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Ícone v. 15 n.2 – outubro de 2014
Dossiê: Fotografia e Audiovisual: aproximações possíveis?
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Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Universidade Federal de Pernambuco
ISSN 1516-6082
De gênero a Dispositivo: o retrato como
encenação e produção de sujeitos em Cindy Sherman e Julia Cameron
Fernando Gonçalves1
Débora Gauziski2
Grécia Falcão3
Resumo: Este artigo discute o retrato como dispositivo de construção e de
problematização das representações do sujeito na fotografia do século XIX e na arte
contemporânea. A partir da noção de anacronismo em Didi-Huberman e Michel
Poivert, o texto analisará o retrato como campo de forças onde se legitimam e ao
mesmo tempo se refutam as lógicas de representação do sujeito na fotografia,
através de referências à literatura, à história da arte e ao audiovisual. Para tanto,
discutiremos a “performance de si como outro” nos autorretratos da artista americana
Cindy Sherman, relacionando-os às “encenações do sujeito como tipo” nos retratos do
século XIX da inglesa Julia Cameron, uma das precursoras do movimento pictorialista.
Com isso, buscaremos mostrar como a questão do tipo fotográfico funcionava já
desde o século XIX tanto como mecanismo de construção e de reconhecimento quanto
como forma de problematizar tais mecanismos em distintas épocas e tradições da
prática fotográfica.
Palavras-Chave: Fotografia; Arte contemporânea; Retrato; Anacronismo; Sujeito.
Abstract: This paper discusses the portrait as device of construction and questioning
of representations of the subject in the photograph of the nineteenth century and
contemporary art. From the notion of anachronism in Didi-Huberman and Michel
Poivert, the text will look the portrait as forcefield which legitimize and at the same
time refute the logical representation of the subject in the photograph, through
references to literature, the history of and audiovisual art. To do so, we discuss the
"performance of self as other" in self-portraits of American artist Cindy Sherman,
relating them to the "staging of the subject as type" in the portraits of the nineteenth
century the English photographer Julia Cameron, one of the precursors of the
pictorialist movement. With this, we will seek to show how the question of the
photographic kind ever since the nineteenth century functioned both as a building and
as the recognition engine as a way to discuss these mechanisms in different eras and
traditions of photographic practice.
Keywords: Movies and Games. Comics. Character Tintin.
1 Mestre e Doutor em Comunicação pela UFRJ (1996 e 2003). É professor associado da
Faculdade de Comunicação Social da UERJ e pesquisador do CNPq. Contato:
goncalvesfernandon@gmail.com
2 Mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil(2014).
Contato: deboragauziski@gmail.com
3 Graduação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil(2009)
Pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro , Brasil. Contato:
gre.falcao@gmail.com
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Introdução
O presente artigo tem como objeto o retrato como dispositivo de
construção e de problematização do sujeito através da análise de traços
persistentes nas imagens de fotógrafos do século XIX e da atualidade. Tal
persistência corresponde, como veremos, à noção de “anacronismo” em Didi-
Huberman (2008) e Michel Poivert (2010). A partir dela, o texto analisará o
retrato não apenas como forma de construção identitária, mas também como
campo de forças onde se legitimam e, ao mesmo tempo, se refutam as lógicas
da representação do sujeito na fotografia.
Procuraremos mostrar primeiramente que, se desde seus primórdios, a
fotografia atendia aos imperativos da produção de marcas de reconhecimento
com as quais legitimava certas formas de produção de sujeito, ela não o fazia
sem deixar atrás de si os rastros da fatura necessária para tal construção. Ao
mesmo tempo, nos interessa mostrar como desde o século XIX esses rastros
de artifício já eram utilizados por alguns fotógrafos para, de certa forma,
discutir os processos de produção subjetiva através das tipologizações
fotográficas, hoje tão característicos de certas produções artísticas
contemporâneas.
De fato, na arte contemporânea, muitos artistas elegem o retrato e
autorretrato como questão e forma expressiva. São em geral imagens de
arquivo, dos meios de comunicação, do quotidiano. Rostos sem expressão ou
fotos posadas que parecem mais falar de nossos modos de ver e dar a ver os
indivíduos do que apenas produzir as construções dos sujeitos e de suas
identidades. Contudo, a partir de uma abordagem anacrônica, procuramos
demonstrar que algumas dessas questões já vem sendo trabalhadas na pintura
e também na própria fotografia desde pelos menos a segunda metade do
século XIX.
Para tanto, apoiados também na perspectiva da imagem como
“montagem”, proposta por Didi-Huberman (2008), analisaremos alguns
trabalhos emblemáticos da artista americana Cindy Sherman, autorretratos em
que ela encarna figuras da história da arte e tipos femininos de filmes B
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hollywoodianos. Neles veremos como a artista, mais do que apenas dispersar
sua identidade em múltiplas faces ou chamar nossa atenção para a difusão
massiva de estereótipos do feminino, reflete sobre os modos de construção
identitária e de produção de sujeito, legitimados através da imagem na cultura
de massa, através de suas “performances de si como outro”.
