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Renan Marques Birro
A Idade Média Brasileira? Colonialismos e
medievalismos historiográcos (c.1900-1940)
Dossiê
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Resumo: O presente artigo pretende recobrar o colonialismo
intelectual vigente na historiograa brasileira do início do
século XX, além de suas nítidas relações com os medievalismos
subjacentes aos processos de produção histórica vigentes na
Europa do período. Assim, o texto recobrou os colonialismos
culturais no nal do século XIX e início do século XX, que
subsidiaram os nacionalismos e colonialismos europeus em
outras partes do mundo. Em seguida, o texto ofertou aos
leitores um vislumbre do predomínio do colonialismo cultural
francês no Brasil e, em menor grau, a ambivalente presença do
colonialismo cultural português - minorado por sentimentos
lusófobos na jovem república brasileira. O último tópico foi
dedicado ao estudo de caso em torno da produção intelectual
de Carlos Malheiro Dias (1875-1941), um famoso literato
e jornalista luso-brasileiro, para mostrar que as premissas
anteriores não apenas cimentaram a noção de “raízes medievais
brasileiras”, mas também a base arquetípica e teorética da
historiograa brasileira.
Palavras-chave: Idade média brasileira; Carlos Malheiro Dias;
Medievalismo; Colonialismo; Historiograa.
Abstract: The main purpose of this text is to recover the
intellectual colonialism in course in the Brazilian historiography
at the beginning of 20th century; and also its clear relations
with the underlying medievalisms in historical works written
in Europe of that time. Thus, the text briey recovers the
cultural colonialisms at the end of the 19th century and at the
beginning of the 20th century which provided nationalisms
and colonialisms in other parts of the world. Furthermore,
the text offered to their readers a glimpse of the prevalent
French cultural colonialism in Brazil and, in a minor degree,
the ambivalent presence of Portuguese cultural colonialism -
despite the lusophobic feelings in the young Brazilian Republic.
The last topic was dedicated to Carlos Malheiro Dias (1875-
1941), a famous Portuguese-Brazilian writer and journalist,
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to show how the before mentioned premises corroborated not
only with the idea “medieval brazilian roots”, but also with the
archetypical and theoretical basis of Brazilian historiography.
Keywords: Brazilian middle ages; Carlos Malheiro Dias;
Medievalism; Colonialism; Historiography.
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Em 2015, Nadia Altschul publicou uma relevante reexão sobre o
medievalismo e a contemporaneidade do Medieval no Brasil pós-colonial.
Além de criticar a proposta das “raízes medievais brasileiras”, ela apresentou
de modo breve como Euclides da Cunha – um dos autores seminais para a
criação da identidade nacional brasileira – aplicou um arquétipo sobre a Idade
Média vigente em época para legitimar a Guerra de Canudos e o sentimento
de superioridade do Centro-Sul frente ao Norte-Nordeste (ALTSCHUL, 2015).
Noutra dimensão, inspirei-me em um artigo recém-publicado que expõe como
os estudos medievais no Brasil adotaram muitas vezes uma postura colonizada
frente à historiograa francesa (AMARAL; BERTARELLI, 2020).
Consequentemente, na esteira desses trabalhos, esta reexão ou-se no
medievalismo, abordagem que se preocupa com a recepção do período medieval
na contemporaneidade e com a historiograa sobre o período medieval
(MÜLLER, 2010; PUGH; WEISL, 2013; UTZ, 2015). Partindo deste enfoque, o
presente artigo pretende avançar e deslindar o cenário intelectual que permeava
as elites brasileiras no nal do século XIX e início do século XX, com particular
apreço pela elite paulistana, que estava no entorno de Euclides da Cunha.
Para tanto, versarei em primeiro lugar sobre o colonialismo cultural vigente
em época, suas relações com o passado medieval (real ou imaginado) e seus
reexos no Brasil; por m, proporei um estudo de caso a partir do controverso
intelectual luso-brasileiro Carlos Malheiro Dias (1875-1941).
Colonialismos culturais, medievalismos e sua contraparte nas Américas
Edward Said atestou em seu estudo clássico que “a invenção do Oriente”
coincidiu com avanços na Filologia românica, da Linguística comparada
e dos estudos das origens das línguas indoeuropeias (SAID, 2007). Os
parâmetros europeus para ver e interpretar o mundo em termos cientícos
(ou pseudocientícos) “ajudaram” a formatar as identidades nacionais
e intelectuais na África, Ásia e América Latina. Neste ínterim, saberes
tradicionais das sociedades assentadas nesses continentes, suas mundivisões
ou seus desdobramentos intelectuais foram usualmente diminuídos diante do
potentado intelectual europeu (CASTRO-GÓMEZ, 2005; DUSSEL, 2005; MAMA,
2005; MIGNOLO, 2005; QUIJANO, 1998).
Alguns autores trabalharam com o conceito de colonialidade do poder, ou
seja, uma espoliação econômica, cultural, social e intelectual que legitima um
imaginário de superioridade intransponível entre o colonizador (em termos
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de bondade, civilização, raça e racionalidade, por exemplo) e o colonizado
(barbárie, incontinência, índio, maldade, negro etc.). Se a comunicação entre
ambas é impossível pelo viés da cultura, produziu-se, portanto, uma relação
hierarquizada entre sociedades europeias e não-europeias ditadas inicialmente
pelo poder colonial, mas em seguida pela cultura do poder intelectual, isto
é, arquétipos, conceitos e teorias produzidos para o contexto europeu e
reproduzidos, graças ao modus operandi acadêmico, para outras plagas. É
possível falar, desse modo, de uma colonialidade do poder intelectual (CASTRO-
GÓMEZ, 2005; QUIJANO, 1998).
Ao versar sobre o assunto, Amina Mama manifestou que as universidades
africanas reproduzem estruturas departamentais e discussões inuenciadas
e/ou herdadas dos cenários acadêmicos estadunidense e europeu em vez de
formatarem modelos transdisciplinares e mais adequados à realidade vigente
neste continente; enquanto isso, as elites locais não raro reproduzem os
aparatos intelectuais por inuência dos antigos colonizadores. Considerando
esse ponto,
a violência epistemológica, que acompanhou o processo de
conquista e retalhamento da África e outros territórios coloniais,
resultou numa herança de dominação intelectual com a qual
ainda temos de conviver, e que continua a suscitar desaos às
nossas identidades intelectuais (MAMA, 2005, p. 118).
Assim, ca nítido que as nações europeias tentaram oferecer respostas
aos problemas internos e externos enfrentados no momento quanto à
identidade nacional ao domínio territorial; e, de modo geral, a Idade Média
foi a pedra fundamental e fundacional das identidades e línguas nacionais e,
simultaneamente, para legitimar os processos vigentes de dominação colonial
(MILLER, 2016). Em conformidade com essas reexões, outros pesquisadores
já avançaram em propostas da colonização intelectual do passado alheio
(DAGENAIS; GREER, 2000, p. 431-438) ou do próprio passado (SVANBERG, 2003)
em termos originalmente constituídos conforme mitologias nacionalistas,
colonialistas e com laivos de racialidade. Apesar disso, muitos termos,
arquétipos e conceitos continuam em voga, total ou parcialmente, deixando
marcas duradouras na produção historiográca.
Nesse sentido, Patrick Geary (2005) apresentou como várias nações europeias
lançaram mão do passado medieval de modo a consolidar e legitimar suas
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intenções e pretensões territoriais, de controle e dominação de populações e em
termos ideológicos, recobrando textos clássicos (HROCH, 1985; HOBSBAWM,
2002). Em um esforço de síntese, eis os pontos principais: a necessidade de
formação de um grupo de intelectuais engajado em uma empresa nacional;
a adoção de uma forma de língua ocial, concomitante com o “resgate” e a
promoção de um conjunto cultural comum (folclore, literatura e tradições); a
adoção desses parâmetros sobre um determinado território; a evocação de um
passado comum (não raro medieval e “inventado”) que conectava comunidades
culturais e linguísticas; a transmissão dessas ideias em massa, com especial
apreço para a esfera escolar (preferencialmente pública).
