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GASTÃO CRULS -TRAÇOS DE GÓTICO, BRASILIDADE E NEOFANTÁSTICO NA LITERATURA BRASILEIRA? GASTÃO CRULS -TRACES OF GOTHIC, BRASILIDADE AND NEOFANTASTIC IN BRAZILIAN LITERATURE?

Authors:

Abstract

O romance Frankenstein ou o Prometeu Moderno, escrito por Mary W. Shelley e publicado originalmente em 1818, tornou-se numa das obras basilares do imaginário góticofantástico, graças a inúmeras versões deste relato, quer no continente europeu, quer no continente americano, tanto na literatura, como no cinema e no teatro. O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o modo como, em três dos seus contos, “Noites brancas” (1920), “No embalo da rede”(1923) e “O espelho”(1938), o autor de vanguarda Gastão Cruls apresenta uma nova leitura do Gótico e se apresenta como precursor brasileiro do Neofantástico. Partindo da premissa de que o texto literário crulsiano ainda está a ser descoberto no meio académico europeu, este trabalho analisa os mecanismos literários com os quais Gastão Cruls desencadeia reações de medo, pasmo, suspense, insólito ou logro no leitor.
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Organon, Porto Alegre, v.35, n.69, p. 1-17, 2020. E-ISSN: 22388915 DOI: 10.22456/2238-8915.106847
GASTÃO CRULS - TRAÇOS DE GÓTICO, BRASILIDADE E
NEOFANTÁSTICO NA LITERATURA BRASILEIRA?
GASTÃO CRULS TRACES OF GOTHIC, BRASILIDADE AND
NEOFANTASTIC IN BRAZILIAN LITERATURE?
Francisco Javier Sánchez-Verdejo Pérez
1
, Filomena Fernandes Gonçalves
2
RESUMO: O romance Frankenstein ou o Prometeu Moderno, escrito por Mary W. Shelley e
publicado originalmente em 1818, tornou-se numa das obras basilares do imaginário gótico-
fantástico, graças a inúmeras versões deste relato, quer no continente europeu, quer no
continente americano, tanto na literatura, como no cinema e no teatro. O presente artigo tem
como objetivo refletir sobre o modo como, em três dos seus contos, “Noites brancas” (1920),
“No embalo da rede”(1923) e “O Espelho”(1938), o autor de vanguarda Gastão Cruls
apresenta uma nova leitura do Gótico e se apresenta como precursor brasileiro do
Neofantástico. Partindo da premissa de que o texto literário crulsiano ainda está a ser
descoberto no meio académico europeu, este trabalho analisa os mecanismos literários com
os quais Gastão Cruls desencadeia reações de medo, pasmo, suspense, insólito ou logro no
leitor.
PALAVRAS-CHAVE: brasilidade; gótico; neofantástico; Gastão Cruls
ABSTRACT: The novel Frankenstein, or The Modern Prometheus, written by Mary W.
Shelley, and originally published in 1818, has become one of the most influential works in the
Gothic-Fantastic imaginary, mainly for the many versions of this genre, both in Europe and
in America, in literature and cinema, as well as in drama. This investigation aims to analyze
the means how, in three short stories, “Noites brancas” (1920), “No embalo da rede” (1923)
e “O Espelho” (1938) the avant-garde author, Gastão Cruls, revisits the traditional
European Gothic and may be considered as a Brasilian predecessor of Neo-Fantastic.
Assuming that the literary text from Cruls is still being discovered and yet to be studied in
Europe, this article analyzes the literary mechanisms Gastão Cruls uses to create reactions of
fear, astonishment, suspense, unusual, or deceive in the reader.
KEYWORDS: brasilidade; gothic; neo-fantastic; Gastão Cruls
1
Ph. D. Universidad de Castilla-La Mancha Facultad de Letras: Ciudad Real, Castilla-La Mancha, ES.
Department of Foreign Languages and their Philologies - National Distance Teaching University - ES.
2
Mestre em Literaturas e Culturas Modernas, Departamento de Lingüística da Universidade Nova de Lisboa
(UNL) (Portugal).
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Organon, Porto Alegre, v.35, n.69, p. 1-17, 2020. E-ISSN: 22388915 DOI: 10.22456/2238-8915.106847
Introdução.
O texto de Mary Shelley, Frankenstein ou o Prometeu Moderno, onde é evidente a
angústia e inquietação da criatura criada pela personagem Victor, serve de inspiração a Gastão
Cruls. No discurso deste autor brasileiro de origem belga é visível, igualmente, o espetro da
primeira Guerra Mundial, que constitui o primeiro momento na História da Humanidade em
que o pensamento científico é usado para fabricar armas de extermínio massivo de seres
humanos (DEBEHOGNE, H. & De FREITAS MOURÃO, 1978; ANDRADE, 1988). Porém,
se no romance de Shelley, ao invés de se destruir, parece, aparentemente, criar-se um novo
ser, o seu criador, o cientista, manifesta marcas de uma tendência criadora destrutiva.
