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REVISTA DE SEN VOL VI ME NT O E CIVI LI ZAÇÃ O
1/ janeiro 2020 – junho 2020
EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO
DE NOVO TIPO: MERCANTILIZAÇÃO,
MERCADORIZAÇÃO E SUBSUNÇÃO
DA EDUCAÇÃO AO EMPRESARIADO
1
Vânia Cardoso da Motta
2
(UFRJ)
Maria Carolina Pires de Andrade
3
(UFRJ)
Resumo
O artigo versa sobre o empresariamento da educação de novo tipo, em vista do
progressivo protagonismo assumido por frações empresariais na educação
brasileira nos últimos trinta anos. Tal protagonismo robustece a trincheira de
poder junto ao Estado ampliado por meio dos aparelhos privados de hegemonia
e opera a supremacia burguesa no âmbito da educação. Considerando a
irrompível organicidade entre estrutura e superestrutura e as particularidades
da formação econômico-social brasileira, definimos duas dimensões centrais
desse processo, quais sejam a capitalização da/na educação (cujos aspectos
principais são a mercantilização e a mercadorização) e a subsunção da educação
ao empresariado. Apontamos implicações desse processo para a educação
brasileira, como o aumento da precarização e da expropriação do processo
formativo, discutindo suas funcionalidades no âmbito da reprodução ampliada
do capital.
Palavras-chave: Empresariamento da educação de novo tipo; Capitalização da
educação; Subsunção da educação ao empresariado; Capitalismo dependente.
Abstract
The article deals the empresariamento da educação de novo tipo, protagonized
show by business fractions in brazilian education in the last thirty years. This
protagonism strengthens the trench of power with the enlarged state through the
private apparatus of hegemony and operates the bourgeois supremacy in the
1
Este artigo é uma nova versão da comunicação no evento Marx e Marxismo: Marxismo sem
tabus -Enfrentando Opressões – 2019, organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e
Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP), Universidade Federal Fluminense.
2
Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente na
mesma universidade. e-mail: vaniacmotta@gmail.com
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Professora Mestra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutoranda na
mesma universidade. e-mail: carolina.andradep@gmail.com
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field of education. Considering the unbreakable organicity betweenn strcture and
superstrcture and the particularities of brazilian social formation, we define two
dimensions of this process: the capitalization of education (whose main aspects
are mercantilizantion and merchandising) and the subsumption of education to
empresariado. We point out implications for Brazilian education in view of the
increase in precariousness and expropriation of the formative process,
conditions necessary to guarantee adequate conditions for the reproduction of
capital.
Keywords: Capitalization of education; Empresariamento of education;
Subsumption of education to empresariado; Dependent capitalism.
Introdução
O artigo versa sobre o empresariamento da educação, processo
problematizado pelo Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (COLEMARX/UFRJ), para designar o
progressivo protagonismo assumido por frações empresariais na educação
brasileira nos últimos trinta anos. Tal protagonismo robustece a trincheira
de poder junto ao Estado ampliado por meio dos aparelhos privados de
hegemonia, reunindo aliados e assumindo a aparência de “movimento social
progressista”, conquanto seus intelectuais ocupam cargos dirigentes junto ao
Estado estrito – nos poderes executivo e legislativo e nas redes públicas
municipais, estaduais e federais. Em última instância, esta forma de atuação
visa garantir as condições adequadas à reprodução ampliada do capital.
Na primeira parte apresentamos o caminho de construção do conceito
empresariamento da educação de novo tipo, indicando os referenciais teóricos
que nos deram suporte e pesquisas com as quais dialogamos. Nas partes
seguintes discutimos as duas dimensões que consideramos centrais para
defini-lo: a capitalização da/na educação (que abarca a mercantilização e a
mercadorização) e a subsunção da educação ao empresariado. Ressaltamos
que, nesse processo, tais dimensões estão profundamente imbricadas e não
ocorrem de forma apartada; a distinção é, pois, apenas teórica.
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1. Pilares teóricos do Empresariamento da Educação de Novo Tipo
A organicidade do empresariado brasileiro e a sua inserção no âmbito
da educação, inclusive na formulação e implementação das políticas públicas,
é um fenômeno passível de ser observado na história da educação com
expressões variadas. Cientes da complexidade desse processo,
consideramos necessário apresentar o arcabouço teórico que sustenta o
entendimento de que o empresariamento da educação é uma das faces do
projeto econômico e ético-político forjado e operado pela classe dominante.
A despeito dos embates estabelecidos entre suas diferentes frações,
entendemos que esta age como classe para si organicamente vinculada ao
Estado, sobretudo quando diante de crises econômicas e políticas e do
tensionamento de sua supremacia.
Diniz (2010) afirma que os empresários revelaram, ao longo do século
XX, praticidade e alta capacidade de mobilização política em prol de seus
interesses, apoiando distintos regimes políticos (ditaduras ou
democracias). Bianchi (2001) revela o histórico e progressivo processo de
organização do empresariado no Brasil desde os anos 1920 e os respectivos
níveis de correlação de forças – inicialmente restrita ao âmbito econômico
corporativo, chegando ao nível ético-político
4
nos anos 1980, com a criação
da entidade Pensamento Nacional das Bases Empresariais. No âmbito da
educação, Miranda; Rodrigues (2017) apontam a criação do Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial (SENAI) por meio de decretos estatais (Decretos
nº 4.048/42 e nº 4.936/42) com o objetivo de formar o quadro de
trabalhadores da indústria. E, mais recentemente, destaca-se o movimento
Todos Pela Educação, criado em 2006 por um grupo de empresários que,
junto com seus aliados nacionais e internacionais
5
, cumpre a função de
manter e operar a supremacia burguesa.