Num segundo momento, o texto procura mostrar que, curiosamente, o
debate contemporâneo acerca da produção de sujeitos no retrato fotográfico
não é novo e já aparece, desde pelo menos a segunda metade do século XIX,
quando vemos práticas que posicionavam a fotografia para além dos usos que
a legitimavam como simples técnica de reprodução e que, de certa forma, já
evidenciam também sua natureza de “híbrido sociotécnico” (Simondon, 1999;
Latour, 2012), ao mesmo tempo social, técnico, histórico e comunicativo. É o
que veremos nas imagens da fotógrafa inglesa Julia Margaret Cameron.
Precursora de um movimento que buscava para a fotografia um caráter não
meramente documental, suas imagens chamam, porém, talvez mais atenção
pelos deslocamentos que produzem no pensamento sobre a imagem como
artefato.
Finalmente, o trabalho procura ressaltar que, em ambos os casos, essas
tipologias fotográficas podem funcionar tanto como padrões de construção e de
reconhecimento quanto formas de problematizar tais lógicas de representação
no retrato por constituírem, antes de tudo, não um gênero, mas um conjunto
de mecanismos que participa, através dos tempos, da construção da noção de
sujeito a partir da combinação de distintas linguagens e gêneros estabelecidos
na arte.
Do retrato como gênero ao retrato como dispositivo
Um dos temas mais recorrentes na fotografia contemporânea é também
um dos temas mais importantes na história da arte: o retrato. Assim como
representar lugares, temas históricos e compor naturezas-mortas, retratar os
indivíduos constitui, de longa data, um recurso discursivo de organização das
ideias que fazemos do outro e de si.
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Porém, mesmo antes da fotografia, o retrato na pintura já funcionava
como dispositivo4 de criação de identidade e de produção de sujeitos que, ao
mesmo tempo, informavam sobre os critérios de apreciação e de legitimação
desse tipo de imagens, consubstanciados nas intenções do pintor e nas lógicas
de seus sistemas de representação (Arrasse, 2004). É assim que vemos
historicamente já na pintura o uso do cenário, das vestimentas e objetos,
juntamente com a teatralidade da pose e o retoque, forjarem, por meio de
convenções próprias de cada época, uma legitimidade que construía tipos
socialmente reconhecíveis sem que porém tais representações fossem
necessariamente vistas como um artifício.
Através da verossimilhança como convenção, a construção da imagem
subsome tais elementos, juntamente com as escolhas dos enquadramentos e
da composição, tornando-os “possíveis” na imagem sem que esta se torne
ilegítima enquanto representação e fazendo com que os fragmentos usados na
figuração sejam tomados como as coisas que representavam. A fotografia,
portanto, não inaugura tais processos de invenção por meio da representação
imagética. Antes, como bem demonstrou Benjamin (1993), participa desse
movimento de invenção de sujeitos, através da busca da captação de uma
“interioridade” e de uma “essência” dos indivíduos. Mas o que essa busca
revelava, como se sabe, é a construção das noções modernas de “intimidade”
e de “sujeito” consubstanciada pelas formas do “bom retrato”.
Dos daguerreótipos e cartões de visita aos ateliês dos fotógrafos,
cenário, pose e retoque são, portanto, elementos mobilizados para produzir
imagens de pessoas, coisas e lugares, e elementos que precisam desaparecer
como evidências de um artifício. Ao mobilizar tais elementos fazendo-os, em
seguida, desaparecer na construção da imagem, através de sua legitimação
enquanto representação, percebemos o quanto tal operação faz da imagem
uma “operação de montagem” (DIDI-HUBERMAN, 2008). Isso ocorre na
medida em que, tanto na pintura quanto na fotografia, o fantasioso e o
ficcional não deixam de ser percebidos como tal mas serão legitimados por
4 Pensamos aqui o dispositivo na tradição do pensamento de Deleuze e Guattari, na qual este
é visto como um conjunto complexo de relações e maquinações que remetem a seu conceito
de “agenciamento maquínico”. Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura
menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
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regras de uma figuração apoiadas nos princípios racionais da representação
mimética e da verossimilhança.
Contemporânea da experiência da pintura acadêmica, sobretudo até a
segunda metade do século XIX, a fotografia, por seu caráter técnico de
reprodução, acentuou esse aspecto mimético da imagem e foi considerada
como objeto científico antes de ser compreendida como “objeto sociotécnico”5,
ou seja, como dispositivo híbrido de construção de realidade que servia a
diferentes usos sociais através de meios técnicos de reprodução da imagem.
