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Pós-Limiar | Campinas | v. 3 | e204972 | 2020
A. B. CADÔR | Matéria de Poesia 1
https://doi.org/10.24220/2595-9557v3e2020a4972
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CADÔR, A. B. Matéria
de poesia: o pensamento
impresso nos livros de artista.
Pós-Limiar, v. 3, e204972, 2020.
https://doi.org/10.24220/2595-9
557v3e2020a4972
Recebido em 29/5/2020,
reapresentado em 21/9/2020 e
aprovado em 20/10/2020
1 Este artigo faz parte de uma
pesquisa em andamento que
procura detalhar as técnicas de
impressão mais comumente
usadas em livros de artista,
destacando suas características
e exemplos de uso.
2 Universidade Federal de
Minas Gerais | Escola de Belas
Artes | Departamento de
Desenho | Av. Pres. Antônio
Carlos, 6627, Pampulha,
31270-901, Belo Horizonte,
MG, Brasil | E-mail: <amir_
brito@yahoo.com.br>.
Agradecimentos
Agradeço ao Ricardo Portilho,
do Estúdio Entrecampo, por
informações complementares a
respeito da risografia.
MATÉRIA DE POESIA: O PENSAMENTO IMPRESSO
NOS LIVROS DE ARTISTA1
A MATTER OF POETRY: THE THOUGHT
PRINTED IN THE ARTIST’S BOOKS
Amir Brito Cadôr2
ORCID iD: 0000-0001-9471-3607
RESUMO
Um conjunto de obras que pertencem ao acervo da Coleção Livro de
Artista da Universidade Federal de Minas Gerais serviram como ponto
de partida para esta reflexão a respeito das técnicas de impressão. Os
livros foram exibidos em 2019 na mostra Matéria de Poesia, formada por
34 trabalhos impressos em 12 técnicas diferentes, e incluem processos
artesanais e industriais; técnicas tradicionais ainda em uso, como o
estêncil, ou obsoletas, como a tipografia. A maioria dos livros aqui
apresentados são como um comentário a respeito das possibilidades
técnicas do método de impressão escolhido. Buscamos demonstrar
como o conhecimento especializado e o acesso aos meios de produção
são dois aspectos importantes do trabalho artístico. Adaptamos para o
campo do livro impresso os conceitos usados em estudos de gravura, as
técnicas foram agrupadas por semelhança no processo de produção da
matriz ou pelo método de impressão. Comparados aos demais livros de
artista, constatamos que os trabalhos dos artistas-impressores se destacam
pela sua qualidade gráfica e pela interdependência entre o conceito e sua
forma de apresentação.
Palavras-chave
Artes gráficas. Imagem técnica. Livro de artista. Técnicas de impressão.
ABSTRACT
A set of books belonging to the Universidade Federal de Minas Gerais
Artist Book Collection served as a starting point for this reflection on
printing techniques. The books were exhibited in 2019 at the Matéria de
Poesia exhibit, made up of 34 books printed using 12 different techniques,
including artisanal and industrial processes; traditional techniques that are
still in use, such as stencil, or obsolete, such as typography. Most of the
books presented here are like a commentary on the technical possibilities
of the chosen printing method. We seek to demonstrate how specialised
knowledge and access to means of production are two important aspects
of the artistic work, even in more conceptual books. The concepts used in
printmaking studies were adapted for the book printing field, the printing
techniques were grouped accordingly to their similarities in the production
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of the plates or the printing method. Compared to other artist’s books, the
books made by artist-printers stand out for their graphic quality and for
the interdependency between the concept and its form of presentation.
Keywords
Graphic arts. Technical image. Artist’s book. Printing techniques.
INTRODUÇÃO
Uma característica dos livros de artista publicados a partir dos anos 1960 é
que a maioria deles foi produzida pelos próprios artistas, que passaram a
atuar também como editores. A criação de um livro envolve “um conjunto
de aspectos mais ou menos constitutivos de um longo processo de
trabalho sobre o livro, implicando a elaboração conceitual, a consideração
de restrições materiais, tecnológicas e financeiras” (BROGOWSKI, 2007,
p. 162). As condições materiais e econômicas de produção devem ser
levadas em consideração: mesmo com a redução dos custos que o ofsete
proporciona em comparação com outras formas de impressão, a tiragem
de um livro requer uma quantia considerável de investimento. Assim,
“a forma do livro não é a expressão da ideia, mas o resultado de um
compromisso negociado entre a ideia do artista e os diversos elementos
aleatórios do contexto de sua inscrição e de sua realização” (BROGOWSKI,
2007, p. 163).
Apesar de muitos livros de artista utilizarem a impressão em ofsete, que
é o processo mais largamente utilizado na indústria gráfica, os artistas
costumam utilizar os recursos disponíveis para publicar os próprios livros, e
a história dos livros de artista também é a história da cultura material que
tornou possível, tecnicamente, a sua existência. A escolha da técnica de
impressão não é baseada apenas em critérios econômicos, geralmente está
associada a uma qualidade gráfica da imagem que é característica daquele
modo particular de impressão, de modo que “a história de realização do
livro se torna assunto do livro” (MOEGLIN-DELCROIX, 1997, p. 294).