4
As trincheiras de entidades empresariais que operam no âmbito ético-político
ampliaram significativamente, a exemplo dos “think tanks nacionais (Instituto Millenium,
Instituto Liberdade, Estudantes pela Liberdade, Fórum pela Liberdade, entre outros) e
estrangeiros (Mont Pelèrin Society, Students for liberty, Friedrich Naumann, Cato Institute,
John Templeton Foundation, Heritage Foundation...” (LEHER; VITTORIA; MOTTA, 2017,
p. 17).
5
Tais como o Grupo Pão de Açúcar, Fundação Itaú-Social, Instituto Itaú Cultural, Fundação
Bradesco, Instituto Gerdau, Fundação Roberto Marinho, Fundação Ayrton Senna, Fundação
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Os estudos do nosso coletivo têm apontado diferentes formas de
protagonismo assumidas hoje pelo empresariado
6
, dadas as novas
determinações cunhadas pela consolidação do bloco histórico neoliberal
(CASTELO, 2011), pela complexificação da sociedade civil e pelo
robustecimento das trincheiras formadas pelas organizações sociais
patronais no âmbito ético-político. Neste, o empresariamento de novo tipo
(FONTES, 2010) se expande e converte todas as atividades da vida social em
meios de lucratividade. Este processo, no Brasil, guarda especificidades que,
para o coletivo, devem ser analisadas à luz da dependência, entendendo que
esta “não é a relação de uma economia nacional nativa com uma economia
que a submete, mas sim uma relação básica que constitui e condiciona as
próprias estruturas internas das regiões dominadas ou dependentes”
(SANTOS, 1995, p. 15-16). Uma relação básica constituída na unidade
dialética dependência-imperialismo, em uma “mesma unidade histórica que
tornou possível o desenvolvimento de alguns e inexorável o atraso de outros”
(BAMBIRRA, [1974] 2015, p. 44), sendo este “atraso”, simultaneamente,
consequência e condição do desenvolvimento das potências mundiais.
De modo geral, nossas análises têm demonstrado que o processo de
empresariamento de novo tipo na educação combina e expressa,
dialeticamente, o aprofundamento de movimentos históricos, estruturais e
tendências do capital, as características particulares do bloco histórico
neoliberal e as especificidades da formação econômico-social brasileira
erigida sob a legalidade do capitalismo dependente. Isto é, esse
empresariamento específico, de um lado, ilumina a tendência do capital de,
ao desenvolver a dialética do seu devir, abranger e subjugar à sua lógica todas
Educar-DPaschoal, Banco ABN-Real, Instituto Ethos, entre outros, além de organismos
internacionais que apoiam.
6
Estamos utilizando empresariado para nos referirmos a um seleto grupo de empresários
(banqueiros, industriais, agropecuaristas, financistas e respectivos executivos) que, dotados
de uma determinada “capacidade técnica e dirigente”, assumem posição de prestígio e,
portanto, de confiança na relação social de produção capitalista. Com essa expressão,
fundamentada na concepção de intelectual orgânico em Gramsci (2001), buscamos abarcar
a lógica empresarial – sua capacidade técnica que penetra em todas as esferas da relação
social por meio de vários mecanismos de controle – e sobretudo sua capacidade dirigente,
de produção de vários tipos de consenso.
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as condições de reprodução social. De outro, deixa transparecer na educação
a primazia do mercado, o ataque aos direitos e garantias sociais, a hegemonia
da concepção econômica da educação, a fragilidade da democracia brasileira
e o alinhamento da educação ao nexo da dependência e ao padrão de
acumulação característico do bloco histórico neoliberal. No âmago dessa
legalidade particular, o empresariado combina farsa e tragédia: apresenta-se
como o grupo social que gera riqueza, trabalho e renda para a “nação” em
meio a seu reverso – um capitalismo exacerbadamente perverso sustentado
pela miséria da classe trabalhadora –, colocando-se como aquele que elevará
moral e culturalmente a massa de trabalhadores, ao passo que expropria seus
conhecimentos elementares e dirige o processo de apassivamento destas.
Tentando abarcar esse complexo conjunto, definimos como dimensões
centrais do empresariamento a capitalização da educação (processo pelo
qual a educação escolar vem operando como capital no sentido de funcionar
valor e potencial mais-valor) e a subsunção da educação ao empresariado
(processo pelo qual o empresariado brasileiro assumiu, em íntima relação
com o Estado estrito e com o empresariado internacional, o protagonismo da
formulação, aprovação e implementação das políticas públicas
educacionais).
A despeito do discurso de resolução dos problemas que atravessam
historicamente a educação brasileira, como os de acesso, aprendizagem e
permanência, tal protagonismo empresarial tem sido acompanhado pela
expropriação dos conteúdos escolares elementares no campo científico,
tecnológico, filosófico, cultural e artístico, de modo a negar ao alunado
brasileiro “os fundamentos das ciências que permitem aos jovens entender e
dominar como funciona o mundo das coisas e a sociedade humana” (MOTTA;
FRIGOTTO, 2017, p. 369); pelo aprofundamento do apartheid
socioeducacional, cerceamento/expropriação do trabalho docente,
desqualificação/ requalificação da formação docente, redução progressiva
do processo de escolarização à simples transferência de competências e
habilidades necessárias a um suposto mercado de trabalho que demanda
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maior “qualificação”
7
e um tipo resiliente de trabalhador. Enfim, observamos
que, em prol da elevação dos índices educacionais, aprofundam-se problemas
históricos e expandem-se as empresas de ensino a distância, de livros e
materiais didáticos e think tanks internacionais sob o incentivo do Estado e
sob o domínio do capital portador de juros que, “contraditoriamente, afasta-
se da produção de mais-valor e a impulsiona, assim como promove novos e
profundos processos de expropriação” (FONTES, 2010, p. 12).
