiência de aprendizado das 24 horas foi romper com
as horas do dia para tomar consciência das horas da noite. Você entra na fase
de transição onde você se pergunta o que está acontecendo. Ao anoitecer, há
perdas. O que acontece às 22 horas e às 23 horas? Quanto mais avançamos na
noite, mais o contato social é reduzido e mais você se encontra sozinho – seja
completamente sozinho ou com uma outra pessoa muito próxima. À meia-noite,
os centros de concentração estão embaçados. Você realmente não sabe mais
onde está. Dizem, muito frequentemente, que as horas mais difíceis são as 2 ou
3 da manhã. É um intermédio. É o dia que começa a chegar.
Portanto, primeiro foi necessária uma fenomenologia da noite. Nisso,
também, o Bachelard me ajudou muito. Ele é um grande explorador. Ele vê essa
dinâmica como uma maré crescente e decrescente. Lembro-me de que parei a
primeira análise fenomenológica da noite às 5 horas da manhã porque estava
exausto. Foi aí que a autoformação entrou. O polo dos outros se desvanece e
há algo quase siológico, algo sensível vindo à tona. É o lar organizacional
invisível. É invisível e se organiza sem que saibamos como, o quê, com, quando...
os fantasmas, os sonhos não estão em ordem. Tudo vem à tona. Trata-se de uma
nova unidade microcósmica que se estabelece.
Conduzi a primeira análise fenomenológica no nal dos anos 80 graças
à UNESCO e a Paul Lengrand que explorou as principais áreas da educação
ao longo da vida: tempo, espaço, trabalho, lazer, cultura: “Educação ao longo
da vida e tempo”, em Paul Lengrand (ed.)1986, Areas of Learning Basic to
Lifelong Education (Áreas de Aprendizagem Básica para a Educação ao Longo
da Vida). Ele me pediu para cuidar do tempo. Eu havia mergulhado em todas as
grandes losoas sobre o tempo, mas eu não sou lósofo, eu me perdia. Então
perguntei-me o que signicava educação permanente em termos de uma unidade
curta, de 24 horas. Muitas vezes a levamos ao nível da vida. Mas isso signica
algo circunscrito a uma unidade curta? Foi aí que a noite chegou.
Eu tinha feito, então, minha primeira análise. Eu tinha parado, exausto, às
5 da manhã. Quando reeditei o livro “Temporalidades em Formação”, em 2000,
retomei esta análise. Foi quando eu cheguei ao despertar. O despertar concentra
movimentos extraordinários de emergência, de pré-consciência. Muitas vezes,
reduzimos as abordagens psicanalíticas ao consciente e ao inconsciente, enquanto
que há a zona do subconsciente que você explora muito, especialmente com
Pierre Vermersch, que acaba de nos deixar. Ele foi o grande explorador deste
nível de subconsciência. O que é que começou nesse momento? Como podemos
prestar atenção a isso?
Acho que o despertar é importante. Em primeiro lugar, há uma chegada
ao subconsciente. Estamos aqui, mas não temos certeza do que vamos fazer. As
coisas surgem, elas mais ou menos fazem você querer se levantar. E, em algum
PINEAU, G.; BRETON, H. Conquistar seu tempo através da formação dos ritmos da própria vida
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momento, uma decisão é tomada, dizemos a nós mesmos: “Isso me interessa.
Vale a pena despertar”. Mas este aprendizado – ou iniciação – ao movimento
de 24 horas é innito. Você aprende um pouco sobre as horas noturnas, mas
depois tem que articulá-las com o dia. O que é importante? São os sonhos da
noite que queremos realizar durante o dia? Ou é a ordem do dia que diz que
você tem que guardar os sonhos para si mesmo? O que tem precedência sobre
as agendas do dia e as intuições da noite?
Hervé Breton: Aqui estão algumas coisas para se pensar na escala de 24
horas. Nas histórias de vida, há diferentes unidades de tempo? Não é apenas a
existência? Como isso poderia ser caracterizado? Trata-se de outra apreensão
de tempo? Menos dentro do imediatismo?