Ademais, os três historiadores citados manifestaram que este modelo teve
início no contexto prussiano; e, grosso modo, a intelectualidade europeia
daquele período teria atribuído a vitória germânica na Guerra Franco-Prussiana
(1870-1871) como uma consequência da adoção desses parâmetros culturais,
ideológicos e políticos. Conforme o arrazoado vigente na época, essas premissas
teriam encorajado os soldados, formatando uma ideia de unidade e de defesa
da mãe-pátria. Não por acaso, muitas nações adotaram medidas similares
que promoviam o discurso nacionalista, a identidade nacional e parâmetros
históricos-linguísticos com validade para todo o país.
Como nação derrotada no pós-guerra, a França atrelou-se ao passado medieval
para se reinventar. Os intelectuais daquele tempo, entre os quais o célebre
Fustel de Coulanges (1830-1889), defendiam a superação das desavenças entre
monarquistas, católicos e republicanos que enfraqueciam a nação francesa; a
identidade nacional comum era mais do que necessária para reerguer a nação
após o vexatório resultado no confronto ante os inimigos além-Reno. Desse
modo, a Idade Média francesa foi almejada, buscada e instituída como uma
espécie de “fundação” do projeto. Naturalmente, apesar da convergência, os
caminhos adotados muitas vezes apresentavam vozes dissonantes. Seja como
for, políticos e/ou intelectuais destacaram-se no período, como Gaston Paris
(1839-1903) e Joseph Bédier (1864-1938) (EMERY; MOROWITZ, 2003, p. 12-
52). Portanto,
apesar da frequentemente contraditória reivindicação sobre os
personagens e a arte da Idade Média, o fervor patriótico geralmente
sobrepunha-se a todo o resto; e, em torno da década de 1880, todos
concordavam que a Idade Média era a chave da identidade francesa
(EMERY; MOROWITZ, 2003, p. 51-52).
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Na tentativa de concatenar todas essas ideias, é possível citar o curioso
caso de Bédier. Ele nasceu em Paris, mas tinha raízes nas Ilhas Reunião, um
arquipélago localizado no Oceano Índico que compunha o império ultramarino
francês e ainda hoje é um território de além-mar da República francesa. Ali
Bédier viveu parte de sua infância, antes de retornar para a capital francesa
para dedicar-se aos estudos. Como bem demonstrou Michelle Warren na obra
Creole Medievalism, a elite insular, da qual Bédier fazia parte, enfatizava seu
pertencimento ao círculo cultural metropolitano francês e ao eurocentrismo.
Mesmo quando foi morar na França, Bédier mantinha contato com os réunionnais
que ali viviam (WARREN, 2011, p. xi-xx).
De fato, Joseph Bédier destacou-se por propor uma tradução de Tristão e
Isolda - obra originalmente escrita em anglo-normando e disponível em um
manuscrito que se encontrava em Oxford. Com efeito, ela passou a gurar como a
literatura nacional francesa, tal como a Nibelungenlied alemã e o Beowulf inglês.
Pouco tempo depois, Bédier obteve a cátedra de literatura medieval francesa
no Collège de France, também foi tomado como um herói na Primeira Guerra
e, por m, em 1920, foi eleito para a Académia Française. Consequentemente,
todos esses elementos, sem ignorar sua ligação com a Idade Média, zeram
dele uma espécie de “garoto propaganda” réunionnais (WARREN, 2011, p. xxi-
xxvi). Chama particular atenção que
O medievalismo criollo articulado pelo migrante réunionnais
[...] tem uma longa história, que se pauta de modo discutível
na mesma base da noção de mission civilisatrice que dirigiu a
ideologia colonial francesa durante boa parte dos séculos XIX e
XX (WARREN, 2011, p. xxvii).
Não se tratou, porém, de um movimento apenas elitista; na esfera popular,
medievalismo e colonialismo se uniram na educação, nos debates políticos e
jornalísticos e até mesmo nas exposições universais organizadas em Paris entre
o nal do século XIX e o início do século XX. O presidente do país, por exemplo,
abria as ocasiões a partir de um trono posto em frente a uma casa tipicamente
medieval. Ademais, ao considerar a organização da feira e seus múltiplos
estandes, ca perceptível que a mistura entre medievalismo e colonialismo não
impedia a forticação do nacionalismo republicano (WARREN, 2011, p. 26-74).
O caso evocado mostra uma elite cultural, econômica, intelectual e política
fora da França metropolitana e sem um passado medieval que construiu ou
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manteve um laço com a Idade Média intencionalmente. Assim, a identidade
nacional francesa foi forjada no escopo sentimental, não territorial; dessa
forma, seria possível que um nativo das colônias se engajasse com ela, como
no caso dos réunionnais (WARREN, 2011, p. 3-6). Era uma forma de se sentir
simultaneamente parte da França, civilizado e europeu.
Ao retomar a questão educacional e a pretensão colonial francesa, que
extrapolava seus próprios territórios, recobro o papel que a Aliança Francesa
teve para o ensino de língua estrangeira e como uma ferramenta de colonialismo
cultural, diplomático e de difusão de uma orientação francófona dos países em
desenvolvimento. A rigor, o curso foi pensado por docentes universitários que
já alimentavam seus estudantes com amostras da literatura francesa (inclusive
medieval), conceitos (como a ideia de civilização) e explicações históricas sobre
a França (História política, institucional e das estruturas do Antigo e Novo
Regime) (CORTIER, 2018, p. 3).
Nesse ínterim, propunha-se uma formação de professores que fosse capaz
de difundir “uma adesão às representações ideais de uma língua e cultura
francesas de tipo universalista [...] de uma atração combinada com uma atitude
antialemã ou antinorteamericana, como na América Latina” (CORTIER, 2018,
p. 9). Curiosamente, esta característica esteve mais presente quando Bédier e
Georges Duhamel assumiram a presidência da Aliança Francesa; e apesar das
mudanças institucionais da década de 1980 em diante, “a noção de cultura
reivindicada pela Aliança [...] permanecerá por muito tempo el à noção literária
e de uma cultura-civilização de vocação universalista” (CORTIER, 2018, p. 10).
Diante do exposto, a primeira pergunta que é posta à mesa é: seria possível
pensar nesse paradoxal medievalismo nas Américas? Sobre isso, recobro um
trabalho menos conhecido de Patrick Geary intitulado Medieval Germany
in America (1996). Esta obra versa sobre o impacto da tradição intelectual
germânica no ambiente universitário estadunidense do nal do século XIX e
início do XX. Naquele período, as universidades dos Estados Unidos abraçaram
o “modelo de seminário germânico”, também adotado no restante do mundo e
vigente até os dias de hoje. Além disso, jovens pesquisadores estadunidenses
estudaram em instituições germânicas, enquanto professores germânicos
lecionaram nas instituições americanas.
Não parece surpreendente que os arquétipos e conceitos da história europeia
germânica tenham sido aplicados e adaptados para formatar as bases da
historiograa nacional estadunidense (GEARY, 1996) – incluindo, notadamente,
um discurso de superioridade racial e a noção de destino manifesto – com ampla
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repercussão social, política e religiosa (BIRRO, 2016a, 2016b).
Quanto ao potencial desconforto da fusão do ideal republicano e o
medievalismo nos casos francês e estadunidense, lembro-me da complexa
noção de translatio studii dos princípios republicanos romanos, costurada com
a evocação do passado medieval. Contudo, no caso americano, como recobrado
por Geary (1996) até o m da Primeira Guerra, a esfera de inuência era outra
(nos parâmetros da anglolia e germanolia). Seja como for, os argumentos de
partida não são tão distantes, pois era preciso vincular-se ao passado europeu
em algum grau; ademais, tratou-se do “mito de uma herança político-cultural
ocidental, de um Ocidente que serve como um depositário de ideia de civilização
que encontraria a América do Norte como ponto de chegada” (MILLER, 2016,
p. 5-6).
