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O TRIBUNAL ESPECIAL PARA O LÍBANO:
UM BALANÇO PARCIAL (2009-2019)
THE SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON: A PARTIAL ASSESSMENT (2009-2019)
Luiz Augusto Módolo de Paula*1
Resumo:
O presente artigo faz um balanço parcial das atividades do Tribunal Especial para
o Líbano – TEL, tribunal penal internacional ad hoc, abrangendo os anos de 2009
a 2019, e analisa sua proposta de punição de atos de terrorismo e sua viabilidade
como modelo para a repressão deste grave crime pela sociedade internacional.
Palavras-chave: Direito Internacional Penal. Direito Internacional Público. Líbano.
Tribunal Especial para o Líbano.
Abstract:
This paper makes a partial assessment of the activities of the Special Tribunal for
Lebanon, an ad hoc international criminal court, covering the years of 2009 through
2019, and analyses its proposal of punishment of terrorist acts and its viability as a
model to the repression of terrorism by the international society.
Keywords: International Criminal Law. Public International Law. Lebanon.
Special Tribunal for Lebanon.
Introdução
O intento deste artigo é fazer um balanço parcial das atividades do Tribunal
Especial para o Líbano – TEL, abrangendo os anos de 2009 a 2019.
O TEL é um tribunal penal internacional ad hoc, uma corte oriunda de um
acordo entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Estado do Líbano, que nos anos
de 2004 e 2005 foi sacudido por uma série de atentados terroristas graves, especialmente
destacando-se o atentado a bomba que vitimou Rak Hariri, ex-primeiro-ministro do
Líbano, em 14 de fevereiro de 2005.
O principal diferencial do TEL em relação a outros tribunais penais
internacionais ad hoc é que ele é uma corte que visa julgar atos de terrorismo com base
na legislação doméstica de um Estado (no caso, o Líbano), e não crimes de genocídio,
crimes de guerra e crimes contra a humanidade, que têm tipicação oriunda de tratados
* Doutor (2016) e mestre (2011) em Direito Internacional e bacharel em Direito (2001) pela Universidade
de São Paulo. Procurador do Município de São Paulo. E-mail: luaump@yahoo.com.br. O autor dedica este
artigo ao seu tio, Luiz Ovídio Módolo, que trabalhava num kibutz no norte de Israel em 1982 e acompanhou
de perto o conito no Líbano.
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internacionais, como é o caso dos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia e
para Ruanda.
1. Líbano: um breve recorte geográco e histórico
Apresentemos brevemente o Líbano, o País dos Cedros, com um breve
resumo de alguns fatos históricos que culminaram com os atentados terroristas dos anos
2000 e a criação do TEL.
O Líbano é um Estado litorâneo situado no Oriente Médio, na extrema
margem direita do Mar Mediterrâneo, com um território de 10.452 km2 e população de 6,075
milhões de habitantes, aproximadamente, em fevereiro de 2019 (WORLDOMETERS,
2019).
O país abriga dezenove comunidades religiosas principais, contando com
cristãos maronitas, ortodoxos gregos e armênios, muçulmanos xiitas, sunitas, drusos e
palestinos refugiados.1
O Líbano tem como língua ocial o árabe, com pequenas diferenças entre
o “árabe falado” (dialeto libanês) e o “árabe escrito” (comum a todos os países árabes).
Francês e inglês são bastante falados no país, até por questões da ocupação ocidental
ocorrida na primeira metade do século XX.
O país por muito tempo foi parte do Império Otomano, que acabou
após a Primeira Guerra Mundial. A região, junto com a Síria, passou a ser parte de um
mandato francês, dentro do bojo da celebração do conhecido tratado Sykes-Picot (França-
Inglaterra).2
Segundo lição de Renata Mantovani de Lima (2012, p. 171-172), o Líbano
se tornou independente em 1943 (com encerramento do mandato francês em 1941),
abrigando uma população multiétnica e grosso modo dividida em três territórios. A região
1 Sobre os palestinos, nos ensina Fernanda Resende Djahjah (2013, p. 21): “Com a criação do Estado de Israel
em 1948, e posteriormente, em 1967, com a Guerra dos Seis Dias entre árabes e o Estado Judeu, em que os
árabes perderam, muitos refugiados palestinos chegaram ao Líbano. A partir disso, começaram os problemas
decorrentes da atuação da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) no Sul do país e sua atuação
violenta perante Israel. Como não havia um consenso em relação a que política adotar diante da OLP, seu
poder no Sul foi sendo ampliado. Todo esse contexto gerou uma instabilidade política a partir do ano de
1969 e a questão palestina teve que ser enfrentada pelo governo libanês. Pressionado, o governo aceitou
discutir a permanência palestina no Líbano, que resultou no Acordo de Cairo, extremamente prejudicial
à soberania libanesa, já que a OLP se tornou praticamente um ‘Estado dentro do Estado’. A entrada de
palestinos, além de ter gerado um problema de soberania para o Líbano, resultou também em um aumento
no número de muçulmanos no Estado libanês”.
2 A França tinha pretensões na região norte dos territórios árabes e cou como tutora do Líbano e da Síria,
enquanto os ingleses mantinham seus interesses nas regiões sul – do Egito ao Iraque (BUNTON, 2013, p.
446). O texto integral do tratado pode ser lido em Wiliander Salomão (2017, p. 49-51).
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do Monte Líbano, ao norte, abrigava a população cristã maronita. Os muçulmanos sunitas
e xiitas ocupavam diversas áreas no interior e no litoral do país.
Mas basicamente o Líbano era um país de maioria cristã, cercado de
países árabes muçulmanos e abrigando uma população muçulmana que sequer podia ser
chamada de minoria.
O poder passou a ser dividido entre as diversas etnias e religiões, num
arranjo frágil, chamado informalmente de Pacto, com preponderância de ocupação de
postos de governos pelos cristãos e pelos muçulmanos sunitas.3
Mas dentro das próprias etnias havia diferenças. Muitos drusos pertenciam
também ao clã Arslan ou Jumblatt. E dentre os cristãos maronitas os clãs mais fortes eram
os Gemayel e Franjieh.
Em 1958 eclodia uma guerra civil. Em meados da década de 1970 outra
guerra civil, ainda pior, começava.
Em 13 de abril de 1975, pistoleiros tentaram assassinar Pierre Gemayel,
matando quatro de seus correligionários. Gemayel era fundador da Falange, uma
organização paramilitar maronita inspirada no fascismo (fundação em 1936), e este ataque
desencadeou a guerra civil, sendo chamada por Thomas Colello de “a Sarajevo da guerra
civil de 1975”.4
Os combates aconteciam principalmente em áreas urbanas e, ao longo dos
anos de duração da guerra, grandes partes da então magníca Beirute foram transformadas
em escombros.5
Os dois principais lados em guerra eram cristãos (Fronte Libanês), pela
manutenção do status quo, com proeminência da Falange na liderança (e no grosso da
composição das tropas combatentes), e muçulmanos (Movimento Nacional Libanês),
liderados pelo druso Kamal Jumblatt, por sua vez apoiados por parcelas da Organização
para a Libertação da Palestina – OLP e diversas outras milícias (COLLELO, 1989, p. 30).6
3 Segundo Robert Fisk (2007, p. 111) os maronitas concordaram com um Pacto Nacional não escrito que lhes
dava a Presidência do Líbano, o comando do Exército libanês e outras vantagens em troca da desistência da
proteção francesa.
