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A Brasilidade nos Símiles de Carlos Alberto
Nunes: o caso d’Os Brasileidas
Helena Gervásio Coutinho*
Muito se tem escrito sobre o ofício tradutório de Carlos Alberto Nunes
(1897-1990), sobre suas traduções dos épicos clássicos antigos, dos diálogos
platônicos e do teatro shakespeareano. São consagradas suas traduções
da Eneida de Virgílio1, dos épicos homéricos Ilíada e Odisseia2, do teatro
completo de Shakespeare em 21 volumes (1955), dos Diálogos de Platão3,
das tragédias de Friedrich Hebbel (1964), das peças Igênia em Táuride,
Estela e Clavigo de Goethe (1949), da tragiepopeia A Amazônia de Edgardo
Ubaldo Genta (1968). Carlos Alberto Nunes é reconhecido tradutor de
línguas e gêneros diversos, perpassando o grego, o latim, o inglês, o alemão
e o espanhol; sua experiência tradutória passeia pela épica, pela losoa,
pelo teatro.
Se sua verve tradutória é já reconhecida por suas características
singulares, como, por exemplo, a de seu “hexâmetro português” que chega
*Universidade Federal do Rio de Janeiro | helenagcout@gmail.com
1
Sua tradução da Eneida foi publicada primeiramente em 1981, com nova edição organizada, prefaciada
e anotada por João Angelo Oliva Neto, em 2014, pela Editora 34.
2 A tradução dos poemas homéricos são de 1945 e 1941, respectivamente, com edições diversas até
às de 2015, pela Editora Nova Fronteira.
3 As traduções de Platão foram publicadas entre 1973 e 1980 e reeditadas a partir de 2000, pela editora
da UnB.
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a ser nomeado por estudiosos de métrica como “verso núnico”4 (Conto,
2008; Gonçalves, 2011; Oliva Neto e Nogueira, 2014), seus poemas épicos
e dramáticos ainda carecem de estudos que lhe atribuam um lugar nas
páginas da história da literatura brasileira. São de sua lavra, os
poemas
épicos Os Brasileidas, e Pindorama ou o Brasil restaurado, de
1981; os dramas Moema, de 1950, Estácio, de 1971, Beckman ou A
tragédia do general Gomes Freire de Andrade, de 1975; e a comédia
Adamastor ou O náufrago de Sepúlveda, de 1972.
Apresento aqui uma parte da pesquisa que tem por escopo o estudo
dos símiles no poema Os Brasileidas, como um
dos recursos poéticos
do qual o autor se vale em sua composição e as
modicações
gradativas que sofreram em cada uma de suas três edições. O épico Os
Brasileidas foi publicado primeiramente em 1931, com apenas cinco
cantos e sem comentários. Em 1938, ganhou uma segunda edição, com
nove cantos, acrescida essa de uma separata com uma crítica escrita por
Júlio Dantas5, e alguns comentários ou “apreciações” a respeito da
pri
meira edição do poema feitos por Miguel Couto, Afrânio
Peixoto, Agripino
Grieco e Manuel Carlos6. Finalmente, em 1962 o
poema é publicado em versão completa, com nove cantos e um epílogo,
além do Ensaio sobre a poesia épica, que o precede.
A epopeia Os Brasileidas tem por pano de fundo as expedições
das
Bandeiras — que buscavam explorar o Pindorama, a indígena
“terra das
palmeiras”, desbravar territórios e conquistar riquezas
— empreendidas pelos
sertanistas nos primórdios da história do país.
O herói do poema, Antônio
Rapôso Tavares, procurava encontrar
o lendário reino das Amazonas, para
que assim pudesse ampliar seus
feitos e
contar a todos sobre essas famosas guerreiras.
Quando f
inalmente alcança os domínios amazônicos, Rapôso se vê em meio a um
congresso (à maneira das assembleias, tão recorrentes
4 Trata-se de um “hexâmetro português”, verso de 16 sílabas poéticas, nas quais o equivalente às síla-
bas longas gregas é dado por sílabas tônicas em português (para sílabas breves, em grego, as
átonas em português), com acentos na 1.ª, 4.ª, 7.ª, 10.ª, 13.ª e 16.ª sílabas, de modo a
cadenciar um ritmo próximo ao do hexâmetro em grego. Cf. Gonçalves et al., 2011, pp. 113-117.