Se os retratos dos séculos XIX e XX foram pródigos em exemplos desses
processos que permitem pensar a “imagem como montagem”, talvez sejam
úteis também para evidenciar que algumas das características dos processos
criativos contemporâneos com fotografia na arte - o questionamento do valor
de verdade do documento, da imagem como artifício e do sujeito/real como
invenção - não são totalmente novos. Eis o cerne de nosso interesse pela
noção de “anacronismo”, que implica a persistência de determinadas formas e
traços pré-modernos e modernos na fotografia contemporânea.
A noção de anacronismo vem se tornando central nos estudos da
imagem na história da arte (sobretudo em autores como Didi-Huberman e
Michel Poivert) e que podem também contribuir para os estudos da imagem no
campo da comunicação. Ela implica a idéia de uma atualidade do passado e
uma inatualidade do presente e que marca, no campo das imagens, aquilo que
seria próprio da imagem: sua condição de objeto sociotécnico, ao mesmo
tempo social, técnico, histórico e comunicativo.
Em Didi-Huberman, por exemplo, o anacronismo é visto como método
que permite cartografar isso que persiste na imagem: lampejo, resquício,
espessura, montagem. Para este autor, a imagem “não é a imitação das
coisas, mas o intervalo feito visível, a linha de fratura entre as coisas” (DIDI-
5 O termo “sociotécnico” aqui é inspirado em Gilbert Simondon. A autor considera que uma
tecnologia nunca é puramente “técnica”, mas também humana e social. Para Simondon, que
influenciou o pensamento de Deleuze e Latour, longe de ser meramente instrumental, a
técnica é fruto de um permanente processo de auto-afetação entre, de um lado, a aquisição de
saberes técnicos e habilidades cognitivas, e de outro, os contextos e regras de usos,
aplicações, subversão e inovação desses conhecimentos por meio das vivências sociais. Cf.
SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techniques. Paris : Aubier, 1999.
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HUBERMAN: 2008, p. 114). O anacronismo seria para ele uma forma de
pensar esse intervalo, essa fratura e essa montagem que a imagem é.
Já Michel Poivert (2010) vê uma relação anacrônica em certas imagens
contemporâneas, sobretudo as que têm como tema o retrato e autorretrato.
Pensando no aspecto de construção e de ficcionalidade da pose, por exemplo,
Poivert vai ver também esta prática ou tematização como algo recorrente na
fotografia desde seus primórdios. Contudo, ele argumenta que a produção
contemporânea se inscreve numa relação temporal que não se submete à
ordem do progresso técnico ou de suas possibilidades, mas numa relação
contemporânea com a teatralidade. É que veremos a seguir.
Cindy Sherman – (re)encenação de si como outro
Cindy Sherman é uma artista fotógrafa norte-americana, nascida em
1954. Estudou Artes na Buffalo University, devido a seu interesse desde a
infância pelo desenho e pela performance. Mundialmente conhecida no mundo
das artes, sua obra encontra-se distribuída hoje por diversas galerias e
museus ao redor do mundo, como Tate Gallery (Londres), Corcoran Gallery
(Washington) e MoMA (Nova York).
Os trabalhos de Sherman consistem em autorretratos nos quais ela
problematiza os estereótipos sociais da mulher, tomando como inspiração e
referência imagens dos meios audiovisuais (cinema, televisão, publicidade) e
da história da arte (pop art, Renascença). Para encarnar estes diferentes
papeis, a artista se caracteriza utilizando maquiagem, próteses, perucas e
diferentes indumentárias. Ela faz uma crítica caricatural da cultura de massa,
já que “a cada mudança de vestuário, cenário, pose e enquadramento a artista
articula a linguagem do gênero culturalmente construído” (PRADA e ÂNGELO:
2008, p. 242).
A esse respeito, Annateresa Fabris (2003, p. 62) aponta que o retrato
“pode afirmar tanto a unicidade da pessoa na multiplicidade dos sujeitos
(personagem com traços de outros modelos) quanto a multiplicidade das
pessoas na unicidade do sujeito (as diferentes máscaras que um retratado
pode assumir)”. Julia Cameron, como veremos adiante, teria mais relação com
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o primeiro caso, pois a fotógrafa buscava justamente produzir sujeitos (ideais
de um feminino sublime) através dos seus retratos encenados. Já as
fotografias de Sherman se relacionariam com o segundo caso, por chamarem a
atenção para os processos de disseminação e reprodução de tipologizações
referenciadas pela cultura massiva e assumidas muitas vezes pelos sujeitos em
suas vidas.
Como vimos, a fotografia produzida nos ateliês fotográficos do século XIX
evidenciava que a identidade dos sujeitos retratados residiria em sua
aparência, afinal, a pose e o vestuário eram utilizados com esse propósito.
