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Em discurso 4 — Pesquisar com gêneros discursivos: interpelando mídia e
política
organizadores Décio Rocha, Bruno Deusdará, Poliana Arantes, Morgana Pessôa
– Rio de Janeiro-RJ: Cartolina, 2020
vários autores.
ISBN: 978-65-992256-9-7
Digital: 800 x 600 dpi — 250 páginas
1. Análise do discurso — gêneros do discurso. 2. Linguística Aplicada. 3. Mídia. 4.
Política I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. II. Título
CDD-410
Em Discurso 4
Pesquisar com gêneros
discursivos:interpelando
mídia e política
© 2020 dos autores
1ª Edição
Projeto Gráco
Editora Cartolina Ltda
Editora Assistente
Erica Lobão Coscarella
Coordenação Editorial
Morgana Maria Pessôa Soares
Conselho Editorial
Prof. Dra. Morgana Maria Pessôa Soares – Editora Cartolina
Prof. Dr. Ernani Cesar de Freitas – UPF – RS
Prof. Dra. Fátima Cristina da Costa Pessôa — UFPA
Prof. Dr. Georg Walter Wink — University of Copenhagen — DEN
Prof. Dr. Heitor Coelho Franca de Oliveira — UERJ – RJ
Prof. Dra. Janaina da Silva Cardoso — Uerj
Prof. Dra. Liana de Andrade Biar — Puc-Rio
Prof. Dra. Marceli Cherchiglia Aquino — USP
Prof. Dr. Rui Manuel de Sousa da Silva — Universidade do Porto — POR
Prof. Dra. Virgínia Colares — UNICP – PE
Autores:
Almerindo Simões Junior
Amanda dos Santos Moura
Anna Carolina Land
Diogo Pinheiro
Estêvão Freixo
Fátima Pessoa
Giselle Almada
Glaucia Almeida Reis Blanco
Glória Di Fanti
Isabel Cristina Rodrigues
Janaína Cardoso
Julia Scamparini
Juliana R. Azevedo
Liana Biar
Luciana Salazar Salgado
Maria do Socorro Morato Lopes
Morgana Maria Pessôa Soares
Naira Velozo
Priscila Gurgel Thereso
Sophie Moirand
Thatiana Muylaert
Vanessa Fonseca Barbosa
Viviane Roux
Editora Cartolina
Rua Pompeu Loureiro, 32
Cep: 22061-900 — Rio de Janeiro — RJ
www.editoracartolina.com.br cartolina@editoracartolina.com.br
Publique suas ideias!
Apresentação
4
A contribuição de pequenos córpus para a compreensão dos fatos da atualidade Sophie Moirand
7
Mídia e debates no contemporâneo: a midiatização da atividade política e seus impactos para os
estudos do discurso Liana Biar e Diogo Pinheiro
27
Os hipergêneros dos mídiuns digitais e a invenção da intimidade ubíqua Luciana Salazar Salgado
33
Do contar ao mostrar, ou estar entre textos de naturezas distintas: o caso de Novecentos, o
pianista do mar Júlia Scamparini
56
“Pacote anticrime”: possíveis deslocamentos na cena enunciativa de notícias do ministério da
justiça e segurança pública Juliana Ribeiro Azevedo
71
“Putaria, putaria!”: Cenas, atos e etos na reunião ministerial de 22 de abril de 2020
Morgana Maria Pessôa Soares e Anna Carolina Land
93
Educação, pesquisa e gestão universitária em contexto remoto: relato de experiência e caminhos
de investigação Janaina Cardoso e Naira Velozo
119
Segue o o no Twitter: análise discursiva de thread da Folha de S.Paulo sobre o governo Bolsonaro
Amanda dos Santos Moura, Glaucia Almeida Reis Blanco e Priscila Gurgel Thereso
129
Do privado ao público: uma análise discursiva da conversa “vazada” entre Sergio Moro e Carla
Zambelli Almerindo Simões Jr, Thatiana Muylaert e Viviane Roux
149
Instituição, Organização e Discurso: os gêneros discursivos e sua prática no espaço universitário
Estêvão Freixo
168
Notas sobre gêneros do discurso em Bakhtin, Volóchinov e Medviédev
Vanessa Fonseca Barbosa e Maria da Glória Corrêa di Fanti
185
A relevância dos quadros cênicos em práticas discursivas fronteiriças: relações entre campos
discursivos traçadas em gêneros do discurso Maria do Socorro Morato Lopes e Fátima Pessoa
201
A ação pela linguagem no trabalho parlamentar: apontamentos sobre coerções de gênero
Isabel Cristina Rodrigues
215
Narrativas de professoras de língua inglesa em formação Giselle Almada
228
Nossos autores
245
33 Pesquisar com gêneros discursivos:
interpelando mídia e política
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Os hipergêneros dos mídiuns digitais e
a invenção da intimidade ubíqua
Luciana Salazar Salgado
As discussões sobre gêneros de discurso
têm sido reavivadas pelos novos modos
de dizer, característicos dos ambientes digitais. Muitos trabalhos têm se debruçado sobre
as propostas fundadoras de Bakhtin e também sobre desdobramentos diversos. Em todo
caso, há algo que parece ser entendido como um marco incontornável: desde 2005, com
o advento das plataformas editáveis que nos deram, a cada um de nós, um certo lugar de
autoria (ou, pelo menos, de polo da produção comunicacional), novos gêneros surgiram
ou remodelaram-se os já catalogados1. Entre eles, e-mail, aba e card, por exemplo,
põem problemas: são gêneros? Esses termos parecem designar organizações discursivas
mais abrangentes ou mais mutantes do que as denições consagradas supõem. O linguista
Dominique Maingueneau propõe pensar em hipergêneros:
Um “hipergênero” não é um gênero de discurso, mas uma formatação com res-
trições fracas que pode recobrir gêneros muito diferentes. Alguns hipergê-
neros, como o diálogo, o jornal ou a carta são, antes de tudo, modos de apre-
sentação formal, de organização dos enunciados: eles restringem frouxamente
a enunciação. Outros, como o relatório ou a entrevista, são mais restritivos:
um relatório de polícia e um relatório de um especialista apresentam algu-
mas semelhanças enunciativas. (MAINGUENEAU, 2015, p. 130, grifo nosso)
Uma breve observação pode ser útil aqui. Nos estudos dos ritos genéticos editoriais,
a diferença entre formalização e formatação é bastante relevante: formalização tem a ver
com o cumprimento das exigências formais que caracterizam um texto em sua dimensão
linguística e, assim, seu pertencimento a um dado universo de circulação; formatação
tem a ver com o cumprimento de exigências formais que caracterizam um texto em sua
dimensão de objeto técnico e, assim, seu pertencimento a um dado campo e, dentro
dele, a uma dada comunidade discursiva2. Sublinhamos aqui essa distinção com vistas a
fortalecer nosso principal argumento: a inscrição material dos discursos, que são sempre
textualizados em objetos técnicos, faz parte da produção dos sentidos.
1 Há uma discussão volumosa sobre o que se passou desde aí. Web 2.0 é um termo que se consagrou para referir essa antevéspera
das chamadas redes sociais que vigoram hoje. Mas o termo é questionado pelos que estudam a arquitetura técnica da internet, com
argumentos que nos parecem muito importantes para os que estudam a circulação de discursos. Não desenvolveremos esse tópico aqui,
remetemos o leitor a três trabalhos esclarecedores, o clássico CASTELLS, 2003 e os recentes LANIER, 2012 e SILVEIRA, 2019.
2 Detalhamentos dessa discussão podem ser encontrados em um trabalho sobre mediação editorial, com ênfase na revisão de textos:
SALGADO, 2016.