4 Referência ao atentado em Sarajevo, Sérvia, que matou Francisco Ferdinando em 28 de junho de 1914
e desencadeou a Primeira Guerra Mundial (COLLELO, 1989, p. 29 e 190). Sobre a inspiração fascista
da Falange, Robert Fisk (2007, p. 109) entrevistou o próprio Pierre Gemayel, que disse: “Eu era capitão
da Federação Libanesa de Futebol. Nós fomos aos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim. E eu vi aquela
disciplina e ordem. E eu disse para mim mesmo: ‘Por que não podemos fazer a mesma coisa no Líbano?’
Então, quando voltamos para o Líbano, criamos este movimento de jovens”.
5 Ramez Philippe Maalouf (2011, p. 252) leciona que a intervenção síria no conito, com o ditador
Hafez al-Assad não desejando nem a aliança maronita com Israel nem o crescimento do poder palestino
revolucionário, foi especialmente desastrosa, já que as tropas sírias tinham as armas pesadas de um exército
regular, tendo acabado de travar uma guerra contra Israel, armas cujo uso foi devastador nas concentrações
urbanas libanesas.
6 Para mais detalhes sobre os diversos grupos e facções envolvidos na guerra civil libanesa, e especialmente
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Mas cada lado abrigava uma série de facções e grupos rivais, unidos em
coalizões instáveis e disputas intestinas pela proeminência em sua aliança. A inimizade
entre os Gemayel e os Franjieh era notória.
Países como Israel, Síria e EUA observavam, com maior ou menor grau de
apreensão, a guerra civil se escalando, cada um com seu interesse próprio.
Estima-se que nos dois primeiros anos da guerra civil 44 mil pessoas
morreram. A guerra era travada de forma irregular, com combates de guerrilhas e atentados
com uso de explosivos, emboscadas e assassinatos seletivos.
Em 1982, relata Mantovani de Lima (2012, p. 172), a situação do Líbano
ganhou um complicador adicional:
[…] o governo nacionalista em Israel tentava impor
sua própria solução ao problema dos palestinos, o que
implicava a tentativa de destruir o poder militar e político
da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) no
Líbano, instalar um regime colaborativo e depois prosseguir
com sua política de assentamento e anexação da Palestina
ocupada.7
Ainda sobre a presença palestina no Líbano nos ensina Ramez Phillipe
Maalouf (2011, p. 226):
A marginalização social e política dos expatriados palestinos
no Líbano (assim como nos demais países árabes) tornou os
campos de refugiados numa fonte de homens armados para
os movimentos guerrilheiros, que atacariam Israel a partir da
fronteira. Muitos destes ataques recebiam ao mesmo tempo
o apoio das resistências laicas (nacionalistas e esquerdistas)
árabes à ocupação israelense do território palestino, assim
como a repulsa dos que viviam nas zonas fronteiriças em
decorrência das represálias de Israel. A presença palestina e
sua marginalização social se converteram rapidamente em
fatores de instabilidade política para o Líbano.
Israel adentrou no Líbano em junho de 1982, cercando Beirute, sendo a
primeira vez que tropas israelenses ingressaram numa capital árabe.8 Forças israelenses
sobre o número de combatentes de cada milícia, vide Maalouf (2011, p. 238-239).
7 Um dos motivos para a invasão do Líbano foi a tentativa de assassinato do embaixador israelense, Shlomo
Argov, por um atirador palestino, no dia 3 de junho de 1982, em Londres, Inglaterra (GILBERT, 2016.
p. 550). Israel também respondeu aos crescentes atos de terrorismo palestinos, que incluíam sequestros
de aviões, tomadas de reféns e violência dirigida contra civis, e especialmente ao atentado contra atletas
israelenses nas Olimpíadas de Munique de 1972.
8 Anita Shapira (2018, p. 457-458) sumariza as motivações israelenses da invasão conforme declaração de
5 de junho de 1982 do primeiro-ministro Menachem Begin: “A alternativa a esta operação é Treblinka
[referência a um dos principais campos de extermínio do Holocausto], e nós decidimos que não haverá mais
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enfrentaram tropas do exército sírio e os combatentes palestinos. A OLP terminou se
retirando de Beirute ocidental em agosto do mesmo ano, com sua liderança se exilando
na Tunísia.9
O lho de Pierre Gemayel, Bashir Gemayel, cruel e implacável miliciano,
comandante do maior exército privado do Líbano, ascendeu à frente da Falange e, com o
apoio de Israel, conseguiu proeminência suciente para ser eleito presidente do Líbano
em 23 de agosto de 1982.10 Antes de sua posse, em 14 de setembro de 1982, Bashir foi
assassinado durante um ataque a bomba na sede de seu partido. O irmão de Bashir, Amin
Gemayel, seria empossado presidente no mesmo ano.
Nos estertores da morte de Gemayel ocorreram os massacres de refugiados
palestinos nos campos de Sabra e Chatila, situados em Beirute ocidental, realizados por
forças cristãs, motivadas em vingar a morte do presidente eleito, alegadamente com
participação e apoio das forças israelenses comandadas por Ariel Sharon (que viria a ser
primeiro-ministro de Israel). (COLLELO, 1989, p. 174 e 206).11
A retirada da OLP foi monitorada pelos EUA, cujos marines formaram o
grosso da tropa multinacional encarregada de supervisionar a evacuação das tropas de
Yasser Arafat e proteger posições na capital libanesa.12
O conito continuou pela década de 1980, com uma nova intervenção síria
e a chegada ao poder (1988) do general Michel Aoun (MAALOUF, 2011, p. 289).
Treblinkas”. Ao público israelense havia sido prometida uma intervenção limitada. Mas a guerra terminaria
ganhando maior escala, ainda segundo Shapira (2018, p. 457-458): “A entrada das forças israelenses em
Beirute ocidental, após sitiar a cidade por dois meses, tinha por objetivo pressionar Arafat [Yasser Arafat,
líder da facção Fatah e da OLP] a se retirar do Líbano sua sede e seus combatentes”.