Destacamos que o empresariamento da educação de novo tipo, para o
nosso coletivo, não se confunde com a privatização do tipo clássico, em que
há venda de patrimônio público para alguma empresa ou conjunto de
investidores, que são tratados como “ativos”. Atualmente, a tomada de
controle sobre a educação por parte das empresas, seja no âmbito da
formulação de políticas públicas, da administração direta da instituição ou
via parceria público-privada, é suficiente para trazer à baila (i) a consolidação
e expansão da educação enquanto nicho de mercado, (ii) a incorporação da
educação à gama de mercadorias produzidas e consumidas na sociedade
capitalista e (iii) a subsunção da educação à concepção e à lógica do
empresariado e o repasse de verbas públicas para este grupo. Assim, embora
o empresariamento não seja um fenômeno manifesto apenas no âmbito
educacional, consideramos fundamental envidar esforços no sentido de
compreender as especificidades que o protagonismo empresarial assume na
educação escolar na sua atual forma, contribuindo para desmistificar o
7
Qualificação entre aspas para sinalizar que o nosso coletivo problematiza a utilização deste
termo para tratar da escolarização característica da atual sociedade capitalista brasileira.
Compreendemos que, historicamente, a concepção econômica da educação – aquela que, ao
estabelecer relação linear e causal entre educação e crescimento econômico, reduz a
educação escolar à preparação da classe trabalhadora para o mercado de trabalho – é
hegemônica e rege todas as ações das frações capitalistas no âmbito educacional. Neste
sentido, concordamos com Bruno (2011) que a qualificação é um “estoque de competências”;
uma estrutura de elementos mutáveis historicamente e hierarquizáveis de diferentes
formas, mas sempre determinados pelas especificidades das relações de produção e dos
processos de trabalho vigentes e predominantes. A nosso ver, todavia, perante às novas
características do mundo do trabalho sob a égide neoliberal (como a atomização das relações
de trabalho, o protagonismo da informalidade, da flexibilidade, da alta rotatividade, e outros)
a estrutura dessa qualificação foi alterada de tal modo que sequer pode significar um
“estoque de competências” ou “estoque de capital humano”.
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discurso burguês que naturaliza as relações de opressão e exploração
enredadas na sociedade burguesa.
Nas linhas que se seguem, apresentaremos as duas dimensões centrais
e imbricadas do empresariamento da educação de novo tipo que
mencionamos: a capitalização da/na educação (que abarca a mercantilização
e a mercadorização) e a subsunção da educação ao empresariado.
2. O devir do capital e a reprodução social: a capitalização da/na
educação brasileira
Ao nos referirmos à capitalização da educação estamos tratando do
processo pelo qual a educação opera como capital. Neste âmbito, conferimos
a devida atenção ao processo de mercantilização, pelo qual imputa-se à
educação valores de uso e de troca, reifica-se o processo educativo e
transforma-se a educação em meio de produção de
certificados. Historicamente, tal mercadoria é consumida
permanentemente por parte da classe trabalhadora, mormente calcada na
crença em uma suposta relação linear entre educação e ascensão social, e por
parte da classe burguesa, que a consome enquanto compósita da mercadoria
força de trabalho, da qual extrai-se mais-valor. Por sua vez, a mercadorização
é concebida por nós como o processo pelo qual o âmbito educacional é
transformado em nicho de mercado que, em acelerada expansão, ratifica,
também, a necessidade constante da produção capitalista de criar novos
mercados (MARX, 2017).
Descrito detalhadamente por Marx em 1857-1858, a capitalização é um
processo de fundamental importância para a apreensão do movimento pelo
qual o capital abrange todas as esferas da existência humana. Destacamos
que a capitalização diz respeito à gênese, existência e expansão do capital,
isto é, ao processo pelo qual o capital passa a existir e criar,
concomitantemente, as condições para continuar existindo e se expandindo
(MARX, 2011). Noutros termos, o próprio capital realiza os momentos
necessários à sua autoformação e contém as condições para sua realização.
Três aspectos constituem o capital enquanto relação social: (i) a conservação
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de seu valor pela troca com o trabalho vivo; (ii) a criação de um valor
excedente via exploração da força de trabalho e (iii) a desvalorização como
parte da sua valorização.
A capitalização inclui diversos “subprocessos”. Para expor
sinteticamente o processo de capitalização da e na educação, dois deles nos
parecem centrais: a mercantilização e a mercadorização. Estes processos
ocorrem “na educação” quando os meios e objetos desse âmbito são
subsumidos à lógica da mercadoria e/ou lançados no mercado como
mercadorias singulares, a exemplo dos livros didáticos, apostilas, tecnologias
educacionais, entre outras; são “da educação” quando englobam a educação
enquanto processo educacional voltado para a capacitação da força de
trabalho, subsumindo-a à forma-mercadoria e lançando-a no mercado como
conjunto de mercadorias potenciais e/ou como mercadoria a ser
necessariamente consumida pela classe trabalhadora
8
.