Além de atuarem como editores, observamos que um pequeno mas
significativo número de artistas são também impressores, ou seja, possuem
o domínio técnico e o acesso aos meios de produção. “Alguns artistas
que fazem livros se envolvem mais na impressão do que outros. De fato,
alguns apenas resolvem a forma final do livro na gráfica” (PHILLPOT,
1998, p. 54). Fazem parte desse pequeno grupo o suíço Dieter Roth e o
brasileiro Wlademir Dias-Pino, entre outros artistas que trabalharam em
oficinas tipográficas. O acesso aos meios de produção pode acontecer de
três maneiras: a mais simples é a adoção de processos manuais, como a
serigrafia e o carimbo; pelo acesso a um centro de estudos e pesquisas em
artes gráficas que possui as máquinas necessárias para imprimir um livro,
o que é mais comum em países com tradição gráfica mais consolidada
do que a nossa; e finalmente, o tipo ideal de acesso, porque dá mais
autonomia ao artista, é a aquisição de equipamentos portáteis que
imprimem pequenos formatos, como os duplicadores Gestetner ou Riso,
pequenas fotocopiadoras ou até mesmo uma impressora ofsete feita para o
escritório como a Multilith. O contato direto com as máquinas impressoras
é importante para o desenvolvimento de um “pensamento impresso”,
como demonstraram alguns centros dedicados à arte do livro nos Estados
Unidos, como o Visual Studies Workshop e a Nexus Press, que contavam
com uma impressora ofsete de duas ou mais cores, o que possibilitou a
formação de uma geração de artistas-impressores que utilizam a impressão
ofsete como se estivessem imprimindo gravuras, trabalhando com
camadas e sobreposições, com cores especiais e transparências, em uma
abordagem mais experimental da técnica.
Existe uma tendência a considerar o computador como uma espécie
de estúdio portátil de uma nova geração de artistas, dispensando a
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necessidade do espaço físico com equipamentos específicos. Muitos
jovens artistas e designers pensam que para publicar um livro basta ter
conhecimento dos programas de edição e gerar um arquivo que será
enviado para a gráfica, mas o que procuro demonstrar neste artigo é que
algum conhecimento do ofício, incluindo as possibilidades de impressão,
permite obter resultados graficamente melhores, de acordo com o projeto
ou a proposta de cada artista.
O artista e impressor Brad Freeman lamenta que um conhecido centro
de experimentação como o Visual Studies Workshop (Rochester, Nova
Iorque), em atividade desde 1969, tenha sido obrigado a se desfazer de seu
equipamento antigo, de alto custo de manutenção, por ser considerado
obsoleto para a indústria gráfica, sendo substituído por equipamentos de
impressão digital, que permitem a produção de tiragens menores e até
mesmo edições únicas (FREEMAN, 2010), mas que deixam pouco espaço
para a experimentação durante a impressão.
O uso artístico de um modo industrial de produção é diferente do uso
de tecnologias que se tornaram obsoletas e que por isso se tornaram
artísticas. A técnica é apreciada por seus próprios méritos – não apenas por
sua capacidade reprodutiva, mas por suas “qualidades específicas como
um meio artístico” (DRUCKER, 1993, p. 5).
MÉTODOS DE IMPRESSÃO
Os livros de artista constituem um exemplo do que o filósofo alemão
Walter Benjamin chamou de “obra de arte criada para ser reproduzida”
(BENJAMIN, 1985, p. 171), pois a obra original é a ideia, que se torna
concreta no livro, mas não existe sem o livro. Os métodos utilizados para
produzir uma imagem a ser reproduzida se distinguem entre imagens
fotográficas e não fotográficas (DRUCKER, 2004, p. 198). Dizendo de outro
modo, temos uma imagem técnica, produzida por um dispositivo como a
câmera fotográfica ou uma imagem feita manualmente, como os desenhos
a traço. Como a maioria dos processos só imprime tons sólidos, o original
de tons contínuos (pintura ou fotografia) precisa ser convertido em traço, o
que geralmente é feito fotografando-se o original através de uma chapa ou
filme de retícula, obtendo assim o chamado meio-tom: pontos que variam
de tamanho, forma e quantidade por área. O desenho a traço pode ser
copiado por meio fotográfico ou realizado diretamente na matriz.
Os processos de reprodução de imagens usados na impressão de livros
de artista podem ser agrupados em três famílias, de acordo com o tipo
de matriz utilizada para imprimir as cópias: matriz em relevo, matriz
planográfica e matriz digital (GASCOIGNE, 2004). As duas primeiras têm
sua origem na gravura e compartilham algumas características comuns. A
gravação da matriz pode usar os métodos manuais, que envolvem perícia
e habilidade para produzir as imagens, ou os processos fotográficos, em
que a matriz é gravada de forma indireta por meio de química e portanto
não depende de habilidade manual.
Finalmente, podemos distinguir os métodos de impressão em quatro
grandes grupos, de acordo com a forma como a imagem é transferida da
matriz para o papel: impressão manual, impressão mecânica, impressão
digital e técnicas alternativas de impressão. As matrizes em relevo e as
matrizes planográficas podem ser usadas na impressão manual (carimbo
e estêncil) e na impressão mecânica (tipografia e ofsete); por outro lado,
existem máquinas que realizam a combinação de matriz planográfica e
impressão digital, como na risografia. As técnicas alternativas são derivadas
dos outros três métodos e consistem, na maioria das vezes, em adaptações
realizadas com um objetivo específico.