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interpelando mídia e política
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Embora Maingueneau não desenvolva esse ponto, o conceito de hipergênero permite
abordar as formatações hoje hegemônicas. O pesquisador propõe o conceito depois de
desenvolver um raciocínio sobre regimes de genericidade, termo com que designa
o funcionamento da cena genérica, uma das três instâncias constitutivas das cenas da
enunciação. Trata-se de um modelo analítico que inclui a cena englobante (tipo de discurso)
e a cenograa (a textualização propriamente), e que retomaremos adiante. Desse modelo
decorre outro, o do ethos discursivo, atinente à imagem de si suscitada em uma enunciação,
um elemento da ordem do sensível que tem função coesiva: de toda cenograa emerge um
ethos que dá unidade ao texto, balizando os sentidos que se produzem na sua enunciação.
Isso ocorre porque no arranjo cenográco se evoca um mundo ético, com base no qual
dados sentidos são preferencias, esperados, exigidos...3
A exploração da noção de mundos éticos é o caminho que nos leva a incluir as
materialidades inscricionais na produção dos sentidos, como procuraremos mostrar. Em
síntese, retomaremos o raciocínio teórico de Maingueneau propondo um acréscimo: a
indissociabilidade entre mundos éticos e materialidades em que se inscrevem as cenas
da enunciação. Para tratar dessas materialidades inscricionais, convocamos a noção de
mídium (DEBRAY, 1990, 2000), que permite incorporar aos estudos discursivos os objetos
técnicos como portadores de discursos. Por m, sobre essas bases, levantamos a hipótese
de que os hipergêneros típicos dos mídiuns digitais acompanham a emergência de uma
paradoxal intimidade ubíqua.
Uma espécie de página se abre — https://www.human.online — sem evidências de
nacionalidade ou institucionalidade, a “página” é de uma url (sinônimo de site?) em que
se promete o que há de supostamente mais íntimo: olharmos detidamente nos olhos de um
outro. No centro dessa aba que é capa do site, todo ele congurado em uma paleta de tons
sépia (evocando um passado?) e contornada por tons confortantes, o rosto de uma senhora
de beleza suave emula os contatos íntimos que temos tido pelas telas4. É uma foto, mas
aparece como um amigo apareceria do outro lado, visto por uma dessas plataformas que
não as de reuniões corporativas, cheias de janelinhas. A diferença é o impacto imediato:
ela nos olha nos olhos. De fato, “me” olha, não há mais nada nem ninguém ali. O fundo,
desfocado, torna hipnótico o olhar num rosto de semi-sorriso discreto, convidativo (uma
Gioconda?). Podemos levantar a hipótese de que ela está num jardim e seus cabelos estão
3 Detalhamentos dessa discussão sobre ethos discursivo podem ser encontrados em dois dossiês que abordam desde os fundamentos
desenvolvidos nos anos 1980, retomando a retórica clássica, até o mais recente “retorno crítico” à noção. Ver: DI FANTI; FERÉ, 2018 e
MOTTA; SALGADO; POSSENTI, 2019.
4 Detalhamentos sobre os aspectos comunicacionais das cores que consideramos aqui podem ser encontrados em GUIMARÃES, 2000.
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desalinhados ao vento, ela está ao ar livre. Mas esses elementos cenográcos são apenas
sugeridos, pois a única contundência da imagem é seu olhar, o mais são efeitos sugestivos
de um movimento que a vivica.
Figura 1: Screenshot da capa do site https://www.human.online, acesso 18 jul. 2020.
Uma mulher idosa, bela, receptiva, vivaz: traços da semântica de um acolhimento agradável
A rigor, é um olhar tecnicamente impossível quando estamos conversando pela
câmera de nossos dispositivos5: numa videoconferência, olhamos para o outro na tela,
não a câmera de nossos equipamentos; movemo-nos em busca dos olhos do outro o tempo
todo, que busca os nossos também, mas os olhares nunca se encontram. A menos que
nos concentremos numa certa posição diante da câmera de um certo tipo de dispositivo
(notebooks e não smartphones, por exemplo). É o que o site ensina a fazer. Logo abaixo
do rosto enigmaticamente simpático — que já é uma experiência (termo recorrente nesse
universo dos mídiuns digitais) —, lê-se o enunciado “Experience presence and heartfelt
connection” [Sinta a presença de uma conexão sincera — tradução nossa daqui em diante].
Abaixo, em fonte menor, uma especicação: “Connect with people from all places and
backgrounds. Slow down and share a moment in silence.” [Conecte-se com pessoas de
todos os tipos e de todos os lugares. Desacelere e partilhe um momento de silêncio].
O site está todo em inglês, uma espécie de plain english, língua de lugar nenhum
ou de qualquer lugar, como atesta seu uso nas ciências, na política, nos negócios. Uma
interlíngua, nos termos de Maingueneau. Aquela que é precisamente a que deve ser, pois
5 O termo “dispositivo” suscita comoção nos estudos do discurso, dadas as contribuições dos círculos foucaultianos, os debates que
ensejam. Aqui, consideramos os objetos técnicos como materialidade não neutra, cujo arranjo material sustenta a lógica que preside
seus usos. Em texto anterior, pudemos relacionar dispositivos e disposições, numa discussão sobre relações entre objetos e sujeitos:
SALGADO, 2013.
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é um modo de dizer constitutivo do que se diz6. Em seguida, três desenhos de linhas nas
e elegantes, sempre arredondadas, evocam conforto. Conjugados à paleta sugestiva de
sépia e ao fundo sugestivo de movimento ao ar livre, sugerem contato com algo que, sem
ser incômodo, não sabemos direito o que é. O uso predominante de uma única fonte não
serifada, bastante típica de enunciados curtos na web7, reforça a familiaridade com que se
produz a imersão (outro termo recorrente nesse universo)8.
Figura 2: Screenshot da rolagem a partir da capa do site https://www.human.online, acesso
18 jul. 2020.
Nesse leiaute clean, todas as formas são arredondadas: não há arestas
Os enunciados são um convite à intimidade. As condições oferecidas: é um espaço
seguro e respeitoso, para desfrutar de uma companhia desinteressada, com base numa
empatia autêntica e conável. A proposta é a partilha de um minuto de silêncio com
alguém do outro lado da tela. Logo abaixo do enunciado — que é um convite e, ao mesmo
tempo, a descrição do serviço oferecido —, há a simulação de uma tela aberta que notica
a presença de dois usuários online. Note-se que não se diz “online”, mas “presentes”, o
que reitera a semântica da intimidade, uma vez que se enfatiza a presença, não a técnica
que permite um certo tipo de contato remoto.
6 A noção de interlíngua está diretamente ligada aos regimes de genericidade. Maingueneau desenvolve o tópico em seu estudo sobre o
discurso literário (Cf. MAINGUENEAU, 2006). Para uma denição sucinta com uma aplicação analítica, ver SALGADO, 2010.
7 Referimos por “web” a estrutura de urls que constitui a dimensão www com as especicidades que, desde 2005, se convencionou
chamar “web 2.0” (ver CASTELLS, 2003; MOROZOV, 2018).
8 Sobre fontários, tomamos como referência o estudo dos aspectos sugestivos das tecnologias tipográcas em SPIEKERMANN, 2011.
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Figura 3: Screenshot da rolagem a partir da capa do site https://www.human.online, acesso
18 jul. 2020.
A simulação da co-presença: o botão Connect [Conecte-se] convida ao gesto
técnico e ao vínculo — uma ambiguidade desejável nesta cenograa.
Abaixo dessa imagem, paráfrases dos enunciados iniciais reforçam o convite à
experiência de imersão: conecte-se a um outro para além de quaisquer barreiras geográcas,
linguísticas ou culturais. Finalmente, antes do rodapé, mais três elementos cenográcos,
sempre na mesma paleta aconchegante, especicam uma vez mais a experiência de imersão
numa profunda intimidade. Mas, nestes enunciados (gura 4), a dimensão pragmática
da experiência — olhar nos olhos de um outro, car em silêncio e desacelerar — leva a
uma abstração conceitualizadora do serviço oferecido: trata-se de uma oportunidade de
observar-se no modo como se estabelece uma relação, cultivando uma serenidade capaz
de engendrar um grande movimento global, sustentado por uma tecnologia precisamente
adequada para isso. O depoimento de “Margaret” (veja-se a intimidade do primeiro nome
apenas) é uma estratégia bastante conhecida em marketing: a citação direta tem efeito de
veridicção e, aqui, nesta cenograa, de partilha da experiência imersiva. Margaret nos diz
que estar com um outro na tela foi simples, acolhedor, terno. Não há o que temer, basta
“estar presente”.