Portanto, mediante o exemplo estadunidense, até que ponto seria possível
pensar um medievalismo à brasileira? Quais seriam suas bases e premissas?
Qual(is) âmbito(s) de inuências europeias serviu(ram) para nossa vinculação
com a Idade Média?
Educação francóla e colonialismo cultural francês no Brasil: um breve
panorama da primeira metade do século XX
A fusão entre o pensamento republicano, o nacionalismo, o medievalismo e
o imperialismo não parecia paradoxal na ótica francesa entre o nal do século
XIX e o início do século XX. Em 1908 foi criado o Groupement des Universités et
des Grandes Écoles de France pour les relations avec l’Amérique Latine, com a nítida
intenção de estreitar laços com parceiros latinoamericanos. Indubitavelmente,
as trocas culturais com a França diminuíram na década seguinte, em virtude
da Primeira Guerra; mas foram prontamente retomadas após o conito, graças
aos fundos cientícos para o estrangeiro e para publicação de obras fora da
França. Nesse ponto, destaco o papel de George Dumas, que atuou inicialmente
como professor da Faculdade de Paris no n-de-siècle, como membro inicial
do Groupement e engajado nas relações França-Brasil; ele colaborou com a
instalação do Instituto Franco-Brasiliense de Alta Cultura no Rio (1922) e em
São Paulo (1925) (FERREIRA, 2005, p. 227-228).
Em termos rigorosos, seria possível até mesmo recuar no tempo e observar a
formação das elites brasileiras. Entre c.1850-1930, o Colégio Pedro II preparou
os lhos da elite brasileira conforme o receituário pedagógico da “França
humanista, conservadora e católica” (NEVES, 2015, p. 73). O currículo e as
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leituras dessa instituição, por sinal, eram os mesmos adotados na contraparte
francesa – e recorrentemente em francês. Além disso, entre 1838 (fundação
do colégio) e 1961, o ensino da Língua Francesa ocupou grande parte da
grade curricular. Ainda vale ressaltar que o currículo e as leituras do Colégio
Pedro II serviram como espelho para outras instituições do país até meados
do século XX (NEVES, 2015, p. 73-78). Deste modo, parece verossímil armar
que o horizonte intelectual das elites brasileiras era semelhante daquele que
produziu o medievalismo republicano francês em n-de-siècle.
Entrementes, em 1925, o Estado de São Paulo noticiou a pretensão da
formação de uma escola secundária que suprisse as lacunas educacionais da elite
paulistana e formasse a base do alunado que atenderia a futura Universidade de
São Paulo: ele foi chamado de Liceu Franco-Brasileiro por sugestão de George
Dumas (CARDOSO, 1982, p. 60). Anos mais tarde, Júlio de Mesquita Filho relatou
que o intelectual francês acreditava que os professores do Liceu “deveriam ser
contratados na Europa, pois a verdade – a verdadeira verdade – é que não havia
ninguém no Brasil capacitado a ensinar qualquer uma das matérias do ginásio.
Os que se dedicavam a essa função eram os que haviam fracassado em suas
prossões [...]” (MESQUITA FILHO, 2010, p. 152).
A tentativa de reforçar a preeminência francesa no ensino das elites
brasileiras manteve-se também na década de 1930. Além das instituições
mencionadas, que promoviam a cultura, a história, os primados educacionais e
os valores franceses, o Ministério de Relações Exteriores francês – de estreitas
conexões com os Institutos Franco-Brasileiros e com a Aliança Francesa
– mostrava-se inseguro diante da manutenção da ascendência cultural no
país. Outras nações agiam no mesmo sentido, como os Estados Unidos e a
Itália, pressionando políticos estaduais e federais. O foco era a obtenção de
postos da futura Universidade de São Paulo, mas, em menor grau, também da
Universidade do Distrito Federal (UDF) e da Universidade do Brasil (FERREIRA,
2005, p. 228-230). O que estava em jogo, conforme uma carta do cônsul francês
em São Paulo para o embaixador da França no Brasil de 1934, “é nossa própria
civilização [...] trata-se de ganhar a partida; é preciso ser rápido” (PINGAUD
apud FERREIRA, 2005, p. 229).
Os desdobramentos posteriores atestam e reforçam a ideia da proeminência
das missões francesas, conquanto grupos menores de docentes de outras nações
europeias também compusessem o esforço. A meu ver, as razões são óbvias:
o colonialismo cultural português perdeu lugar ante a crise da instauração
republicana no além-mar (1910), além do sentimento antilusitano jacobinista
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(movimento vívido entre c.1890-1920, de teor republicano, antimonarquista e
não-nacionalistas) (TRICHES, 2007). Assim, durante a Primeira Guerra, ocorreu
um tênue vácuo (arrefecido pela francolia no ensino secundário), seguido por
uma disputa da proeminência da inuência cultural no país.
Naturalmente, este processo ocorreu com vários meandros, convergências e
diálogos entre os colonialismos português e francês no Brasil – como avançarei
na parte nal do texto. Seja como for, a França empreendeu grandes esforços,
estava mais próxima da realidade brasileira (o ideal republicano laico, o escopo
de país cristão e conservador, tal como o passado monárquico recente e uma
solução menos traumática no escopo social do que a portuguesa); e, assim, foi
nitidamente premiada com uma posição de destaque na futura Universidade de
São Paulo.
Sobre isso, Júlio de Mesquita Filho não deixou dúvidas: temia-se, com a
criação da referida instituição, que o fascismo e o nazismo fossem divulgados
no país. Para atender os inevitáveis apelos da grande colônia italiana no país,
deram-lhes as cadeiras de ciências puras. “Conservávamos para a França,
líder da liberal democracia, aquelas de que dependia diretamente a formação
espiritual dos futuros alunos” (MESQUITA FILHO, 2010, p. 131-132). Entenda-
se, as Humanidades, Letras e Artes.
Quanto à questão das universidades brasileiras, Fávero, Peixoto e Silva
(1991) armaram que agentes públicos teriam se preocupado sobremaneira com
posturas clientelistas na montagem das instituições universitárias brasileiras,
isto é, em adotar uma postura servil diante das manifestações culturais de
outras nações. Ao tratarem da criação da UDF em meados da década de 1930, as
autoras assumiram aquilo que Afrânio Peixoto3, seu primeiro reitor, armou na
apresentação do Boletim da UDF:
Elas serão, essas missões culturais, a souche, a soca diremos nós, donde
brotará disseminada a cultura nacional, não mais o esforço individual de
alguns autodidatas, senão extensão popular e coletiva de culturas, que
serão a cultura brasileira, dando o exemplo, sempre fértil em contágios
e imitações (PEIXOTO, 1935, p. 8, grifo do autor).
A crença de Peixoto, compartilhada pelas pesquisadoras brasileiras,
manifesta certa ingenuidade, pois ignorou as pretensões originais francesas:
a utilização do termo “missões culturais” desnuda algo típico daquilo que foi
preconizado pela Aliança Francesa, tal como da noção de missão civilizadora
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(mission civilisatrice), expressão presente e recorrente entre intelectuais
franceses e, não coincidentemente, na bibliograa que nós, historiadores
brasileiros, empregamos de ofício.
Por sua vez, a evocação da cultura nacional também parece ecoar as discussões
da Assembleia nacional, de jornalistas e de acadêmicos franceses no n-de-
siècle: no outro lado do Atlântico, os problemas envolviam a cicatrização das
feridas da Guerra Franco-Prussiana (comparativamente, trata-se também de
algo que moveu a elite paulista e paulistana após a Revolução Constitucionalista
de 1932)4, juntamente com um discurso republicano imperial que integrava as
colônias ultramarinas (como no caso das Ilhas Reunião)(cf. WARREN, 2011).