Essa artificialidade – no caso, as roupas e temáticas do cenário – era
considerada comum no processo fotográfico:, como observa Fabris: “Se a pose
responde, em um primeiro momento, a imperativos técnicos, assume
rapidamente o caráter intrínseco de apresentação de um simulacro” (FABRIS:
2003, p. 62). Em oposição a este modelo, a artificialidade em Sherman
promove uma discussão da fotografia como artefato, com visíveis rastros de
suas composições. Não mais tida como mera cópia do real, a imagem é
apresentada como objeto de uma teatralidade.
Para avançar no desenvolvimento desse argumento, selecionamos três
imagens de diferentes fases da artista. A primeira, intitulada #58 (1980),
integra a série Untitled Still Films, composta por 130 fotos realizadas entre
1978 e 1980. Neste trabalho, Sherman tem como referência ícones femininos
do cinema e da televisão, como as atrizes Sophia Loren e Brigitte Bardot. Cabe
ressaltar que foi com esta série que a fotógrafa alcançou rapidamente o
reconhecimento internacional durante os anos 1980, através de suas exibições
nos Estados Unidos e na Europa.
Consequentemente, esta também é a fase da artista mais explorada em
trabalhos acadêmicos, principalmente em estudos feministas. Para Fabris
(2003, p. 63), em Stills há um jogo de aparências e superfícies, de onde
“emerge uma visão da mulher não como indivíduo, mas como estereótipo
cultural, como máscara social”.
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Fig. 1 – Cindy Sherman. #58 (1980).
No prefácio do livro-catálogo The Complete Untitled Film Stills (2003),
Sherman relata que os filmes do diretor Alfred Hitchcock, assistidos ao longo
de sua infância, são uma das inspirações para essa série. Segundo ela, as
personagens de Hitchcock são enigmáticas e pouco expressivas, assim não
sabemos muito sobre elas e, por isso, tentamos completar os espaços de suas
vidas. Ela justifica a escolha de personagens femininas com o argumento de
que já estamos muito familiarizados com o papeis masculinos no cinema. A
ideia para este trabalho surgiu enquanto trabalhava como recepcionista na
galeria Artists Space, em Nova York, momento em que teve contato com a
cena artística alternativa da cidade. As primeiras fotos foram tiradas com um
rolo de filme que Sherman perdeu e reencontrou aproximadamente 15 anos
depois.
Nesta primeira imagem, vemos o que parece ser justamente um frame
retirado de uma sequência cinematográfica: o enquadramento e o plano médio
nos remetem à estética fílmica. Cabe destacar que as seis primeiras fotos de
Stills foram manipuladas durante o processo de revelação, utilizando químicos
mais quentes para fazer o filme reticular, resultando num aspecto granulado
como nos filmes antigos6.
Tal como num filme, somos talvez instados a entender o que se passa
nessa fotografia: Quem é esta mulher? Para o que está olhando com tanta
atenção? Obviamente, nesse caso, tais respostas não são relevantes e,
6 Podemos fazer aqui uma adiantar uma aproximação com a fotógrafa Julia Cameron, que
apesar de não manipular suas fotografias durante o processo de revelação, também as
“forjava” através de recursos como desfoques com as lentes.
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certamente, não é por acaso que os stills da série são numerados por
propósito de identificação. De certa forma, remetem a seu propósito de
repertoriar tipos produzidos. Como explica Sherman (2003, p. 7), não há
legendas justamente porque “isso estragaria a ambiguidade”. Ora, é através
dessa ambiguidade que Sherman nos desloca, como artista, da simples
curiosidade sobre os tipos em si, para a atenção aos seus modos de produção
no contexto de uma cultura de massa e também para os efeitos estéticos
dessa produção nos processos de subjetivação.
Esse deslocamento, intencional por parte da artista, surge curiosamente
de uma experiência vivida por ela própria, na qual se evidencia como ela
mesma se sente afetada pelo conjunto de imagens que povoam nossas
sociedades e que ela então, através de um gesto de associação, vai
transformar em obra:
Eu me lembro de olhar para a garota com o cachecol preto (#58) e
pensar que eu estava repetindo a foto ‘garota urbana’ (#21): duas
inocentes olhando ao redor da cidade que aparece ao fundo. Eu pensei
que #58 era uma versão mais estereotipada. Aquela foto incluía o
mesmo personagem na base do World Trade Center com uma maleta,
se afastando da câmera (#59), e isso para mim era o contraponto da
caroneira (#48). Eu senti que eu havia completado personagens
suficientes (SHERMAN: 2003, p. 16, tradução nossa).
Foi a partir daí que Sherman percebeu a possibilidade de apropriação e
referenciação de imagens que povoam a arte e os filmes B hollywoodianos na
elaboração de seu trabalho. Com isso, reafirma a noção de que é impossível
ter um olhar isento de uma relação com outras imagens, já que somos
mediados por referências imagéticas todo o tempo. Como estamos cada vez
mais mergulhados nesta trama, nossa percepção também está em constante
construção e transformação.