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Figura 4: Screenshot da rolagem a partir da capa do site https://www.human.online, acesso
18 jul. 2020.
A semântica do conforto (com elementos de segurança garantida e de pertencimento a uma ampla
comunidade de apoio) renova: é como “respirar ar puro”.
Consideremos ainda os elementos cenográcos que fecham essa aba inicial9:
1. logo abaixo do que está nessa gura, há um botão para doações em valores pecuniários
(em euros) com o seguinte enunciado: “Help keep the Human Minute free” [Ajude a
manter o Minuto de Humanidade livre]. Cabe observar que “Minuto de Humanidade”
é aí um substantivo próprio. Grafado em letras maiúsculas, designa a experiência
de imersão, o serviço em si, formulando uma espécie de síntese do que se veio
descrevendo na rolagem dessa aba inicial;
2. acompanhando alinhadamente as três imagens anteriores, três boxes trazem três
novos enunciados conclamando ao engajamento, que é um pertencimento a uma
comunidade — “Join us” [Junte-se a nós] —, e todos os botões levam a uma mesma
aba em que se pode logar via Facebook ou via email, para fazer um cadastro. Veja-se
que o pertencimento a essa comunidade está diretamente ligado aos dispositivos de
que cada um pode se valer e aos aplicativos que se costuma usar.
9 Nesta altura, se estivéssemos em uma aula, não em um capítulo de livro, discutiríamos: por que site e não blog? Ambos são urls…
Ambos podem ser chamados de “página”… Ambos podem ter abas… Por ora, ca o registro da pertinência de pensar sobre os gêneros
na sua conjunção com a dimensão técnica em que esses gêneros se textualizam e circulam. Chamemos de “site” o que é mais estável
e institucional, enquanto um “blog” referirá algo que pode até ser parte de um site, sua parte mais dinâmica, destinada a sucessivas
postagens. E postagem, seria um hipergênero? Como se vê, a questão é prolíca.
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No rodapé, logotipos que são também links (hipergêneros?) indicam quatro instituições.
Uma em holandês, cujo slogan diz “De coração”, e outras três em inglês, que oferecem:
cursos de formação para o exercício de um “diálogo global”; um laboratório mundial, o
Kindlab, que “investiga as causas e as consequências da bondade” em um “mundo que
está em crise”; e nalmente uma instituição que faz “wokrshops” e oferece serviços de
“coaching”, sobretudo para escolas, procurando, com seus “palestrantes inspiradores”,
seguir “transformando vidas, dia a dia, com a Bondade”.
Trata-se do arremate da rolagem da aba, na qual se vão acumulando elementos de
uma semântica de comprometimento (engajamento em uma causa) com a Bondade (uma
gentileza serena a ser aprendida e exercida). É como se o convite a olhar nos olhos de um
outro durante um silencioso minuto fosse o exercício de preparação para participar desse
universo de seres bondosos que, desacelerados, na contramão de um mundo autofágico e
cruel, dão-se a chance de reconhecer em si e no outro a condição humana. O “Minuto de
Humanidade” é um ritual iniciático.
Então vejamos: o site human.online (esses são os termos que cam em fonte redonda e
negritada no canto superior esquerdo da tela em todas as abas) oferece o seguinte serviço:
uma “experiência de contato visual” entre “anônimos do mundo todo”, em “ambiente
seguro” e “gratuitamente”. Em termos de regime genérico, do que se trata? Que contratos
entre interlocutores supõe? Que práticas socialmente reiteradas evoca ou cultiva? Sua
cenograa conrma ou inrma um quadro cênico dado? Estas são as questões que orientam
nossa aproximação desse objeto técnico comunicacional.
Em uma apresentação do gênero como noção fundamental dos estudos discursivos,
Maingueneau abre assim o tópico “O gênero na Análise do Discurso”:
Se os analistas do discurso concordam em pensar que a noção de gêne-
ro tem um papel central em sua disciplina, é porque esta não apreen-
de os lugares independentemente das palavras que eles autorizam (con-
tra a redução sociológica), nem as palavras independentemente dos
lugares de que são parte integrante (contra a redução linguística) (2006, p. 233).
Com base nisso, pode-se dizer que a perspectiva dos gêneros de discurso nos leva a
pensar sobre as formas de estabilização dos sentidos dadas por limites que se denem nas
conuências da língua com a organização social. Precisamente aí falamos em discurso.
Por denição, as fronteiras são o tempo todo ameaçadas e novamente demarcadas,
condicionadas que estão ao jogo de forças estabelecidas historicamente. O discurso é um
cerco prenhe de escapes, os gêneros são modos de cercar.
40 Pesquisar com gêneros discursivos:
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Façamos um breve sobrevoo. Paulo Leminski tratou radicalmente desse movimento em
seu romance-ideia, o Catatau, em que a personagem central é um decalque de Descartes
(chamado Cartésio) deslumbrado no contato com os trópicos, maravilhado diante de uma
indizível terra brasilis, cujo exotismo transcende qualquer ordenação jamais estabelecida.
Mas é um maravilhamento “cartesiano”: esse indizível vai sendo dito do modo como parece
razoável dizê-lo, entre a análise racional e o êxtase epifânico. Entre ambas as coisas, e
não ora uma, ora outra. No uxo de tudo o que a personagem vê e pensa, os efeitos de
sentido são vislumbres do indescritível, do impensável. A certa altura, nas páginas iniciais
do parágrafo único que compõe todo o Catatau, Cartésio delira diante do monstro textual
chamado Occam10. Enquanto segue na sua aventura de esperar o explicador (chamado
Artiscewski), Cartésio vai pensando sobre tudo o que anota, sobre a forma como faz as
anotações, sobre o que há nelas de reconhecível e sobretudo o que lhe escapa:
O monstro vem pra cima de monstromim. Encontro-o. Não quer mais car lá, é aqui-
monstro. Occam deixou uma história de mistérios peripérsicos onde aconstrece. Oc-
cam, acaba lá com isso, não consigo entender o que digo, por mais que persigo. Re-
componho-me, aqui — o monstro. Occam está na Pérsia. Quod erat demonstrandum,
quid xisgaravix vixit. Eis isso. Isso é bom. Isto revela boa apresentação. Assim foi
feito isso. Algo fez isso assim, isso cou assim (...) Que faz isso aqui? Isso serve para
ser observado. Só para ser visto, só se passa isso. Aqui dá muito disso. Aqui é a zona
disso. Agora se alguém desconar, ninguém duvide. Isso muda muito. (1989, p. 18).
Esse “absurdo racionalizado” registra − ou parece tentar registrar − numa interlíngua
de código linguageiro muito próprio, o reconhecimento de fronteiras que, então, se
desfazem. É um “absurdo” partilhável porque dá pistas do que pretende ser: essa é uma
narrativa possível num romance-ideia, etiqueta proposta pelo autor, com a qual orienta ou
pelo menos predispõe seus interlocutores. Algumas pistas de enquadramentos inteligíveis
são disseminadas no uxo dos jogos imprevisíveis. É o caso do Ulisses de Joyce, por exemplo,
ou dos zoos descritos por Guimarães Rosa e de outras experiências radicais de subversão de
um procedimento formal previsto por práticas de textualização socialmente estabelecidas.
A subversão não existe se não houver enquadramento prévio.