Neste contexto, o pensamento científico, associado à angústia existencial, marcam a
obra de Cruls. Se é óbvia a proximidade com Shelley na relação de ambos com a ciência, em
Cruls é visível a exploração da temática do dualismo humano, da dissociação da
personalidade, da presença do narrador autodiegético, quase (ou não) bipolar, manipulado e
manipulador (MAIA VILELA, 2012). São igualmente claras as semelhanças entre esta escrita
e a de Robert Louis Stevenson, em O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (1886). Aqui se
vislumbra um vasto e interessante campo de estudo, que anuncia uma relação intencional com
a psicanálise, com uma nova visão estética do narrador e, acima de tudo, com o papel fulcral
do leitor moderno. Enquanto recetor da obra literária e/ou criador de outra narração, face às
expectativas que o narrador lhe cria e/ou vítima da narrativa manipuladora da intriga, através
de jogos de fantasmagoria e da criação do efeito de espelho que extrapolam o texto e
interferem com o perfil literário, psicológico e contextual, o leitor queo é alheio ao
medo/terror/fascínio por si próprio redescobre-se e vislumbra-se, exposta a sua fragilidade e
monstruosidade. Acima de tudo, revela-se capaz de imaginar/construir a ideia de terror e dela
retirar prazer, para que muito contribui a escolha da palavra, da frase e da pontuação de
sentido subjetivo. Neste sentido, decidimos tomar como ponto de partida a análise detalhada
de três dos seus contos mais marcantes, “Noites brancas” (1920), No embalo da rede” (1923)
e “O espelho” (1938).
Partiremos de três pólos orientadores, o Gótico, a Brasilidade e o Neofantástico, quer
enquanto marcas literárias, quer enquanto características dos textos de Gastão Cruls.
Procuraremos demonstrar que estes textos, ora em estudo, apresentam especificidades
próprias que, se por um lado os aproximam de algumas das características do Gótico
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(PUNTER, 1980; BOTTING, 1997; MONTEIRO, 2004), essas não constituem por si só,
fundamento para considerar Gastão Cruls como um escritor gótico.
Por outro lado, observaremos como, na escrita deste autor, podemos observar marcas
que a identificam com o contexto brasileiro, quer no que diz respeito ao léxico utilizado, quer
nas referências aos espaços da América do Sul que servem de cenário à ão de cada conto,
quer ainda aos aspetos culturais a ele inerentes, como sucede, por exemplo, com os trâmites
que estão relacionados com os velórios no Sertão, ou os leilões no Rio de Janeiro. Este aspeto
leva-nos a associar os textos de Gastão Cruls, ora em estudo, com o que designaremos por
Brasilidade (RODRIGUES FILHO, 2005, p. 344). Com este termo, pretendemos referir-nos
àquilo que distingue os hábitos e costumes do Brasil do resto da América Latina e dos povos
que poderão ter passado por este território, como o foram os portugueses e os holandeses.
Por último, demonstraremos que marcas de vanguardismo nos contos referidos, os
quais poderiam tornar Gastão Cruls um dos precursores do Neofantástico na Literatura
Brasileira, termo usado por Jaime Alazraki, escritor argentino, mais tarde.
O Gótico e Cruls
Sem nos querermos debruçar detalhadamente sobre as características, sobejamente
estudadas, que distinguem o Gótico no universo da Literatura Fantástica. Se uma presença
do gótico de inspiração europeia e norte-americana em Cruls (FRANÇA, 2013), também é
inegável que este autor faz dele uma leitura peculiar e mais criativa. A escrita de Cruls está
impregnada de brasilidade, presente na construção da personagem feminina (que se descola da
sua homónima gótica, para se destacar pela sua faceta amazónica); nas referências culturais às
fazendas, aos coronéis, ao Sertão, à Amazónia (sensual, insinuante, diabólica e
transfiguradora) (COELHO PAIVA, 2019; LIMA e COSTA JUNIOR, 2011, p, 221-237); ao
final que já não repõe a ordem inicial da narrativa (mas que a torna ainda mais perturbadora);
à referência à doença típica do Brasil (por exemplo, a borreliose); à distopia; à dissecação da
psiqué humana; e à visão disruptiva e por vezes herética da religião europeia o catolicismo
(pela violação das normas cristãs do colonizador europeu quanto à sexualidade, ao papel da
mulher e à relação de forças políticas, sociais e sexuais (SILVEIRA MAIA, 2009). De facto,
aqui encontramos ecos de Wells, de Poe, de Shelley, de Stoker, mas, acima de tudo,
encontramos uma nova voz literária que pretende trazer sobre ele um novo olhar e deixar um
contributo inovador à Literatura Fantástica (MELO e CASTRO, 1974).
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Evidências do Gótico nos contos em análise
Ao leitor mais atento destes contos, não passarão despercebidas as referências a
características do Gótico, no texto de Gastão Cruls.
No que diz respeito à temática da loucura e da devassidão sexual nestes contos de
Gastão Cruls, quando a personagem de “Ao embalo da rede”, Otávio Barros, afirma “ainda
não mereço a cadeia ou o hospício, conquanto a minha observação deva andar por aí, na
mão de alguns médicos, para figurar mais tarde em qualquer tratado de psicologia” (CRULS,
1952, p. 217), é óbvia a aceitação e consciência dos estranhos comportamentos, que situam a
personagem no limiar do que é a considerada sanidade mental. O mesmo sucede no conto “O
espelho”, com a figura masculina, o narrador-marido de Isa. Neste outro relato breve, este
facto aproxima-o, todavia, de uma visão patológica sobre os seus comportamentos, que
lembra o conto de Edgar Alan Poe “O coração delator”, cuja personagem principal atribui a
culpa pelos últimos homicídios por si cometidos ao coração da sua primeira vítima, que ele
escondera debaixo do chão da sala, e que insistia em ouvir bater.