5 Nesta separata consta a nota publicada por Júlio Dantas no Correio da Manhã do Rio de Janeiro de
17 de julho de 1938.
6
Os comentários encontram-se no f inal da edição de 1938 do poema Os Brasileidas, sob o título “Algu-
mas apreciações a respeito da 1a edição do poema (1931 — cinco cantos)”. São de tom apreciativo,
nos
quais se lê: “um grande Poeta nos nasceu, e, o que é mais, uma raridade nacional, um Poeta
épico” (Afrânio Peixoto apud Nunes, 1938, p. 229); “Noutro sentido é um Poeta moderno, acaso
adeantado demais para o seu tempo, por isso que a matéria do Poema pressupõe, para que possa
ser tratada com êxito pleno, um estágio da evolução nacional ainda não atingido” (Manuel Carlos
apud Nunes, 1938, p. 229).
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7 Como se vê nas seguintes passagens da Ilíada: Canto I, vv. 17-52; I, vv. 53-307; II, vv. 41-52 e 86-399;
II, vv. 786-810; VII, vv. 344-380; VII, vv. 381-411; VIII, vv. 489-542; IX, vv. 9-88; XVIII, vv. 243-313;
XIX, vv. 40-237. Já na Odisseia, encontramos cenas de assembleia nos seguintes trechos: Canto I, vv.
26-95; II, vv. 6-259; VIII, vv. 1-45; IX, vv. 170-176; XXIV, vv. 413-464.
8 Como exemplo de recepção do poema, temos nas palavras da crítica de Júlio Dantas, em uma se-
parata que consta da edição de 1938, com o conteúdo publicado no Correio da Manhã de 17 de
julho de 1938: “Estamos em presença de uma epopéia, cujo elemento ‘maravilhoso’, característico
dêste género literário, une, num abraço refulgente, a mitologia helénica e a teogonia ameríndia;
onde Tupã — o Júpiter tupí — conversa mão a mão com a loura Venus ciprense, protectora
camone-ana dos portugueses; e onde as concepções cosmogónicas do fabulário grego e os mitos e
lendas da América pre-colombiana se confundem na efabulação e na expressão da obra,
produzindo efeitos imprevistos e deslumbrantes. A acção passa-se na Amazónia, ou seja no
domínio das lendárias mulheres guerreiras icamiabas e obatálidas, réplica das virgens clausímacas
do Termodonte de que nos falam Heródoto e Plínio, ginecocracia militar tapuia revivida pela
imaginação ardente de Colombo, de Pedro Mártir, de frei Gaspar de Carvajal, de Herrera, de
Oviedo, de Orellana, de tantos outros homérides hispano-americanos, e recentemente
interpretada nas suas origens por Henrique de Gándia (História crítica de los mitos de la conquista
americana) como resíduo da lenda inca das esposas misógamas do Sol” (Dantas, 1938, p. 4).
nos poemas homéricos
7
), no qual todas as tribos indígenas da Amazônia se
encontram reunidas. Rapôso e seus companheiros são, então, convidados a
participar da assembleia. A história das amazonas mescla-se com a própria
história do Brasil do tempo dos bandeirantes, e mesmo das viagens dos
povos de além-mar, constituindo o espelho das águas brasileiras uma
“crô
nica do mundo”. A partir daí Carlos Alberto Nunes celebra, dando
voz ao bandeirante e às próprias Amazonas, uma série de feitos e
acontecimentos presentes no imaginário de formação da nação
brasileira8.
Nos anos 20, período em que Carlos Alberto Nunes começou a
traba
lhar no seu poema épico, o Brasil se encontrava em meio a
discussões sobre
um projeto cultural do país que abordasse uma nova e
real brasilidade. A
construção de uma literatura de caráter nacionalista
não era novidade, pois
tal discurso é frequente em quase todas as
escolas literárias. No quinhentismo, são comuns as descrições do
nativo brasileiro com o objetivo de doutriná-lo e cristianizá-lo; o
arcadismo refletiu o movimento de independência da colônia em
relação a Portugal, expondo a influência da situação política na
brasilidade literária; os românticos indianistas trazem o indígena como o
verda-deiro brasileiro, mas caracterizam-no como o “bom-selvagem”,
uma espécie de cavaleiro medieval europeu, idealizado, símbolo da
inocência e pureza. A questão da brasilidade amadurece no pré-
modernismo, com obras como Os sertões (1902), de
Euclides da Cunha, e
Canaã (1902), de Graça Aranha, precedentes que alçaram o caráter
nacionalista a uma forma literária de perceber o Brasil.