Como dissertou Marx (2013, p. 113), a mercadoria é algo que “por meio
de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer”,
não importando a natureza dessas necessidades nem de que modo a
mercadoria a satisfaz. Nestes termos, a utilidade da mercadoria faz dela
valor de uso, que independe das propriedades do seu corpo. No Modo de
Produção Capitalista (MPC), no entanto, essa mercadoria é também o suporte
do valor de troca, que não é determinado pelo valor de uso; ao contrário, é
somente pela troca que a mercadoria pode ser realizada. No MPC, portanto, a
satisfação das necessidades humanas, sejam do estômago ou da fantasia,
perpassa a troca.
A teoria do valor-trabalho de Marx permite compreender não só que
entre valor e tempo de trabalho despendido há uma relação íntima e direta,
8
Decerto, a força de trabalho é mercadoria construída e reconstruída historicamente,
também de acordo com as necessidades candentes do Modo de Produção Capitalista (MPC).
Sendo assim, a nossa descrição dos processos mencionados tem em sua base o entendimento
(i) de que a educação é, historicamente, um dos elementos que compõem diretamente a
produção social da força de trabalho, sendo portanto seu elemento constitutivo, e (ii) de que
esses processos, embora tendências do MPC, nem sempre atravessaram a educação. Neste
sentido, compreendemos que estas tendências são aceleradas e robustecidas em tempos de
empresariamento da educação de novo tipo ao qual, não ao acaso, a postulação da necessidade
de formação de um “novo trabalhador” é evento sincrônico.
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mas também que é precisamente na exploração da força de trabalho que
reside a origem de todo e qualquer valor novo que permita a ampliação da
reprodução do capital. Outrossim, que a produção desse valor novo é
primeiro e último objetivo da produção capitalista, que por sua vez “não é
apenas produção de mercadoria, mas essencialmente produção de mais-
valor. O trabalhador produz não para si, mas para o capital. Não basta, por
isso, que ele produza em geral. Ele tem de produzir mais-valor” (MARX, 2013,
p. 706). Sendo assim, é com o objetivo de produzir mais-valor que o
capitalista despende, no âmbito da produção, capital na forma constante
(para empregar máquinas e matérias primas) e na forma variável (para
empregar a força de trabalho – a única capaz de produzir mais-valor).
Com base nessas compreensões, Bruno (2011) disserta sobre como os
valores de uso e de troca das mercadorias empregadas no âmbito da
produção capitalista podem assumir uma relação contraditória, a depender
da perspectiva de classe. Explica a autora que a força de trabalho é valor de
uso para o capitalista, já que ele a explora para produzir mais-valor e a usa
para transferir o trabalho morto cristalizado nos seus meios de produção
para novas mercadorias. Por isso mesmo, ao capitalista interessa reduzir ao
mínimo possível o valor de troca dessa mercadoria. Se observamos a questão
sob a ótica do trabalhador, entretanto, embora a sua força de trabalho,
apartada dos meios de produção, não tenha valor de uso imediato à si mesmo
para produzir nem mesmo sua existência, a sua própria força de trabalho lhe
serve como valor de uso quando ele se organiza para lutar contra a
exploração.
Justamente no que tange à efetivação do valor de uso da mercadoria
força de trabalho compreendemos que a educação escolar interessa
historicamente à classe burguesa, à medida que esta pode potencializar a
produção de mais-valor. Nesse sentido, não ao acaso, em tempos de
empresariamento, ela é reduzida cada vez mais ao repasse de competências
e habilidades estritamente necessárias ao mundo do trabalho, flexível e
precarizado. Outrossim, não é de surpreender que, mesmo se concebida
como direito social, a educação seja subsumida à forma-mercadoria e alvo de
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grandes ações do capital, bem como que assuma valores de uso e de troca
contraditórios
9
. Embora a ideologia burguesa esqueça-se
(convenientemente) de todos os fatores que incidem sobre o valor da força
de trabalho, afirmando que a educação deve ser permanentemente
consumida porque (supostamente) reverbera em melhores salários e
condições de trabalho e de vida, sabemos que a escolaridade não
necessariamente assume um valor de uso para o trabalhador neste sentido –
vide o enorme contingente de, sobretudo jovens, graduados, mestres e
doutores desempregados (IBGE, 2018). Mais que isso, podemos mencionar
que, na contemporaneidade, o trabalhador não pode se relacionar com a
escolarização como valor de uso sequer para ler e compreender o mundo, já
que essa última não lhe oferece ferramentas para tal. Assim, a capacitação,
longe de reduzir a alienação da força de trabalho e de permitir que o
trabalhador relacione-se com ela como valor de uso, parece potencializar o
valor de uso da força de trabalho para o capitalista.
Vale lembrar, todavia, que os elementos que historicamente compõem
a educação da força de trabalho não são apenas físicos ou cognitivos, mas
também morais, éticas, emocionais e psíquicas, necessários às formas de
organização do trabalho e da vida social.
Neste sentido, com Bruno (2011) compreendemos que, historicamente,
qualificar a classe trabalhadora significa conferir à este qualquer tipo de
capacidade, desde que seja passível de ser utilizada pelo capitalista na
produção de valor e de mais-valor. Por certo, as formas pelas quais o
capitalista desfruta deste valor de uso depende de inúmeros fatores, tais
como a cadeia produtiva local e a formação econômico-social dos países e,
portanto, o tipo e o grau de qualificação da classe trabalhadora mais eficiente
ao capitalista, ou seja, que melhor potencialize o valor de uso da mercadoria
força de trabalho.
9
Um adendo: não estamos afirmando, em hipótese alguma, que todas as desventuras e
devaneios que parecem assombrar os sistemas educacionais tenham como causa ou derivem
exclusivamente de problemas de base econômica. Isto será, inclusive, abordado mais
adiante. Por ora, nosso objetivo é apenas destacar um dos aspectos que nos parece ainda
permanecer enuviado no âmbito da compreensão da relação dialética entre educação, força
de trabalho e capital.