Deste lado, era preciso construir uma identidade nacional capaz de unir
um país-continente com profundas diferenças, tendências desagregadoras e
regionalismos. Portanto, o modelo francês “caiu como uma luva” diante das
necessidades políticas, intelectuais e até mesmo educacionais daquele tempo,
para constituir um sentimento de ser brasileiro independentemente das
distâncias e diferenças. Na esfera mais ampla, o Brasil dispunha de um passado
monárquico recente e que assombrava, em certo grau, a jovem república. Porém,
no caso brasileiro, por um lado havia contiguidade territorial e, por outro, não
se manifestava uma pretensão imperialista para além das fronteiras.
Retornando ao texto de Peixoto, destaco o termo francês “a souche”, seguido
pela expressão em Língua Portuguesa (nitidamente derivativa), o que denuncia
um de seus horizontes de inuência fundamentais. Nota-se, assim, que as
melhores intenções não foram capazes de demover esses mentores e intelectuais
da francofonia e francolia, que pairava sobre as mentes e corações apesar dos
arroubos discursivos em nome da nação.
Mas se ainda restarem dúvidas, talvez valha a pena recuperar um testemunho
sobre o ambiente uspiano na década de 1930:
Certa feita [...] ao iniciar uma de suas aulas espetáculo para os lhos
madurões da elite paulistana [...] ele se dirigiu a um grupo de alunos,
perguntando se haviam lido Marcel Proust. Silêncio aterrador. Braudel,
após tirar suas luvas, perguntou: ‘Por quanto tempo mais os senhores
pretendem continuar imbecis?’. Essa estória, diversas vezes contada
e recontada por um de seus assistentes, Eduardo d’Oliveira França [...]
é emblemática da dialética do colonialismo cultural francês em
São Paulo. A opinião desses franceses – qualquer um que fosse –
sempre carregava um “plus a mais”, até os anos de 1970 (MOTA,
2004, p. 146, grifos nosso).
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medievalismos historiográcos (c.1900-1940)
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Não seria forçoso admitir, deste modo, que os horizontes cultural e intelectual
franceses projetaram fortes e duradouras sombras sobre as primeiras gerações
de intelectuais da Universidade de São Paulo. Considerando a batuta francesa e
o impacto desta instituição para a consolidação de diversos campos de reexão
histórica no país, tudo leva a crer em um fenômeno análogo ao que ocorreu nos
Estados Unidos.
Logo, discordo de propostas anteriores que sugeriram que a Universidade
de São Paulo buscou inspirações no modelo universitário germânico de modo
direto (MENEGHEL, 2006, p. 255-256; PAULA, 2002, p. 147-154). A transposição
da experiência europeia de ensino universitário nacional seguiu os ditames
franceses – espécie de mola-mestra – sem ignorar possíveis inuências locais,
regionais e nacionais. Sobre isso, concordo com Mota:
A Universidade de São Paulo, criada em 1934, colocou-se no campo das
ciências humanas, sob a égide da cultura francesa [...] era um tempo em
que não havia concursos. Os catedráticos mandavam e desmandavam,
no estilo do grand patron. Os professores franceses en mission tinham
um poder excepcional [...] a São Paulo dos anos de 1930 era amena, e a
elite intelectual que acolhera Braudel e seus colegas era cosmopolita e
tinha um nível alto; demais, os contatos com a França e com a Europa
eram intensos, permitindo que ele circulasse expressando-se em sua
própria língua (MOTA, 2004, p. 140-149, grifos do autor).
É possível agregar ainda outras questões: a difusão do ensino da Língua
Francesa no secundário; o mercado editorial, que passou a abundar de
traduções de intelectuais franceses; a atuação de agentes, instituições e órgãos
públicos franceses; a promoção do “prestígio intelectual francês” para suprimir
a inuência do american way of life; e, por último, mas não menos importante,
que “São Paulo e Rio, cidades afrancesadas, faziam parte do mapa imaginário
da França culta” (MOTA, 2004, p. 143).
Em suma, esse professorado francês proveu gerações de professores e
pesquisadores de História de arquétipos, conceitos, tendências historiográcas
e valores franceses. Também cito a difusão de manuais de história, como a
série de Albert Malet e Jules Isaac (MALET; ISAAC, 2002). Sobre os mestres
europeus, havia um conforto adicional: muitos deles atuaram como docentes
do secundário em colônias ultramarinas francesas (Argélia, como no caso de
Braudel, mas também Camarões, Senegal ...), algo celebrado por d’Oliveira
França, como mencionei antes.
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Por m, esses intelectuais vieram cingidos das ambiguidades que marcavam
a identidade nacional francesa: o período medieval como formador da ideia de
ser francês, isto é, uma ideia que atrelava a ligação ao país com o sentimento,
não ao território; os ideais pedagógicos jacobinos e populares, derivados da
Revolução; uma preocupação republicana laica, típica da Terceira República;
e o imperialismo republicano, que deveria ser intensamente promovido
nas colônias, visando a unidade e o fortalecimento do sentimento nacional
(WARREN, 2011, p. 1-25). Doutra feita, no estrangeiro, o intuito era fazer valer a
“ascendência cultural francesa” – ou, sem eufemismos, o colonialismo cultural
francês (MOTA, 2004).
Parece o momento adequado para propor um balanço parcial desse
fenômeno no Brasil. Em primeiro lugar, acrescentarei alguns argumentos sobre
a inuência francesa nítida e cristalina, além de seu impacto na formatação
das universidades brasileiras – tema tratado por diversos historiadores do país
(BIRRO, 2020; D’ALESSIO, 1998; FERREIRA, 2005; MENEGHEL, 2006; MOTA,
2004; PAULA, 2002).
Considerando especicamente o caso da Universidade de São Paulo, é possível
elencar de modo sucinto as razões: o papel da “missão francesa” durante os
primeiros anos da instituição paulista – mas de longeva inuência; a adoção,
adaptação e reprodução do “modelo quadripartite francês” noutras instituições;
a francolia formativa de nomes relevantes do corpo docente, como Eurípedes
Simões de Paula e Eduardo d’Oliveira França; a participação destes nomes
na manutenção do sistema instituído por inuência francesa e na seleção de
outros docentes da casa; por m, a perpetuação do supramencionado modelo
no transcorrer do tempo, apesar das críticas nas décadas de 1950 e 1960 e do
congelamento das discussões até o início dos anos 1980. Independentemente
dessas questões, a estrutura quadripartite francesa se manteve (D’ALESSIO,
1998; FERREIRA, 2012; FURTADO, 2015; LIMA, 2019; MOTA, 2004; THEODORO,
2009; WOOD, 2013, p. 222-243; para um resumo, cf. BIRRO, 2020).
Nesta fase, como alguns colegas enfatizaram, a difusão de leituras
estruturalistas com maior ou menor inuência do marxismo, tal como o cenário
político vigente no país durante os anos de chumbo, zeram com que a Idade
Média no Brasil fosse encarada como algo na esfera da direita conservadora
e sem razão diante da realidade nacional. Ato contínuo, o feudalismo serviu,
de modo geral, como caricatura de todo o período (cf. BASTOS; RUST, 2008;
COELHO, 2006; LISBOA, 2020).
O que esses balanços não perceberam, todavia, é que o colonialismo cultural
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medievalismos historiográcos (c.1900-1940)
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francês exigia a inclusão do passado medieval. Logo, não era possível negar a
Idade Média, pois ela era um elemento estrutural na construção da experiência
historiográca de França; e como derivamos nossas reexões acadêmicas
e a panóplia arquetípica e conceitual sob a batuta francesa, não parece
surpreendente que os estudos medievais tenham perseverado no país, apesar
dos ataques e críticas.