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A preocupação com a orientação nacionalista do modernismo não surgiu
junto com o nascimento do movimento, mas apenas em 1924, com a inaugura-
ção de um novo modo de ver e pensar a brasilidade. Até esse momento, a
literatura
e a arte brasileiras acompanhavam as vanguardas europeias,
mantendo uma relação de dependência cultural. A brasilidade modernista,
no entanto, vê a
história do brasileiro não somente no personagem
indígena, mas também nos
regionalismos nacionais e no processo
colonizador, dispondo-se a resgatar, senão a criar, uma História brasileira9.
A “redescoberta do Brasil” no modernismo recuperou tópicos e assuntos
já explorados previamente, principalmente pelos pré-modernistas, e desen-
volveu uma nova maneira de se pensar o país, provocando reexos na cultura
brasileira de modo geral, nos ambientes artístico, literário, político e losóco.
Em uma leitura proposta por Graça Aranha, o excesso da imaginação,
no Brasil, é o traço predominante para a representação de seu universo, pois
a relação do brasileiro com a realidade dá-se por meio de fantasia e ilusão10.
Anal, o país foi construído por mitos sobre o descobrimento e as bandei-
ras, pelo fascínio pela marcha do ouro, por lendas indígenas e africanas, por
medos e ameaças das orestas e águas brasileiras. O próprio Carlos Alberto
Nunes inclui temas fantasiosos em sua epopeia nacional, explorando mitos
brasileiros e outros fundadores, de raízes greco-romanas, transpostos ao Brasil
por outros poetas, citando-se, à guisa de exemplo, a lenda das Amazonas e a
do Gigante de Pedra.
Carlos Alberto Nunes, ao compor seu poema épico, procurou integrar-
se na sua terra para exprimir um interesse universal, assim como acontece,
mutatis mutandi, com os poemas homéricos, que guram como um modelo
para o autor. Em um artigo publicado na Revista da Academia Paulista de
Letras, em 1956, intitulado “Notas de um Tradutor de Homero”, tal fascínio
pela universalidade dos épicos homéricos é exposto. Ali, Nunes defende a
importância da apreciação dos poemas de Homero pelos leitores menos ini-
ciados, pois a sua poesia não seria limitada a apenas uma época, mas a
muitas,
como eterna. Segundo o tradutor, o “frescor dos primeiros tempos e
o halo de inspiração” da Ilíada e da Odisseia sobreviveram aos milênios, e as
obras
libertaram-se das barreiras temporais e da transitividade característica
do ser
humano, resultando em um instrumento de reexão das criações
universais (Nunes, 1956, p. 142).
9
“O tratamento da brasilidade pelo modernismo tem a ver com a problemática cultural do país naquele
momento e traz as marcas de um histórico de debates já presente na história intelectual brasileira”
(Jardim, 2016, p. 22).
10 “No Brasil, o traço caracteristico collectivo é a imaginação. Não é a faculdade de idealisar, nem a
creação da vida pela expressão esthetica, nem o predominio do pensamento; é antes a ilusão que
vem da representação do Universo, o estado de magia, em que a realidade se esváe e se transforme
em imagem” (Aranha, 1921, p. 86).
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Após a leitura cuidadosa do poema Os Brasileidas, foi possível cons-
tatar cerca de setenta e dois símiles, tanto com imagens clássicas, aludindo
aos deuses gregos e à representação da natureza nas epopeias homéricas11,
quanto com imagens de uma nova realidade, remetendo à cultura e aos
hábitos brasileiros, à natureza e aos deuses indígenas e africanos12.
A mais antiga teorização que nos chegou sobre o conceito de símile
é de Aristóteles, que, no livro III da Retórica 1406b, trata do estilo e da
composição dos discursos:
O símile é também uma metáfora. A diferença, na verdade, é pequena:
sempre que se diz ‘ele lançou-se como um leão’, é um símile, mas quando se
diz ‘ele lançou-se um leão’, é uma metáfora. Pois, devido ao facto de ambos
serem valorosos, transferindo-se o sentido, chamou-se ‘leão’ a Aquiles. O
símile é útil na prosa, embora poucas vezes, pois é um elemento poético.