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Que a força de trabalho humana é imediatamente útil para o capitalista
não deve, porém, encobrir o fato de que a ele interessa a redução do valor de
troca dessa mercadoria, tendo em vista reduzir o dispêndio de capital
variável. Nestes termos, se o valor da mercadoria é diretamente proporcional
ao tempo de trabalho despendido na sua produção, e se assumirmos a
capacitação como um elemento compósito da mercadoria da força de
trabalho, não parece equivocado afirmar que interessa ao capitalista a
redução do tempo de trabalho socialmente necessário à capacitação da força
de trabalho, inclusive via aumento da produtividade do trabalho envolvido
nos processos de capacitação
10
. Em síntese, apreendemos que ao capitalista
interessa que a capacitação da força de trabalho confira as competências
necessárias à produção de mais-valor no menor tempo possível, de forma a
minimizar o valor de troca da força de trabalho e maximizar a realização do
seu valor de uso.
Ratificamos, no entanto, que o interesse do capital na produção da
mercadoria força de trabalho e no rebaixamento de seu valor é elemento
característico e histórico da sociedade burguesa. De forma semelhante,
entendemos que é tendência do capital, conforme se desenvolve, penetrar em
todas as esferas sociais e incorporar sua lógica em todas as formas de
existência e reprodução social, subjugando-as à lógica da mercadoria.
Estamos concebendo, então, a mercantilização da educação como processo
pelo qual a educação escolar é transformada unicamente em elemento
constitutivo da mercadoria força de trabalho. Desse modo, subsumida à
forma-mercadoria, o seu primeiro possuidor (o trabalhador) não se relaciona
imediatamente com esta capacitação como valor de uso, mas apenas como
valor de troca. Neste processo, então, essa educação passa a ter em si um valor
incorporado, de forma que este meio de produção e reprodução social da
existência, como valor de uso, serve de suporte para o valor de troca e torna-
10
Neste processo podemos indicar as reformas curriculares que reduzem a carga-horária ou
eliminam disciplinas não imediatamente úteis ao processo de valorização do valor, como
também a defesa de ofertar ensino a distância como complemento curricular ou como forma
de capacitação da força de trabalho, o que economiza enormemente e principalmente as
despesas na forma de capital constante.
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se absolutamente alienável. Outrossim, nesse processo, apaga-se
paulatinamente o seu caráter humano, processual e social, transformando a
educação em uma coisa a ser consumida com vistas à troca.
Assumimos a mercantilização da educação como uma das faces
características do empresariamento da educação com traços de “novo tipo”, à
medida que o protagonismo do empresariado na educação, ao vincular cada
vez mais diretamente capacitação e trabalho, exacerba essa tendência
histórica da sociedade de classes, qual seja, a subsunção da educação à forma
e lógica da mercadoria. Diante da atual e forte concentração capital-
imperialista e das renovadas modalidades de exploração, bem como da
ampliação da superpopulação relativa
11
, é necessidade deste empresariado,
para concretização do seu projeto econômico e ético-político, não só o
controle sobre o conteúdo da capacitação no que concerne ao exercício do
trabalho, mas também sobre os mecanismos de apassivamento da classe
trabalhadora.
A subsunção da educação à lógica da lucratividade e à forma-
mercadoria fora acompanhada, dialeticamente, pela peremptória
transformação da educação em nicho de mercado, no qual tanto a educação
escolar em si quanto suas ferramentas subjacentes (materiais didáticos,
prédios, avaliações, sistemas de ensino e outros) são trocadas pela forma
fenomênica (equivalente universal) do valor. Nesse sentido, compreendemos
que, de um lado, a constituição da educação enquanto nicho de mercado
corrobora a tendência do capital de subsumir as formas de reprodução social
às suas determinações fundamentais, bem como de imputar a satisfação das
necessidades humanas via troca no mercado. De outro, entendemos que, de
forma geral, a expansão dos nichos de mercado, frequentemente
acompanhada por medidas como acordos de livre comércio e privatização
clássica de empresas estatais, vem sendo concretizada e acelerada em
11
Superpopulação Relativa ou o Exército Industrial de Reserva (EIR) refere-se a parte do
proletariado que não é inserida no mercado de trabalho, pois tal parcela, essencialmente, é
condenada a uma “ociosidade forçada em virtude do trabalho excessivo de outra parte” da
classe trabalhadora e é funcional ao Modo de Produção Capitalista (MPC) na medida em que
força de sobremaneira a redução do valor da mercadoria força de trabalho, já que mantém a
sua oferta patamares superiores ao demandado pelo Capital (MARX, 2017, p.716).
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conjunturas específicas, como movimento de resposta às crises capitalistas –
seja como movimento contratendencial à queda na taxa de lucro, como meio
de aliviar as pressões da sobreacumulação e/ou de proporcionar o
escoamento das mercadorias que, ao saturarem o mercado e a capacidade de
consumo da população, não podem concluir seu salto mortal e ter seus
valores realizados.