Quanto à temática da deformação/decomposição do corpo (FRANÇA, 2018, p. 873-
887), em Cruls a reação de repulsa é ampliada pelo facto de que aqui encontramos figuras
muito mais asquerosas e repugnantes que as que povoam outros textos góticos. Mais do que a
repulsa e o nojo que as descrições expressivas crulsianas possam provocar no leitor, é de
ressaltar a monstruosidade das personagens, que, aqui, aparentam a normalidade física ou
melhor, se descrevem até como sendo decentes, charmosas, elegantes, bem educadas , que se
nos revelam, afinal, autenticamente monstruosas, traço que encontramos nos três contos em
estudo. Aquilo que os românticos acentuavam como elemento que despoleta o medo e o terror
(PUNTER, 1980; BOTTING, 1997) é o que nas narrativas breves de Cruls menos surge
valorizado, sendo apenas a partir das confissões secretas das personagens que as passamos a
ver com horror e medo. Parece, portanto, evidente, que Cruls pretendia traçar retratos
psicológico-psiquiátricos que remetessem para a visão aterradora do homem que parece o que
não é, e que é o que não parece.
O uso das reflexões sobre o poder
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Não deixa de ser aliciante debruçarmo-nos sobre a visão daquilo que nos parece ser, em um
herdeiro do colonialismo europeu no Brasil, o imperialismo interno brasileiro. Nos textos de
Gastão Cruls, encontramos retratos detalhados e críticos das fazendas e dos coronéis do
Sertão, referências subliminares, tanto ao papel da mulher brasileira perante a autoridade
masculina sobre si exercida, como à figura da mulher no contexto amazónico, e, por último, à
representação da sexualidade feminina, perante um aparente poder sexual masculino
(ANDRADE, 1988; Da MATTA VIVOLO, 2013; FRANÇA, 2013). Em todo o caso, porém,
conseguimos vislumbrar uma forma de estar mais europeia que autóctone, quer pelas
referências aos objetos da casa (o espelho barroco com figuras mitológicas gregas, por
exemplo), quer pelas atividades levadas a cabo pelas personagens, de classe social mais
elevada, que viajam pela Europa, se dedicam ao ócio ou compram bric-à-brac. Por outro lado,
se nos focamos nas reflexões sobre o poder que caracterizam o Gótico, é de salientar a
originalidade de Cruls, ao trabalhar o papel da mulher neste contexto. Com efeito, a
personagem feminina de Cruls é vista de uma forma bastante distinta da mulher gótica. Face à
autoridade masculina que caracteriza a sociedade brasileira do tempo da narrativa, a mulher
crulsiana é um misto de mulher-anjo tutelar, que protege e cuida da família e do marido (D.
Clarice, por exemplo, em “Noites brancas”), de mulher sensual e erótica (tal como sucede
com Isa, de “O espelho”), de um ser mais vampírico, noturno, luxurioso e insaciável — quase
animalesco que elege, caça e se serve sexualmente do seu parceiro (como sucede em
“Noites brancas”, com a personagem Maria Clara ou, talvez com menos expressão, D. Alzira,
em “Ao embalo da rede”).
As referências à noite
Uma das características góticas que mais se destaca nestas narrativas é o tema da noite
(PUNTER, 1980; BOTTING, 1997). Nos contos de Cruls, encontramos tanto as referências à
noite, como ao luar. O ambiente noturno fechado, por vezes claustrofóbico, surge em todos os
contos ora em estudo. Em “Ao embalo da rede”, por exemplo, o narrador alude ao espaço em
que “mal se podia respirar”, tanto pelos odores a cadáver, como pelo calor. Em “O espelho”,
por sua vez, encontramos variadas referências à noite, quer enquanto momento propício ao
erotismo, facilitado pelo consumo de álcool e “outros estimulantes ainda mais nocivos”, quer
pelo efeito de fantasmagoria provocado pelo espelho, que desencadeiam comportamentos
sexuais mais desprovidos de pudor. O mesmo sucede em “Noites brancas”, cujo título por si
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reforça o que afirmamos e em que as duas citações iniciais, uma de Maurice Magre e
outra de Octave Mirbeau, remetem para a luta interior entre o desejo carnal e a razão, entre o
lado instintivo e animalesco do homem e a sua faceta racional, que o leva a temer ceder à
carne (ambas a deixarem entrever a dissecação da mente humana). E não podemos deixar de
aludir à expressão tão gótica com que Carlos aqui se refere à sua “visitante noturna”,
anónima, misteriosa e também por isso, mais sensual.
Por outro lado, ora surgindo como elemento transfigurador dos espaços e das
personagens, ora cumprindo a função de revelar o que estava escondido/velado, o luar é uma
das marcas góticas que atravessa os três textos em análise. Em “Noites brancas”, este efeito
torna-se ainda mais evidente, que é numa noite de luar que Maria Clara deixa de visitar o
narrador.
Cruls escritor gótico ou precursor do neofantástico?
Com efeito, e ainda que sejam visíveis características góticas na escrita de Cruls, estas
não nos parecem ser suficientes para considerarmos que este escritor é gótico. Para justificar a
nossa interpretação destes textos, à luz do gótico, convém observar que eles carecem de
algumas das marcas apontadas pelos estudiosos na matéria como basilares para a inserção de
um texto nesta categoria literária. De facto, se observamos com mais atenção todo o texto,
constataremos, por exemplo, a ausência do sobrenatural nestas narrativas. E se, em Drácula,
de Bram Stoker e em Frankenstein, de Mary Shelley, ocorre uma recuperação da ordem
natural das coisas, no final da narrativa, isso não sucede nos textos de Cruls que estudamos.