Além disso, considerando o escopo da cultura histórica (RÜSEN, 1994),
o debate do “feudalismo no Brasil” manteve-se efetivamente presente nas
reexões de historiadores relevantes no transcorrer do século XX, como Carlos
Malheiro Dias (1921-1924), Sérgio Buarque de Holanda (1936), Gilberto Freyre e
(1933), Caio Prado Júnior (1942), Nelson Werneck Sodré (1962) e Ciro Flamarion
Cardoso (1973). E, como pano de fundo, forma-se um retrato da inuência
da historiograa francesa, de seus arquétipos, conceitos e do colonialismo
subjacentes.
Portanto, seria pertinente e um verdadeiro ato historiográco retomar as
razões que forjaram tais ideias e os motivos subjacentes dessa perpetuação.
Para tanto, propus um curto estudo de caso que considera as contribuições
de um “precursor”, a saber, Carlos Malheiro Dias. Neste curto estudo de caso,
abdiquei da análise do “feudalismo no Brasil”, tema que exigiria um esforço
inexprimível em poucas páginas. Em vez disso, lancei-me sobre os outros
argumentos desses colonialismos e medievalismos que foram varridos para
debaixo do tapete.
A Idade Média brasileira? Um bric-à-brac de colonialismos e
medievalismos em Carlos Malheiro Dias
Portugal ensaiou uma reaproximação política e cultural com o Brasil já no
nal do século XIX; mas o projeto mudou de estatuto a partir de 1910, com a
proclamação da República portuguesa. Ele fundia a causa republicana com a
causa nacional, enfatizava a probidade colonizadora portuguesa, tal como seu
gênio; apenas a combinação de ambos proporcionaria o bem republicano, a
defesa da pátria (entenda-se Portugal) e das colônias. A preocupação maior era
mostrar o Brasil como um lho e irmão “bem amado” de Portugal, uma nação
próspera e independente. Assim, esse elemento servia como argumento para
a manutenção das colônias portuguesas na África: tal qual no Brasil, Portugal
levaria “a luz da civilização à África” (FERREIRA, 2008, p. 121-122). Percebe-se,
portanto, um sentimento muito similar ao fomentado pela França em relação
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a si mesma, aos territórios ultramarinos e ao sentimento de identicação
nacional - sendo este último a força motriz.
Com tratei anteriormente, ocorreu um rompimento com o colonialismo
cultural português no Brasil no início do século XX, graças ao acirramento do
nacionalismo e com os desdobramentos de campanhas lusófobas (TRICHES,
2007). Naturalmente, este processo não transcorreu de maneira integral e as
tentativas de manutenção da inuência portuguesa no país permaneceram.
Para tornar meu argumento mais alusivo, defendo a hipótese de bric-à-
brac de colonialismos e medievalismos, eivados de contradições e problemas.
Naturalmente, o termo medievalismo criollo guarda semelhanças, mas não
abarca as peculiaridades do fenômeno na experiência brasileira5.
Júlio Mesquita, por exemplo, era lho de imigrantes portugueses e cercou-
se deles quando jornalistas brasileiros abandonaram os jornais privados para
abraçar carreiras de Estado (MÜLLER, 2007, p. 51-52); consequentemente, Júlio
de Mesquita Filho, um dos articuladores e mentores da Universidade de São
Paulo, chegou a estudar em um colégio lisboeta quando menino e cresceu nesse
ambiente luso-brasileiro (MESQUITA FILHO, 2010, p. 149-150). Dentre eles,
Carlos Malheiro Dias.
De pai português e mãe brasileira, Malheiro Dias teve uma educação
privilegiada, com direito a educação em colégios e liceus portugueses que
ofereciam currículos clássicos. Na vida adulta, cursou Direito na prestigiada
Universidade de Coimbra, mas não concluiu os estudos da lei; ele obteve o grau
no curso de Letras pela Universidade de Lisboa (quando de seu retorno para
Portugal, no nal do século XIX). Atuou na esfera administrativa portuguesa,
mas dedicou boa parte de sua vida ao jornalismo e à literatura (CARLOS...,
2020).
Ele alternava temporadas entre Brasil e Portugal, colaborando para vários
periódicos em ambos os países. Ao iniciar sua carreira literária, alcançou uma
terrível reputação ao publicar A Mulata (1896), obra naturalista e crítica da
sociedade carioca da época. O perl da protagonista, mulata e prostituta, causou
repulsa entre os intelectuais brasileiros; Malheiro Dias foi avidamente criticado
e retornou para Portugal praticamente escorraçado do Brasil. Em terras lusas,
continuou a escrever enquanto atuava como deputado da Assembleia Nacional.
Vale ressaltar que Malheiro Dias era um ferrenho monarquista (CARLOS...,
2020).
Em 1910 foi proclamada a República em Portugal. Após três anos, Malheiro
Dias exilou-se no Brasil, não sem antes produzir vários trabalhos críticos ao m
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da monarquia e dos problemas enfrentados por Portugal em decorrência disso.
Chamo atenção para O estado actual da causa monarchica (1912), texto político
publicado por um intelectual amargo com o m recente do regime monárquico
português. Na obra, o autor expôs aquilo que tomava como trapalhadas,
prejuízos e outros desagravos republicanos, que comprometeriam o futuro de
Portugal.
Conforme o arrazoado, o povo português era eminentemente conservador,
e o conservadorismo combinava com a monarquia; a Espanha monarquista
não lançaria um ataque contra Portugal por compor uma aliança com a França
e Inglaterra para controlar o Mediterrâneo (MALHEIRO DIAS, 1912, p. 222-
254); mas não estava satisfeita com a escolha dos vizinhos, pois “a península é
demasiado pequena para que nella caibam, sem mutuamente se prejudicarem,
uma republica e um reino” (MALHEIRO DIAS, 1912, p. 238).
Para Malheiro Dias, a Inglaterra exercia uma tutela sobre Portugal, e não uma
aliança. Frente à cobiça germânica, ela cederia (a contragosto) seus territórios
e, mais facilmente, os territórios coloniais portugueses aos germânicos
(MALHEIRO DIAS, 1912, p. 255-259). Os alemães, por sua vez, receberam apenas
o rebotalho da África; consequentemente, espreitavam Angola e Moçambique,
que faziam fronteira com seus territórios (MALHEIRO DIAS, 1912, 261-267).
Com efeito, o capítulo dedicado aos alemães que Malheiro Dias fornece o
argumento central do intelectual sobre o colonialismo europeu, as relações
luso-germânicas e o Brasil como argumento central contrário ao avanço da
Alemanha na África. A rigor, o continente serviria como um
complemento do continente europeu [...] e das nascentes do Nilo ao
Cabo da Boa Esperança as tres raças anglo-saxonica, germanica e latina
dominarão, sem competidores [...] as grandes nações européas deverão
constituir na Africa verdadeiras projecções dos seus organismos
sociaes [...] A Africa representa a solução do problema social europeu,
a possibilidade de dar um derivativo ás suas populações transbordantes
[...] de garantir, numa palavra, a civilização da Europa contra a
derrocada com que a ameaçaria o seu proprio progresso [...] O esbulho
do patrimônio colonial portuguez parece constituir na hora actual um
claro proposito da Allemanha. O pretexto allemão [...] baseia-se ainda
na incapacidade colonizadora portuguesa [...] (MALHEIRO DIAS, 1912,
261-265).
O intelectual luso discordava do argumento germânico. No capítulo
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seguinte, intitulado de A ovelha e os lobos, Malheiro Dias (1912, p. 267-268)
atestou que “Nada tem Portugal que temer pelas suas colonias, pois que, longe
de abandonar a incuria, n’ellas gasta com sacricio capitaes e esforço [...]”;
além disso, a nação lusa brilhava
pelo testemunho immortal que do poder espantoso do
seu esforço ella legou á posteridade com o povoamento e
a colonisação do Brasil [...] a nação portugueza impõe-se ao
respeito da Europa, tão imbuída de aristocracismo histórico. O
seu passado glorioso é para Portugal um escudo (MALHEIRO
DIAS, 1912, p. 284, grifos nosso).