9 Karla Nayra Fernandes Pereira (2015, p. 16) relata a invasão israelense: “Em junho de 1982, depois de
intensa troca de tiros ao longo de toda a fronteira com Israel, o Líbano foi novamente invadido por tropas
israelenses. Dessa vez, os ataques chegaram aos arredores da capital Beirute. […] Em 1985, as negociações
eram intensas, mas os avanços eram ínmos. Apesar disso, Israel realizou uma retirada parcial, mas manteve
o controle de uma área no sul do Líbano ocupado pelas Forças de Defesa de Israel e por soldados libaneses
que havia rompido com o Exército libanês, conhecidos como Exército do Sul do Líbano”.
10 Robert Fisk (2007, p. 123) nos conta do que era capaz Bashir Gemayel. Em 1977, ele enviou pistoleiros de
sua Falange para a casa de Tony Franjieh, lho de Suleiman Franjieh, este último ex-presidente maronita do
Líbano. Além do assassinato de 32 dos seguranças e partidários de Tony Franjieh, este foi forçado a assistir
ao fuzilamento de seu bebê e de sua esposa. E, ao m do macabro ritual, Franjieh foi também morto pelos
falangistas.
11 Robert Fisk (2007, p. 489 e 536) estima que, em Chatila, onde esteve pessoalmente após o massacre, teriam
morrido de mil a 1,5 mil pessoas, destacando-se a seguinte cena que fotografa para sempre o ocorrido:
“Havia bebês – bebês enegrecidos, porque tinham sido chacinados havia mais de 24 horas e seus pequenos
corpos já estavam em estado de decomposição […]”. O ultraje com o massacre foi massivo em Israel,
gerando uma manifestação de 400 mil pessoas (10% da população israelense) em Tel Aviv em 25 de
setembro de 1982, mostrando a divisão da sociedade sobre a guerra no Líbano e o espírito democrático do
país (GILBERT, 2016, p. 556).
12 Os EUA também pagariam preço elevado em vidas no Líbano. Um ataque à base americana em Beirute em
23 de outubro de 1983 mataria 241 americanos (GILBERT, 2016, p. 559).
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Com o advento do Acordo de Taëf (sede de uma base americana na Arábia
Saudita), celebrado em 22 de outubro de 1989, o presidente do Líbano (um cristão maronita)
passa a dividir seu poder com o primeiro-ministro (um muçulmano sunita) e com o Chefe
do Parlamento (um muçulmano xiita), o que permitiu certa normalização política no país.
A guerra civil duraria até 13 de outubro de 1990, quando ocorreu a deposição de Michel
Aoun, que foi atacado no palácio de Ba’Abda, em ataque em que morreram 700 pessoas.13
Em maio de 2000, as forças israelenses se retiraram completamente do sul
do Líbano, em obediência à Resolução n. 425 do Conselho de Segurança da ONU – CS-
ONU, que era de 1978 (FISK, 2007, p. 915).
Rak Hariri, um empresário nascido em 1 de novembro de 1944, em Sidon,
Líbano, muçulmano sunita, veria sua fortuna aumentar atuando na reconstrução do país (e
especialmente de Beirute), destruído pela guerra civil nos anos 1980 e 1990.
Hariri entraria para a política e se tornaria primeiro-ministro em 1992,
cando no cargo até 1998, assumindo o posto novamente de 2000 a 2004. Ele foi membro
do Parlamento libanês em diversas ocasiões, sendo inclusive parlamentar quando de sua
morte.
Em 14 de fevereiro de 2005 ocorre o atentado que mata Hariri e outras 22
pessoas. As suspeitas iniciais recaem sobre agentes da Síria, país ao qual Hariri se opunha
durante seus mandatos (LIMA, 2012, p. 173).
1.1. Os atentados de 2004-2005
Nos anos 2000, o Líbano voltou a ter um cenário político conturbado, com
vozes dissidentes sendo caladas por meio da violência terrorista.
Em 1 de outubro de 2004 uma explosão atingiu o comboio de carros de
Marwan Hamadeh (político e jornalista) em Beirute, ferindo ele e seu motorista e matando
seu guarda-costas.
Em 14 de fevereiro de 2005, na rua Minet el Hos’n, em Beirute, Rak Hariri,
o ex-Primeiro Ministro do Líbano, foi assassinado num ato terrorista cometido quando um
suicida detonou uma grande quantidade de explosivos que estavam escondidos numa van,
atingindo o comboio de seis carros de Hariri. A explosão matou Hariri, outras 21 pessoas
e feriu outras 226.14
13 Michel Aoun sobreviveu ao golpe e, na data de 8 de abril de 2019, época do fechamento deste artigo, era o
Presidente do Líbano (desde 31 de outubro de 2016).
14 A descrição completa do atentado pode ser localizada na seção III – “A Concise Statement of the Facts,
Overview”, do Indiciamento oferecido pela Promotoria ao TEL (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON,
2016c).
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Em 21 de junho de 2005, uma bomba colocada sob o carro de George Hawi
(político) explodiu em Beirute, matando Hawi e ferindo seu motorista gravemente.
E em 12 de julho de 2005, outra bomba atingiu o comboio de carros de Elias
El-Murr (político) em Antelias, cidade nos arredores de Beirute. Uma pessoa morreu e
outras doze, incluindo El-Murr, se feriram.
2. O Tribunal Especial para o Líbano
O Conselho de Segurança da ONU, por meio da Resolução n. 1.595, de
7 de abril de 2005 (UNITED NATIONS, 2005a), criou a Comissão de Investigação
Independente Internacional da ONU, ou United Nations International Independent
Investigation Commission – UNIIIC, comissão com sede no Líbano e com a missão de
ajudar as autoridades libanesas na investigação de todos os aspectos do ataque terrorista
de 14 de fevereiro de 2005, incluindo identicar os autores, patrocinadores, organizadores
e cúmplices.15
Atendendo a um pedido do Líbano, o CS-ONU aprovou a Resolução n.
1.644, de 15 de dezembro de 2005 (UNITED NATIONS, 2005b), no sentido de solicitar
ao Secretário-Geral da ONU ajuda para criar um tribunal internacional para julgar os
responsáveis pelo ataque terrorista de 14 de fevereiro de 2005 e para expandir o mandato
da UNIIIC para investigar outros ataques ocorridos a partir de 1 de outubro de 2004 (data
do atentado contra o político Marwan Hamadeh).
Foram iniciadas negociações entre a ONU e o Líbano para o estabelecimento
de um tribunal internacional.16 Entre janeiro e fevereiro de 2007, as Nações Unidas e o
Líbano assinaram um acordo para a criação do Tribunal Especial do Líbano.
Mas o Parlamento do Líbano terminou não pondo o acordo em votação e,
ao invés disso, solicitou que a ONU votasse uma resolução no Conselho de Segurança sob
o Capítulo VII (“Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão”) da
Carta da ONU para criar um tribunal especial.17
Este pedido foi acatado pela Resolução n. 1.757, de 30 de maio de 2007,
do CS-ONU, sob o Capítulo VII da Carta, que contém como anexo o acordo entre ONU
15 Daniel T. P. Runge (2012, p. 105) arma que o Líbano, quando da criação da UNIIIC, se limitou a aprovar
o mandato da comissão e em se comprometer a não interferir com a investigação.