Diante de dados desse tipo, Maingueneau considera que a lista de gêneros é,
por denição, indeterminada, já que eles variam conforme os lugares, a época e as
coerções próprias de cada um. Caberia, então, ao analista do discurso questionar-se
sobre as coerções dos gêneros, passando de uma concepção do gênero como conjunto
de características formais, de procedimentos, a uma concepção “institucional”. Isso não
10 Sobre esse antológico monstro textual, diz Leminski: “No Catatau, suspeito ter criado o primeiro personagem puramente semiótico,
abstrato, da cção brasileira. Occam é um monstro que habita as profundezas do Loch Ness do texto, um princípio de incerteza e
erro, o ‘malin génie’ da célebre teoria de René Descartes. A entidade Occam (Ogum, Oxum, Egum, Ogan) não existe no ‘real’, é um ser
puramente lógico-semântico, monstro do zoo de Maurício [de Nassau] interiorizado no uxo do texto, o livro como parque de locuções,
ditos, provérbios, idiomatismos, frases-feitas. O monstro não perturba apenas as palavras que o seguem: ele é atraído por qualquer
perturbação, responsável por bruscas mudanças de sentido e temperatura informacional. Occam é o próprio espírito do texto. É um
orixá azteca-iorubá encarnando num texto seiscentista” (1989: 208).
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signica, evidentemente, que os aspectos formais sejam secundários, mas que é preciso
articular o modo de dizer ao conjunto de fatores do ritual enunciativo (1993, p. 35-36).
No Dicionário de Análise do Discurso, de 2004, o verbete gênero de discurso remonta
à Antiguidade, depois cita o uso na tradição da crítica literária, que “assim classica as
produções escritas segundo certas características”, e o uso corrente, como “um meio
para o indivíduo localizar-se no conjunto das produções textuais”, depois arma que há
usos variados nas análises de discurso e nas análises textuais, agrupamentos propostos por
diferentes teorias, metodologias e recortes (CHARAUDEAU, pp. 249-251). Ou seja: há um
farto debate em torno da designação.
Já em Gênese dos Discursos (1984), Maingueneau propunha, decerto considerando a
recepção de Bakhtin naquela altura, que “o gênero da prática discursiva impõe restrições
que se relacionam com o contexto histórico e com a função social dessa prática» (2005, p.
147). Em Novas tendências em Análise do Discurso (1987), famoso manual que mapeia o
estado da arte de então, o autor fala em coerções genéricas, descartando a tentativa de
uma tipologia de abordagem discursiva:
Se há gênero a partir do momento que vários textos se submetem a um conjun-
to de coerções comuns e que os gêneros variam segundo os lugares e as épo-
cas, compreender-se-á facilmente que a lista dos gêneros seja, por deni-
ção, indeterminada. Finalmente, cabe ao analista denir, em função de seus
objetivos, os recortes genéricos que lhe parecem pertinentes (1997, p. 35).
Segundo as formulações teóricas desenvolvidas desde aí, esses recortes são pautados
pelo que se dene como cena da enunciação, que se constrói com base numa dêixis discursiva
denida nas relações que se estabelecem entre interlocutores, cuja interlocução se dá em
uma cronograa e uma topograa discursivas. Observando essas dimensões do discurso, é
possível depreender que a “ecácia da enunciação resulta necessariamente do jogo entre
as condições genéricas, o ritual que elas implicam a priori e o que é tecido pela enunciação
efetivamente realizada” (p. 40). Podemos dizer, então, que as coerções genéricas delimitam
gêneros conforme uma gradação: alguns cercos são menos suscetíveis a escapes que outros,
e isso tem a ver com as práticas sociais que os mantêm ou os transformam. A experiência
do Cartesius de Leminski tematiza isso. E o reconhecimento dessa dinâmica é que leva à
noção de cena, dos gêneros como parte de uma encenação que atualiza um discurso.
No modelo teórico-metodológico que constrói, o linguista propõe que cena englobante
designe uma categoria ampla, ligada a um campo de práticas relativamente difuso embora
delimitável, é o tipo de discurso; conjugada a ela, a cena genérica compõe o quadro cênico,
uma vez que localiza, nesse campo de práticas, os atores implicados, prescrevendo o lugar e
o momento adequados, assim como a estrutura textual e sua inscrição em um dado suporte —
portanto, cena englobante e cena genérica denem um quadro que é anterior à enunciação;
e cenograa é o termo que designa o produto do quadro cênico, a própria textualização.
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Com base nesse entendimento, havia uma tendência anterior à web 2.0 de dar
por assentado que formulários administrativos, por exemplo, costumam ter apenas uma
cena genérica, não uma cenograa própria, enquanto todas as peças de publicidade têm
como característica fundamental a necessidade de construir cenograas próprias: uma
propaganda de cerveja, por exemplo, resulta do investimento de somas signicativas nas
pesquisas em que se procura captar representações que o público consumidor potencial
faz de refrescância ou alegria, ou outras qualidades que se hipotetizam como atributos
desejáveis do produto cerveja. Em todo caso, parece que esse entendimento não vale
para os mídiuns digitais, nos quais até os formulários administrativos têm marca, logotipo,
leiaute customizado. A cenograa nesses mídiuns é sempre a alma do negócio.
Isso torna mais pertinente, cremos, o que Maingueneau propõe em 2002. São três
regimes genéricos: gêneros autorais, impostos pelo autor ou pelo editor, espaço de ação
do sujeito tático; gêneros rotineiros, cujos integrantes têm papéis denidos a priori e
que tendem a perdurar, dispositivos de comunicação social historicamente condicionados;
e gêneros conversacionais, nos quais as forças restritivas horizontais predominam, e suas
delimitações são das mais movediças (p. 147-8). Passa, então, a ver os gêneros autorais
como um tipo de gênero rotineiro e formula um esquema de entendimento dos gêneros
discursivos que agrupa tipos de textualização bastante variados em apenas dois regimes
de discurso bem distintos: gêneros conversacionais e gêneros instituídos. Estes últimos
são os que pesquisa: os gêneros instituídos “não formam um conjunto homogêneo”, são
“aqueles que não implicam uma interação imediata” e “podem ser distribuídos em uma
escala de acordo com a habilidade do falante de categorizar sua estrutura comunicativa
e, especialmente, de elaborar uma ‘cenograa’” (2002, p. 149). De certo modo, todos
os gêneros instituídos podem admitir traços de estilo singularizantes, manobras formais
recorrentes e conjugadas, caracterizadoras de uma maneira peculiar de dizer o dito.
Como há uma grande diversidade de gêneros instituídos, o autor propõe outra
gradação. Fala em gêneros instituídos de primeiro grau, que estão submetidos a pequena
ou nenhuma variação, fórmulas rigorosamente preestabelecidos (lista telefônica,
certidões etc.); de segundo grau, nos quais se espera dos interlocutores que produzam
singularidades conjugadas a roteiros mais rígidos (noticiário de tevê, correspondência
de negócios); de terceiro grau, que admitem variações cenográcas (como um guia de
viagens, que pode ser apresentado em forma de conversa entre familiares); de quarto grau,
que permitem e mesmo requerem a invenção de cenários de fala, mas sem questionar as
estruturas impostas pelo gênero (propagandas, programas de entretenimento na televisão
etc.); e de quinto grau, os “mais autorais”, para os quais a própria noção de gênero
põe um problema; são “consequência de uma decisão pessoal, os vestígios de um ato
de posicionamento interior a um determinado campo, geralmente inscrito na memória
coletiva” (p. 151). Aqui está a máxima ênfase no trabalho cenográco. Lembremos: a
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cenograa se desenvolve no curso da textualização, estabelecendo progressivamente seu
próprio dispositivo de enunciação, procurando, em seu desenrolar, tornar-se convincente,
instituindo a cena enunciativa que lhe dá legitimidade dentro das coerções englobantes e
genéricas. Ela implica um processo circular:
(...) a cenograa aparece, ao mesmo tempo, como ponto de origem do discurso e aquilo
que o engendra; ela legitima um enunciado que, em contrapartida, deve legitimá-la,
deve estabelecer que esta cenograa da qual vem a fala é precisamente a cenograa
requerida para se enunciar como convém, de acordo com o caso, o político, o losó-
co, o cientíco, para se promover determinada mercadoria... (...) O dito do texto deve
permitir a validade da própria cena através da qual os conteúdos surgem (2004, p. 50).