Não é nosso objetivo, entretanto, afirmar que somente na esfera
econômica residem as origens do empresariamento da educação, nem em
suas formas históricas, nem em suas formas hodiernas. Primeiramente, é
preciso salientar que também questões ético-políticas, além das econômicas,
levam a burguesia a se organizar em aparelhos privados de hegemonia para
disputar, sistemática e historicamente, um projeto político pedagógico
hegemônico (à exemplo dos empresários industriais que, organizados na
Confederação Nacional da Indústria desde 1930, disputam uma pedagogia
industrial). Em segundo, vale lembrar que a natureza do conteúdo e da forma
da educação escolar guarda íntima relação com o destino do trabalho, que na
sociedade capitalista é necessariamente alienado. Isto não significa, contudo,
que a relação entre educação e trabalho seja meramente de preparação física
e/ou cognitiva; estando subjugada ao capital – uma incontrolável e
incorrigível totalidade reguladora sistêmica (MESZÁROS, 2005) –, a educação
deve, além de fornecer à maquinaria o pessoal devidamente treinado, gerar
e transmitir um conjunto de valores que legitima os interesses dominantes,
ou seja, que induz a perpetuação e aceitação passiva do sistema que explora
o trabalho como mercadoria, bem como a interiorização de uma concepção
de mundo coerente com essa sociedade (SADER, 2005). Sendo assim, sob a
égide do capitalismo, a classe dominante impõe uma educação para o
trabalho alienante e mesmo que esta possibilite acúmulo de conhecimento,
este não deve ser traduzido em compreensão de mundo que promova a
desalienação. Nesse sentido a educação no capitalismo apresenta,
necessariamente, uma dimensão apassivadora.
Trocando em miúdos, no capitalismo, não cabe à educação escolar
apenas tornar o indivíduo apto à produção de mais-valor; cabe-lhe, também,
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fazer com essa produção seja consentida. Nesse âmago, se a educação escolar
é espaço de construção e exercício
de hegemonia é, também, espaço de contra-hegemonia, de modo que
não por acaso, historicamente, classes e frações de classe disputam conteúdo
e forma da educação escolar, ainda que sob o mote de reformas.
Compreendemos com Gramsci (2007) que o decorrer do
desenvolvimento capitalista foi acompanhado da complexificação da luta de
classes, que não mais se reduz ao confronto direto. A elevação das
superestruturas político-ideológicas sobre determinada estrutura
econômica, fortificadas pela multiplicação dos aparelhos privados de
hegemonia à serviço da classe burguesa na sociedade civil, fortaleceu de
sobremaneira a estrutura capitalista e a sua forma de Estado correspondente,
à medida que inseriu uma dimensão hegemônica à luta de classes. A luta de
classes não mais se reduz à luta pelos aparelhos de dominação, isto é, à luta
para tornar-se dominante; é também, a partir de então, luta para tornar-se
dirigente. Nesse sentido, uma luta de hegemonias se trava no seio da
sociedade civil – uma estrutura entrincheirada, complexa e muito “resistente
às ‘irrupções’ catastróficas do elemento econômico imediato (crises,
depressões, etc)” (GRAMSCI, 2007, p. 73). Historicamente, a escola é decerto
um dos aparelhos privados/estatais de hegemonia que, embora
permanentemente disputado, funciona também como instrumento de
cimentação do conformismo das massas e de construção do consenso ativo e
passivo, sempre respaldadas por estruturas coercitivas.
Enfim, a nosso ver, o fato de que “métodos de trabalho são
indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a
vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis
no outro” (GRAMSCI, 2007b, p. 266), bem como o de que não basta que capital
e trabalho apareçam em polos opostos; é preciso desenvolver “uma classe de
trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências
desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas”
(MARX, 2013, p. 982), corrobora a dialética existente entre trabalho e
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sociabilidade, além de nos ajudar a pensar o lugar da educação nessa
sociedade.
De nossa ótica, o aprofundamento da mercantilização e da
mercadorização da educação são indissociáveis da agudização de sua
dimensão apassivadora, alienante e do funcionamento da escola como
aparelho de hegemonia majoritariamente à serviço da classe burguesa, a
despeito da assim chamada “rebeldia” de profissionais da educação e alunos.
Isso porque a subjugação da educação à lógica da lucratividade, de um lado,
precisa ser consentida pela classe trabalhadora e cimentada socialmente; de
outro, tende a expropriar, progressivamente, todo conteúdo que não for
requerido pelo trabalho alienado e pela sociabilidade burguesa, estreitando
assim os caminhos pelos quais a classe trabalhadora tem a possibilidade de
forjar e operar uma educação escolar minimamente contra a corrente.
3. Conteúdo e forma da educação escolar em tempos de
aprofundamento da irracionalidade social do capital: a subsunção da
educação ao empresariado
A subsunção da educação ao empresariado parece ser a forma mais
eficiente que o capital encontrou para maximizar o seu controle sobre o
processo educativo, determinando seu conteúdo e forma em fina sintonia com
os seus interesses. Nessa tomada da dianteira, as ações do empresariado
aumentam a precarização e o esvaziamento do processo educativo, a partir
da sua subsunção à lógica empresarial e ao ethos gerencialista de controle.
Tais ações irão reverberar no tempo e no conteúdo da (con)formação da
classe trabalhadora (MOTTA, 2012), bem como na discriminação dos valores
relativos às mercadorias e na dinâmica do mercado educacional.
Inúmeros trabalhos discorrem sobre a crise orgânica dos anos 1970
que levou à transição do bloco histórico fordista-keynesiano para o bloco
histórico neoliberal (CASTELO, 2011) e sobre os seus desdobramentos
particulares no Brasil. Não é nosso objetivo aqui retomar os pormenores da
ascensão e consolidação do neoliberalismo no mundo e especificamente no
Brasil, mas apresentar resumidamente a nossa leitura sobre a forma com
que esse conjunto de medidas econômicas, políticas e sociais reunidas na
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doutrina neoliberal impactou a educação brasileira, no que tange tanto aos
seus aspectos relacionados à estrutura quanto a superestrutura desse novo
bloco histórico.