16 Destaque-se aqui o teor da Resolução n. 1.664 do CS-ONU, de 29 de março de 2006, nesse sentido (UNITED
NATIONS, 2006).
17 No Brasil, a Carta das Nações Unidas foi promulgada pelo Decreto n. 19.841/1945 (BRASIL, 1945).
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e Líbano (UNITED NATIONS, 2007).18 A Holanda concordaria em abrigar a sede do
Tribunal.19
O Tribunal se situa em Leidschendam, perto da Haia, Holanda, possuindo
um escritório em Beirute, Líbano.
O Tribunal não é considerado um tribunal subsidiário da ONU nem um
órgão do Poder Judiciário libanês (LIMA, 2012, p. 174).
A UNIIIC chegaria à conclusão de que o assassinato de Rak Hariri foi
realizado por uma rede que teria cometido outros atentados investigados pela própria
UNIIIC sob seu mandato estendido de investigação. A UNIIIC encerraria seu mandato em
28 de fevereiro de 2009 (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2019).20
No dia seguinte, 1 de março de 2009, a Corte iniciou seus trabalhos
(TORTORA, 2010, p. 45).
2.1. Legislação aplicável ao TEL e sua jurisdição
O TEL foi criado sob os auspícios do Capítulo VII da Carta das Nações
Unidas e é regido por um Estatuto – ETEL (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON,
2007b), cujo texto foi parte integrante da Resolução n. 1.757 do CS-ONU (UNITED
NATIONS, 2007).
A jurisdição original do TEL, segundo o art. 1º do Estatuto, englobava o
julgamento das pessoas responsáveis pelo ataque de 14 de fevereiro de 2005, que resultou
na morte do ex-Primeiro Ministro Rak Hariri e na morte e ferimento de outras pessoas.
O mesmo artigo prevê que, se o Tribunal concluísse que outros ataques
ocorridos no Líbano entre 1 de outubro de 2004 e 12 de dezembro de 2005, especialmente,
ou mesmo fora desse período, tivessem relação com o ataque a Rak Hariri, poderia sua
jurisdição ser ampliada para julgar também esses casos.
Uma decisão21 do juiz de prejulgamento, de 5 de agosto de 2011, fez com
que o TEL reconhecesse que outros três casos tinham conexão com o ataque de 14 de
fevereiro de 2005 a Rak Hariri: os atentados contra os políticos Marwan Hamadeh,
George Hawi e Elias El-Murr.22
18 Mas Daniel T. P. Runge (2012, p. 107) destaca que o acordo jamais entrou em vigor por falta de aprovação
interna no Líbano. O que dá força ao Tribunal é a resolução em comento do CS-ONU, exarada à luz do
Capítulo VII da Carta da ONU.
19 Conforme Acordo de Sede neste sentido (KINGDOM OF THE NETHERLANDS; UNITED NATIONS,
2007).
20 Uma das conclusões da UNIIIC, segundo Mantovani de Lima (2012, p. 173), era sobre o envolvimento da
cúpula do regime sírio no atentado contra Hariri.
21 Ainda mantida condencial até o fechamento deste artigo em 8 de abril de 2019.
22 Os casos em comento ainda estão sendo investigados (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2019).
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Ou seja, o TEL tem um mandato bem especíco e abrange um número
bastante limitado de casos (na prática, quatro atentados terroristas ocorridos no Líbano
e cometidos por meio de explosivos potentes, e eventualmente algum caso conexo que
venha a ser relacionado a estes).
Esse mandato estreito do TEL contrasta, por exemplo, com o escopo de
atuação do já extinto Tribunal Penal Internacional para Ruanda – TPIR, cuja competência
era julgar as pessoas responsáveis por graves violações do Direito Internacional
Humanitário, perpetradas no território de Ruanda, e cidadãos ruandeses que tenham
praticado esses crimes no território de Estados vizinhos, abarcando os crimes cometidos
entre 1º de janeiro de 1994 e 31 de dezembro de 1994. Ou seja, um número incalculável
de crimes, de diversas espécies, cometidos durante o genocídio ruandês.23
Destaque-se também o art. 2º do Estatuto do TEL, que prevê o direito
material aplicável – basicamente, a legislação penal interna libanesa acerca do processo
e da punição de atos de terrorismo, crimes contra a vida e contra a integridade física,
sedição, guerra civil e conito inter-religioso.24 A combinação destes dois arts. (1º e 2º do
ETEL) forma a competência material do TEL.25
Segundo Daniel T. P. Runge (2012, p. 127), o Código Penal libanês dene
“terrorismo” como:
atos destinados a criar um estado de alarme, que sejam
cometidos por meios como explosivos, materiais inamáveis,
venenosos ou incendiários ou agentes microbiais de forma a
criar um risco público.26
Note-se aqui a diferença do TEL para outros tribunais penais internacionais.
O TEL usa o direito interno libanês como base do direito material aplicável. Já o Tribunal
23 Para mais detalhes sobre a jurisdição do TPIR, vide Módolo de Paula (2014).
24 Note-se que o Estatuto do TEL tempera algumas das disposições do direito libanês, como, por exemplo, não
prevendo a aplicação da pena de morte (CRYER; FRIMAN; ROBINSON; WILMSHURST, 2011, p. 188).
25 Quanto à conexão entre os ataques, Renata Mantovani de Lima (2012, p. 180), analisando por sua vez o
quarto relatório anual da UNIIIC, chegou às seguintes conclusões: “Ao iniciar suas atividades e investigar
as possíveis ligações entre os ataques, a Comissão identicou características convergentes, quais sejam: o
funcionamento, ou o padrão de utilização dos engenhos explosivos; a natureza dos crimes ou a intenção
criminosa subjacente aos ataques (alvos comuns: políticos ou jornalistas inuentes); perpetuação de um
clima de medo e ansiedade generalizada entre a população, em função dos ataques serem cometidos em
locais públicos; desestabilizando da segurança; danos à infraestrutura e à identidade dos autores. Desse
modo, concluíram, preliminarmente, que os 4 casos analisados não poderiam ter sido executados por
pessoas ou grupos diferentes, ou mesmo com motivações distintas”. Para acesso ao mencionado relatório
anual da UNIIIC, vide Special Tribunal for Lebanon (2013).
26 A denição de “terrorismo” sempre é de difícil caracterização legal, lembrando Robert Cryer e outros
autores do conhecido e cínico adágio, usado por vezes para justicar os atos mais atrozes: “O terrorista
de um é o combatente pela liberdade de outro”. O TEL superou este problema simplesmente usando a
legislação libanesa sobre o tema (CRYER; FRIMAN; ROBINSON; WILMSHURST, 2011, p. 336-337).