A síntese de ideias não deve ter ocultado os projetos coloniais em voga, o papel
e os problemas portugueses, além da força argumentativa que o Brasil conferia
ao arranjo. A África serviria como espaço de sustento, colonização e expansão
europeia; Portugal sofria a acusação de administrar insatisfatoriamente seus
territórios; todavia, o sucesso e o desenvolvimento nas Américas, tal como a
trajetória histórica lusitana, serviam como respostas à altura no propósito de
manter os territórios coloniais ultramarinos portugueses e do futuro da nação
– fosse ela uma república ou uma monarquia.
Voltarei por hora ao nosso protagonista exilado. Após deixar Portugal, ele
permaneceu alguns anos como jornalista e literato no Brasil, conduzindo
projetos próprios de temática luso-brasileira e, sobretudo, atuando no círculo
de jornalistas do Estado de São Paulo e travando relações frequentes com
Euclides da Cunha, Júlio Mesquita e Júlio de Mesquita Filho. Além desses laços,
ele capitaneou o projeto editorial da História da Colonização Portuguesa do
Brasil em três volumes (1921-1924; doravante citada como HCPB).
Paradoxalmente, o texto foi projetado para comemorar o centenário da
independência do país sulamericano, mas nanciado majoritariamente por
Albino Sousa Cruz, um rico industrial português radicado no país, por sugestão
da Câmara Portuguesa de Comércio e de Indústria do Pará (MALHEIRO DIAS,
1921-1924, v. 1, 2). De fato, obra fazia parte do projeto da elite portuguesa no
Brasil, que pretendia valorizar a presença e a herança portuguesa na construção
da nação brasileira (BATALHONE JÚNIOR, 2014, p. 317-342). Tratava-se de
um esforço entre vários, uma contraofensiva lusitana ante os esforços de seus
vizinhos europeus. Além da publicação, cito a manutenção do Real Gabinete
Português de Leitura no Rio de Janeiro, de periódicos e de outras publicações
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que tentavam alimentar a fraternidade e, implicitamente, a manutenção do
colonialismo cultural português no Brasil (FERREIRA, 2008) – com efeitos
limitados, como exposto outrora.
Independentemente disso, a HCPB reproduziu muitos argumentos fornecidos
em O estado actual da causa monarchica que podem causar embaraços aos
defensores da ideia de “raízes medievais do Brasil” – especialmente o terceiro
volume da obra monumental, intitulado A Idade Média Brasileira.
No Brasil, o português atacou o aborígene adverso como atacara
o mouro; pelejou contra os invasores francês, batavo e britânico
como pelejara contra o romano, o leonês e o castelhano [...]
nação composta de homens, mas homens como nunca a terra
vira; homens cujo braço era de ferro, cujo coração era de fogo
[...] seu folgar nas batalhas de um contra cem [...] homens que
subjugaram os mares e zeram emmudecer a terra; homens enm
que saldaram com o islamismo e com a Asia a avultadissima
divida de desar e affronta, que a Cruz e a Europa lhes deviam
desde os tempos em que as desventuras e revezes das Cruzadas
se completaram pela perda fatal de Constantinopla (MALHEIRO
DIAS, 1921-1924, v.3, p. v-vii).
O início da HCPB deixa claro seu caráter panetário, arquetípico e teleológico,
principalmente em contraposição e espelho daquilo que foi preconizado em
O estado actual da causa monarchica: se Portugal assumisse suas qualidades
inatas, recobrasse seu hercúleo esforço e zesse valer seu passado glorioso,
poderia repetir no início do século XX aquilo que fez valer séculos antes, ou
seja, combater os invasores estrangeiros, garantir suas conquistas e perseverar
onde nem mesmo as outras nações europeias conseguiram no passado.
Se em n-de-siècle os franceses consideraram as Cruzadas como o primeiro
empreendimento colonial bem sucedido e espécie de “destino manifesto” dos
povos submetidos pelo colonialismo francês (WARREN, 2011, p. 14), Malheiro
Dias, por sua vez, observou nesse exemplo um retumbante fracasso, contornado
tão somente pelo gênio português séculos mais tarde. De fato, os europeus e
a Cristandade teriam sido vingados com as conquistas lusitanas diante dos
“mouros” na África e na Ásia – não sem antes equiparar os indígenas aos
muçulmanos.
Sobre a interação entre povos durante esta “Idade Média Brasileira”
(MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xii), o autor voltou à carga: “O Brasil é a
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conseqüência dos esforços de um só povo branco: o português, auxiliado pelo
mameluco, sua criação étnica, e pelo escravo negro” (MALHEIRO DIAS, 1921-
1924, v.3, p. xi). Após avançar para um sistema feudal (ou neofeudal) derivado
das capitanias hereditárias (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xiii-xvi),
sobre o qual não me aterei nesta ocasião, o autor recobrou o papel do negro na
construção brasileira; e, como espelho do momento, o papel dos africanos no
projeto colonial português vigente na época:
os jesuítas encaravam a escravatura negra como expediente salutar
para a paz e a prosperidade da colónia. Aqueles padres angélicos [...]
não se insurgiam contra a escravidão do africano. Aceitavam-a como
instituïção milenária, adoptada por todos os povos, e serviam-se dela
para as suas iniciativas humanitárias (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3,
p. xx).
Sentenças fortes para uma publicação que circularia amplamente no Brasil,
onde os escravos foram libertados cerca de um quarto de século antes e onde A
Mulata, obra controversa do luso-brasileiro, causou grande furor, embaraço e
negação de uma parcela considerável da elite brasileira. Talvez para acalmar os
ânimos, Malheiro Dias explicou em seguida que
A escravatura, mão de obra na sustentação de tantas das nações da
antiguidade, tornou exeqüível a desmarcada façanha do pequeno povo
colonizador. A Providência, que lhe entregara o domínio sôbre a terra
inóspita e despovoada, já anteriormente lhe destinara com a posse da
África os reservatórios onde êle iria buscar o material humano para a
construção do novo império. Sem o holocausto do negro, o Brasil não se
poderia ter constituído. Vãs nos parecem as lamentações póstumas como
puerís os anátemas contra a prática da escravatura. Os portugueses não
foram os seus instituidores. herdaram-a da civilização greco-latina [...]
Sem o escravo não se haveria dilatado o poderio romano; sem o escravo
não se poderia ter criado o Brasil (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p.
xx-xxi).
Destino manifesto, lei infalível, naturalização da África como depositório
de forças a serem exploradas pelos mais fortes, legitimidade da escravidão:
ideias que remontam ao texto anteriormente apresentado, isto é, “a resultante
fatal, lógica [...] d’essa doutrina do imperialismo”, quando “[...] a supercie da
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terra será cada dia mais furiosamente disputada pelos povos fortes, proliferos
e ambiciosos, aos povos fracos, negligentes e retrógrados” (MALHEIRO DIAS,
1912, p. 266). Neste ponto, o pensamento do luso-brasileiro, ressalvadas
as diferenças contextuais, aproximou-se tanto do medievalismo francês
católico daquele tempo quanto do destino manifesto presente na historiograa
estadunidense (BIRRO, 2016a, 2016b; GEARY, 1996; WARREN, 2011, p. 16-19).
Ao avançar, Malheiro Dias descreveu os pontos estruturalmente fortes da
futura nacionalidade brasileira e as vantagens da colonização portuguesa: raça
diferenciada, unidade idiomática e religiosa, a tradição, a integridade territorial
... todos eles fruto do esforço dos lusitanos “em quási três séculos de esforço e de
luta” (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xxiii). Tais fatores teriam colaborado
para fazer o Brasil repetir os “fenómenos de gestação e evolução das pátrias
europeias” (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xxiii), algo , segundo o autor,
reconhecido pelas próprias nações de lá.