Apoiado em considerações dessa ordem, Maingueneau elabora, então, quatro modos de
genericidade para o regime de gêneros instituídos: os de modo 1 são os mais estabilizados,
tais como praxes administrativas e correspondências comerciais, nos quais os participantes
são intercambiáveis, e os desvios do enquadramento indesejáveis, senão impossíveis; os de
modo 2 são mais individualizados, mas seguem uma cenograa preferencial, na qual cabem
pequenos desvios, desde que não descaracterizem a cena genérica (por exemplo, um
programa político enunciado por meio de uma conversa entre colegas de trabalho); os de
modo 3 são «mais autorais», para além de sua individualização, sua singularidade está em
traços da identidade que cria na interlocução, procurando seduzir e convidar à aproximação,
portanto dene posicionamentos e estilos; os de modo 4 são os «propriamente autorais»,
próximos dos de modo 3, caracterizam-se por um efeito de enunciação soberana, para a
qual o quadro cênico é insuciente, posto que manobras várias podem modicar o curso do
enquadramento-primeiro, por isso estão mais claramente ligados ao efeito autoral.
Essa distinção dos modos de gêneros instituídos não se apresenta como uma base
para a composição de tipologias; antes, visa abordar discursivamente o fato de os arranjos
textuais constituírem-se em gêneros discursivos, e há dos que são bastante estáveis até
os que chegam a uma instabilidade desconcertante, como o Catatau de Leminski ou, para
dar um exemplo bastante conhecido, o fenômeno do teatro que destituiu a quarta parede,
desfazendo noções há séculos assentadas, como as de palco, público, espetáculo etc. Os
regimes de genericidade e, dentro de um deles, os modos de gêneros instituídos viabilizam
o reconhecimento de fronteiras e dos percursos preferenciais das discursivizações11.
Denida essa metalinguagem, voltemos ao site human.online. Não há dúvida de que
se trata de um regime de gêneros instituídos. Mas sua cenograa evoca aspectos do regime
de gêneros conversacionais: a intimidade estabelecida face a face na emulação da co-
presença, um certo léxico e outros elementos cenográcos já descritos acima produzem o
efeito de sentido de uma conversação, embora se trate de uma conexão. E a ambiguidade do
11 Para detalhamento do percurso que Maingueneau faz e que aqui apenas esboçamos, detalhamento que inclui uma reexão muito
esclarecedora sobre as relações que esse percurso estabelece com as propostas de M. Bakhtin, ver CAVALCANTI, 2013.
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termo é produtiva: conectar-se humanamente a um outro implica, aqui, nesta cenograa,
conectar-se via site, usando dispositivos de conexão à web.
Não há dúvida, também, de que não se trata de um material que chamaríamos,
segundo a tradição, de “autoral”, todavia, se consideramos os modos de gênero acima
descritos, temos de classicar esse site entre o 3 e o 4; ou, pelo menos, parece possível
dizer que os modos 1 e 2 não se aplicam. Do que se trata, então?
Seguimos com Maingueneau que, em seu recente manual introdutório à análise
do discurso (2015), propõe vermos na web uma “aplainação das diferenças entre cenas
genéricas” (p. 62). Diz:
Na web, esse enfraquecimento da cena genérica e da cena englobante (onde se
distingue o político, o religioso, o publicitário...) acompanha uma hipertroa
da cenograa digital, que tem pouco em comum com a cenograa estritamente
verbal [...] a cenograa digital pode, então, ser analisada em três componentes:
• um componente iconotextual (o site mostra imagens e ele mesmo constitui um con-
junto de imagens na tela);
• um componente arquitetural (um site é uma rede de páginas acionada de uma de-
terminada maneira);
• um componente procedural (cada site é uma rede de instruções destinadas ao inter-
nauta).
A cenograa digital resulta da interação entre estes três componentes,
que podem convergir ou divergir: por exemplo, uma cenograa procedu-
ral muito didática pode contrastar com uma cenograa iconotextual “poé-
tica” (cores pastel, tipograa elegante...) (MAINGUENEAU, p. 162/163).
Podemos dizer, assim, que human.online tem uma cenograa fortemente procedural,
mas que se desdobra com os efeitos de sentido convocados pela composição iconotextual
que se impõe, conduzindo a uma semântica mais ritual do que instrucional. Para usar os
termos de Maingueneau, mais “poética” do que “didática”. Essa dimensão iconotextual da
cenograa, como vimos, emula um regime de genericidade conversacional, emulação que
se assenta na formatação possível numa arquitetura típica da web, que supõe “uma rede de
páginas” que deve ser “acionada” para ser o que é. A interação é um requisito estrutural.
Assim, o engajamento na causa da Bondade está ritualizado não só na adesão ao
discurso que no site se textualiza, mas também nos gestos que essa adesão implica: abrir,
clicar, cadastrar-se, posicionar-se frente à tela de um certo modo, etc. E é um convite que
vai sendo feito aos poucos, na rolagem da aba principal12. Às vezes somos levados a abas
secundárias, e só uma delas custa muito a se apresentar ao navegante. Rapidamente algum
item do menu ou algum botão na cenograa da aba inicial leva à aba de doação ou à de
cadastramento; mas, para conhecer os termos de uso, é preciso que o usuário encontre, no
12 Não desenvolveremos aqui a relação entre leitor e navegante, bastante discutida em trabalhos recentes na Linguística Aplicada.
Importa registrar que há, na navegação, uma uidez distinta da leitura vivida até o m dos anos 1990, e isso tem a ver com os mídiuns.
Da perspectiva da técnica, um clássico pode ser consultado: CHARTIER, 1999.
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cantinho do rodapé, o único link que não se oferece como aba no menu superior: Terms. Só
nessa aba uma cenograa procedural prevalece nos itens contratuais típicos de um modo
de gênero 1. Itens se sucedem. Neles, somos informados de que se trata de um aplicativo
administrado a partir de Talinn, na Estônia, e, portanto, com base na sua legislação: “These
Terms of Use will be governed by and interpreted in accordance with the laws of Estonia”
[Estes Termos de Uso são informados e interpretados com base nas leis da Estônia]. Não se
diz quais leis nem onde encontrá-las.
Se somos navegadores experimentados e queremos saber qual é a legislação da
Estônia, descobrimos numa vasta oferta de postagens que, desde meados dos anos 2000, o
país decidiu assumir uma posição fortemente atrativa de empresas de tecnologia digital.
Tem, por isso, a legislação mais aberta e exível sobre a comercialização de produtos e
serviços, pouco ou nenhum imposto e burocracia mínima para empresas na área.13
Mas por que importaria legislar sobre o Minuto de Humanidade que se oferece
como experiência segura e gratuita aqui? Porque esse hipergênero site, cuja cenograa
hipertroada oferece gratuitamente uma experiência de imersão como um ritual iniciático
de pertencimento a um movimento global, é também um mídium, como veremos adiante:
um objeto técnico que dá sustentação ao mundo ético que o criou.
A noção de mundos éticos faz parte de uma síntese sobre a dinâmica do que
Maingueneau chama de ethos efetivo, a imagem de si que resulta de uma interlocução.
Figura 5: Diagrama do ethos efetivo (SALGADO; DELEGE, 2018).
Mundos éticos são conjuntos de valores, crenças e imaginários socialmente
estabelecidos e cultivados por comunidades discursivas
Este diagrama sintetiza Maingueneau (2008), um texto seminal, que é retomado em
diversos trabalhos: o ethos efetivo se produz numa conjugação de aspectos de um ethos pré-
13 Ver, por exemplo, no site da UNESCO, a postagem intitulada “Global lessons from Estonia’s tech-savvy government”, disponível em
https://en.unesco.org/courier/2017-april-june, último acesso 18 jul. 2020.
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discursivo (que reúne expectativas e projeções dos interlocutores) e um ethos discursivo
(que emerge da cenograa, atualizando um discurso), sendo que este último se compõe na
dinâmica de textualização que explicita menos ou mais assumidamente traços éticos: há
sempre um ethos mostrado na seleção dos elementos constitutivos da cenograa, e pode
haver um ethos dito nos casos em que o locutor se volta explicitamente para a apreciação
desses traços “próprios”, falando de si mesmo.