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260 Luiz Augusto Módolo de Paula
Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, por exemplo, tem como base do direito material
tratados internacionais, especialmente a Convenção de Genocídio de 1948 e as quatro
Convenções de Genebra de 1949.27 O Tribunal Penal Internacional também usa tratados
internacionais e a Carta da ONU como base do direito material aplicável.28
Quanto à competência temporal do TEL, são os crimes (os quatro atentados
já especicados) cometidos entre 1 de outubro de 2004 e 12 de dezembro de 2005.
A competência ratione personae e ratione loci do TEL é julgar as pessoas
responsáveis pelos ataques terroristas em questão come tidos no território do Líbano,
especialmente em Beirute.
As regras processuais do TEL constam do seu Estatuto – ETEL e do
Regulamento Processual – RP, um conjunto de regras processuais editadas pelo próprio
Tribunal.29
2.2. Composição e estrutura do TEL
O TEL é formado por quatro órgãos, conforme art. 7º do ETEL:
a) as Câmaras, que compreendem um juiz de prejulgamento, uma Câmara de
Julgamento (julgamento em primeira instância) e uma Câmara de Apelação
(julgamento em segunda instância), onde têm assento os juízes;
b) a Promotoria, encarregada das investigações e das acusações, encabeçada
por um promotor;
c) a Secretaria, cheada por um secretário, encarregado de providenciar apoio
administrativo e jurídico às Câmaras e à Promotoria;
d) o Escritório de Defesa, órgão independente cuja existência é novidade em
tribunais internacionais (sequer o Tribunal Penal Internacional prevê este
órgão em seu Estatuto), que pode ser integrado por defensores públicos,
encarregados de garantir os direitos da defesa, providenciar suporte e
assistência aos advogados dos réus.30
27 Vide Módolo de Paula (2017), especialmente a seção 3.2, “Legislação aplicável ao TPII”.
28 Vide artigos 5 a 8 bis do Estatuto do TPI sobre o direito aplicável, especialmente o art. 8 bis, que versa sobre
o crime de agressão, que por sua vez prevê a utilização da Carta da ONU e da Resolução n. 3.314 (XXIX),
de 14 de dezembro de 1974, para a denição de um ato de agressão (BRASIL, 2002).
29 Em inglês, o RP é chamado de “Rules of Procedure and Evidence” (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON,
2017). A autorização para sua edição consta do art. 28 do ETEL. A última versão foi adotada pelo TEL em
3 de abril de 2017 e, exceto menção em contrário, foi a versão utilizada neste artigo. Adotou-se o termo
“Regulamento Processual” em consonância com o Decreto Federal n. 4.388, de 2002, que promulgou o
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional no Brasil.
30 O art. 13 do ETEL prevê como é a atuação do Escritório da Defesa e especica suas funções. Ressalve-se
que o titular do Escritório de Defesa ou seus funcionários não representam os acusados. O titular do órgão
apenas nomeia ou designa advogados para tanto.
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O Tribunal Especial para o Líbano:
um balanço parcial (2009-2019)
261
Sobre os juízes e Câmaras do TEL, merecem menção as seguintes regras
sobre a escolha dos juízes e composição das Câmaras, conforme arts. 8º e 9º do ETEL:
a) O juiz de prejulgamento é um juiz internacional, que não integrará outras
Câmaras nem participará de outras fases do processo;
b) A Câmara de Julgamento é composta por três juízes, sendo um libanês e
dois internacionais;
c) A Câmara de Apelação é composta por cinco juízes, sendo dois libaneses e
três internacionais;
d) Dois juízes, um libanês e outro internacional, serão juízes suplentes.
Os juízes são indicados pelo Secretário-Geral da ONU, consultado o
Líbano, para um mandato de três anos, sendo possível a recondução, devendo ser pessoas
de alta qualidade moral, imparcialidade, integridade e extensa experiência judicial, de
preferência em direito penal, processual penal e internacional.31
O Presidente do Tribunal é o juiz presidente da Câmara de Apelação.32
Os mesmos critérios de escolha dos juízes são usados para a seleção do
Promotor da corte, que será escolhido pelo Secretário-Geral da ONU, com consulta ao
Líbano, para um mandato de três anos, passível de recondução, e terá a assistência de um
promotor-adjunto libanês.33
A Secretaria será cheada por um Secretário, igualmente nomeado pelo
Secretário-Geral da ONU para um mandato de três anos, prorrogável, sendo o órgão
responsável pela administração e demais serviços do TEL.
A Unidade de Vítimas e Testemunhas é vinculada à Secretaria, sendo órgão
encarregado de assegurar o bem-estar físico e psicológico de vítimas e testemunhas.34
As línguas ociais do TEL são o árabe, o inglês e o francês, podendo uma
ou duas destas serem usadas como língua de trabalho.35
Quanto ao orçamento do TEL, o Acordo de criação prevê que 51% do
orçamento é oriundo de contribuições voluntárias de Estados-membros da ONU e o
resto das despesas são ônus do estado do Líbano, com previsão de meios alternativos de
nanciamento em sendo necessário.36
31 Art. 9º, ETEL.
32 Art. 8º, (2), ETEL.
33 Art. 11, ETEL.
34 Art. 12, (4), ETEL.
35 Art. 14, ETEL.
36 Conforme art. 5º do Acordo entre o Líbano e as Nações Unidas, que por sua vez é anexo da Resolução n.
1.757 do Conselho de Segurança da ONU (UNITED NATIONS, 2007).
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262 Luiz Augusto Módolo de Paula
Em cada ano de funcionamento do Tribunal, conforme consulta ao site da
Corte,37 seu orçamento anual foi o seguinte (em milhões de euros):
Ano Orçamento
(€ milhões)
2009 51,4
2010 55,4
2011 65,7
2012 55,3
2013 59,9
2014 59,89
2015 59,87
2016 62,8
2017 59,0
2018 58,8
2019 55,1
Estes onze anos de orçamento do TEL (2009-2019) totalizam um gasto
de 643,16 milhões de euros até o m do ano de 2019. Guardemos estes dados para a
conclusão do artigo.
2.3. Fases do processo e outros aspectos dos procedimentos no Tribunal
No TEL, o processo se subdivide em prejulgamento, julgamento e apelação.
O Promotor apresentará seu indiciamento (acusação escrita) ao juiz
de prejulgamento, que o analisará e, concordando que existem elementos para o
prosseguimento da ação, poderá conrmar o indiciamento. Não havendo elementos, o
indiciamento será indeferido.38
Este mesmo juiz possui o poder de ordenar prisões e transferências de
pessoas, e quaisquer outras medidas necessárias para a condução das investigações e para
a preparação de um julgamento expedito.39
Com o indiciamento do(s) acusado(s), inicia-se a fase de julgamento. Numa
audiência com a presença do acusado, a Câmara de Julgamento lerá o indiciamento,
vericará o respeito aos direitos do acusado, conrmará se ele compreende a acusação e
abrirá uma oportunidade para que se declare culpado ou inocente.40
37 Cada um dos relatórios anuais, constando o respectivo orçamento anual, pode ser consultado em Special
Tribunal for Lebanon (s.d.).