Carlos, de “Noites brancas”, pensa ter sido contagiado por Maria Clara com a lepra, mas
ninguém, ao ser ele próprio, saberá em que circunstâncias a contraiu; Otávio, de Ao
embalo da rede”, sente atração por corpos em decomposição, mas ninguém saberá o que
despoletou esse facto; e, no caso deste conto, o ato sexual não põe em causa o casamento de
D. Alzira, porque ela estava viúva; quanto ao seu noivado, Otávio acaba por ajudar a
repor uma certa ordem na família da noiva, que o não via com bons olhos para marido da sua
parente, por ser ele o “estudantezinho” de origens sociais inferiores às da família dela, o que
se nos afigura mais irónico que aplaudível; por fim, a morte de Isa, de “O espelho”, e a
profanação do seu cadáver, pelo marido, e por causa da sua volúpia, quem as saberá? Há,
pois, em todas estas histórias, um final perverso, perturbador, que as afasta do gótico
tradicional. Além do que afirmamos, tenhamos ainda em conta que, em nenhum dos três
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contos referidos, há, em algum momento, um sentimento de terror; pelo contrário, são
frequentes as alusões à serenidade das personagens e dos espaços, o que não sucede no texto
gótico, cujo cenário, por ser decadente, estar em ruína ou abandonado suscita o medo
(FRANÇA, 2013). Para mais, tampouco constatamos a presença de elementos animais
associados ao noturno, ao mau agouro ou à fealdade, que sempre se evocam no texto gótico.
Por fim, lembremo-nos de que Gastão Cruls foi considerado como um escritor menor
pelos seus pares (MELLO, 1959, p. 211-222.) e, em nossa opinião, talvez esta nomeação
tenha muito do facto de ele se ter desviado cremos, intencionalmente dessas tradicionais
normas literárias (SILVEIRA MAIA, 2005). Para nós, esta, que poderia ser uma marca de
menor qualidade do seu texto literário, é precisamente, o mais importante traço da sua escrita.
O que queremos dizer é que, se Cruls não tivesse violado as regras do texto gótico, não
o veríamos agora como eventual precursor do que Jaime Alazraki (1934-2014) viria mais
tarde a chamar de Neofantástico.
O conto neofantástico - uma proposta de definição e caracterização
A questão que subjaz à definição e aparecimento do Neofantástico prende-se com a
necessidade de prover resposta à dificuldade de definir algumas narrativas que, apesar do seu
pendor indiscutivelmente fantástico, prescindem dos génios do maravilhoso, do horror do
conto, ou da tecnologia de ficção científica (MEIRELLES da SILVA, 2008). Aqui se situam
os textos de Edgar Alan Poe, Jorge Luís Borges e Júlio Cortázar, por exemplo. Com efeito, é
Cortázar quem afirma que: “Para mi, lo fantástico es algo muy simples, que puede suceder en
plena realidad cotidiana, en este mediodía de sol, ahora, entre Ud. y yo, o en el Métro,
mientras Ud. venía a esta entrevista(ALAZRAKI, 1990, p. 27).
Além disso, e ao passo que Caillois defende que o fantástico supõe a solidez do mundo
real, mas para poder devastá-lo, e que, para H.P. Lovecraft, um conto só é fantástico se o
leitor experimentar profundamente um sentimento de temor e de terror e pressentir a presença
de mundos e poderes insólitos, para Jaime Alazraki, nestas definições não cabe a visão
desprovida do transcendente, do teológico e do cultural que caracterizam a realidade. Para
tornar mais clara a lacuna que Alazraki aponta ao fantástico, tal como Todorov (1975) o
define - e o encontramos nos textos de Caillois e de Lovecraft-, veja-se como explica Cortázar
a visão da realidade inédita, todavia, uma realidade “maravilhosa” aludida no seguinte
excerto:
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(…) en el sentido de que la realidad cotidiana enmascara una segunda realidad que
no es ni misteriosa, ni transcendente, ni teológica, sino que es profundamente
humana, pero por una serie de equivocaciones ha quedado como enmascarada detrás
de una realidad prefabricada con muchos años de cultura en la que hay maravillas
pero también profundas aberraciones, profundas tergiversaciones (GARCÍA
FLORES, 2005, p. 10-11).
Por outro lado, o conto moderno, tal como o entendemos, difere da conceção,
organização e funcionamento das formas que o precedem. É com Edgar Alan Poe que o relato
breve adquire uma tessitura, concentração e estrutura que não tinham os seus precursores.
Segundo Jaime Alazraki, Poe define, não apenas o peculiar da sua extensão texto que se lê
de uma assentada, mas também outros traços distintivos, como por exemplo, o efeito
singular que controla e determina a disposição do argumento, que fixa a composição do texto
e que estabelece interrelações entre as suas partes. Tal como afirma Cifuentes:
Se trata de una escritura de la “intensidad” más que de la “extensidad” lo que
justifica que se haya fijado mayormente en el género corto, pues la brevedad, la
intensidad y el enigma comparten el sema de lo fragmentario o discontinuo. Lo
breve es lo corto, lo intenso, lo que no se extiende, pues es la sima de un continuum,
y, el enigma cuyo fin es dificultar la comprensión de su mensaje si se extiende
se explica, (puesto que el sentido etimológico de explicar es desplegar, por lo cual,
en un gesto inverso, de repliegue, el enigma también queda circunscrito a lo
fragmentario y discontinuo) (CIFUENTES, 2008, p. 229).
Deste modo, o Neofantástico caracteriza-se por uma visão, intenção, modus operandi e
contexto próprios. Nele, valoriza-se a ambiguidade, a metamorfose, o ruído e o silêncio,
enquanto utensílios de que se serve o texto (CIFUENTES ALDUNATE, 2008).
Em primeiro lugar, e quanto à sua visão, o neofantástico assume o mundo real como
uma máscara, que oculta uma segunda realidade, que é o verdadeiro destinatário deste tipo de
narração. A realidade é, nela, “una esponja, un queso gruyere, una superficie llena de agujeros
como un colador y desde cuyos orificios se podía atisbar, como en un fogonazo, esa otra
realidad.”, tal como Alazraki o afirma, citando Johnny Carter (ALAZRAKI, 1990, p. 29).