As setas duplas no diagrama indicam as dinâmicas em jogo, e todos esses componentes
se assentam, como sugerem as linhas de fundo, nos estereótipos socialmente estabelecidos,
portanto nas crenças, valores e imaginários que o autor chama de cenas validadas, aquelas
exaustivamente retomadas a ponto de denirem as linhas de força das conjunturas em
que emergem os enunciados. Essas cenas validadas radicam nos mundos éticos. Estes
têm a ver, então, com as condições de produção de um discurso textualizado e designam
fundamentalmente aspectos da ordem do sensível que participam da tessitura do material
inteligível numa textualização.
Importa sublinhar que se trata de uma teoria dos imaginários que não dispensa os
argumentários; antes, leva em conta dimensões evocadas (sugeridas, suscitadas) pelo
arranjo textual, das quais emerge a voz garantidora do que se diz. O como propõe
Maingueneau, é um corpo e um caráter evocados, delineados na cenograa. Esse corpo e esse
caráter são fabulados conforme os modos de portar-se previstos numa dada comunidade,
de movimentar-se no espaço como membro de uma dada organização social. A voz adora
dá garantias (ou se supõe que deva dar) que visam à incorporação dos interlocutores, que
aderem a um dito por meio de um modo de dizer. E aí está a força argumentativa do ethos:
o discurso não resulta da associação contingente entre um “fundo” e
uma “forma”; é um acontecimento inscrito em uma conguração sócio-
-histórica e não se pode dissociar a organização de seus conteúdos, e o
modo de legitimação de sua cena discursiva (MAINGUENEAU, 2008, p.74).
Especicando esse entendimento, acrescentamos a noção de mídium, que
Maingueneau, como outros analistas do discurso, empresta de Régis Debray14. O mídium é o
objeto central da midiologia, que estuda as mediações (e não as mídias, como as traduções
brasileiras do termo mediologia podem fazer crer). Dessa perspectiva, põem-se em relevo
os objetos técnicos. Trata-se de assumir este raciocínio:
Por um lado, privilegiando a dimensão diacrônica, perguntar-nos-emos por quais
redes de transmissão e formas de organização se constituiu esta ou aquela herança
cultural. De que maneira foram instituídos os “pensamentos fundadores”? Qual meio
14 Em Discurso Literário, retomando trabalhos dos anos 1990, Maingueneau aborda “problemas de mídium” aludindo a Debray numa
citação que reproduzimos: “A mediologia tem por objetivo, através de uma logística das operações de pensamento, esclarecer a questão
lancinante, indecidível e decisiva, declinada aqui como ‘o poder das palavras’, acolá como ‘ecácia simbólica’ ou ainda como ‘o papel
das ideias na História’, a depender do que se é: escritor, etnólogo ou moralista... Ela gostaria de ser o estudo das mediações através das
quais ‘uma ideia se torna força material’.” (DEBRAY, 1991 apud MAINGUENEAU, 2006)
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físico e mental tiveram de atravessar, de que maneira negociaram com ele, que
tipo de compromisso tiveram de aceitar? E a questão dirigir-se-á tanto à grande
religião histórica quando à ideologia secular, tanto à esfera de inuência quanto
às capelinhas. Por outro lado, privilegiando o corte sincrônico, perguntar-nos-
emos de que maneira a aparição de uma aparelhagem modica uma instituição,
uma teoria estabelecida ou uma prática já codicada. De que maneira um novo
objeto técnico leva um campo tradicional a modicar-se? Por exemplo, qual efeito
as gerações sucessivas de imagens gravadas (a fotograa, o cinema, o sistema
digital) tiveram sobre a administração da prova nas ciências? (DEBRAY, 2000, p. 139)
Os objetos técnicos participam da produção dos sentidos na medida em que implicam
inscrição material de uma ideia e sua difusão. Nos termos de Maingueneau, “a transmissão
do texto não vem depois de sua produção; a maneira como o texto se institui materialmente
é parte integrante do seu sentido” (2006, p. 212), uma forma de retomada de Debray:
A “coisa a ser comunicada” não existe antes e independente daquele que
a comunica e daquele a quem é comunicada. Emissor e receptor são mo-
dicados, interiormente, pela mensagem que trocam entre si; além dis-
so, a própria mensagem é modicada pelo fato de circular. (2000, p. 62):
Com isso, podemos dizer que o mídium é um imbricamento do que se tem referido nos
estudos discursivos por circulação com o que se costuma referir nos estudos da linguagem
por suporte. Podemos dizer, enm, que o mídium se dene na articulação de um vetor de
sensibilidade a uma matriz de sociabilidade (DEBRAY, 2000).
As matrizes de sociabilidade, instituições adoras de discursos, são organização
materializada (OM), ou seja, conguram o modo como a sociedade disciplina práticas e
cultiva valores, produzindo sistemas de objetos técnicos.
Os vetores de sensibilidade, dispositivos inscricionais que afetam os sentidos de um
texto, são matéria organizada (MO), são os próprios objetos técnicos que resultam de
lógicas de uso e impõem lógicas de uso, nem sempre coincidentes, e que convivem também
com resistências ou apropriações não previstas.
A metodologia discursivo-midiológica consiste, então, em conjugar OM/MO. No caso
do site human.oline, quando consideramos que é um mídium, assumimos que ele é um
objeto técnico, que sensibiliza os que com ele têm contato numa dada direção semântica
— pensemos na paleta, nas formas arredondadas, no léxico que convida ao engajamento na
Bondade —, e que, como tal, dá sustentação a uma matriz de sociabilidade, a instituição
ou o pool de instituições que se põem como difusor do site e de seus serviços, e que é por
ele difundido. Essas instituições que se apresentam como organizações da sociedade civil
cultivam, juntas, certos valores e crenças, suscitam imaginários que a eles correspondem, e
organizam materialmente esse cultivo num site que oferece um serviço — o ritual iniciático
que prepara para o engajamento numa luta maior, global, pela gentileza entre as pessoas.
Depreendemos da descrição que zemos do site, que a senhora que nos impacta
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convidativamente é a gurativização de um corpo e de um caráter da voz que aança o que
se diz na aba que vai sendo rolada: o convite ao Minuto de Humanidade, o convite para se
cadastrar, o convite para doar dinheiro. Todos os elementos cenográcos que podemos ver
nas guras 1, 2, 3 e 4 apontam para esta matriz das matrizes: a Bondade. Uma Bondade
que pode ser ensinada, que deve ser cultivada, que nos salvará da crise.
É esse o mundo ético que se dene nesse mídium, o de uma Bondade que depende da
nossa capacidade de nos conectarmos a um outro, serenamente, sem exigir informações ou
delimitações prévias. Os logotipos que são links nos levam a uma sucessão de imagens que
vão, em cadeia mais ou menos difusa, a depender da navegação que se faz, estabelecendo
esse mundo, as pessoas que dele fazem parte — e que ecoam no enunciado “Join us”, que
se repete em várias abas.
Pensemos nessa relação OM/MO em um exemplo bem familiar porque mais antigo,
uma embalagem de suco, por exemplo. Com os vários discursos de que é portadora
(representações, explicações e justicações obrigatórias), remete a uma corporação
alimentícia ou a uma produção orgânica local. Em cada caso, evoca toda uma rede de
produção, distribuição e consumo que não é só do suco, mas de tudo o que sua formulação
nutricional e a estética em que se oferece fazem vibrar como formas de estar no mundo,
circunscrevendo um lugar que participa de uma rede intrincada de valores: materializa
discursos estabelecendo seu mundo ético. Isso vale também para um periódico cientíco,
para um livro de poemas, para o portal de um governo, para um perl numa rede social.