(Tradução de Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, 2006).
Os símiles épicos são, primitivamente, estruturas de comparação explí-
cita entre diferentes coisas. De acordo com Ben-Porat, em seu artigo
de
1992, o símile épico
depende de dois princípios básicos de origem
aristotélica: o princípio formal, que exige a presença de um conector ou
marcador de similaridade (por exemplo, “como”, “semelhante em”, etc.) para
que se possa distingui-lo de uma metáfora comparativa; e o princípio da
distância semântica, que exige que os elementos comparados pertençam a
domínios semânticos distantes, para que ocorra a diferenciação de um símile e
uma comparação literal.
No entanto, a função do símile épico vai muito além
de mera comparação. Segundo Eustácio, arcebispo de Tessalônica no século
XII, o símile seria o condimento da poesia, pois, por meio deles, o poeta
“executa muitas coisas belas”13,
permitindo-lhe enriquecer os versos, incor-
11 À guisa de exemplo, tem-se o seguinte símile, encontrado em Os Brasileidas, Canto I, vv. 412-422
(ed. 1962): “Dêsse modo,/na calada da noite, se concentra/velho bardo, de todo alheio às coisas/
fugaces que o circundam: crava os olhos,/atônito, no azul, pascendo a vista/no painel delicioso, onde
os combates/dos mortais e dos deuses representa;/vendo aí deslizar à destra os astros/em tôrno ao
pólo escuro, a queda estampa/do herói, que mais se arma, quando a Parca/lhe cerceia, em agraço,
as esperanças.”
12
“Mas, mesmo a pé, lança na destra, nunca/me falha a pontaria. Mais certeiro/não pode ser o pescador
que do alto/da ubá ligeira arpoe agigantado/pirarucu, quando ele mais ufano/parecia da força que
lhe é própria.” (Os Brasileidas, IX, vv. 574-579, ed. 1962).
13 In Commentarii ad Homeri Iliadem (ed. M. Van der Valk), I, 270, pp. 23-30, apud. Vieira (2006, p.
12, tradução de Vieira).
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O Telemônio o [Ímbrio] feriu sob a orelha, com a lança comprida, que,
novamente, puxou. Como freixo que no alto crescera
do pico excelso visível de todos os lados, que as folhas
tenras ao solo projeta, quando é pelo bronze cerceado:
tomba o guerreiro, desta arte, ressoando a armadura de bronze.
(Il., XIII, vv. 177-181 — tradução de Carlos Alberto Nunes)
E neste outro do canto VI da Odisseia:
Como leão montanhês avançou, que, na força conado,
marcha, sem que possam ventos nem chuva detê-lo; cintilas
lançam-lhe os olhos; no rastro se atira de bois e de ovelhas,
ou mesmo corças silvestres; a fome a avançar o compele
contra rebanhos e, até, a exp’rimentar-se em curral bem fechado:
dessa maneira Odisseu se resolve a avançar para as moças
de belas tranças, pesar de estar nu; era força fazê-lo.
(Od., VI, vv. 130-136 — tradução de Carlos Alberto Nunes)
14 Vale aqui a explicação de Kenneth Snipes: aúxesis, adicionar detalhes e amplicar a narrativa; enár-
geia, tornar mais vívido e atual; saphéneia, tornar claro; poikilía, evitar a monotomia. (Snipes, 1988,
p. 208-209).
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porando variedade (poikilía), vivacidade (enárgeia), clareza (saphéneia),
amplicação (aúxesis) e decoração (kósmos) ao poema14.
O que interliga os símiles épicos homéricos em relação à sua
temática
é o mesmo que une os ouvintes e leitores na Odisseia e na Ilíada:
as imagens
empregadas são tomadas do campo de experiência comum
aos homens, através de retratos das forças da natureza, das habilidades
humanas ou de crenças compartilhadas. Desse modo, o poeta aproxima
as extravagantes e, de certo modo, inimagináveis cenas descritas na
epopeia à experiência do ouvinte, incorporando na comparação
episódios habituais e cotidianos do homem comum.