Em segundo lugar, já no que diz respeito à sua intenção, com o Neofantástico, o que se
pretende não é provocar nem o medo, nem o terror no leitor, no qual tropeçam os seus
pressupostos lógicos. Pretende-se, sim, produzir perplexidade e inquietação no leitor, pelo
insólito das situações narradas. O mundo real apresenta-se, aqui, na sua faceta opaca, ilegível,
caótica, a lembrar a Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges, de livros também, mas estes,
ilegíveis e, portanto, indecifráveis, logo, mais aliciantes (ALAZRAKI, 1990, p. 29).
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Além disso, no texto neofantástico, o ruído e o silêncio, a ambiguidade e a
metamorfose permitem uma multiplicidade de interpretações, que são alheias ao próprio
conto.
Já quanto ao modus operandi destas narrações, o texto neofantástico distancia-se
consideravelmente do conto fantástico, uma vez que o primeiro prescinde dos bastidores e
ferramentas que contribuem para a atmosfera de pathos, necessária para a desmontagem final
no segundo. O texto neofantástico introduz-nos, pois, desde as primeiras frases da narrativa
no elemento fantástico. Contudo, ao passo que este se move no plano do literal, o
neofantástico alude a sentidos oblíquos ou metafóricos, ou ainda figurativos.
Por sua vez, o contexto em que se situa o neofantástico é, também, díspar daquele que
encontramos no fantástico. Se o conto fantástico é contemporâneo do movimento romântico,
questionando e desafiando o racionalismo científico e os valores da sociedade burguesa, a
narrativa neofantástica é respaldada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, pelos
movimentos de vanguarda entretanto surgidos, por Freud, pela psicanálise, pelo surrealismo e
pelo existencialismo.
Por último, e quanto ao uso do vocábulo Neofantástico, é Alazraki quem a este termo
recorre, perante a impossibilidade de denominar com outro a sua visão do que este subgénero
implica:
Propuse la denominación neofantástico como un llamado de atención de las
diferencias que he señalado entre esos dos tipos de narración. También porque la
toma de consciencia de esas diferencias permitiría una mejor comprensión de los
sentidos y alcances del nuevo género y un estudio más cabal y concienzudo de sus
textos. La vaguedad nunca ha sido beneficiosa para el estudio de la literatura. “Las
especificidades nos ayudan mucho más que las generalidades”, advertió en una
ocasión Harry Levin (ALAZRAKI, 1990, p. 31).
Todavia, talvez sejam as próprias palavras de Júlio Cortázar, pouco antes da sua
morte, em entrevista com Omar Prego, que legitimam, de uma forma mais consistente, o uso
do termo, para fissurar a definição tradicional do que se designa por “literatura fantástica”:
Julio Cortázar: mi sentimiento de lo fantástico, lo que tal vez Alazraki llama
neofantástico no es un fantásticocomo el fantástico de la literatura gótica, en
que se inventa un aparato de fantasmas, de aparecidos, toda una máquina de terror
que se opone a las leyes naturales, que influye em el destino de los personajes. No,
claro, lo fantástico moderno es muy diferente (ALAZRAKI, 1990, p. 32).
Em suma, o Neofantástico não constitui uma nova escola literária, per si, mas insere-
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se num género literário já existente, de que se assume como variante.
Evidências do neofantástico nos contos de Cruls
Com efeito, se nos detemos na análise da forma como evolui a narrativa de Cruls,
desde que se publica o primeiro destes três contos, em 1920, e o último deles, em 1938,
constatamos que este é mais rico em referências literárias e filosóficas. Assim, observamos
que, em “Noites brancas”, a intriga parece ser ainda muito marcada pela influência do
Romantismo inglês e naïf, quanto à construção psicológica das personagens é de salientar
que Carlos, por exemplo, se nos apresenta como a personagem romântica que busca na
tranquilidade do campo a paz para convalescer de uma enfermidade, acabando por contrair
outra, ao passo que as restantes personagens da família Jesus nada saberão, desde o princípio
até ao fim da narrativa, do caso amoroso com Maria Clara. quando lemos “Ao embalo da
rede”, de 1923, a própria citação inicial de Guy de Maupassant indicia um desvio do foco
narrativo para as questões da mente, centrando toda a narrativa na visão psiquátrica que se
tem dos comportamentos humanos e da forma como esses são (ou não) moldados pelos
valores culturais e religiosos. Neste conto, a personagem principal centra a sua narrativa na
confissão dos seus gostos sexuais peculiares e do episódio ocorrido com D. Alzira, no Sertão,
fazendo do seu confidente o guardião deste segredo. Isto significa que, não havendo aqui o
sentimento de culpa, nele está presente a necessidade de passar ao outro o peso de carregar
esta macabra descoberta por Otávio do que é Otávio. O que queremos dizer é que este não
aguenta guardar apenas para si a descoberta da sua afirmada monstruosidade, mas, ao
contrário da personagem de Maupassant, que o passará às folhas do seu diário, aqui essa
função é atribuída a outra personagem que, por sua vez, não se sente obrigada a dela guardar
segredo, tornando-se o narrador que no-la revela. Por outro lado, mais rica se nos apresenta a
construção da personagem no último conto, de 1938. Neste, já não nos surgem conflitos entre
o instinto e a razão, não a necessidade de recorrer ao segredo para ocultar a verdadeira
natureza do homem. Neste conto, de nome tão apropriado, tendo em conta o que se vai narrar,
continuamos a ver ausente o sentimento de culpa, que, por isso, escusa a personagem da
necessidade de perdão, seja ele religioso ou não. Digamos que o papel de Deus daqui está
totalmente ausente, por essa razão, o que não deixa de nos lembrar o futuro Existencialismo
ateu, por exemplo, de Sartre, que, por seu lado, será mais visto como condenação a uma
liberdade e responsabilidade do homem pelos seus atos e que o obrigava a ter de viver com as
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consequências deles, porque foram escolhas suas. Assim, o narrador deste conto, o marido
assassino de Isa, toma a palavra para nos contar a nós, leitores, toda a história. Este facto
significa que, agora, o que se pretende é narrar para incomodar, é narrar para colocar o
destinatário perante a difícil tarefa de decidir o que fazer com esta informação. Não podemos
deixar de lembrar Piscator e Brecht, ainda que com objetivos mais práticos e políticos, mas
que também pretendem levar o leitor a não se deixar seduzir pelas palavras, mas antes, a
reagir a essas mesmas palavras. Como dizia Brecht, no seu poema “Contra a sedução”: Lass
dich nicht verführen / Es gibt keine Rückkehr (“Não te deixes seduzir/Não há nenhum
retorno”. A tradução é nossa).