Existe uma estrutura de pensamento associada a cada tipo de impressão,
a aparência das imagens é resultado das características próprias do meio
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usado, incluindo o tipo de tinta e o papel. Gosto de pensar que as artes
gráficas, assim como as técnicas de gravura que lhe deram origem, são um
tipo de “imagem calculada”, diferente do desenho e da pintura, que são
mais imediatos. A imagem impressa é o produto de uma série de etapas
e o artista deve ser capaz de prever o resultado da impressão enquanto
trabalha na matriz. Por esse motivo, entender os limites, as qualidades
e as características das máquinas usadas para imprimir são aspectos
fundamentais no processo de transformação de uma ideia em um livro.
Apresentamos a seguir alguns exemplos da interação que existe entre
a ideia e sua forma de apresentação. Mais do que explicar o que é um
livro de artista ou qual o significado de uma obra em particular, o objetivo
é apresentar como um livro funciona e demonstrar como a técnica está
a serviço de uma intenção. A reflexão toma como ponto de partida a
experiência técnica do autor como artista gráfico e editor de livros de
artista nos últimos dez anos.
O texto descritivo aqui adotado privilegia o contato direto com as obras,
uma forma de percepção estética que busca ver as coisas como se fosse
a primeira vez. É uma forma de evitar a interpretação das obras, pois
consideramos que a tarefa de um crítico “não é descobrir o maior conteúdo
possível numa obra de arte, muito menos extrair de uma obra de arte um
conteúdo maior do que já possui [...]”, mas consiste em “[…] reduzir o
conteúdo para que possamos ver a coisa em si” (SONTAG, 1987, p. 23).
IMPRESSÃO MANUAL
A forma mais simples de publicar um livro em casa, sem precisar de
nenhum equipamento, é o carimbo. Ele pode ser encomendado a uma
empresa que o confecciona a partir de um arquivo digital ou pode ser feito
manualmente com um estilete, para figuras mais simples, ou com as goivas
usadas na xilogravura, para uma figura mais detalhada. A maioria do que se
conhece dos livros de artista impressos utilizando carimbos foi produzido
no circuito de arte postal nos anos 1970 e 1980. Existiu na Holanda até
mesmo uma editora chamada Stempelplaats, que publicava somente
livros de artista utilizando carimbos, sempre em pequenos formatos, com
tiragem de 100 exemplares e no máximo 20 páginas. Os carimbos também
aparecem em diversos livros de artista como uma forma de intervenção
manual em uma página previamente impressa em ofsete ou em xerox.
A partir de um desenho simples, com linhas e pontos que formavam
padrões que depois seriam combinados ou sobrepostos, o artista
australiano Robert Jacks ficou conhecido por seus pequenos livros feitos
com carimbos nos anos 1970. Ele criou texturas gráficas que podem variar
de um exemplar para outro do mesmo livro, como acontece em Hand
Stamped, o último livro publicado pelo artista (JACKS, 2009). O processo
de impressão manual é demorado, por isso é possível que alguns livros
tenham sido produzidos em pequenas quantidades de cada vez.
O livro Stamp Book de Guillermo Deisler é uma reedição em ofsete de um
livro feito manualmente na década de 1990 com um conjunto de carimbos
de escritório coletados pelo artista chileno durante seu exílio na Alemanha
(DEISLER, 2015). Os carimbos eram usados em escritórios públicos,
bibliotecas, correios e jardins de infância da antiga Alemanha Oriental e
perderam sua função depois da queda do muro de Berlim.
Outra forma de imprimir manualmente é o estêncil, produzido com uma
matriz de papel cartão, acetato, laser-film, chapas de raios X ou outras
superfícies rígidas que possam ser recortadas para produzir um molde
vazado, também chamado de máscara. Geralmente o corte é feito com
estilete, o que exige destreza, sendo a técnica recomendável para trabalhos
sem muita complexidade. A impressão pode ser feita com esponja, pincel,
rolo de espuma ou tinta spray.
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A técnica também é chamada de pochoir e pode ser utilizada em
combinação com outras técnicas para colorir apenas um detalhe de uma
imagem impressa. O pochoir foi usado para colorir à mão os primeiros livros
impressos ilustrados com xilogravuras, como a Crônica de Nuremberg de
1493, em que se imprimiam as xilogravuras em preto com tinta à base de
óleo e o pochoir era feito com tinta à base de água, como o guache ou
aquarela, de modo que as cores não se sobrepõem ao preto, mesmo que
tenham sido adicionadas depois. O livro Frequência das Aranha (JUNGLE,
1981), um envelope com folhas avulsas, à maneira de um cartaz, foi impres-
so em ofsete com intervenções manuais em spray em dois trabalhos – a
textura e o brilho da tinta mostram que essas páginas foram impressas
com dois tipos de tintas diferentes. O artista Tadeu Jungle trouxe para o
material impresso sua experiência nos muros da cidade, pois ele é um dos
pioneiros do uso artístico da pichação em São Paulo.
A serigrafia é uma técnica derivada do estêncil, utilizando uma tela com
emulsão fotossensível no lugar da máscara recortada. A gravação da
imagem é feita com um filme positivo, o fotolito, mesmo processo usado
para gravar as chapas de ofsete. O artista Zansky trabalha com técnicas
alternativas de serigrafia, que incluem a gravação direta da tela sem o
fotolito e o uso de estêncil associado à serigrafia, uma espécie de retorno
às origens da técnica. Em parceria com Renata Bueno, produziu o livro
Glúten impresso em serigrafia, com as figuras formadas pela planificação
de diversos tipos de embalagem de papel (ZANSKY; BUENO, 2015).