Quanto aos negros e indígenas, “apresentavam-se aos europeus civilizados
como semi-homens animalescos”, e foram feitos verdadeiros homens e dotados
“das capacidades cerebrais e emocionais do indo-europeu” (MALHEIRO DIAS,
1921-1924, v.3, p. xxiv) apenas por intervenção portuguesa – por mais cruel que
pudesse parecer após um primeiro olhar. Sobre isso, o autor foi de fato mais
explícito:
O Brasil, tal qual o vemos, não podia resultar da evolução do aborígene.
Como tôdas as civilizações avançadas da América, é o resultado da
substituïção em grande escala do europeu ao autoctóne [...] A principar
pelas próprias raças nativas, em constante peleja, tudo lhe faltava do
que é necessário à constituição de uma nacionalidade homogénea
(MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xxvi-xxviii).
Portanto, nesta proposição, o sangue português “apurou” o melhor do negro
e “criou um tipo adaptado simultâneamente ao progresso e ao devorador clima
tropical” (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xxiv); algo similar ocorreu com
indígena, propiciando “[...] o aparecimento do mameluco”; assim, dele “surge
na história do Brasil o belicoso campeão da futura nacionalidade: a sua célula
mater” (MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. xxxix). Com efeito, o mameluco
teria orgulho de sua origem lusitana, mas disporia da adaptação, capacidade
física e instintos de combatividade dos americanos. Além disso,
É ele, brasileiro nato, sem a nostalgia do europeu, liberto de
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tantos dos seus preconceitos ancestrais, quem inexorávelmente,
como cego instrumento do destino, persegue os habitantes das
orestas, o afugenta, e avança nas selvas, terrível precursor da
civilização [...] O mameluco é uma subconsciente fôrça social em
movimento, uma espécie de fatalidade semelhante às energias
que animam a natureza. A dentro dêle fere-se um combate que
repercute em cada um dos seus actos: luta de uma raça superior
suplantando uma raça secundária. É um exemplar de transição,
agitado por contraditórias energias; semi-selvagem que quer ser
um civilizado, homem que quer ser um povo (MALHEIRO DIAS,
1921-1924, v.3, p. xxxix).
Cabe um elemento adicional de Malheiro Dias, a saber, a natureza dos
portugueses que vieram ao Brasil. Para o diretor da HCPB, a maioria deles
não era composta de degredados e vadios, como alguns detratores armavam
no início do século XX, mas de uma “nobreza de sangue” de origem baixa
(MALHEIRO DIAS, 1921-1924, v.3, p. 222). A rigor, o luso-brasileiro chamou
atenção que “a instituïção do regímen feudal” em solo brasileiro dependeu em
parte da “qualidade dos povoadores do primeiro ciclo e a feição aristocrática e
guerreira que êle ostenta nos dramáticos anais” (MALHEIRO DIAS, 1921-1924,
v.3, p. 221).
Portanto, nessa construção, os portugueses que colonizaram as Américas
eram livres, civilizados, guerreiros e, simultaneamente, lavradores. Como fez
questão de enfatizar ainda na introdução da obra, a lavoura colonial brasileira
foi “sustentada de armas na mão, sob a ameaça quási permanente do assalto e da
devastação, é um certicado da coragem obstinada da raça”, e o indígena bárbaro
e belicoso, por sua vez, “convertia o lavrador num guerreiro” (MALHEIRO DIAS,
1921-1924, v.3, p. xlix-l) – como um heroico guerreiro medieval.
Considerações Finais
Diante da mixórdia de elementos que fazem corar qualquer ingênuo defensor
das “raízes medievais brasileiras” (superioridade racial europeia, inferioridade
do indígena e do negro, destino manifesto, razão de estado, leis infalíveis da
economia e política, colonialismo, medievalismo), ca a pergunta: as ideias de
Malheiro Dias representavam tão somente o olhar solitário, patriótico e amargo
de um monarquista exilado ou deixaram marcas na historiograa nacional?
Na tentativa de responder tal questão, retomarei os relevantes depoimentos
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de Mesquita Filho. Certa feita, ele confessou, após elogiar a formação recebida
na Europa e reclamar da educação ofertada na Faculdade de Direito do Largo
de são Francisco, que tinha vontade de incutir em seus colegas “as concepções
de ciência e cultura que já nessa altura se haviam desenvolvido na Europa”
(MESQUITA FILHO, 2010, p. 151). Ademais, era preciso adotar “os métodos da
cultura que vigoravam em todos os países civilizados daquela época. Foi mais
ou menos nesta altura que pela primeira vez iniciei um apelo aos professores
vindos da França” (MESQUITA FILHO, 2010, p. 151-152).
Noutro texto, publicado em 1937, Mesquita Filho expôs aquilo que restou
aos derrotados no levante constitucionalista (1932): “Paulistas até a medula,
herdáramos da nossa ascendência bandeirante o gosto pelos planos arrojados
e a paciência necessária à execução dos grandes empreendimentos. Ora, que
maior monumento poderíamos erguer [...] do que a universidade?” (MESQUITA
FILHO, 2010, p. 139).
Os depoimentos de Mesquita Filho acompanham ideias geralmente presentes
em suas declarações públicas: civilização, opção pelos franceses (em detrimento
de italianos e alemães) e o mito bandeirante. Sobre este último, lembro-me
da corrente historiográca do bandeirantismo paulista, com especial apreço
pelos heróis e pela noção de “raça”. Em suma, os institutos históricos estaduais
tentavam imprimir em época as singularidades dos estados. Em São Paulo, o
bandeirantismo (e a ideia do mameluco) ganhou força no início do século XX,
como forma de explicar o sucesso industrial vigente no Estado, seu papel vital
no desenvolvimento nacional (FERREIRA, 2002, p. 304-327; JESUS, 2007, p.
22-38); e seus homens, por sua vez, seriam herdeiros de uma força superior,
transmitida atavicamente por seus antepassados bandeirantes que, séculos
antes, teriam adentrado os sertões e lutado contra índios bravios e selvagens
em busca da riqueza que faltava na capitania de são Vicente. Os maiores ícones
dessa interpretação foram Afonso d’Escragnolle Taunay (de origem francesa, de
formação francófona, membro do Instituto Histórico e Geográco de São Paulo
e professor da Universidade de São Paulo em sua fundação) e Cassiano Ricardo
Leite (renomado ensaísta, jornalista e poeta) (TAUNAY, 1995; RICARDO, 1970).
Como Nadia Altschul (2015, p. 150-154) demonstrou, tal ideia moveu
também o pensamento de Euclides da Cunha durante a escrita de Os Sertões.
Aparentemente, esse princípio estava arraigado na elite paulistana e assim se
manteve nas primeiras décadas do século XX. Nesta dimensão, Braudel (1955,
p. 8), uma vez no Brasil, mostrou-se impressionado pelo ideal bandeirante,
conforme expresso em uma de suas conferências: “Imaginai que na Europa
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[...] um historiador proceda a estudos familiares a meu ilustre colega professor
Taunay e queira apresentar um esquema das bandeiras, que zeram o Brasil e
lhe deram todo o volume”. Mas, para Braudel (1955, p. 9), o bom historiador
deveria descrever “o cenário brasileiro”, a saber, sua imensidão, selva, rios e
pantanais; além dele, os “seres coletivos”, isto é, a raça especial dos grandes
homens. O exemplo recobra, portanto, os grandes homens das bandeiras,
presentes nas obras de Taunay e Ricardo.