Os símiles d’Os Brasileidas cumprem a proposta mencionada anterior-
mente, pois trazem imagens, senão temáticas, em boa parte, encontradas nas
epopeias homéricas, que se abrasileiram, deslocando-se não em seus sen-
tidos, mas em suas representações, em sua nova espacialidade, mesclando
imagens da natureza e da cultura, com destaque para os imaginários brasilei-
ros. Na Odisseia e na Ilíada encontramos símiles que, predominantemente,
apresentam, como guras de comparação, feras, pássaros, fogo, gado, vento,
ondas. As forças da natureza e os animais são elementos de comparação
recorrentes, com se pode ver neste símile do canto XIII da Ilíada:
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Em Os Brasileidas também se observa um uso do símile que parece
remontar a essa tradição dos épicos antigos:
Assim disse Merita, enquanto as ôres
colhia sorridente, e o bandeirante
com discreta mesura saüdava.
Como ofuscado ca e estarrecido
viajante que, perdido na oresta,
relâmpago de súbito surpreende,
muito antes de ter êle ouvido o estrondo
do trovão, que abalados deixa os próprios
fundamentos do mundo — sinal certo da
cólera dos deuses — secundado logo pelo
estalar do grosso tronco
do buriti, que, a poucos passos dele,
vem cair fulminado: assim Rapôso
cou por algum tempo [...]
(Bras., I, vv. 769-782, ed. 1962)
No exemplo acima, Rapôso, o bandeirante, vê-se perplexo após rece-
ber instruções da índia Merita sobre o caminho a tomar para o reino das
Amazonas. Seu assombro é comparado ao de um viajante que, no meio
da oresta, vê um relâmpago repentino surgir e derrubar um buriti, como
símbolo da fúria divina. Nunes realoca o sentimento de surpresa de seu
herói para um cenário mais próximo da realidade do leitor brasileiro, inse-
rindo elementos genuínos da terra das palmeiras, como a árvore buriti,
convertendo o apenas imaginável em real15.
De modo muito semelhante, encontramos no canto VI do poema um
símile que ilustra a reação dos distraídos guerreiros indígenas diante da
invasão de suas tribos pelas tropas portuguesas e bandeirantes, equipa-
rando-a à dor da ferroada da caranguejeira do descuidado viajante que se
15 É ainda surpreendente o símile subsequente a esse, que, para ilustrar a perplexidade e o ensimes-
mamento de Rapôso diante da paisagem nova que se lhe apresenta, traz imagens absolutamente
contemporâneas: “como compositor sentado ao piano,/ no empenho de xar feliz idéia/ musical,
que no sono lhe ocorrera/ de súbito, obrigando-o a levantar-se/ para desenvolvê-la, e a
interferência/
sente de melodias importunas/ aprendidas em sua meninice,/ nos desaos dos
serões, à volta/ das
fogueiras festivas; mas, teimando/ no seu propósito, afugenta as notas/
parasitas que na alma lhe
calaram,/ de recuo chegando até às cantigas/ de ninar da mãe-preta,
quando a rêde/ lhe embalava no alpendre da fazenda,/ té vir a consonar com o fundamento/
mudo das coisas e com o próprio curso/ silencioso dos astros, de onde surge,/ completo, o tema
tanto procurado:/ do mesmo modo o bandeirante a vista/ faz baixar até o fundo da alma nobre,/
de todo alheio às formas inconstantes/ a que relevo dão as belas cores” (Bras., I, vv. 786-807, ed.
1962).
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Menor surprêsa não revela o incauto
viajante que, ao caçar uma das botas
pela manhã, sem antes a esvaziá-la
de algum possível hóspede, a terrível
caranguejeira, à dor da ferretoada,
longe, aos gritos, a atira, já sentindo
pelo dorso correr-lhe o calafrio
da morte, e, atarantado, não atina
nos primeiros momentos com as medidas
mais indicadas para libertá-lo
do veneno que o sangue lhe congela,
sem fôrças o deixando para à ajuda
recorrer do mais próximo vizinho:
do mesmo modo, estupefactos, todos
se mostraram no instante em que a notícia
se espalhou da invasão já consumada
dos fortes portuguêses de São Paulo.