São todos força material de transmissão:
Sem essa OM — bolsão de neguentropia, enclave da ordem trabalhado com meios téc-
nicos e grande esforço na desordem circundante, micromeio constituído com grande
diculdade, forma quase substancial extraída de um meio ambiente mais ou menos
amorfo —, a pura e simples translação de MO, através do espaço e do tempo, avançaria
para a entropia máxima (interferências, perdas na linha, fossilização, repetição, ex-
tinção). Fazer uma cadeia de sentido obriga, para impedi-la de se desfazer, a refazê-la
incessantemente com a ajuda de elos vivos. Em suma, se não há transmissão cultural
sem técnica, também não há transmissão puramente técnica. (DEBRAY, 2000, p. 25)
Assim, entendemos que um mundo ético está sempre ligado a matrizes de sociabilidade,
são elas as instituições que produzem e põem em circulação os objetos técnicos que para
elas apontam e que, numa retroalimentação, fortalecem. Aquelas entidades que estão
indicadas no rodapé do site precisam do site, deste e dos sites delas próprias, para
mostrarem que existem, para serem reconhecidas em sua existência. Essas entidades dão
sentido ao Minuto de Humanidade como ritual ao mesmo tempo que o ritual, a cada vez
que é feito, dá sentido a essas entidades.
Olhar o site como mídium nos leva a vê-lo na sua dimensão de materialidade inscricional,
no que faz pulsar, em termos de sentidos (frequentemente organizado em hipergêneros,
como vimos), e naquilo em que se apoia para produzir essa pulsação (MO/OM). E isso nos
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exige, nalmente, lembrar que, se se trata de considerar suporte e circulação imbricados,
é necessário considerar que um site não é só o que vemos da tela para cá, ele é também
uma sosticada arquitetura da tela para lá, digamos. Um uxo de dados se distribui por
diferentes infovias e converge informando tudo aquilo que se vê na aba principal do human.
oline. São dados produzidos ou reunidos por equipes que pensam os protocolos precisos
com que cada unidade informacional mínima chega a um certo ponto e se coaduna a
muitas outras para que a fonte não serifada e a paleta sépia componham o que chamamos
tão tranquilamente de “página”. Uma rede técnica supercomplexa, inclusive com a
ultraprecisão do streaming, é necessária ao singelo ritual de olhar nos olhos do outro. E
ainda é preciso achar o justo lugar em frente à câmera para que isso se produza, como
lemos na aba “How to Use” [Como usar]. A questão técnica é central nessa experiência de
imersão em nossa “condição humana”.
Neste ponto, voltamos à questão: por que legislar sobre esse Minuto de Humanidade
oferecido? Nos Termos de Uso, lemos que o objeto do contrato que se deve aceitar para usar
o serviço oferecido no site — Your Content [Seu conteúdo] — seja áudio, texto, imagem ou
outros materiais que se decida disponibilizar, partilhar ou tornar acessível durante o uso do
serviços — pode ser reproduzido, adaptado, publicado, traduzido e distribuído em qualquer
mídia por human.oline, e não exclusivamente. Frisa-se: o serviço human.oline não pode
ser responsabilizado pelo que terceiros eventualmente farão com esses conteúdos. Isso
valendo para sempre, de modo irrevogável.15
É sobretudo nesse item dos Termos que vemos a questão técnica em toda sua extensão:
o site coleta e comercializa dados. Todo tipo de dado que possa ser coletado durante um
minuto: IP, histórico de navegação, geolocalização... e também elementos faciais, ritmo
de respiração, íris, reações emocionais... Não é, de fato, um serviço gratuito. Os usuários
concordam em pagar pelo serviço com seus dados, pelos quais jamais reclamarão, em
nenhuma circunstância, conforme reza o contrato.
Como sabemos, os dados são hoje a moeda mais valiosa. Por isso o estímulo ao
engajamento é a base do funcionamento do mundo digital no tempo presente: temos de
fornecer dados para alimentar o sistema que nos oferece produtos e serviços, modulando-
nos. Em nome da precisão e da ecácia, a daticação da vida leva à produção de curvas,
modelos... estudados pelas entidades que, a partir deles, organizarão a vida social. A
discussão sobre a privacidade na rede, ainda pouco compreendida na sua dimensão política,
15 Reproduzimos integralmente o item Your Content dos Termos de Uso na versão do site atualizado em 1o. de setembro de 2018,
segundo data que encabeça essa aba: “In these Terms of Use, “Your Content” shall mean any audio, video text, images or other material
you choose to display, share or make available through our Services. By displaying, sharing or making available Your Content, you grant
Human Online a non-exclusive, worldwide irrevocable, sub licensable license to use, reproduce, adapt, publish, translate and distribute
it in any and all media. This section shall survive expiration or termination of this agreement. Your Content must be your own and
must not be invading any third-party’s rights. Human Online reserves the right to remove any of Your Content from our Services at any
time without notice.” (último acesso 18 jul. 2020.
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tem a ver com isso. A bandeira criptopunk, que prevê linguagem de programação nas escolas
como um conhecimento básico, também16.
Nesta altura, o funcionamento básico da web é a modulação de comportamentos, que
pode ser vista como um “estágio da microeconomia da interceptação de dados pessoais”,
no qual se produz um “encurtamento do mundo de indivíduos e segmentos” para que
possam ser geridos:
A captura e a colheita de dados é o primeiro passo. O armazenamento e a clas-
sicação desses dados devem ser seguidos pela análise e formação de pers. Di-
versos bancos de dados podem ser agregados a um perl pelas possibilidades tra-
zidas pelo Big Data. Os sistemas algorítmicos modelados como aprendizado de
máquina devem acompanhar os clientes das plataformas em cada passo, reunindo
informações sobre os cliques dados, os links acessados, o tempo gasto em cada
página aberta, os comentários apagados, entre outros. (SILVEIRA, 2018, p. 38-39)
Com isso,
robôs têm lido nossos e-mails mais íntimos e apresentado respostas pos-
síveis ao remetente. Isso passa despercebido para grande parte das pes-
soas e tem sido compreendido como “algo natural da tecnologia”. O po-
der de tratamento das informações é legitimado por um entorpecimento
subjetivo diante das vantagens oferecidas pelas tecnologias apresentadas pelas
corporações. São tecnologias que reforçam o que Guatarri chamou de servidão
maquínica. Ao organizar nossas práticas cotidianas em torno dessas corporações,
passamos de utilizadores a dependentes de suas tecnologias. (SILVEIRA, 2018, p. 43)
Human.online é um desses potentes mineradores de dados, e seu serviço ritualístico,
o Minuto de Humanidade, é uma dose de narcótico típica do atual período.
Todo o tempo estivemos falando dela, marcadamente desde a descrição da aba
inicial do site human.oline. O dado é modelar no que tange ao entendimento do fenômeno.
Nele funcionam hipergêneros, como janela, link e botão, que nos remetem a outros, como
email, perl ou tutorial. E embora o site abrigue gêneros instituídos de modo 1, como
é o caso dos Termos de Uso, vimos que predomina uma cenograa de regime genérico
conversacional, desdobrando uma semântica de aconchego. Um aconchego que leva a
participar de um movimento em escala global, um paradoxo.
Considerando o site como objeto técnico, pudemos propor que seja entendido como
um mídium: vimos que ele sensibiliza os usuários para um ritual, tanto pela cenograa que
16 Julien Assange, o preso político mais conhecido hoje, é ícone desse movimento, que propõe transparência para as instituições e
privacidade para os cidadãos. A tortura de anos por que o ativista vem passando e a iminente condenação à prisão por quase 200 anos
têm sido administradas pelo governo dos EUA desde os vazamentos que explicitaram procedimentos do Exército estadunidense, como a
execução sumária de civis. Wistleblowers como Chelsea Manning ou denúncias como as de Edward Snoden sobre a espionagem da NSA
compõem o amplo quadro de luta por um sistema de comunicação digital tecnicamente acessível e eticamente justo.
51 Pesquisar com gêneros discursivos:
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produz quanto pelos dispositivos que demanda desses usuários, pois há gestos necessários
na relação com esses dispositivos para que o Minuto de Humanidade se dê; e vimos quais
são as entidades a que esse objeto técnico atende, quais valores e crenças elas, por meio
dele, cultivam. Assim o ritual íntimo faculta o pertencimento a uma causa planetária.