Os indícios deixados robustecem a impressão de adesão ao mito bandeirante
por parte de Braudel, que seria uma versão brasileira daquilo que se construía
na França e em Portugal em época. Ian Merkel, analisando outras produções
do renomado historiador francês neste lado do Atlântico, mostra que Braudel
acreditava que pouquíssimos países tinham condições de formar uma nova
nação em termos sociais - o Brasil era um deles: “sua armação de sim [da
possibilidade de uma nação brasileira] se aplica apenas para a ‘Argentina e o
Brasil do tipo paulista’ [...] Braudel tinha fé suciente que o ‘tipo paulista’ iria
servir como um modelo para um novo tipo de Brasil” (MERKEL, 2019, p. 142).
Considerando o conjunto indiciário, parece verossímil propor que Braudel
identicou nos paulistas o grupo que serviu de base para o Brasil, tal qual
ocorreu na França no nal do século XIX, após a Guerra Franco-Prussiana; e,
simultaneamente, justicava as razões que impossibilitavam a emancipação
das colônias francesas na África, sobretudo da Argélia, onde ele atuou antes
de vir ao Brasil e onde os franceses agiam como bandeirantes (MERKEL, 2019,
p. 129-160). Com efeito, Braudel reproduziu, com todo renamento que lhe
era peculiar, o colonialismo francês vigente; além disso, se identicou com
o bandeirantismo paulista e seu papel de destaque na conjuntura brasileira,
graças às suas semelhanças arquetípicas e não casuais com o medievalismo e o
colonialismo francês da Terceira República.
A versão de Malheiro Dias, porém, não abraçou puramente a corrente
paulista, conquanto tenha feito do mameluco, este pretenso produto português,
o esteio da futura nação brasileira. Nos textos assinados pelo luso-brasileiro
na HCPB, ele introduziu o mameluco no âmago de são Vicente e Pernambuco,
as capitanias bem sucedidas durante “a Idade Média Brasileira”. Aquelas que
seguiram outros caminhos, por sua vez, teriam malogrado miseravelmente.
Outrossim, a proposta do luso-brasileiro tentou projetar a superação de
qualquer vicissitude regionalista em prol de um projeto nacional unidirecional.
Neste bric-à-brac de colonialismos e medievalismos que deram ensejo ao
mito bandeirante, Malheiro Dias e seus colaboradores projetaram nas Américas
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“o mundo ideal imaginado por Herculano para o Portugal europeu a partir da
história medieval: uma sociedade rural de lavradores livres, a caminho da
autonomia política [...] Em suma, o Brasil era a reencarnação, nos trópicos, do
Portugal Medieval” (RAMOS, 2005, p. 131-132).
Seja como for, nota-se claramente a coadunação ou o reaproveitamento
do topos racial do colonialismo intelectual português no posterior projeto
francólo, que não abdicou de suas conexões com a Idade Média. São quase
como camadas sobrepostas que guardam em si mesmas muitas conexões e
dissonâncias, posto que muitas premissas tem um berço comum. Além disso, tal
base elenca uma dimensão de colonização que extrapola seu caráter concreto
no passado brasileiro, propondo uma verdadeira colonização intelectual do
Brasil, que foi disputada arduamente por portugueses e franceses na aurora
do século XX. E o subsídio historiográco e a gama de argumentos a reboque
serviram e ainda servem como eixos de reexões históricas produzida no país.
Igualmente, a reexão aqui proposta, que assumiu muitas vezes um tom
ensaísta e deixa mais perguntas do que respostas, expõe o potencial do
medievalismo para repensar nossa própria produção intelectual e corrobora
com esforços conduzidos por colegas que, mediante outros pontos de partida,
chegaram a conclusões similares. Concluo armando que a intenção não foi
expor colegas que porventura defenderam inocentemente as “raízes medievais
no Brasil”, que parecem naturais por estarem inscritas nesses processos de
colonialidade do poder, colonização intelectual e medievalismos; no entanto,
essas percepções são, em essência, construções que hoje exibem apenas
a superfície lustrada e polida. Porém, após um escrutínio cuidadoso e sob a
superfície, elas expõem terríveis problemas subjacentes em suas faces ocultas.
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Notas
1Algumas ideias aqui abordadas compuseram o texto apresentado no 6º Simpósio
Eletrônico Internacional em Ensino de História (18-22 de Maio de 2020).
2Professor de História Medieval da Universidade de Pernambuco/Mata Norte (UPE/MN)
e professor permanente do Mestrado Prossional em Ensino de História da UPE/MN;
Pesquisador do Leitorado Antiguo (UPE/MN), do Núcleo de Estudos sobre Narrativas
e Medievalismos (LINHAS/UFRRJ), do Laboratório de Teoria e História das Mídias
Medievais (LATHIMM/USP) e do grupo de pesquisa Leituras da Escandinávia Medieval
(LEM/UEL). Agradeço aos professores que colaboraram com comentários, críticas e
sugestões: Carlos André Silva de Moura (UPE/MN), Clinio Amaral (UFRRJ), João Porto
Júnior (UFF), José Inaldo Chaves Júnior (UnB), Kalina Vanderlei Silva (UPE/MN) e Marcelo
Berriel (UFRRJ).
3O “grupo do Estado [de São Paulo]” (1925-1937) era formado por Amadeu Amaral,
Armando Salles de Oliveira, Júlio de Mesquita Filho, Léo Vaz, Nestor Rangel Pestana,
Plínio Barreto, Paulo Duarte e Vivaldo Coaracy. Havia ainda um grupo maior e mais
“livre”: Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Alberto Faria, Paulo Pestana, Oscar Freire
e Oliveira Vianna. Portanto, Peixoto esteve envolvido, em maior ou menor grau, na
fundação tanto da Universidade de São Paulo quanto da UDF - nesta última, como
primeiro reitor em 1930 e enviado do governo da capital da república para convidar
docentes europeus para a instituição (FÁVERO, 2006, p. 42-43; HEY; CATANI, 2006, p.
231-232).
4Em Política e Cultura, obra póstuma de Mesquita Filho: “Vencidos pelas armas,
sabíamos perfeitamente que só pela ciência e pela perseverança no esforço voltaríamos
a exercer a hegemonia que durante longas décadas desfrutáramos no seio da Federação”
(MESQUITA FILHO, 2010, p. 138). Lembro também que a Universidade do Estado de São
Paulo (UNESP) foi batizada em sua homenagem.
5O medievalismo criollo das Ilhas Reunião distingue-se, entre outros fatores, pelo
sentimento de pertencimento da elite insular a França, tal como pela falta de uma
população nativa no arquipélago, que só foi colonizada por franceses e malgaxes no
século XVI (WARREN, 2011). Por outro lado, o caso brasileiro guarda semelhanças, mas
também não se enquadra perfeitamente no modelo sugerido pelas elites de outros países
sulamericanos como Argentina e Chile (ALTSCHUL, 2016), uma vez que elas optaram
por um sentimento de pertencimento à Europa e de exclusão do componente indígena
em suas respectivas nacionalidades. Com efeito, no Brasil, destaco duas soluções: uma
evocava o mameluco como elemento étnico singular da nacionalidade brasileira (cf. a
seguir a explicação sugerida por Malheiro Dias e pela interpretação bandeirantista); a
outra, coeva e que guarda relações com a última, propunha a teoria da miscigenação
racial entre europeus, indígenas e africanos. Ela foi originalmente rascunhada por
Antíteses, Londrina, v.13, n. 26, p. 036-067, jul-dez. 2020 } 67
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Manuel de Oliveira Lima (2012, p. 69), mas posteriormente incorporada e renada
por Gilberto Freyre, seu “alhado intelectual’, em Casa-Grande & Senzala (FREYRE,
1933). Seja como for, conquanto com intensidades e protagonismos distintos, ambas as
propostas apostavam em certa proeminência portuguesa no desenrolar da nacionalidade
brasileira.
Recebido em 30/05/2020 - Aprovado em 14/10/2020