(Bras.,VI, vv. 658-674, ed. 1962)
Nota-se então que no poema de Nunes é marcante a presença de ima-
gens inovadoras que inserem o poema na ambiência de seu país, recorrendo
à fauna e à ora, mas também à realidade cultural brasileira. Assim, lê-se
no canto IV:
Igual transformação se observa alquando
no menino irrequieto e apavorado
que dormir não consegue, por ter mêdo
do escuro e de que o lôbo lhe apareça,
vindo roubá-lo aos pais e carregá-lo
para o covil, porque de companheiro
passe a servir aos feios lôbozinhos -
prática censurável dos adultos
que, presumindo corrigir-lhe as falhas
com tais histórias, só conseguem na alma
cercear-lhe a iniciativa e vacilante
deixá-lo, e fraco, para a vida tôda -
mas se o acalanto da mãe-preta escuta
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esquece de checar a bota antes de calçá-la. Embora o pesar dos autóctones
não seja tangível, o sofrimento causado pela picada da aranha é mais pró-
ximo da realidade do homem comum:
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junto da rêde, que ela embala ao ritmo
da toada triste, aos poucos assossega,
por senti-la ali perto, e agora, atento
na letra da canção, sente povoar-se-lhe
o mundo só de vultos benfazejos
que as trevas afugentam, luminosos
heróis que como guardas de conança
vêm postar-se-lhe ao lado, de mansinho
sôbre os olhos o sono lhe descendo
calmo e reconfortante da inocência.[...]
Mudança assim tão radical, em todos os
presentes se deu, quando Rapôso
começou a contar a poranduba
das bandeiras, [...]
(Bras., IV, vv. 8-30 e vv. 47-50, ed. 1962)
A transformação na atenção do público presente no congresso das
tribos com o início do discurso do heroi Rapôso é relacionada à alteração
de espírito pela qual passa uma criança que, por medo de monstros e
pesadelos, se aconchega à ama e “mãe-preta”, gura recorrente na
história do país, a datar do período da escravidão até o início do século
XX, e nela encontra sossego suciente para mergulhar no sono.
O universo descrito nos símiles empregados por Carlos Alberto Nunes
se aproxima inegavelmente da realidade do homem comum, havendo ainda
comparações que tornam tal ambiência brasileira ainda mais atualizada.
É o caso do símile que se vê logo no início do canto VI, quando Tamira,
uma das amazonas, encoraja Rapôso a continuar o relato dos caminhos dos
portugueses e das bandeiras, sentindo-se decepcionada pela interrupção no
discurso do bandeirante. O descontentamento com a pausa é equiparada
ao desânimo do jovem que acorda de sonhos agradáveis e se depara com
a vida de estudos e pobreza:
Como estudante que adormece em dia
bochornoso, e desperta sorridente,
proferindo palavras desconexas,
sem que de início reconheça o próprio
companheiro de quarto, que o contempla
de sua escrivaninha, onde acabara
de resolver um cálculo difícil,
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392 e que, depois de retornar de viagem
maravilhosa, acorda para a vida
pobre, xando a vista na modesta
mobília da pensão e na gravura
pendente da parede, único adôrno
daquele ambiente austero e talvez causa
da digressão por mundos tão distantes,
e agora, bem desperto, com um suspiro
que lhe trai os mais íntimos anelos,
diz, mais para si próprio, “embora sonho,
bom fôra continuar”: assim Tamira,
sorridente, saúda o bandeirante,
concitando-o a seguir no seu relato.
(Bras., VI, vv. 13-32, ed. 1962)
O símile, portanto, é um recurso de composição, quase uma metáfora,
mas que dela se difere por não haver uma transposição; um expediente
que, embora não seja próprio da poesia, a caracteriza bem especialmente,
sobretudo a épica.
A partir do que se lê em seu Ensaio sobre a poesia épica, que serve de
prefácio à edição d’Os Brasileidas de 1962, percebe-se que Carlos
Alberto
Nunes buscou escrever parte de uma história do Brasil por
meio de uma
composição épica, pois acreditava que o gênero épico era
aquele capaz de melhor tratar dos feitos heroicos de uma nação e da
história da formação
de seu povo, como forma de se saber o passado e
reverenciá-lo. Desse
modo, Nunes parece se valer dos símiles para
caracterizar sua epopeia,
aproximando-a bastante da épica homérica, seu
modelo, mas também como
um recurso para inserir habilmente os
elementos e imagens brasileiros,
unindo tempos e culturas, passado e
presente, traços e comportamentos humanos que permanecem em
ambiente outro.
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Bibliografia
A B RASI L IDA DE N O S SÍM I L E S DE C A R L O S A LBE RTO NUNE S: O C ASO D ’ O S B RASI L EIDAS