38 Art. 18, (1), ETEL.
39 Art. 18, (2), ETEL.
40 Art. 20, (1), ETEL. Caso o réu se declare culpado será seguido o procedimento previsto nos arts. 99 e 100
do RP, no qual se verica se a declaração de culpa é livre e voluntária, informada, inequívoca e fundada
em evidência da existência do crime e da participação do acusado, com participação e consulta ao seu
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O Tribunal Especial para o Líbano:
um balanço parcial (2009-2019)
263
Um diferencial do TEL é a possibilidade de julgamentos à revelia (in
absentia), previsto no art. 22 do ETEL para algumas hipóteses como, por exemplo,
renúncia do acusado do direito de estar presente, sua fuga ou não entrega pelas autoridades
competentes.41
O Regulamento Processual trata das provas que são admitidas no TEL, sua
produção, e normatiza a ordem dos procedimentos a serem seguidos durante as audiências
de instrução, bem como as formas de manifestação da Promotoria e da defesa.42
Ao m da instrução a Câmara de Julgamento se reunirá, em data certa e em
sessão pública, para deliberar em apartado, a m de analisar as acusações.43
É feita uma votação para cada acusação, exigida a maioria dos juízes da
Câmara de Julgamento em cada votação. Sendo o acusado culpado de uma ou mais
acusações, será estipulada a pena cabível e a sua forma de cumprimento, podendo uma
única sentença reetir a totalidade das condutas do acusado.44
As penas a serem aplicadas pelo TEL são unicamente de prisão, podendo
esta ser por um determinado período ou perpétua.45 Mas as vítimas podem receber
compensações dos responsáveis, nos termos do art. 25 do ETEL, em tribunais nacionais.
As decisões proferidas pela Câmara de Julgamento podem ser reformadas
pela Câmara de Apelação. Esta Câmara revê apenas as decisões da Câmara de julgamento
do próprio TEL, e não de outras jurisdições nacionais ou tribunais internacionais.46
Existe também um procedimento de revisão, usado em casos de surgimento
de fatos novos que possam alterar a conclusão de uma das Câmaras.47
advogado. Neste caso, o processo estará pronto para ser sentenciado.
41 As regras para julgamento à revelia constam no art. 22 do ETEL, que preveem que ele seja sempre assistido
por um advogado de sua escolha ou indicado pelo Escritório de Defesa, que acompanhará o caso até o
julgamento de apelação. Em caso de condenação, o acusado poderá ser julgado novamente com sua presença
perante o TEL, a não ser que ele aceite o julgamento. O problema desta regra é que ela não faz distinção
entre, de um lado, casos em que possa ter havido de fato uma nulidade ou prejuízo à defesa com a ausência
do acusado no próprio julgamento e, de outro, casos em que o direito de defesa do acusado foi plenamente
respeitado, mesmo com o julgamento à revelia. Ora, o TEL já existe há dez anos e ainda não julgou nenhum
dos dois casos principais que tramitam na Secretaria. Na hipótese de uma condenação, caso algum dos
acusados de fato comparecesse perante a Corte e solicitasse um novo julgamento, por quanto mais tempo
se prorrogaria a existência do TEL? A regra, em tese, é benéca aos acusados, mas bastante custosa para os
nanciadores do Tribunal (em especial o Líbano) e muito prejudicial às vítimas sobreviventes e parentes dos
que foram assassinados nos atos terroristas, que já esperam pelo julgamento há mais de uma década.
42 Tais regras constam especialmente nos arts. 149 a 166 do RP.
43 Art. 23 do ETEL e art. 168, (A), do RP.
44 Art. 23 do ETEL e arts. 168, (B) e 171, (D), do RP. Eventual acusado absolvido das acusações será sujeito
às regras do art. 170 do RP (se algum destes acusados estiver preso, será imediatamente libertado).
45 Art. 24, (1), ETEL, e art. 172 do RP, que preveem ainda os parâmetros e a dosimetria das penas aplicadas.
Note-se que, no caso de desacato ou obstrução de justiça, pode ser aplicada prisão ou pena de multa (art. 60,
bis, [J], RP).
46 Art. 26, ETEL, e arts. 176 a 189, RP (procedimento da apelação).
47 Conforme art. 27, ETEL, e arts. 190 a 193 do RP.
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264 Luiz Augusto Módolo de Paula
Sobre o cumprimento da pena, conforme o art. 29 do ETEL, as prisões
podem ser cumpridas num Estado indicado pelo Presidente da Corte dentre uma lista de
Estados que colaboram com esta.48
O TEL depende, para seu funcionamento, da colaboração internacional,
e especialmente do país no qual ocorreram os fatos investigados, o Líbano. A forma
desta colaboração é prevista nos arts. 13 a 23 do Regulamento Processual do TEL, que
prevê regras para atendimento de pedidos da Promotoria e do Escritório de Defesa, para
cumprimento de ordens judiciais e para regulamentação de situações nas quais o Líbano
não atende a ordens da Corte.
O Estatuto do TEL e seu Regulamento Processual asseguram uma série de
direitos aos suspeitos e acusados, aplicáveis durante a fase de investigação e duran te o
julgamento em qualquer Câmara, conforme os art. 15 e 16 do ETEL e arts. 61 a 67 do RP.
As vítimas também têm direitos na Corte, como o de serem ouvidas durante
os procedimentos, e, especialmente, de serem protegidas, inclusive com adoção de
medidas de resguardo de sua identidade.49
O art. 30 do ETEL prevê a possibilidade de perdão ou comutação das
sentenças de condenação. Esses institutos dependem da legislação do Estado no qual o
condenado esteja cumprindo sua pena.50
2.4. Os casos em andamento no Tribunal Especial para o Líbano
Atualmente no TEL tramitam duas ações principais.51
a) Ação relativa a três ataques conexos ao atentado contra Rak Hariri
(STL-11-02 – vítimas principais: Marwan Hamadeh, George Hawi e Elias
El-Murr). Esta ação sequer possui ainda indiciamento e está em fase de
investigação;
b) Ação Ayyash e Outros (STL-11-01), relacionada ao assassinato de Rak
Hariri e outras vítimas colaterais em 14 de fevereiro de 2005. Esta ação
é conhecida pelo sobrenome do principal acusado sobrevivente, o senhor
Salim Jamil Ayyash.52
48 Art. 29, (1), ETEL.
49 Art. 17, ETEL, e arts. 86, 87 e 133, RP. Segundo Cryer, Friman, Robinson e Wilmshurst (2011, p. 480-481),
estas disposições sobre direitos das vítimas no TEL teriam inuência do direito francês.