Talvez até pudéssemos evocar Gandhi aqui, na famosa frase que lhe é atribuída: seja a
mudança que você quer ver no mundo. Enunciado frequentemente parafraseado por um
convicto slogan individualista: “eu faço a minha parte”. Com esses parâmetros se constrói
a Bondade do mundo ético em tela.
Diante disso, podemos nos perguntar de que modo estar sentado em sua cadeira,
em sua casa, usando seu dispositivo de conexão para olhar, numa posição bem calculada,
os olhos de um outro que não se sabe quem é, nem onde está e com quem não se falará
jamais, pode transformar o mundo em crise? Esse ritual, ou a doação à entidade que o
promove, de fato conectam o usuário a uma causa transformadora? De quê exatamente?
Mas há mais, a coleta que aí se produz, ensejando os cruzamentos de dados que
serão devolvidos em forma de instruções modeladoras, faz, a partir de um modelo
hiperabarcante, uma customização ímpar, é o marketing one to one: a tecnologia digital
permite que empresas do mundo todo ofereçam, no mundo todo, exatamente aquilo que se
calculou que cada um de nós quer ou pode querer ou deve querer. Os gostos e preferências
rastreados nos resíduos de nossas navegações, somados aos metadados dos mídiuns que
visitamos, nos devolvem nossas indiossincrasias e peculiaridades — nos cards da Netix,
nos anúncios que utuam ao lado das postagens, nas variadas noticações e até mesmo no
combo de notícias que os portais corporativos oferecem a cada dia. Tudo feito sob medida.
Uma medida que vamos assumindo como efetivamente nossa.
Por que admitimos essa auto-abdicação (Han, 2017)? Parece que quanto mais ansiamos
por uma conexão com um outro, mais encontramos de nós mesmos. Como é o caso no
human.online, um “ambiente seguro” porque “o outro” não representa risco ou ameaça,
anal não pode, de nenhum modo, apresentar-se na sua diferença, não há como haver
discordância, dissenso ou desarmonia, tudo está garantido para que seja quase como olhar-
se no espelho. Na famosa expressão de McLuhan, somos narcisos amantes de gadgets que
individualizam mais e mais, prometendo o céu como limite. O smartphone é um exemplo
contundente: seu modelo, sua capinha, os aplicativos baixados, as senhas, as digitais, o
reconhecimento facial... tudo nele é pessoal e intransferível, guarda segredos inclusive! E
é com ele que se entra em contato com o que está distante, alhures, além, o tempo todo,
a qualquer tempo. De fato, conectamo-nos só com as bolhas que ajudamos a construir
— a família, os amigos, as páginas especializadas, os fandoms... Podemos ir a qualquer
site, embora costumemos ir àqueles que o buscador oferece com base em nossas próprias
navegações; podemos assistir a qualquer vídeo, embora costumemos assistir àqueles que o
algoritmo da plataforma julga serem os que gostaremos de ver.
52 Pesquisar com gêneros discursivos:
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Admitimos a auto-abdicação porque estamos há muito mergulhados em ritos cotidianos
de dispositivos que sempre dão a ver cenograas de espaços individuais, personalizados.
Engajamo-nos nessa auto-abdicação porque, querendo pertencer a algo maior, preenchemos
pers e avatares com fotos interessantes, cenografando uma vida que merece ser vista
(mais que vivida, talvez). Aplicativos como o Instagram são hoje um ápice do que vimos
aprendendo desde os primeiros desenhos da internet de plataformas: mostre-se, e faça-o
conforme a curva que caracteriza o ponto em que você está nesse jogo. Construa, dia após
dia, esse pertencimento dizendo quem você é. Esse é o trabalho que não cessamos de fazer.
O mensageiro Whatsapp é também um mídium emblemático. Além dos disparos feitos
a partir da coleta de dados que segmenta fortemente os usuários, os gêneros que circulam
nesse mensageiro têm um jogo especial de anças: quem é o ador de um meme? E de uma
notícia que não vem assinada por ninguém? Como se pôde acreditar em coisas como uma
“mamadeira de piroca” durante as eleições de 2018? A legitimidade da mensagem que,
disparada massivamente, chega às telas customizadas, num espaço íntimo, pessoal, está
aançada por quem envia a mensagem ou pela voz que ali é balizada por valores e crenças
que já se tem, ninguém se arrisca aí como em um espaço público, onde se é confrontado
por contraditórios, contradições, contrários.
Aceitamos e bloqueamos pers (pessoas?) no Facebook, no Twitter, no LinkedIn, no
Tinder... E supõe-se que é preciso, para ter vida social, frequentar essas plataformas e
aplicativos, nos quais, crendo estarmos diante de um mundo de possibilidades, escolhemos
minuciosamente, com critérios próprios e modulados, que conexão acontecerá, descartando
tudo o que parecer inadequado ou incômodo.
A intimidade ubíqua é essa estranha experiência em que estamos imersos na atual
arquitetura da web. Uns mais outros menos, estamos todos armando e rearmando uma
identidade que nos é telecomunicada, massivamente tecnoconstruída para ser customizada
ao nível do único. A solidão típica do tempo presente tem aí suas raízes.
Podemos, então, entender como essa lógica enfraquece o quadro cênico, ou como o
enfraquecimento do quadro cênico favorece essa lógica. A conjugação do tipo de discurso
com o gênero em que se textualiza supõe movimento entre limites; um tipo de discurso e
um gênero de discurso denem-se socialmente, historicamente, estabelecendo campos,
comunidades... A predominância de hipergêneros, cuja “formatação com restrições
fracas pode recobrir gêneros muito diferentes”, favorece (ou mesmo exige) o trabalho
de cenograas hipertroadas, e assim as textualizações têm pouco compromisso com o
cumprimento de contratos prévios e o respeito a combinados.
E há mais, ainda. A pandemia de Covid-19 tem escancarado a intimidade ubíqua no
mar de lives que suscitou. Esse hiperônimo — live, um termo em plain english, essa língua
de todos e de ninguém — designa entrevistas, reuniões, assembleias, audiências, sessões
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de terapia, e toda forma de contato pelas telas que congura o que se tem chamado de
home oce, outro termo da mesma interlíngua. Não nos parece apenas um estrangeirismo
que compõe a interlíngua dos hipergêneros dos mídiuns digitais. Teletrabalho, o termo
preconizado em português, enfatiza o trabalho; home oce enfatiza o espaço íntimo (o lar,
e não a casa) no qual, entre outras coisas, se trabalha.
Nas muitas situações deste connamento pandêmico, pelas janelinhas que se abrem
nas telas, entra em nosso lar o mundo do trabalho, afetando as relações que ali se cultivam.
E todos na casa têm de lidar com sua publicização, pois, no recorte das janelas, cada um
de nós aparece cenografando-se com estantes de livros, gatos ou os azulejos da cozinha,
enquadramentos que dão a ver como vivemos privadamente. E é preciso lidar com os
indesejáveis mas inevitáveis vazamentos do microfone, quando o esquecemos aberto ou
uma falha técnica nos prega a peça. Estamos em casa mas não podemos nos sentir em
casa, é preciso equacionar esse impossível, avesso da epifania de Cartesius: quanto mais
adentramos esse mundo de formatações frouxas, mais alerta camos, vigiando-nos para
lidar com muita atividade cenográca e poucas garantias genéricas.
A tensão causada por essa hipertroa parece estar em máxima potência. No momento
em que encerro este texto, há vazamentos cotidianos que já não são do microfone aberto
desavisadamente. “Vaza” o pensamento, contra todo o decoro que certos mundos éticos
previam: são muitos já os casos de palavrões, explosões e xingamentos em plena sessão solene
de um tribunal, por exemplo. Como não está claro o enquadramento dado, nada parece ser de
fato classicável como subversão. Indícios de que o espaço público se altera profundamente
conforme a experiência da intimidade vai sendo cenografada para a ubiquidade.
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