Alguns aspectos que sustentam a nossa leitura precisam ser
destacados. Um deles é que, globalmente, a despeito dos esforços da
burguesia em torno da ampliação da extração de mais-valor (vide a
reestruturação produtiva, a degradação dos salários, a flexibilização do
regime trabalhista e outros), as taxas de lucro não voltam a atingir os
elevados patamares anteriores à recessão de 1973-1975. De acordo com
Alves (2017, s./p.), a recuperação da taxa de lucro foi calcada em um
complexo de contratendências que aprofundaram a claudicância estrutural
do capital e que continha em si a semente da crise financeira de 2008, que
mergulhou o capitalismo global na sua terceira grande depressão
12
.
O segundo refere-se ao fato inquestionável de que a doutrina
neoliberal globalizou e aprofundou de sobremaneira as expressões da
“questão social”, de modo que a realidade tratou de demonstrar a fragilidade
ideológica do neoliberalismo, com destaque para a apologia às
desigualdades. Mesmo com a onda de subversivismo das classes subalternas
na década de 1990, que obrigou o Estado neoliberal a conferir uma face mais
humana ao capital sob auspício de uma sociedade harmoniosa (MOTTA,
2012), a metamorfose que sofrera o mundo do trabalho foi acompanhada por
uma aparente irreversível precarização de todas as condições de existência
humana. Diante dessa conjuntura específica, vale relembrar que a educação
foi clamada, sobretudo por organismos internacionais (BIRD, BID, ONU e
suas unidades) a acobertar o antagonismo de classe com a possibilidade de
uma relação harmônica entre mercado, Estado e sociedade civil, em prol “do
12
Concordamos com Alves (2017, s./p.) que uma depressão na economia capitalista global
“não significa que ela não cresça, mas sim, que as taxas de recuperação da atividade são tão
frágeis, comparadas com aquelas do período anterior à Grande Recessão, que as economias
podem desacelerar e voltar a cair numa recessão”. É o que tem se verificado desde 2008 nas
economias do capitalismo central. E compreendemos a recessão da economia brasileira,
iniciada em 2015, como parte desta depressão.
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acesso dos mais pobres aos benefícios econômicos e bens socioemocionais já
disponíveis na sociedade” (MOTTA, 2012, p. 195).
Embora o neoliberalismo tenha entrado no Brasil pelas mãos de
Collor, a contrarreforma do Estado iniciada em 1995, no governo de Cardoso,
é emblemática por coroar o alinhamento do Brasil às essências do bloco
histórico neoliberal e por criar condições favoráveis à expansão do grande
capital-imperialismo. Dentre seus princípios básicos que mais atingiram a
educação estão a concepção de “público não estatal” e a compreensão de
“publicização” como “um sistema de parceria entre Estado e sociedade para
seu financiamento e controle” (BRASIL, 1995, p. 13), a partir das quais
desdobrou a regulamentação de entidades sociais privadas de interesse
público e das parcerias público-privadas. Estes conduziram o deslocamento
da educação como direito social e universal para “serviço público não
13
estatal”, colocando em xeque a garantia constitucional do direito à
educação. O cimento ideológico desta formulação é o envolvimento dos
cidadãos nos assuntos públicos, atribuindo caráter consensual ativo, o que
também insere um processo educativo do consenso espontâneo, qual seja a
persuasão e o apassivamento da classe trabalhadora sob as novas condições
de extração de mais-valor sem, no entanto, abrandar a truculência repressiva
(FONTES, 2010).
Em suma, pode-se afirmar que a contrarreforma do Estado
proporcionou as condições legais para a expansão do empresariamento de
novo tipo na sociedade civil, inclusive na educação. Ainda em 1995, os países-
membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) assinaram o Acordo
Geral sobre Comércio de Serviços (GATS), cujo objetivo era a liberalização
progressiva dos serviços em dez anos, incluindo a educação13. À época, várias
organizações aliadas ao setor empresarial já atuavam em parceria com a
13 Diante das dificuldades para concluir as negociações, o GATS não foi concluído, mas
substituído por acordos bilaterais. Em 2012 teve início uma negociação sigilosa para um
novo tratado denominado TiSA (Acordo sobre o Comércio de Serviço) que fez frente à
entrada incisiva da OCDE no controle da educação, por meio do Programa Internacional de
Avaliação de Alunos (PISA), mecanismo que vem guiando as avaliações em larga escala de
vários países e formulando, subliminarmente, o conceito de qualidade na educação.
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escola pública, a exemplo do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação,
Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e da Fundação Ayrton Senna. Em 1999,
o “Pacto Global” anunciado no Fórum Econômico Mundial conclamou
empresários a adotar políticas de responsabilidade social com vistas à
harmonização do sistema; ainda em 1999, o bloco no poder assegurou o
interesse privado na educação pública aprovando a lei 9.790/1999, que criou
as “Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)”, com
liberdade para atuar na “promoção gratuita da educação, observando-se a
forma complementar de participação das organizações de que se trata esta
lei” (BRASIL, 1999).