Já em Untitled #224 (1990), saímos do tema das tipologizações do
feminino para a encenação de obras da história da arte. Nesse trabalho temos
uma reencenação do quadro Pequeno Baco Doente (Bacchino Malato, datado
entre 1593 e 1594) de autoria do pintor barroco Michelangelo Caravaggio. A
imagem pertence à série History Portraits, produzida pela artista entre os anos
de 1989 e 1990, inspirada em diversos ícones da pintura renascentista. Um
dado pertinente é que a pintura original de Caravaggio também é um
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autorretrato (de acordo com o biógrafo oficial do pintor, Giovanni Baglione).
Há uma questão pictórica na foto de Sherman: num primeiro vislumbre, não
sabemos se se trata de uma pintura ou de uma fotografia.
Caravaggio se pintou e Sherman se fotografou como Baco, tomando a
imagem do pintor como referência. Temos aqui dois diferentes modelos de
representação e materialidades da imagem, que, todavia, relacionam-se. A
historiadora da arte Christa Döttinger (2012) aponta que há uma questão
anacrônica entre os dois artistas, já que em ambas as imagens há uma
artificialidade: “History Portraits confirma novamente que a arte nunca mentiu,
que ela sempre chamou a atenção para a realidade do tempo” (DÖTTINGER, p.
29, tradução nossa).
Fig. 2- Cindy Sherman. Untitled #224 (1990).
Através desta imagem, chegamos à consideração de que não podemos
falar da fotografia contemporânea por si mesma. As imagens são construídas e
ressignificadas a partir de outras imagens, inclusive de outros tempos). Esta é
a base do argumento de Didi-Huberman (2008, p. 32), que afirma que quando
estamos diante de uma imagem, estamos diante do tempo. É que as imagens,
enquanto artefatos, são a um só tempo suporte e dispositivo de construção de
memória, nas quais o passado nunca cessa de se reconfigurar.
A terceira foto selecionada integra a fase mais atual da fotógrafa, que
atualiza seu debate sobre tipos sociais femininos a partir do mesmo princípio
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performático. Para se “travestir” na personagem em questão, Sherman usa
maquiagem pesada, tatuagem tribal no braço e veste blusa de alcinhas, short
curto e óculos de sol na cabeça.
Fig. 3 – Cindy Sherman. Untitled #355 (2000).
Mais uma vez podemos nos sentir tentados a saber quem é essa mulher,
usando para isso os elementos que a artista usou na composição da imagem:
os detalhes de seu figurino, sua pose e sua expressão. O mais importante,
entretanto, não é desvendar a personagem que Sherman está “vestindo”, mas,
sim, perceber como ainda hoje percebemos e reconhecemos o outro com base
em um modelo histórico que constrói e legitima o sujeito através da imagem.
De todo modo, como em outras de suas personificações temáticas, inclusive as
do pornô e do grotesco, inspiradas em histórias infantis e no cinema de horror,
é sempre da fabricação de um corpo e das possibilidades do feminino enquanto
condição humana e social que se trata.
Julia Cameron – entre literatura, pintura e fotografia na (re)encenação
do feminino.
No surgimento da fotografia, a capacidade da câmara de registrar a
realidade de forma tão precisa, não só cumpriu e questionou a tarefa artística
do Renascimento, quanto possibilitou a eficácia no processo de documentação
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e observação requerida pelo mundo científico em plena atmosfera do
naturalismo. Neste clássico debate entre arte e ciência, trazido primeiramente
pela perspectiva na pintura e depois pela invenção fotográfica no século XIX,
surge o desejo de compreender o lugar da técnica na esfera artística,
apropriando-se dos elementos da pintura, enquanto a própria representação
pictórica era alvo de crescentes transformações.
A capacidade da fotografia para traduzir rapidamente o mundo material
numa imagem desafiou pintores a encontrarem versões alternativas ao
realismo. Inspirados pela simplicidade direta da arte anterior ao Renascimento,
os Pré-Rafaelistas7 buscaram a detalhada representação da realidade ao
ampliar o uso de cores vivas e efeitos de luzes brilhantes. Combinando
precisão científica e grandeza imaginativa em seus quadros, este grupo de
artistas constitui o primeiro movimento de arte moderna da Grã-Bretanha.
Uma vanguarda claramente influenciada pelo efeito real trazido pelo meio
fotográfico, quanto também serviu inspiração para fotógrafos da época.