Depois de completamente abertas, a dupla recortou em papel-cartão o
contorno das figuras. Com as formas recortadas, eles criaram composições
mais complexas pela sobreposição de duas ou mais figuras impressas com
a tinta um pouco transparente.
Na década de 1960, a serigrafia foi muito utilizada para produzir cartazes,
como nos Ateliês Populares de Paris em maio de 1968. No Brasil, foram
feitos em serigrafia alguns livros independentes e revistas de poesia
visual – Artéria, editada por Omar Khouri e Paulo Miranda e Agráfica,
editada por Gil Jorge e Omar Guedes em 1987 –, pois não é preciso
ter muitos equipamentos para fazer a impressão. Além disso, a serigrafia
favorece o uso de cores especiais (como o dourado, por exemplo) e outras
cores que não são produto da combinação das cores básicas (laranja
fluorescente, verde-limão). Por esse motivo, as cores são mais saturadas,
parecem mais vivas e intensas do que as cores produzidas por mistura,
como podemos observar no livro Oxigênesis, de Villari Herrmann, impresso
em serigrafia com desenhos com linhas na cor de laranja sobre um fundo
azul-claro (HERRMANN, 1977). A relação figura e fundo é importante para
esse trabalho, em que as figuras mudam de sentido conforme a posição da
página (um pulmão pode se transformar em árvore, por exemplo).
A serigrafia é uma das poucas técnicas de impressão que conseguem um
bom resultado em papéis escuros (a tinta tem uma boa cobertura, mesmo
sobre papéis coloridos), por isso a Natalia Zapella combinou serigrafia com
linhas de costura bordadas em papel preto em um livro sobre a geometria
do cosmos, Nights, the Cosmos, and I, produzido no Women’s Studio
Workshop (ZAPELLA, 2015). As três cores de linhas bordadas se misturam
com linhas impressas em serigrafia, encorajando um olhar mais atento aos
detalhes, revelando sua textura e sua qualidade tátil.
IMPRESSÃO MECÂNICA
Os processos de impressão que apresento a seguir dependem do uso de
máquinas, com graus diversos de dificuldade de operação. Assim como
acontece com as técnicas tradicionais de gravura, é comum que o artista
trabalhe em colaboração com um mestre-impressor. A tipografia é uma
forma de impressão em relevo de grande complexidade, pois depende de
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conhecimento técnico especializado e acesso aos equipamentos, cada vez
mais difíceis de encontrar. É claro que sempre é possível imprimir em um
prelo de provas, mas isso torna inviável um livro com muitas páginas ou
com uma tiragem acima de 30 exemplares.
As imagens fotográficas produzidas em clichês de zinco possuem uma
retícula de meio-tom mais grosseira, os pontos são grandes se comparados
com as imagens impressas em ofsete. O que antes poderia ser visto
como uma limitação técnica hoje em dia é visto com certa nostalgia
de uma época. O livro Los heroes populares de la mitologia urbana de
Martha Hellion foi feito exclusivamente com aproveitamento dos clichês
tipográficos descartados, usados na década de 1950 para anunciar em
cartazes e panfletos as competições de luta livre, o esporte nacional
mexicano (HELLION, 2003). Assim como fez o Deisler com os carimbos,
a artista utilizou um material existente e o ressignificou pela forma como
apresentou as imagens, criando novas lutas.
A maioria das oficinas tipográficas brasileiras foram desativadas na virada do
milênio, as máquinas e os tipos foram vendidos como sucata e são poucos
os tipógrafos impressores ainda em atividade, muitos já se aposentaram.
Apesar disso, existe um interesse renovado pela técnica, principalmente
entre estudantes de design gráfico que participam de workshops oferecidos
nas poucas oficinas em atividade. Assim como aconteceu com a litogravura,
que ganhou renovado interesse artístico quando seu uso comercial tornou-
se obsoleto, a tipografia como técnica de impressão iniciou uma fase mais
experimental nas duas últimas décadas. Em Belo Horizonte, destacam-se
as atividades realizadas em torno do tipógrafo Ademir Matias, um dos
poucos que se mantém trabalhando exclusivamente com tipografia. Em
sua homenagem, foi publicado A Fantástica Gráfica do Companheiro
Matias, em 2018, indicado para o prêmio internacional do Type Directors
Club.
O artista Flávio Vignoli, depois de se familiarizar com a oficina tipográfica
atuando como editor de livros de poemas de outros autores, iniciou
uma coleção chamada “Livros que não tenho”, que consiste em recriar
em tipografia alguns de seus livros favoritos, adotando procedimentos
de composição/impressão em diálogo com as obras que serviram de
referência, como no livro Palarva Paulo Bruscky (VIGNOLI, 2016). Com
uma abordagem mais experimental da tipografia, Vignoli utilizou até
mesmo peças de Lego para imprimir padrões de pontos que formam
texturas gráficas e servem de fundo para as composições. O resultado
se aproxima do livro que o inspira não apenas no aspecto formal, mas
também conceitualmente. Foram publicados na mesma coleção livros em
homenagem a Aloísio Magalhães e Wlademir Dias-Pino, dois pioneiros
que dominavam a arte da impressão, seja em tipografia, seja em ofsete.