Gaston Pineau: Durante muito tempo, eu vi a vida cotidiana como diferente
das histórias de vida. “Le quotidien: un haut lieu de formation/déformation
humaine” - Vida cotidiana: um lugar privilegiado de formação/deformação
humana (PINEAU, 2014). Agora, estou começando a trabalhar em histórias de
vida em três velocidades, retomando a noção de Braudel de três velocidades
(PINEAU; LE GRAND, 2019), Les histoires de vie, Paris: PUF, p. 89-90; no
Brasil, 2012, As histórias de vida, Natal: Edufern). Há movimentos individuais
que são temporalidades curtas. Os historiadores dizem que é realmente muito
curto para ser interessante. O que os mobiliza são as temporalidades sociais em
velocidade média. E existem temporalidades longas, planetárias. Os historiadores
dizem que somente o tempo social é interessante. As temporalidades pessoais
são muito curtas e as temporalidades longas são muito longas.
Os historiadores também estão passando por uma crise paradigmática.
Com as histórias de vida, chegou o tempo pessoal curto. Há um debate entre
psicólogos e sociólogos: estes são tempos psicológicos, mas o social é ignorado.
De fato, podemos ver que o tempo psicológico é articulado com o tempo social.
Em grande parte, a história da vida não deve ser reduzida ao tempo social, mas
deve conquistar seu tempo também. Os dois tempos estão começando a se
tornar explícitos.
À medida em que envelhecemos, temos menos tempo sócio prossional.
Estamos mais envolvidos com os tempos de vida pessoais, intergeracionais, mas
também cósmicos: dia/noite; estações... Nesse momento, acho que a história
de vida em três velocidades deve envolver o tempo longo que é paradoxal. É
macrocósmico não apenas na escala das estações, de um ano, mas também
de períodos e, ao mesmo tempo, microcósmico. De fato, com os biorritmos,
percebemos que o macrotempo cósmico tem uma inuência microcósmica em
nossos ritmos biológicos.
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Por exemplo, hoje, quando eu estava pensando na entrevista, era manhã.
No Quebec, na América do Norte, era de manhã. É um microtempo cotidiano que
volta novamente. Fizemos alusão ao tempo de meditação. Muitas vezes é pela
manhã. Trata-se de tomar consciência de que esta hora da manhã nos conecta
aos grandes movimentos cósmicos. As grandes orações dos nativos americanos
me vieram à cabeça novamente. Tem-se a saudação para o sol nascente, para
o grande Espírito: “Nós te homenageamos pelo sol nascente”. É o momento
da criação, do nascimento e do renascimento. Inscrever isso em uma história
é a coisa mais difícil para mim. Como inscrever meu tempo cotidiano em um
ritmo histórico?
Essa é uma questão importante para a terceira idade, pois os tempos sócio
prossionais não existem mais. Se não conseguimos simbolizar, religar nosso
tempo cotidiano ao tempo cósmico, reduzimos o campo da consciência, ele se
restringe. Através do eu autobiográco, António Damásio é categórico a este
respeito. Ele diz que o campo da consciência se restringe aos gestos imediatos,
enquanto que, se quisermos que ele se amplie, devemos abri-lo a ritmos cósmicos
(DAMASIO, 1999).
Hervé Breton: Volto à denição proposta por Aristóteles de “a medida
do movimento”, que talvez se rera à questão da duração. Para o espaço, há
uma noção que é de Gibson (1979), se não me engano, que leva o nome de
“aordance”. O autor fala sobre o acoplamento entre a percepção do espaço
e o modo de ação do sujeito. Na teoria das três velocidades, há a questão da
estimativa da duração para a realização de um tipo de ação ou fenômeno. Faz
parte de um trabalho de formação saber como apreender, de fato, as durações
relativas à realização de movimentos que atravessam o cotidiano ou a existência?
Gaston Pineau: Obrigado, Hervé, por introduzir a noção de espaço-tempo.
Não se pode separar os movimentos do espaço, do espaço físico e do espaço
social. A clivagem entre tempo/espaço, quantidade/qualidade é um traço da
inuência positivista. É uma divisão que temos que enfrentar porque o tempo
é espaço-temporal. Está sempre ligado, para nós, a um lugar espacial e a um
lugar social. O espaço-tempo é uma questão preponderante.
Quanto à duração, se falamos tanto de “sustentável” hoje em dia, é porque
estamos cientes dos limites do instantâneo. Como podemos construir duração
com instantes? Bachelard disse que é mais difícil explicar a duração a partir da
descontinuidade dos nascimentos do que a partir da continuidade dos momentos
ou movimentos. Esse é o desao.
A história de vida consiste em tentar construir uma vida sustentável, mas
também viável em espaços-tempos em movimento, com momentos e idades que
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devem ser articulados, conjugados, colocados juntos, ganhando sentido entre si,
entre os outros e as coisas. Esse é o desao da formação permanente ao longo
dos tempos. Levantá-lo ao ponto de incluir a morte nas histórias de vida é um
dos maiores problemas bioéticos de nosso tempo.