O facto de nos depararmos com esta evolução na construção das personagens, ao
longo de dezoito anos de escrita, legitima a nossa afirmação da presença destas influências
externas que Cruls sofreu e que enriquecem o seu discurso, aproximando-o do neofantástico,
também ele marcado pelos mesmos acontecimentos e visão literária e filosófica do Homem.
Associada a este facto, a linguagem metafórica e de sentido oblíquo que atravessa
todos os três contos contribui para detetar indícios do final insólito que caracteriza cada um
deles, mas que não conseguimos descortinar à primeira leitura. Este modus operandi do texto
neofantástico obriga a uma nova leitura, para encontrar essas pistas subliminares, que sempre
estiveram à frente dos nossos olhos, mas que não conseguimos vislumbrar logo
(CIFUENTES, 2008, p. 230).
Esta estratégia discursiva está associada àquela que nos parece ser a mais importante
razão para classificar estes textos de mais neofantásticos que góticos, que é o facto de haver
uma realidade, aparentemente normal, em todos os contos, que esconde uma outra realidade,
mais perturbadora e disruptiva. Se pensarmos nas personagens de todos os contos em estudo,
constataremos que elas aparentam uma normalidade e decência irrepreensíveis. Mas
constataremos também que os seus segredos são insólitos, macabros e perturbadores, que a
verdade não é o que parece. Neste sentido, por exemplo, em “O espelho”, o narrador tenta
passar uma imagem de decência, ao afirmar “Isso não é móvel para casa de gente séria”; em
“Noites brancas”, por seu turno, apresenta-se a imagem de uma serenidade aparente, na
descrição de uma parte oculta da casa (“Embora a casa fosse bastante ampla e, além das
dependências do pavimento térreo, ainda tivesse muitos outros quartos na ala direita do
sobrado, que parecia inteiramente desocupada, o Coronel, num requinte de zelo pelo hóspede
doente, fizera questão de que Carlos ficasse bem ao alcance de suas vistas”); noutro passo do
mesmo conto, passa-se a imagem da respeitabilidade aparente, quando se afirma que “no
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silêncio daquelas paragens, por mais leve que fosse qualquer ruído, um simples ranger de
portas, passos abafados no corredor, um sussurro de vozes tudo seria bastante para despertar
a atenção do fazendeiro”. Por seu lado, em “Ao embalo da rede”, estas aparências levam a um
casamento de conveniência que não aconteceu, como se esperaria, não por causa da traição de
Otávio com Alzira, mas por razões bastante mais insólitas.
Esta revelação da verdadeira natureza humana deixa-nos perante a questão central dos
textos de Cruls que faremos com esta informação? Enquanto europeus, e se nos lembrarmos
dos românticos ingleses, o que haveria a fazer seria esconder; se observarmos os realistas do
século XIX, que querer ver; se olhamos para os textos de Brecht, aquilo que a fazer é
reagir. Estamos convencidos de que, em Cruls, porém, o que a fazer é saber olhar para o
insólito, enquanto faceta do ser humano, que o deixa tão próximo como distante do Bem e do
Mal, mas que até estas duas visões da nossa natureza são dúbias e desconcertantes.
Em nossa opinião, o texto produz perplexidade e inquietude pelas situações narradas, o
que lembra claramente o efeito de espelho que ajuda a ver para além do que os olhos trazem
da realidade que se acredita conhecer.
Conclusão
Parece-nos claro que, neste autor, importa refletir sobre a nossa condição de seres
humanos, que coexistem e partilham espaços comuns, que tentam encontrar explicação para a
sua insatisfação, face ao papel inexorável do tempo e da morte, que se descobre na sua
verdadeira dimensão de ser que é, ao mesmo tempo malévolo, vítima do mal e de si mesmo.
Tentámos chegar a algumas conclusões sobre o modo como Gastão Cruls procede a essa
reflexão. Nela, encontramos laivos de Gótico, de Brasilidade e de Neofantástico.
No que ao Gótico diz respeito, muitas são as referências a esta manifestação estética.