50 Regras adicionais sobre o tema constam nos arts. 194 a 196 do RP.
51 Não analisaremos dois casos já julgados pelo TEL de interferência na instrução (contempt of the Tribunal –
Hipóteses relacionadas a falso testemunho, amea ças ou tentativas de suborno às vítimas ou às testemunhas,
Art. 60, bis, RP), movidos contra certos indivíduos e empresas de mídia (STL-14-05 e STL-14-06). Detalhes
sobre estas ações podem ser encontrados no site do TEL (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2018).
52 Um outro acusado, Mustafa Amine Badreddine, teria participado do atentado, sendo considerado seu
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O Tribunal Especial para o Líbano:
um balanço parcial (2009-2019)
265
Como a ação Ayyash e Outros é a única que possui material que pode ser
analisado (o indiciamento, decisões judiciais interlocutórias pertinentes e o andamento
processual), é nela que concentraremos nossa análise acerca do trabalho realizado até o
momento pelo TEL.
Os quatro acusados desta ação são Salim Jamil Ayyash, Hassan Habib
Merhi, Hussein Hassan Oneissi e Assad Sabra Hassan, que seriam membros do grupo
Hezbollah.53
Segundo Renata Mantovani de Lima (2012, p. 176):
A Câmara de Julgamento concluiu que todas as medidas
razoáveis foram tomadas para garantir a presença dos
acusados e noticá-los das acusações contra eles. […] no
dia 30 de junho de 2011, o Tribunal expediu mandados de
prisão [contra os então cinco acusados], a serem cumpridos
pelas autoridades libanesas […].
Os quatro acusados sobreviventes jamais foram capturados.54 Ao longo dos
anos, o TEL tomou decisões no sentido de unicar as ações contra os acusados e pela
admissibilidade de seu julgamento à revelia.55
Em 12 de julho de 2016 foi apresentada pela Promotoria do TEL uma
versão consolidada do indiciamento contra os quatro réus vivos.56 Alguns dos trechos do
indiciamento permanecem sigilosos até hoje.
organizador, mas teria morrido em maio de 2016, razão pela qual foi excluído da ação da Promotoria. Sobre
o encerramento do processo contra Badreddine, vide Special Tribunal for Lebanon (2016b).
53 O Hezbollah (em árabe “Partido de Alá” ou “Partido de Deus”) é organização militar e política do Líbano,
xiita, apoiada pelo Irã e pela Síria, considerada um grupo terrorista pela maioria do Ocidente, Israel e
diversos países árabes. As atividades do Hezbollah são nanciadas por uma gama de atividades criminosas
que incluem sequestros, extorsão e tráco internacional de drogas. Sua atuação é global e se estende até a
América Latina (RAATZ, 2018). Leonardo Coutinho (2018), em seu livro sobre o presidente venezuelano
Hugo Chávez, relata as atividades perniciosas do Hezbollah na América Latina, especialmente os atentados
cometidos pelo grupo na Embaixada de Israel em Buenos Aires em 1992 e na sede da entidade judaica
Associação Mutual Israelita Argentina – Amia, também na capital argentina, em 1994, atentados que
deixaram dezenas de mortos e que tiveram envolvimento de agentes iranianos.
54 Pelo menos até 8 de abril de 2019, data do fechamento deste artigo.
55 Sobre a decisão do TEL pelo julgamento in absentia dos acusados, vide Special Tribunal for Lebanon
(2012). A Câmara de Julgamento (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2012b) armou em sua decisão
que as autoridades libanesas tentaram várias vezes localizar os acusados em seus endereços conhecidos,
locais de trabalho e casas de familiares, e consideraram que a publicidade dos acusados e do caso no Líbano
foi massiva. A própria Câmara de Julgamento manteria sua decisão nesta seara em pedido de reconsideração
da Defesa (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2012c). Esta decisão pode ser conferida da seguinte
forma: SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2012d.
56 O indiciamento está disponível em Special Tribunal for Lebanon (2016c). O indiciamento original é de 17
de janeiro de 2011 (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2016a). Dois anexos do indiciamento contêm
a lista das demais vítimas do atentado contra Hariri, com muitos nomes de vítimas jamais revelados pela
Corte.
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Os quatro acusados foram indiciados, no total, por nove acusações, sendo
uma comum para os quatro réus (conspiração para cometimento de atos terroristas); quatro
das acusações dizem respeito exclusivamente ao acusado Salim Jamil Ayyash (ligadas ao
ato terrorista contra Rak Hariri e outras vítimas) e quatro acusações contra os demais
acusados (cumplicidade nos atos cometidos pelo Sr. Ayyash) (SPECIAL TRIBUNAL
FOR LEBANON, 2016c, seção “Preamble”).
O indiciamento descreve a conduta de cada um dos quatro acusados e
sua participação na autoria do atentado, com pormenorizada descrição de seus atos e
sua tipicação segundo a legislação penal considerada como base no Estatuto do TEL
(especialmente a legislação penal interna libanesa acerca do processo e punição de atos
de terrorismo, crimes contra a vida e integridade física, sedição, guerra civil e conito
inter-religioso).
A Promotoria analisa no indiciamento as redes de telefones móveis usados
para planejar e coordenar o ataque que matou Hariri e as outras vítimas, apontando a
existência de cinco redes de telefonia celular utilizadas pelos acusados.
Alguns dos usuários dos telefones jamais foram identicados pela
Promotoria e são referidos pela letra S seguida de um ou dois algarismos (ex.: S5, S10)
(SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2016c, seção “Phone Networks Involved in
the Attack”).
Na seção “Chronology of the Attack” do indiciamento é feita uma descrição
pormenorizada dos atos dos acusados e demais cúmplices não identicados desde a
preparação do ataque até seu cometimento, com destaque especial para os eventos do
próprio dia do atentado contra Hariri, no qual alguns dos acusados teriam se posicionado
em diversos pontos da rota utilizada pelo comboio de Rak Hariri para emboscá-lo de
forma covarde (SPECIAL TRIBUNAL FOR LEBANON, 2016c, seção “Chronology of
the Attack”).
O planejamento do atentado teria começado quase quatro meses antes do
dia fatal, com a tocaia de Rak Hariri para ns de estudo de seus hábitos e segurança
tendo começado em 20 de outubro de 2004. Durante todo esse período os conspiradores
permaneceram em ativa comunicação telefônica (SPECIAL TRIBUNAL FOR
LEBANON, 2016c, seção “Chronology of the Attack”).
Daniel T. P. Runge, com base no primeiro indiciamento da Promotoria,
apresentou qual era o papel de cada um dos acusados no atentado contra Hariri. O nado
Mustafa Badreddine era o cérebro por trás do plano. Salim Ayyash coordenou o time de
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O Tribunal Especial para o Líbano:
um balanço parcial (2009-2019)
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ataque a Hariri. Os acusados Hussein Hassan Oneissi e Assad Sabra Hassan ainda teriam
tentado forjar pistas falsas a m de atrapalhar as iminentes investigações das autoridades
libanesas, como contatar órgãos da mídia para contar acerca da existência de uma ta de
vídeo na qual um falso terrorista suicida armava ser responsável pelo atentado (RUNGE,
2012, p. 115).