Aloísio Magalhães, que fez parte do grupo O Gráfico Amador, em
Recife, era da turma dos “mãos-sujas”, os que operavam a impressora
tipográfica em busca dos resultados desejados. Durante o período que
residiu no Estados Unidos com uma bolsa de estudos, ele teve a mesma
atitude diante da impressora ofsete, tendo como resultado Doorway
to Portuguese (MAGALHÃES; FELDMAN, 1957), feito em parceria com
Eugene Feldman. Nas artes gráficas, o conjunto de procedimentos que
transformam o original (desenho ou fotografia) em material a ser impresso
é chamado de pré-impressão. O livro Doorway to Portuguese é uma aula
de pré-impressão, pois a dupla de artistas utilizou procedimentos diversos,
inclusive os que são usados em laboratório fotográfico, como o fotograma,
para obter imagens gravadas na chapa de ofsete sem precisar do fotolito.
Wlademir Dias-Pino era filho de tipógrafo e possuía um domínio técnico
incomparável. Ele inventou uma técnica de papéis recortados para
criar áreas de cor em alguns impressos feitos com desenhos a traço e
fotografias em alto contraste; ele colocava o pedaço de papel direto sobre
a chapa de gravação, economizando o custo do fotolito. Por esse método,
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conseguiu imprimir livros e jornais em duas ou mais cores, reaproveitando
a mesma chapa em posições diferentes para imprimir páginas diferentes,
reduzindo ainda mais o custo de produção. A publicação dos seis volumes
da Enciclopédia Visual, em 1991, é um bom exemplo de que “o artista
que tem acesso ao equipamento consegue planejar o livro em função do
que a máquina pode realizar, e utiliza as limitações técnicas a seu favor”
(CADÔR, 2016, p. 545). O artista adaptou o formato de cada volume
para ter o aproveitamento máximo do papel, criou páginas complexas
pela sobreposição de formas abstratas e desenhos figurativos, além de
imprimir a mesma página em cores diferentes, de modo que não existem
dois exemplares idênticos do mesmo livro.
A impressão ofsete é um tipo de impressão planográfica, derivada da
litogravura, mas que ainda não tem o reconhecimento artístico que
se imaginava que teria nos anos 1970, quando começou a ser mais
amplamente utilizada por artistas, principalmente pelos chamados
conceituais. A técnica era usada por artistas para produzir cartazes,
postais, outdoors e, é claro, livros e revistas. O livro de artista não está
condicionado a um formato ou técnica de impressão específica, apesar
de ser mais comumente encontrado impresso em ofsete, que é a técnica
comercialmente mais viável para produzir livros. O custo individual do
exemplar impresso em ofsete é pequeno, mas as gráficas até pouco tempo
não costumavam aceitar imprimir tiragens inferiores a 300 exemplares, o
que o tornava uma forma de produção inacessível para um jovem artista.
Os livros de Brad Freeman, artista e impressor, demonstram como o
domínio técnico pode levar a trabalhos mais complexos. Em MuzeLink
(FREEMAN, 1997), ele utilizou processos tradicionais e alternativos de
pré-impressão, criando imagens em duotones e tritones, e o imprimiu
com cerca de dez cores. MuzeLink é uma história pessoal da impressão
associada a uma desconstrução lúdica do processo de impressão ofsete,
fazendo referência ao livro como conceito e forma histórica.
A metalinguagem é uma característica encontrada em muitas obras
produzidas a partir da década de 1960, quando os artistas passaram a
apresentar não apenas obras prontas, mas também obras em processo.
Desde então, a forma de produção pode se tornar o assunto do trabalho,
como no livro de Freeman, mas também em outros trabalhos mais simples
e diretos. A partir da pergunta “Como imprimir o Samba?”, o holandês Erik
van der Weijde usou a marca da pegada de seu chinelo para fazer o livro
Havaianas (WEIJDE, 2013). Cada pegada foi impressa em uma das tintas
CMYK, posicionadas de acordo com seus respectivos ângulos de retícula,
e assim surgiram as composições que formam o livro.
O artista Felipe Ehrenberg, que fazia cartazes com máscaras de estêncil
de até seis cores, utilizou essa técnica para fazer os fotolitos do livro
Codex Aeroscriptus Ehrenbergensis (EHRENBERG, 1990). Além do
estêncil, ele combinou desenhos de linhas com grandes áreas de cor
recortadas em filme de recorte conhecido como papel rubi ou rubilith
ou preenchidas com folhas adesivas com texturas (letratone). Depois de
cortados, ele imprimiu com aerógrafo preto alguns estênceis para produzir
manualmente os fotolitos, de modo a imprimir um livro colorido sem usar
retículas fotográficas ou quadricromia. As texturas feitas com tinta spray no
fotolito dão a sensação de que o livro foi impresso manualmente, mas na
verdade foi impresso em máquina ofsete com cores especiais como verde
e dourado, resultando em imagens com cores saturadas, mais intensas,
produzindo grande impacto visual.
Antes da chegada das impressoras digitais, as gráficas faziam as provas de
ofsete utilizando as cópias heliográficas, um processo de baixo custo. Não
é muito comum o uso da cópia heliográfica em livros de artista, mas a dupla
Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio fez com o papel fotossensível o
livro Urgente (RAMOS; SAMPAIO, 2010). O livro foi sensibilizado e lacrado
sem passar pelos processos de revelação e fixação, de modo que o papel
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continua reagindo à luz. Assim como a imagem das páginas tende a
desaparecer, os instrumentos de desenho apresentados no livro já estão
desaparecendo da mesa dos artistas gráficos, como a régua francesa, o
tira-linhas, as cartelas de letraset, a caneta de nanquim.