Nos três contos em estudo, encontramos o tema da deterioração física do indivíduo (seja na
forma de doença a lepra, por exemplo), seja nas alusões à morte (com as abundantes
referências à decomposição do corpo). Ao mesmo tempo, aqui se sugere, igualmente, uma
discussão de ordem política, religiosa e estética, que põe em causa o papel do catolicismo, do
colonialismo e dos movimentos estéticos europeus na construção de uma literatura brasileira,
no contexto latino-americano. E se, nos textos góticos europeus e americanos encontrávamos
o ambiente noturno, claustrofóbico, a servir de contexto espácio-temporal da narrativa,
também os encontramos nas palavras de Cruls; porém, aqui não se pretende provocar o terror,
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o suspense ou a atmosfera de mistério, tal como não encontramos a presença do sobrenatural
que, para Todorov (1975) distinguia o Fantástico de outras tendências estéticas. Em Cruls, o
que encontramos é uma subversão das convenções que marcam o Gótico europeu e
americano: agora, nem sempre é uma personagem feminina quem encontramos em perigo
(veja-se o caso de Carlos, do conto “Noites brancas”); não há fantasmas, nem vampiros,
demónios, espetros ou monstros de aparência aterradora nestes contos e, contudo, aqui
encontramos elementos que são igualmente perturbadores constatamos a presença de uma
mulher quase-fantasma (Maria Clara, de “noites brancas”, que vive secretamente numa parte
da casa e que aparece apenas na treva da noite), de um monstro disfarçado de uma
respeitabilidade que o torna bem mais perigoso e aterrador (o marido psicopata e assassino de
Isa), de uma psicologia do horror que, mais que partir do que os olhos veem, explora a
devassidão, não da carne, mas da mente humana. Esta surge, muitas vezes, associada à
imagem de enorme inteligência do herói, que é frequentemente o elemento que representa o
Mal, na narrativa. Lembramos, para exemplo, a forma como Otávio, em “Ao embalo da rede”,
vai gerindo a revelação, em confidência, do seu lado macabro ao seu amigo: “Eu teria repulsa
igual à que leio agora nos teus olhos” p. 219). Também não encontramos, no texto de Cruls,
referências a animais noturnos, feios, sinal de mau presságio; e, todavia, aqui nos surgem a
traíra e o curimatã, peixes típicos dos açudes do Sertão, de aspeto algo assustador e, por outro
lado, várias referências a animais que, uma vez mais, reforçam a imagem de um espaço
sereno, doméstico os galos, as cigarras, os pássaros , que esconde o verdadeiro horror dos
episódios ocorridos ao abrigo da noite e da solidão de um quarto. As alusões à animalidade
humana chegam-nos, ainda assim, e muito obliquamente, quer na presença dos sátiros em “O
espelho”, ou dos tigres de Bengala, mencionados em “Ao embalo da rede”, ou até na
evocação do “par de asas invisíveis” (de cujo animal desconhecemos) e prestes a transportar a
personagem de “Noites brancas” para “um mundo irreal e tentador” (p. 66). Mas
encontramos, implícita em todas as narrativas, uma referência - muito mais interessante -
àquela ave trepadora da América Central, que morre quando privada da liberdade, Quetzal,
que se manifesta cremos, nalgumas personagens de Cruls Isa, presa a um casamento
monótono, Alzira, condenada ao Sertão, à velhice e à rudeza do Coronel, seu marido, e até em
Maria Clara, prisioneira da sua enfermidade e da sua clausura, de que se liberta, suicidando-
se. A morte sobrevem, pois, vestida de distintas formas, mas sempre, como elemento
libertador, ainda que a ele se chegue de forma horripilante. E, se observarmos atentamente,
também nelas vislumbramos a serpente azteca, emplumada com penas de quetzal,
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Quetzalcoatl (Quetzalcoatl simbolizava a vida, a abundância da vegetação, o alimento físico e
espiritual. Posteriormente, passou a representar a morte e a ressurreição). Não é
despropositado este comentário, se pensarmos que, tal como afirma Matta Vivolo, não é
difícil encontrarmos “elementos incas e aztecas” nos textos de Cruls, “frutos de sua pesquisa”
(MATTA VIVOLO, 2013, p. 76). Aqui, ela aparece sob a forma de luz (estrela da manhã) que
revela ou pelo menos nos facilita a tarefa de descobrir a verdadeira essência das outras
personagens, que se revelam monstruosas.
Há, pois, nestes contos, algo de catártico, a que se chega através do horror e do insólito.
Não podemos, ao mesmo tempo, deixar de referir a presença de variadas alusões ao efeito de
horror, conseguido nas alusões a corpos putrefactos, ao sangue, ao döppelgänger, à loucura,
aos tabus sexuais quebrados, presentes em todos os contos. Mas há sempre, por parte de
Cruls, uma intenção óbvia de não ser tão óbvio nessas alusões; a título de exemplo, refiramos
apenas a forma como são violados os tabus sexuais nestes contos. Se neles não encontramos
marcas nem de incesto, nem de pedofilia, aqui se narra o ato sexual com um corpo assolado
pela lepra, ou ao lado de um corpo putrefacto e em decomposição, ou com um cadáver. Ainda
assim, e apesar do que viemos afirmando, pelas razões que apresentamos anteriormente, Cruls
não nos parece, portanto, um autor gótico, mas antes um escritor que nos coloca perante uma
outra forma de trabalhar o Gótico.
Além do que afirmamos, os textos estudados permitiram-nos, igualmente, detetar muitas
marcas do que temos designado de Brasilidade. De facto, nestes contos não foi difícil
encontrarmos o retrato dos hábitos severos do Sertão, ou o quotidiano de uma classe
endinheirada do Rio de Janeiro, ou a referência a animais e doenças típicas desta zona
geográfica, ao seu clima e ao efeito que a Amazónia, enquanto espaço mágico, tem sobre as
personagens (MEIRELLES da SILVA, 2010, p. 1-16). As suas divindades e superstições, as
referências aos pobres, às mulheres brasileiras, aos empregados, aos estudantes que se
sujeitam a casamentos de conveniência como forma de ascensão social, enfim, todos estes
aspetos contribuem para apresentar o retrato de um Brasil de princípio de século XX, marcado
ainda pelo seu passado colonial, pelas assimetrias sociais, pelos preconceitos e valores ainda
próximos de uma Europa colonialista e racista que, já não estando aqui instalada, aqui deixa o
seu crivo.