Certos fotógrafos passaram a olhar para o assunto Pré-Rafaelista a fim
de legitimar o status da fotografia como arte8. Julia Margaret Cameron, assim
como Lewis Carroll, Roger Fenton, Henry Robinson, Oscar Rejlander tinham
muito em comum com pintores como John Millais, William Hunt, Dante
Rossetti, e John Inchbold. Assim, estabelecia-se um rico diálogo entre
fotografia e pintura, que gerava uma nova forma de traduzir e representar o
mundo natural, bem como a figura humana. Julia Cameron se inspirou não só
no estilo pictórico do movimento, como em suas escolhas temáticas, que
variavam entre temas da Bíblia e da literatura inglesa.
7A Irmandade Pré-Rafaelista foi um grupo de pintores, poetas e críticos ingleses fundado em
1848 por William Hunt, John Millais e Dante Rossetti. A intenção do grupo era reformar a arte,
rejeitando o que é considerada a abordagem mecanicista adotada após Raphael e
Michelangelo, propondo um retorno ao pormenor abundante, às cores intensas e composições
complexas da arte italiana do Quattrocento.
8 A fotografia naturalista foi um movimento introduzido por Emerson, principalmente através
de seu livro, Fotografia Naturalista para Estudantes de Arte (1889). Emerson insistiu que cada
imagem exigia uma abordagem original baseada na observação direta da natureza. O autor
defendeu o uso de dispositivos visuais, tais como foco diferencial, difusão periférica e tons
suaves. Estes elementos formais foram destinados a relacionarem a imagem pintada ou
fotografada com a visão 'natural' humana. Antecedentes formais do naturalismo podem ser
vistos no trabalho de Hill, Adamson e Cameron, que, mais tarde, viriam a influenciar o
movimento Pictorialista.
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Essencial para a arte Pré-Rafaelista era o rosto de uma mulher. Com
olhos grandes, pele luminosa, cabelos compridos e corpos poderosos. Nesta
pintura de Dande Gabriel Rosetti vemos como o ato corriqueiro de pentear os
cabelos foi parado no tempo, encarnando um enigma do que constitui o
feminino. Quem é ela? O que pensa neste momento? A pintura parece
estabelecer um distanciamento entre a mulher comum e ao mesmo tempo
sublime, nos tornando incapazes de responder tais questões.
Fig. 4 - Dante Rosetti. Lady Lilith (1868).
Na Irmandade Pré-Rafaelista, o romance e a atenção em torno destas
mulheres tendiam a glorificá-las, posicionando-as acima do nível dos mortais
em um reino mítico de heroínas trágicas. É a vida desta mulher que, ao passo
que sofre, é ao mesmo tempo redentora. Assim, ao retratarem a vida vitoriana
de mulheres comuns, como empregadas domésticas e prostitutas, suas
personalidades e vidas reais eram deslocadas para um ideal feminino de
plenitude, junto a uma paisagem de fantasia que nos transportava para o lugar
do sonho. Desta forma, cria-se uma ponte representativa entre o banal e o
extraordinário, o mundano e o sagrado. Uma pintura que estabelece a
prerrogativa de que a construção ideal do feminino se dá diante das mulheres
comuns como um elemento de constante tensão. Ou seja, é nos aproximando
e nos afastando do comum que encontramos o mito feminino. É através de
um olhar deslocado sobre a vida de uma prostituta que podemos encontrar sua
pureza quase divina.
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Neste cenário, os pré-rafaelistas ratificaram a construção de um mito do
feminino baseado na constante tensão entre o real e o surreal, o banal e o
lúdico, o comum e o único, que se desdobra até hoje no ideário hollywoodiano.
Como vimos, Sherman passa a questionar essas construções através do
estranhamento das representações do feminino. Um reino que opera entre a
mulher comum e a produção de marcas de reconhecimento do feminino na
cultura contemporânea.
Este paradoxo da representação do feminino resgatado pelos pré-
rafaelistas foi muito bem retratado por Julia Cameron9 na fotografia intitulada
Beatrice, um tema popular para escultores e pintores vitorianos. Aqui Cameron
fotografou May Prinsep, filha adotiva de sua irmã, como a personagem
Beatrice Cenci, uma jovem que viveu em Roma no século XVI, cujo pai possuía
um grande desejo sexual por ela e passou anos abusando da jovem. Beatrice
planejou com sua madrasta e seu irmão o assassinato do pai. Assassinos de
aluguel fizeram o trabalho, mas, após capturados, confessaram o crime sob
tortura e foram condenados à morte.
9 A carreira fotográfica de Cameron foi curta, abrangendo 11 anos de sua vida (1864-1875).
Ela começou a fotografar aos 48 quando sua filha a presenteou com uma câmera fotográfica.