Dedicamos um livro inteiro a esta edição: “Histoires de morts au cours de la
vie” - Histórias dos mortos ao longo da vida (SCHMUTZ-BRUN; LANI-BAYLE;
PINEAU, 2011). O trabalho nestas fronteiras entre morte e vida está no centro
da pesquisa de cuidados paliativos (ALVES, 2019; GALLÉ-GAUDIN, 2014).
Este curso não é, portanto, uniforme e as idades ainda menos. E o principal
problema hoje é compreender isto e empreender uma formação permanente
das idades e de seus cursos. Herdamos uma divisão educacional em três faixas
etárias: a primeira infância e adolescência agrupadas sob a responsabilidade
primária dos pais e professores. A educação deveria parar por aí, suciente
para a idade adulta e ainda mais para a terceira idade, que só tinha que aplicar
o que havia sido ensinado e depois descansar. Esse legado ainda está muito vivo
e condiciona fortemente nossas visões e práticas na vida adulta e pós-adulta.
As formas de viver atualmente estão em meio a uma efervescente explosão
revolucionária, tanto em termos de vidas no trabalho, quanto em termos de vidas
emocionais, espirituais, culturais e intelectuais (PINEAU, 2000, 2004, cap. 7).
De acordo com abordagens transdisciplinares da educação para nossa era
global (MORIN, 1999; MORAES; ALMEIDA, 2012), o primeiro conhecimento
é reconhecer e superar esta cegueira paradigmática de uma pedagogia escolar
herdada. A pesquisa sobre as histórias de vida em formação ao longo dos tempos,
a alternância e o cotidiano nos levou a desenvolver, na dinâmica da caverna
de Platão e dos três mestres educacionais de Jean-Jacques Rousseau (1762)
– o eu, os outros e as coisas –, uma teoria de formação permanente em duas
etapas – experiencial e formal – e três movimentos: auto, sócio e eco formação
(PINEAU, 2000; 2004, cap. 10).
Na primeira idade até os 16, 18 ou 21 anos, dependendo do país, a
educação das crianças é responsabilidade legal dos pais e professores, ou seja,
outras pessoas com um status sócio hierárquico superior. Falamos então de
heteroformação, uma forma de socioformação com os outros; o segundo sendo a
co-formação, em reciprocidade com outros do mesmo status, amigos e camaradas.
Chegar à idade adulta é tornar-se responsável, entre outras coisas,
pela sua própria formação, apropriar-se desta função, exercê-la com plena
responsabilidade, passar a um regime de autoformação. Esta transição não é
tão automática quanto a mudança de idade. Esta autonomização formativa leva
tempo, muito tempo. E evolui em permanência por muito tempo. O período
desde a idade adulta até a aposentadoria é de pelo menos 40 ou 50 anos, a
metade da vida.
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Então, a chegada da aposentadoria é um momento muito forte, porque toda
a autonomia sócio prossional, que serviu para nos construir de forma autônoma,
vai embora. A força física diminui e, portanto, a autonomia. É o ambiente físico
e as coisas que se impõem. Se há dois ou três degraus para subir, olhamos para
o que está acontecendo, enquanto antes, costumávamos saltar com os dois pés.
O polo físico, o eco formador ou eco deformador do ambiente físico torna-se
mais importante. Devemos articular e ajustar a autonomia adquirida desta nova
polaridade. E com o aumento da expectativa de vida, a terceira idade se estende
até a quarta e até a quinta idade. Se a perda de autonomia do movimento físico
e social não for compensada por um ganho de formação simbólica, o mundo
pessoal se torna cada vez menor. Esta formação simbólica não é puramente
imaginária. Ela cria novas conexões, novas comunicações e até mesmo
comunhões entre coisas e pessoas, entre nosso microcosmo e o macrocosmo. A
sabedoria dos antigos não é necessariamente anacrônica. Bachelard (1971) fala
de autocosmogenia. O desao da formação permanente é construir o próprio
mundo conquistando o próprio tempo. Não se tem uma vida inteira para construir
o próprio mundo, para se colocar no mundo (HENNEZEL; VERGELY, 2010).
Hervé Breton: Para nalizar, gostaria de lhe pedir para falar um pouco
sobre as pesquisas contemporâneas, ou atuais, voltadas para a ligação entre o
tempo ou a temporalidade e a formação. Quais são os autores e as obras que
você julga importantes destacar e que foram publicados recentemente?