Por último, e ainda que possa parecer arriscado e discutível defender que este escritor
apresenta características vanguardistas (De ANDRADE, 1976) que o aproximam do
Neofantástico, esta parece-nos ser a mais-valia do discurso de Gastão Cruls. A verdade é que,
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no retrato de um quotidiano aparentemente normal, Cruls sabe traçar umas pinceladas de
insólito, que nos colocam perante o que os olhos não veem, mas a razão sabe. Somos mais do
que parecemos ser. Somos uma verdadeira Biblioteca de Babel, se nos observamos pelo nosso
lado mental. Quanto a nós, é esse lado que encontramos, nos contos estudados, seja no
segredo de um quarto numa casa de um coronel no Sertão, seja num quarto de uma concubina
de políticos e argentários, ou no quarto de um casal de aparência decente que frequenta os
melhores lugares do Rio de Janeiro. Aqui, não intervêm o transcendente, o sobrenatural, o
teológico, não horror no relato, não uma tentativa de explicação para os
comportamentos narrados. apenas a apresentação desses relatos, fria e inócua, ainda que
perturbadora. Aqui encontramos o duplo sentido, os indícios, a ambiguidade da palavra e da
frase, que não nos deixam, numa primeira leitura, descodificar o seu real e verdadeiro
significado (MAIA VILELA, 2012). Há a alusão à metamorfose psicológica, comportamental,
espaçial, há a exploração semântica e ideológica do ruído, do silêncio, da palavra que não se
diz. E este aspeto prende-se, tanto com a importância desses espaços, quanto com a dos
comportamentos e características das personagens que se revelam diante de acontecimentos
insólitos, elas próprias insólitas, inexplicáveis, inaceitáveis a si mesmas.
Os textos aludidos afiguram-se-nos, pois, como neofantásticos: na visão que nos
apresentam do mundo real como máscara de outro mundo que lhe subjaz e que tentamos
ocultar dos outros; na reação de perplexidade que nos fazem ter perante as situações narradas,
dando ao leitor uma palavra final a dizer sobre o que se narra; nos silêncios e omissões de
palavras e circunstâncias, que nos permitem múltiplas interpretações; no sentido metafórico,
oblíquo e figurado que as palavras aqui adquirem; no seu contexto, mais do que espácio-
temporal, psicanalítico e acima de tudo psiquiátrico; na extensão breve destes textos, que, por
isso e para isso, não explicam tudo, não revelam tudo.
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Aceito em 08/01/2020.
Chapter
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tecnología, traducción y cultura Cualquier texto literario existe y cobra significación no ya en relación con su autor u autora, sino con una miríada de artefactos culturales previos con los que este texto mantiene un diálogo perpetuo. Así, las relaciones intertextuales que posibilitan la hermenéutica misma (o la inscripción de un sentido o sentidos determinados) no se limitan simplemente a un jardín de senderos bifurcados o a una biblioteca borgiana neta o exclusivamente literaria. Muy al contrario, cualquier artefacto cultural está firmemente vinculado a otros muchos, provenientes de ámbitos casi infinitamente diversos. De este modo, la literatura parece invitarnos a aproximarnos a su disfrute, estudio e interpretación desde una perspectiva multidisciplinar. El objetivo principal de este volumen es precisamente el de plantear un espacio de reflexión en el que se dialogue y debata sobre textos literarios a partir de sus vínculos y conexiones no ya solo con otras artes sino también con disciplinas científicas diversas. tirant humanidades tecnología, traducción y cultura 9 788419 376503
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Resumo O artigo busca analisar o início da carreira literária de Gastão Cruls e identificar, a partir das suas primeiras publicações, inclusive de seu primeiro romance, os conflitos de ordem profissional a interferir na sua produção literária. Em paralelo com tais inquietações e angústias, então responsáveis por certa cisão do autor entre a medicina e a literatura, também são considerados na análise o modo como a temática dos sertões articulou-se em contraposição à figuração de uma nova realidade urbana surgida no Brasil nos anos 1920. A convergência de tais fatores de ordem subjetiva e objetiva parecem ganhar na obra do autor uma resolução inicial pela via de uma literatura fantástica então emergente.
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O ensaio objetiva refletir sobre os horrores relacionados ao corpo humano, ou, sendo mais específico, sobre os modos como o corpo humano é representado nas narrativas de horror. Para tanto, em um primeiro momento, situa-se a vertente do horror do corpo na tradição das narrativas que exploram o medo como prazer estético, para, em seguida, tomar como demonstração duas narrativas curtas do escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959): “G.C.P.A.” (1920) e “O espelho” (1938).
Au Coeur du fantastique
  • Roger Caillois
CAILLOIS, Roger. Au Coeur du fantastique. Paris: Gallimard, 1965.
Gastão Cruls e a auscultação da sociedade brasileira
  • Matta Da
  • Vivolo
  • Vitor
Da MATTA VIVOLO, Vitor. Gastão Cruls e a auscultação da sociedade brasileira. 2 v.
São Paulo: Pontifícia universidade Católica de São Paulo
  • Mestrado Dissertação De
Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia universidade Católica de São Paulo, 2013.
Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas
  • Andrade De
De ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia pau-brasil. In: TELES MENDONÇA, Gilberto (ed.) Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Brasilia: Petrópolis: Vozes; INL, 1976.
Ecos da Pulp Era no Brasil: o Gótico e o Decadentismo em Gastão Cruls
  • Júlio França
FRANÇA, Júlio. Ecos da Pulp Era no Brasil: o Gótico e o Decadentismo em Gastão Cruls.