Apesar de seu estilo não ser apreciado em seu tempo, o trabalho de Cameron teve grande
impacto sobre fotógrafos modernos, especialmente os retratistas. Cameron recorria a amigos,
familiares e trabalhadores domésticos para fazer encarnações modernas de clássicos religiosos
e de figuras literárias inglesas, sem qualquer interesse em estabelecer um estúdio comercial
ou fazer retratos encomendados. Entre seus modelos estava sua empregada doméstica já
transformada em Madonna, seu marido encarnando Merlin e o filho de um vizinho em Menino
Jesus ou, com asas de cisne, em Cupido. (fonte:
http://www.metmuseum.org/toah/hd/camr/hd_camr.htm)
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Fig. 5 - Julia Cameron. Beatrice
Na composição de tons, nas linhas criadas pelo cabelo e pelo turbante da
jovem, pelo olhar resignado da modelo, a Beatrice de Cameron opera
justamente no ideário feminino que desloca-se do comum para o
extraordinário, do mundano para o sagrado.
Esta dualidade do arquétipo feminino como incitado pela arte pré-
rafaelista é ainda intensificado a partir da escolha das modelos de Cameron,
que justamente capturava imagens da mulher comum – suas amigas, suas
parentes e empregadas domésticas – para representar os grandes mitos da
história inglesa e da Bíblia. Neste caso, ao contrário da tradição pictórica, onde
já era corriqueiro utilizar pessoas comuns para encarnar personagens
históricos, em Cameron é relevante destacar o caráter de verossimilhança da
imagem fotográfica como ratificador desta tensão entre a vida comum da
modelo e a representação que ela encena. A particularidade do meio
fotográfico se dá justamente na capacidade de operar tais tensões entre
opostos. É esta a presença fotográfica de Cameron que enseja
desdobramentos na produção das estruturas narrativas que constituem, em
parte, o sentido da imagem feminina hoje e de seus jogos na arte
contemporânea.
Curiosamente, Cameron parece estar não só consciente, mas sobretudo
interessada em se apropriar e em reconstituir as poses e gestos das
representações que viu em esculturas e pinturas, como abaixo, no caso de sua
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imagem de Nossa Senhora. Nela, mais uma vez, Cameron reencena o outro
como um tipo pré-existente.
Fig. 6 - Julia Cameron. Madonna.
A questão da representação através da própria representação também
está presente, mas de forma diferente de Sherman, sendo colocada por
Cameron em outros termos: a particularidade desta imagem fotográfica parece
residir no fato de que necessariamente a mulher retratada existiu, esteve ali,
tinha um certo de tipo de relação com a fotógrafa e sua história, de certa
forma, se conecta com a do tipo que encarna. Assim, embora invisível na
imagem, sabemos que, como em Beatrice, ela tem uma narrativa pessoal (seu
passado, seu presente, seu relacionamento com o fotógrafo, etc.) que
empresta suas expressões de vida ao processo de representação do mito. A
intensificação da sobreposição das narrativas10 da modelo comum ao arquétipo
feminino representado. Em outro ponto, enquanto os fotógrafos da época
criticavam a falta de “qualidade”11 da técnica de Cameron12, são justamente as
10 Ao invés de citar a personagem encenada, muitas vezes Cameron preferia incluir o nome
dos modelos no titulo da fotografia.
11 Julia usa o desfoque como estilo fotográfico se afastando dos acabamentos e poses fixas dos
retratos de estúdios comerciais. Suas aspirações eram, segundo ela, “enobrecer a fotografia e
garantir para ela o caráter e uso da Alta Arte, combinando o real e o ideal, não sacrificando
nada da verdade pela devoção possível à poesia e beleza” (DANIEL, 2000, tradução nossa).
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fotografias borradas e o desfoque que suscitam os desdobramentos sobre o
significado instável, fugaz e fugitivo da imagem:
Não é estranho que Lewis Carroll tivesse problemas com a
inexatidão de Julia Margaret Cameron. Suas imagens eram
obviamente incompatíveis com os padrões miméticos que quase
todos identificavam como o conceito de fotografia. Estava claro
que as imagens de Cameron não tinham uma intenção de
realismo documental, motivo pelo qual não restava alternativa
senão associá-las a uma intenção ‘artística’. (GONZÁLEZ: 2011,
p. 140).
Neste caso, estes aspectos técnicos da fotografia de Cameron, junto às
narrativas pessoais das modelos, se tornam tão importantes quanto o assunto
representado pela imagem, aumentando o efeito de que esta fotografia não
está representando somente um mito do feminino, mas a representação de um
mito por dois modelos, que passam a compartilhar das mesmas histórias.
Considerações finais
A análise de imagens fotográficas contemporâneas, particularmente na
arte, como foi objeto deste artigo, ganha uma outra dimensão quando
realizada a partir de uma perspectiva anacrônica. Tal perpectiva evidencia a
possibilidade de rastrear a persistência de traços visuais e das questões do
século XIX nas imagens da atualidade e de evidenciar sua impureza e
inatualidade.