Gaston Pineau: Você me deu o livro de Rosa sobre aceleração (2013). Uma
excelente revisão do tempo social. É verdade que é o movimento dominante. Mas
a Covid nos força a desacelerar. Ela mostra como a medida do movimento social
não é necessariamente a única. Seu outro livro sobre ressonância (ROSA, 2018)
me inspira mais. Ele assume as diferentes esferas de relacionamento no mundo.
Estou pensando mais especicamente no Brasil com Boaventura de Sousa
Santos (2010, 2016). Ele fala sobre as epistemologias do Sul. Isso é importante
para contrabalançar as temporalidades homogêneas que vêm principalmente do
Norte. Diz-se que a medida do tempo é a medida do poder. Aquele que consegue
impor sua medida de tempo, consegue dominar o outro. Uma grande parte da
colonização do mundo foi feita através da imposição de uma temporalidade
do Norte que queria se apresentar como hegemônica, enquanto isso levou, nas
palavras de Sousa Santos, a uma repressão e negação de outras experiências
temporais, experiências consideradas menos capazes. Para construir uma
alternativa à globalização viável e sustentável, é necessário lutar contra um
desperdício mortal de experiências temporais, pessoais e comunitárias, pois é
a luta pela vida. Toda vida deve desenvolver sua temporalidade especíca para
viver, em detalhes e ao longo do tempo, como você tão claramente desenvolve
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em seu artigo (BRETON, 2020) e na edição 2020, que você acaba de coordenar,
da revista Éducation Permanente sobre a narração da experiência vivida e do
conhecimento experiencial. Muitas vezes é incognoscível. Mas se a pessoa
pudesse mostrar e explicar as estratégias mais ou menos conscientes que usa
para sobreviver, isso realmente enriqueceria nossa cultura. Sousa Santos é,
portanto, importante.
Há também todas as abordagens epistemológicas e fenomenológicas.
Há Natalie Depraz com Le Corps glorieux - O corpo glorioso (DEPRAZ,
2008). Existem abordagens realmente muito interessantes para aumentar a
conscientização de todos esses movimentos microcósmicos e macrocósmicos.
Caso contrário, corremos o risco de perdê-los completamente e de não sermos
sustentáveis por muito tempo.
Outro trabalho de referência, o de Michel Alhade-Jones (2016) sobre
a questão dos ritmos. Para mim, ele é o que faz uma das melhores sínteses
atualmente sobre estas questões muito complexas. Ele leva em conta as
temporalidades dos educadores franceses, brasileiros e norte-americanos. Eles
pensam em temporalidades singulares e não homogêneas. Ele me fez tomar
consciência de algo. Eu não conseguia entender a ligação entre momentos e
movimentos instantâneos. E ainda assim, falamos de momentum. Na verdade,
os movimentos são feitos de momentos. Entre outras coisas, os momentos
vivenciais tornam-se movimentos de emancipação e autonomização somente
se eles puderem ser iluminados por um momento de teorização. Dou graças por
isso. Estou pensando também em Pascal Roquet (2013). Sua grade analítica
para articular micro, meso e macro-movimentos, baseada nos movimentos
simultâneos que podemos operar, é uma pista realmente interessante.
Hervé Breton: Chegamos ao m da nossa entrevista. Desejaria acrescentar
algo mais?
Gaston Pineau: O movimento brasileiro o (auto)biográco é importante.
Os brasileiros também estão comemorando este ano os cinquenta anos da
alternância. Estes movimentos, que foram muito marginais e emergentes, são
realmente portadores importantes do futuro. E devemos celebrar o 70º aniversário
da morte de Lucio Alberto Pinheiro dos Santos. Ele nasceu em Braga, em 1889,
e morreu no Rio de Janeiro, em 1950, depois de, entre outras coisas, ter ensinado
em Carangola, Minas Gerais, em 1927. Celebrar, em 2020, o 70º aniversário de
sua morte, é trazer sua presença de volta entre nós e recolocar a alternância na
cultura do ritmo... das epistemologias do Sul.
Hervé Breton: Muitíssimo obrigado, Professor Gaston Pineau.
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SCHNUTZ-BRUN, Catherine; LANI-BAYLE, Martine; PINEAU, Gaston. Histoires de
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Texto recebido em 30/09/2020.
Texto aprovado em 07/11/2020.
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