Nos anos 1950 e 1960, nos Estados Unidos e Europa, os mimeógrafos com
tinta a óleo foram fundamentais para o surgimento da chamada contracultura,
com suas revistas e jornais alternativos. Os primeiros livros de alguns
poetas beatniks foram impressos de forma artesanal em duplicadores
portáteis, assim como numerosas revistas e cartazes – tal florescimento foi
depois chamado de Mimeo Revolution (LUDOVICO, 2019). Esta atitude de
faça-você-mesmo marca os primeiros livros de artista, mesmo que poucos
tenham sido produzidos em duplicadores.
No Brasil, o movimento que ficou conhecido como poesia marginal dos
anos 1970 também imprimiu os livros em equipamentos desse tipo,
assim os poetas ficaram conhecidos como “geração mimeógrafo”. Os
mimeógrafos de tinta a óleo produzem uma linha formada por pontos
relativamente grandes, formando um contorno irregular, que lembra uma
linha desenhada em uma monotipia. Apesar de ter se tornado um meio
popular entre os poetas, não existem muitos livros de artista impressos em
mimeógrafo no Brasil – o livro Rebusteia de Gabriel Borba (Figura 1) é um
dos poucos exemplos conhecidos (BORBA, 1977).
Figura 1. Rebustéia –
mimeógrafo (Coleção Livro de
Artista Universidade Federal de
Minas Gerais).
Fonte: Borba (1977).
O que provocou uma revolução por aqui foi a chegada das fotocopiadoras,
em 1965, pela rapidez, facilidade de operação e baixo custo. A princípio
destinadas apenas aos escritórios, aos poucos surgiram os estabelecimentos
comerciais que ofereciam serviços de reprografia. A maioria das fotoco-
piadoras usa uma tecnologia chamada xerografia, um processo de
impressão a seco que usa cargas eletrostáticas em um fotorreceptor
sensível à luz para primeiro atrair e depois transferir partículas de toner (um
pó muito fino) para o papel na forma de uma imagem. O grão da imagem,
formado pela eletrostática, cria uma textura de pontos dispersos que é
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característica da fotocópia. Como observa Emanoel Araújo, xerografia
é o nome do processo de impressão, o impresso obtido é uma cópia
xerográfica, fotocópia ou xerox (ARAÚJO, 1986). No começo dos anos
1970, os trabalhos artísticos circulavam com o nome xerox works, copy art,
electro-art, art-photocopy. No Brasil, já foram chamados de xerogravura,
xeroarte, arte-xerox, eletrografia e xerografia.
Nos anos 1970 e 1980, era possível obter resultados diferentes de acordo
com a marca e o modelo de copiadora utilizados. Os livros de Anna Bella
Geiger publicados na década de 1970 foram feitos em um equipamento
da 3M que usava um papel próprio, fabricado exclusivamente para a
copiadora, que só imprimia de um lado da folha. Depois de alguns anos,
surgiram equipamentos capazes de imprimir com qualquer tipo de papel.
O acesso direto à máquina copiadora foi fundamental para o desenvolvi-
mento da xerografia no Brasil. No final dos anos 70, Mario Ramiro, Rafael
França e Hudinilson Jr. transformaram em espaço de experimentação
artística uma sala no quarto andar do prédio do Departamento de Letras,
na Cidade Universitária de São Paulo. Lá funcionava uma fotocopiadora
OCÉ, “uma das melhores copiadoras existentes na época, boa para a
cópia de fotografias” (RAMIRO, 1997, p. 32). Aquela copiadora oferecia
profundidade de campo, semelhante a uma máquina fotográfica, de modo
que era possível capturar a tridimensionalidade dos objetos e do próprio
corpo. O sistema de iluminação era do tipo flash, diferente do sistema de
iluminação por varredura, que é mais comum.
Com o painel de vidro que permitia copiar não apenas documentos, mas
também objetos, o xerox tornou-se a primeira técnica que produz uma
cópia sem original, como pode ser observado nos livros de Paulo Bruscky,
Hudinilson Jr. e Rafael França, entre outros. Qualquer coisa poderia ser
copiada, e assim Marco do Valle colocou um pequeno monitor de TV sobre
o visor da copiadora durante a exibição de uma telenovela, produzindo
o livro Xerox da TV: contribuição na pré-história (VALLE, 1979). Um
verdadeiro diálogo entre as mídias, com imagens que misturavam dois
tipos de ruídos comuns na época, os “chuviscos” da televisão e as manchas
da fotocópia.
Transformar objetos em imagem bidimensional ainda atrai jovens artistas
interessados em expandir as possibilidades de produção de imagens. A
dupla Carissa Potter e Luca Antonucci pediu ao público de uma exposição
que esvaziasse seus bolsos sobre o painel de uma máquina Xerox. O livro
Pocket Book (POTTER; ANTONUCCI, 2012) é uma amostra do conteúdo
de bolsos, realizado das 16 às 22h da noite de sábado, 13 de outubro de
2012.
Algumas cópias feitas no início dos anos 1980 possuem um preto mais
intenso, o que pode ser observado na série de cópias que fizeram parte
da mostra Gerox (termo criado por Julio Plaza, combinação de gravura
com xerox), realizada na Pinacoteca de São Paulo em 1979. Alguns
pesquisadores atribuem a qualidade da impressão xerográfica ao domínio
técnico do artista, mas, de acordo com o depoimento de Mario Ramiro, o
que faz a diferença é o equipamento, o que inclui o processo de fixação da
imagem (por calor ou pressão) e o tipo de toner utilizado (RAMIRO, 1997).