Com a discussão das produções fotográficas de Sherman e Cameron,
buscamos discutir anacronicamente o retrato como dispositivo que aponta para
continuidades discursivas e não-discursivas no âmbito dos processos de
subjetivação através da imagem. Ao mesmo tempo, buscamos demonstrar
como, independentemente do tempo, tais enunciados de subjetivação apontam
igualmente para possibilidades para sua própria problematização. Apesar de
terem um modus operandi similar, já que ambas utilizam o recurso da
teatralidade com o objetivo de “produzir sujeitos”, Sherman e Cameron
apresentam questões bastante diferentes em suas práticas com a fotografia.
Contudo, o que sobressai em ambos os casos é a ideia mesma de uma
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produção subjetiva performatizada que atravessa os trabalhos de ambas,
mesmo sendo de distintas naturezas e épocas. Através da encenação, cada
uma a seu modo, Sherman e Cameron evidenciam como o retrato, como toda
imagem, constitui um artifício e uma operação de montagem, capaz de
produzir não apenas imagens de sujeitos, reais ou ficcionados, mas é
efetivamente capaz de produzir sujeitos, seja na arte ou nos meios de
comunicação.
Também demonstramos que o gesto de releitura do passado e de um
pensamento crítico sobre os modelos de representação não é inaugurado nem
é um privilégio da arte contemporânea: tanto na pintura quanto na fotografia
contemporânea e do século XIX, é possível problematizar a ideia de
representação mimética e pensar o retrato como um dispositivo que não só
apresenta como questiona o caráter documental e de verdade da imagem.
Vimos, através das fotografias de Sherman e de Cameron como as imagens,
por sua natureza de artifício e de objeto sociotécnico, podem abrir mão de
uma conexão definitiva e estável com seu referente, a fim de revelar outras
possibilidades expressivas e que por isso mesmo se tornam capazes de
evidenciar também o caráter de montagem das imagens.
Por em diálogo Cindy Sherman, em sua relação com as imagens
presentes no cinema e na história da arte, e Julia Cameron, e sua herança
pictórica pré-rafaelista, significa pensar primeiramente que, para além das
rupturas e distinções entre movimentos e vanguardas, ao cruzar tais
referências é possível identificar a persistência da questão da representação do
feminino, vislumbrando os vestígios de um certo padrão de reconhecimento
artístico articulado entre distintas temporalidades. Em segundo lugar, implica
corroborar o pensamento de Poivert, para quem a fotografia contemporânea
não reproduziria em si o que já foi feito na primeira fotografia e na fotografia
moderna, mas inventa com elas uma outra relação. Não mais uma revelação
do mundo, mas “sua própria impureza de artifício, a crítica na crença na
imagem natural do registro” (POIVERT: 2010, p. 225).
Como aponta este autor, mais que uma nova categoria na arte, a
fotografia contemporânea seria uma forma histórica que discute tanto o abalo
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na crença da verdade do índice e do documento, quanto nas noções de belo,
de gênero e de narrativa. Ora, a fotografia contemporânea na arte o faz
exatamente articulando distintos elementos simultaneamente. Uma
perspectiva anacrônica das imagens evidencia isso. Tal visada não implica
apenas observar a relação entre imagens (pintura e fotografia, fotografia e
cinema) e entre tempos, mas também a relação entre modelos de
representação (mímese e teatralidade, simbologia e alegoria), que nos autoriza
a pensar as imagens contemporâneas em termos de uma inatualidade ou de
uma disjunção com o presente.
O “retrato” funcionou, neste caso, como porta de entrada para um
campo de relações que leva-nos a acolher e cruzar outras referências, inclusive
de épocas anteriores, mas também os usos de tecnologias, o contexto histórico
e socio-político de produção e modos de reconhecimento e visibilidade das
imagens como elementos constitutivos da própria experiência do fotográfico.
Ao cruzar algumas dessas referências, o que vemos se desenhar é uma
complexa rede que articula ciência, tecnologia, arte e sociedade e que vai
forjar, como demonstrou Benjamin (1993), nossos modos de perceber o
mundo e os sujeitos e também de produzi-los e mostra-los.
Um ultimo aspecto levantado pelo diálogo com imagens de outros
tempos e de campos diferentes (pintura, cinema, literatura), é a
problematização da própria noção do “gênero” na fotografia. Nesta
perspectiva, o retrato como gênero perde sua condição de categoria “pura” por
estabelecer relações com outras categorias e linguagens, inclusive
tensionando-as e desorganizando-as. Do ponto de vista da fotografia
contemporânea na arte, o retrato ajuda-nos a observar como o documental
remete a jogos de referências diversas (técnicas, subjetivas, culturais, políticas
e históricas), que o torna irredutível à representações dos sujeitos ou às
funções sociais que lhes são atribuídas, e sim, correlato às tramas que
envolvem o ver, o fazer e o mostrar em nossas sociedades.
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