Já em 2001, frações empresariais locais criaram o Movimento Brasil
Competitivo (MBC), presidido pelo empresário Jorge Gerdau Johannpeter, em
14
parceria com o Banco Mundial e a “ressuscitada” Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), copatrocinado pela
Merck Sharp & Dohme, pela Petrobras, e outras grandes empresas” (MOTTA,
2012, p.125). O MBC passou a difundir premissas para “solucionar a questão
de um setor público inflado, assim como o problema da burocracia,
solapadora de ambiente de negócios” (MOTTA, 2012, p. 143), em direção ao
maior diálogo entre governo e setor privado. Do MBC nasce, cinco anos
depois, o Movimento Todos Pela Educação (TPE), que tomou a dianteira da
formulação, consolidação e implementação das políticas educacionais do
governo Lula e que conferiu uma organicidade sem precedentes às ideias do
grupo empresarial no âmbito da educação.
[...] estas forças lograram firmar um eixo discursivo que irá orientar as ações
do capital nos anos seguintes: a educação fundamental foi universalizada, mas
carece de qualidade; o Estado e os professores fracassaram na reversão do
quadro de repetência, de evasão e de baixo desempenho escolar, então, é
legítima a participação ativa da sociedade civil, leia-se, das organizações
vinculadas ao capital, na condução dos assuntos educacionais, ainda que em
confronto com professores avessos às tais “reformas” (MOTTA; LEHER, 2017,
p. 245).
A nosso ver, a subsunção da educação ao empresariado é um processo
que entra em curso no seio da “reforma” do Estado brasileiro e do bloco
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histórico neoliberal, apresentando características peculiares que foram e
continuam sendo exacerbadas com o decorrer do tempo. Sem adentrar às
especificidades de cada governo, compreendemos que, no octanato de Lula
da Silva (2003-2010) e também no governo Dilma Rousseff (2010-2016),
mantiveram-se a promoção de reformas pró-mercado, exorbitantes taxas de
juros, estrutura tributária regressiva ineficiente e a submissão ativa e
consentida da política econômica ao capital rentista nacional e internacional,
além dos movimentos de desregulamentação e privatização e da recorrência
às políticas econômicas austeras sempre que necessário.
Independentemente das nuances conjunturais dos últimos trinta anos, a
capacidade técnica e dirigente do empresariado no âmbito da educação, isto
é, a atuação sincronicamente empresarial e intelectual de seus integrantes,
orgânica e sistemática em termos econômicos e ético-políticos, estruturais e
superestruturais, com consentimento e aporte do Estado estrito, é uma
tônica inquestionável.
Em síntese, no seio dessa nova estrutura marcada por menores taxas de
lucro, pela precarização do trabalho e pela agudização da “questão social”,
bem como por um novo padrão de acumulação que demanda um grande
volume de trabalho simples (LEHER, 2010), a abertura de portas para a
atuação empresarial no âmbito da educação vem reverberando i) no
aprofundamento da mercantilização da educação, que cada vez mais limita-
se a transferir competências (e não conhecimentos) mínimas e simples, que
devem ser manejadas no exercício do trabalho simples; ii) no
aprofundamento da sua dimensão apassivadora na medida em que a
precarização do mundo do trabalho e o próprio aprofundamento da
mercantilização vê m aniquilando possíveis formas desalienantes de
educação, inclusive porque vêm expropriando toda forma de conhecimento
em nome do desenvolvimento das competências; iii) no surgimento de novas
formas de mercadorização da educação, que englobam a gestão de escolas
públicas para o setor privado, a venda de sistemas completos de ensino para
escolas públicas, a constituição de grandes empresas de capital aberto e
capital de risco especificamente voltadas para a realização de negócios na
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educação, entre outros; iv) na subjugação da educação escolar à lógica do
funcionamento empresarial e ao ethos gerencialista do controle.
Considerações finais
Há cerca de trinta anos, exponencialmente e sob o comando do
empresariado organizado em aparelhos privados de hegemonia, combina-se
transformação da renda social em capital, impulso à lucratividade,
preparação para o exercício do trabalho e a conformação de uma
determinada forma de consciência fortificada pela ideologia neoliberal. Como
viemos observando, essa combinação vem tendo implicações profundas não
só nos aspectos internos à educação brasileira (currículo, avaliações, docente
e outros), mas em todas as esferas a ela relacionadas.
Não foi objetivo deste texto apresentar e discutir concretamente essas
implicações, que podem ser encontradas em vários trabalhos do nosso
coletivo (GAWRYSZEWSKI, 2018; ANDRADE; GAWRYSZEWSKI, 2018;
ARGOLLO; MOTTA, 2015). Com esse trabalho objetivamos chamar atenção,
primeiramente, para os aspectos estruturais e conjunturais que, juntos,
endossam o empresariamento da educação de novo tipo e aprofundam a
precarização e expropriação dos processos formativos mais complexos;
segundo, para o fato de que a esfera educacional não se faz exceção ao ponto
de vista da totalidade, tampouco da dialética estrutura-superestrutura. Por
isso, pensar os problemas atuais da educação brasileira e lutar pela sua
(certamente) possível transformação exige não só estar nas trincheiras da
luta de hegemonias travada na sociedade civil, mas fazer frente aos aspectos
da estrutura econômica que conformam um padrão de acumulação que
sobrevive, independentemente do tempo histórico, da exploração e
expropriação humana.
Essas afirmações decerto continuam a ser válidas diante da conjuntura
de ascensão da atual aliança ultraliberal-ultraconservadora que compõe o
bloco no poder. Conforme nos diz Iasi (2019), a chave analítica do tempo
presente é o “fetichismo da mercadoria e os interesses de classe que daí
derivam”. Nesse sentido, sobretudo no âmbito da educação, é preciso fazer
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frente não só à superestrutura político-ideológica erigida por tal aliança e às
resistências que essa nos exige, mas também aos aspectos concretos da
estrutura econômica que tornaram necessária essa forma burlesca e
obscurantista de Estado capitalista.
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