Outro exemplo de que a qualidade da imagem é resultado das caracte-
rísticas de cada máquina é o livro Vestígio de Helio Fervenza e Maria
Ivone dos Santos, com registro fotográfico de Elaine Tedesco (FERVENZA;
SANTOS; TEDESCO, 1985). Produzido com máquina Xerox 9500G, suas
páginas combinam xerox, serigrafia e texto em impressão tipográfica com
xilogravura sobre cartão e carimbos. As imagens xerográficas possuem
uma aparência única, podemos dizer que o “grão da imagem” tem uma
textura que é quase tátil (Figura 2). A copiadora produziu um padrão de
linhas paralelas para reproduzir as fotografias em meio-tom, algo que não é
muito comum em outras copiadoras, mas que só pode ser observado com
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Figura 2. Vestígio – xerox e
carimbos (Coleção Livro de
Artista Universidade Federal de
Minas Gerais).
Fonte: Fervenza, Santos e
Tedesco (1985).
auxílio de uma lupa. Esse livro, mais do que o registro de uma experiência,
é uma experiência autônoma, pois uma obra de arte “encarada como
obra de arte é uma experiência, não uma afirmação ou resposta a uma
pergunta” (SONTAG, 1987, p. 31).
IMPRESSÃO DIGITAL
Diferente do padrão regular de pontos usado na maioria das técnicas de
impressão, as impressoras jato de tinta produzem a imagem por dispersão
de pequenas gotas de tinta, formando um padrão aleatório de pontos
minúsculos, conhecido como retícula estocástica. Em algumas imagens em
alto contraste com o fundo branco, esse padrão aleatório fica mais visível,
ele é semelhante ao grão fino de breu em uma água-tinta, como na capa
do livro Plant etc do artista japonês Ryuta Abe, impresso em uma cor sobre
papel jornal (ABE, 2009).
Outra forma de impressão que ganhou popularidade recentemente, apesar
de suas limitações técnicas, é o duplicador Riso, um tipo de mimeógrafo
fabricado no Japão desde 1980. Inicialmente comercializado para igrejas,
escritórios e escolas, era uma opção econômica e ambientalmente correta
para pequenas tiragens. No final dos anos 1990, as copiadoras monocro-
máticas foram substituídas pela xerografia e pela impressão a laser, que
têm um custo menor por cópia. As possibilidades cromáticas da risografia
foram percebidas e adotadas na última década por uma geração de
artistas e editores independentes, responsáveis por dar um novo propósito
à máquina (KOMURKI; BENDANDI, 2017).
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De maneira similar à impressão serigráfica, a risografia utiliza uma matriz
de estêncil e produz impressos fazendo com que a tinta atravesse a matriz.
Como nas fotocopiadoras, pode reproduzir originais colocados sobre a
mesa de digitalização na parte superior da máquina ou imprimir arquivos
digitais. As tintas, feitas com óleos vegetais, são líquidas e totalmente
translúcidas, podendo alterar sua cor de forma significativa quando
aplicadas em camadas sobre outras cores ou sobre um papel colorido.
Os duplicadores não foram projetados para imprimir mais de uma ou duas
cores de cada vez, o que resulta em erros de registro ao imprimir várias
cores. Esses aspectos do processo de impressão podem gerar resultados
surpreendentes, como no livro The Master (GOTTLUND, 2013). Um exame
dos erros de impressão que ocorrem como resultado de intervenções
físicas e digitais durante todo o processo de produção, ele incorpora a
estética de baixa tecnologia típica da risografia. O título do livro é uma
referência ao nome da matriz risográfica e ao mesmo tempo remete aos
profissionais que dominam um ofício, como o mestre-impressor.
Na preparação para impressão em riso, a imagem digital precisa ser
dividida em arquivos Portable Document Format (PDF) separados em
escala de cinza, um para cada cor, de modo semelhante ao que costuma
ser feito na separação de cores para imprimir uma serigrafia. Além disso, o
artista pode levar em consideração as sobreposições e o uso de retículas
de meio-tom para obter o efeito de três ou mais cores a partir de apenas
duas cores. A máquina Riso oferece a opção de diferentes retículas de
pontos com lineatura controlável (semelhante às retículas usadas em clichês
tipográficos) ou retículas estocásticas, de pontos de tamanho fixo e distância
variável (como na impressora jato de tinta). Depois de ganhar experiência
na separação de cores para imprimir livros e cartazes em risografia, o artista
Silvan Kälin utilizou o mesmo procedimento de preparação dos originais
para gravar as chapas de ofsete do livro One Man Fantasia, publicado
no Recife (KÄLIN, 2017) (Figura 3). O livro teve o miolo impresso em seis
cores especiais, numa impressora ofsete bicolor – ou seja, cada folha teve
três entradas na máquina. O resultado é que as cores secundárias (verde,
laranja, violeta) não são produto da mistura ótica ou da sobreposição das
cores básicas, são tintas com o tom específico determinado pelo artista,
sem a necessidade de criar retículas. Desse modo, as cores são mais
intensas, produzindo a sensação de que as páginas foram coloridas com
as mesmas tintas usadas para pintar as figuras de barro mostradas no livro.
TÉCNICAS ALTERNATIVAS DE IMPRESSÃO
Outros processos de reprodução de imagens podem ser utilizados para
fazer livros sem usar nenhum tipo de tinta. O trabalho de Michalis Pichler,
Un coup de dés n’abolira le hasard: sculpture (PICHLER, 2008), foi feito
com a técnica de corte a laser, cada página possui inúmeros recortes
em formato retangular que suprimem os versos do poema original de
Stéphane Mallarmé, ao mesmo tempo em que colocam em evidência a
estrutura gráfica do poema e do livro como um todo. A leitura ganha um
sentido de profundidade, pois vemos através dos cortes uma parte das
páginas seguintes.
É possível até mesmo fazer um livro sem textos nem imagens, apenas com
papéis coloridos recortados, utilizando facas simples para criar formas
geométricas, como fez Bruno Munari no Libro illeggibile MN1 (MUNARI,
2009). Os livros ilegíveis de Munari foram publicados pela primeira vez na
década de 1950, como material promocional de uma gráfica da Holanda,
dentro da série Quadrat Print.
O artista Ronald King especializou-se em trabalhar com matrizes feitas com
arame para criar desenhos que depois seriam impressos sem entintar a
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matriz, o que é conhecido como relevo seco. Ele utiliza papel artesanal,
feito com fibras mais resistentes, para conseguir o efeito desejado. Em
cada folha, ele obtém uma imagem em alto-relevo de um lado e uma
imagem espelhada, em baixo-relevo, no verso. Para colocar em evidência
essas características do livro, ele produziu um trabalho formado pelas
palavras Echo Book (KING, 1994), escritas todas em maiúsculas, de modo
que no verso o mesmo texto pode ser lido como Book Echo.
Outra maneira alternativa de imprimir um livro é o hackeamento, que
consiste em alterar o funcionamento de uma máquina, modificando
suas peças ou o software que a controla, introduzindo novas funções. O
artista argentino Mariano Ullua fez uma intervenção no funcionamento
de um plotter de recorte, substituindo a lâmina original por um grafite
2B, de modo que a máquina pudesse realizar desenhos a lápis. Assim foi
produzido o livro Nunca, publicado em formato sanfona (ULLUA, 2010),
aproveitando a alimentação do papel do plotter, que é feita por meio de
rolos ao invés de folhas.
Walter Benjamin, em uma conferência sobre o autor como produtor, afirma
que a produção de um escritor tem a característica de um modelo, “capaz
de orientar outros produtores em sua produção” e ao mesmo tempo
coloca “à disposição deles um aparelho mais perfeito” (BENJAMIN, 1985,
p. 132). Também os livros de artista podem indicar, pelo modo como
foram feitos, uma forma de produção que pode ser adotada por outros
artistas, abrindo novas possibilidades de criação, de modo a “transformar
em colaboradores os leitores ou espectadores” (BENJAMIN, 1985, p.
132). Xavier Antin fez uma espécie de manual para o hackeamento de
impressoras domésticas, chamado Printing at Home (ANTIN, 2010),
uma transposição do conceito de piano preparado de John Cage para o
universo da impressão. Ele criou novas possibilidades de impressão pelo
acréscimo de elementos heterogêneos aos equipamentos, como pincel,
joystick ou batatas, que carimbam o papel recém-impresso, borrando a
Figura 3. One Man
Fantasia – ofsete (Coleção Livro
de Artista Universidade Federal
de Minas Gerais).
Fonte: Kälin (2016).
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tinta que ainda não está completamente seca. Em resposta ao livro de
Antin, rapidamente esgotado, Gerardo Madera fez Printed at Home
(MADERA, 2013), que apresenta os resultados obtidos com cada tipo de
hackeamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos livros apresentados, percebemos que existe uma interação entre a
proposta do artista e a técnica de impressão utilizada, que parece ter sido
escolhida pelas suas próprias características, pelas qualidades inerentes
e únicas ao meio. Como a maioria das técnicas de impressão usadas nos
livros derivam da impressão planográfica, elas compartilham uma estrutura
de pensamento, de modo que alguns recursos gráficos de uma técnica
podem ser aplicados em outra, trazendo resultados inusitados.
Esses livros têm como característica comum a ênfase em aspectos
materiais do livro associados a questões conceituais, o conteúdo é sua
forma de apresentação. A técnica não é apenas um meio para um fim,
como acontece em muitos livros de artista publicados em ofsete, mas que
poderiam ter sido feitos igualmente em mimeógrafo ou fotocópia.
O uso comercial das técnicas de impressão está mais associado à ideia
de projeto, em que a máquina apenas executa o que foi planejado. Outra
forma de entender a impressão é considerar as decisões que podem ser
tomadas durante o processo, como mudança de cor, sobreposição de
chapas, troca de papel, ações que alteram o resultado da impressão e
aproximam o trabalho do impressor ao do pintor. Desse modo, a máquina
se torna apenas um instrumento, assim como é o pincel para um pintor.
O contato que temos com as obras em meio digital nos acostumou a
ignorar sua materialidade, em alguns casos até mesmo negando sua
importância na constituição da obra. O manuseio dos livros é um aspecto
fundamental da experiência dos livros de artista, por isso tão importantes
quanto as exposições para divulgar as obras são os acervos públicos para
consulta dos livros. O que se observa hoje é que os impressos, condenados
ao desaparecimento por inúmeros profetas das novas tecnologias, estão
se reiventando e ganham força a cada dia, talvez como uma metáfora da
necessidade que temos de contato, do toque, da presença.
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