Ao nal do indiciamento, o Promotor Norman Farrell (Canadá) recapitula
as acusações e crimes cometidos por cada um dos quatro acusados (SPECIAL TRIBUNAL
FOR LEBANON, 2016c, seção “The Conspiracy”).
Desde o primeiro indiciamento, em 2011, a Corte realizou audiências de
instrução, coletou provas e ouviu testemunhas.
Em agosto e setembro de 2017, representantes das vítimas apresentaram
seu caso. Em 7 de fevereiro de 2018 foi a vez de a Promotoria encerrar suas alegações.
Neste mesmo ano a Defesa começou a produzir suas provas. No m de 2018 as alegações
nais das duas Partes e das vítimas foram apresentadas.
O feito aguarda a prolação de sentença pela Câmara de Julgamento, que
absolverá todos ou alguns dos réus.
O trabalho do TEL continuará a m de julgar eventual ação movida pela
Promotoria contra os responsáveis pelos demais atentados objeto da atuação da Corte, para
julgar eventuais pedidos de novo julgamento em caso de comparecimento dos acusados
ora revéis, e eventuais apelações e revisões contra as sentenças das Câmaras.
Conclusões
Não se discute a importância de tribunais penais internacionais, seja
o TPI permanente, criado pelo Estatuto de Roma, sejam os diversos tribunais ad hoc
(Iugoslávia, Ruanda, Líbano etc.). Nesta linha é a lição do juiz da Corte Internacional de
Justiça Antônio Augusto Cançado Trindade (2013, p. 109):
Assim como os tribunais internacionais têm armado a
responsabilidade dos perpetradores de violações do direito
internacional, do mesmo modo se sentem, eles próprios,
responsáveis em relação às vítimas, que a eles recorrem
à busca da justiça. A asserção da responsabilidade – com
todas as suas consequências jurídicas – tem exercido um
papel-chave na luta contra a impunidade. Em qualquer
parte do mundo, reconhece-se hoje que os perpetradores
de violações graves dos direitos humanos (Estados ou
indivíduos), assim como os responsáveis por atos de
genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade,
devem responder judicialmente pelas atrocidades
cometidas, independentemente de sua nacionalidade ou
nível hierárquico na escala do poder público estatal.
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268 Luiz Augusto Módolo de Paula
A importância do TEL ainda abrange um componente diverso daquela dos
tribunais encarregados de julgar crimes contra a humanidade, genocídio etc.
Em verdade, Daniel T. P. Runge (2012, p. 104) indaga se o TEL poderá
servir de modelo para outros tribunais ad hoc encarregados de julgar atos terroristas, crime
que a comunidade internacional a muito custo tem buscado formas de enfrentar e prevenir.
Não há resposta fácil para o terrorismo, crime grave que tem por elementos a
radicalização política e religiosa, cometido por vezes por autores que sequer se preocupam
em preservar sua própria vida ou incolumidade física nos atos criminosos.
Os executores dos atentados são geralmente jovens tolos e sem perspectiva
na vida, facilmente manipulados por ideólogos que sequer se arriscam nos atentados,
como é o caso do falecido Mustafa Badreddine, que encontrou um fantoche anônimo para
se explodir e cometer o magnicídio contra Rak Hariri.
Se terroristas sequer cuidam de preservar a própria vida, como acreditar que
um tribunal local ou internacional atuará como um impeditivo à sua atuação?
O foco desses tribunais deveria ser também garantir que os cérebros por
trás dos ataques sejam punidos, quiçá com instrumentos para asxiar nanceiramente os
grupos extremistas que comandam e punir os Estados que os apoiam. Mas estas medidas
também dependeriam de poderes adicionais para esses tribunais, que iriam além das meras
medidas de processo penal contra acusados de terrorismo.
No caso, o Tribunal Especial para o Líbano punirá na melhor das hipóteses
um pequeno punhado de terroristas. Mas quem deu de fato a ordem para o assassinato de
Rak Hariri e demais políticos atacados? Serão os políticos libaneses, sírios e iranianos
envolvidos nos atentados punidos pela Corte? Sofrerá o Hezbollah o necessário castigo,
ou ao menos serão eles alijados da vida política do Líbano, como deveriam ser?
Já sabemos que a resposta será negativa, pelo menos da forma que tramitam
os processos no TEL, que possui mandato e poderes bem limitados.
Quanto à ideia em si da criação de um tribunal internacional ad hoc para
julgar atos terroristas, não há reparos. O que pode ser ponderado é quantas cortes deste
jaez seriam necessárias para coibir de fato o terrorismo internacional e a que preço? Está o
mundo disposto a pagar pelo funcionamento das dezenas de cortes que seriam necessárias?
Ou estaria já madura a ideia de criar uma corte permanente, nos moldes do TPI, para
julgar exclusivamente casos de terrorismo? Uma corte nestes moldes precisa de poderes,
além dos poderes de um juízo criminal, para de fato sancionar os grupos terroristas, seus
nanciadores e Estados patrocinadores do terrorismo.
Como fecho deste raciocínio, um reparo que é preciso ser feito em relação à
atuação do Tribunal Especial para o Líbano é o seu custo até o momento.
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Como vimos acima, o Tribunal, com sua estrutura administrativa, custou de
2009 a 2019, 643,16 milhões de euros.57
Somos da mesma opinião do Professor Wagner Menezes (2013, p. 245-246)
de que uma única solução pacíca de um conito tem um valor incalculável em razão das
vidas humanas que podem ser poupadas, e que os mesmos que questionam o custo de
manutenção de um tribunal internacional não questionam quanto os Estados gastam em
armas ou em exercícios bélicos e para a destruição.
Mas podemos sim questionar um gasto de mais de 600 milhões de euros
para o funcionamento de um único Tribunal, uma corte que em mais de dez anos de efetivo
funcionamento ainda não prolatou sentença no principal caso que analisa; sentença esta
que será dicilmente cumprida eis que os réus continuam foragidos.
Na prática, metade dos gastos do Tribunal são arcados pelo Líbano, país
bastante carente e que poderia ter usado estes fundos melhor – como, por exemplo, na
reconstrução da infraestrutura do país, jamais plenamente recuperada da guerra civil
dos anos 1970-1980, ou mesmo, para carmos no escopo de atuação do Tribunal, na
prevenção da radicalização que leva a atos terroristas ou na educação política para uma
melhor convivência entre as etnias e religiões do país.
De qualquer modo, a experiência do TEL permite uma evolução da forma
como a sociedade global pune o terrorismo internacional, especialmente nos aspectos da
coleta de provas.
O trabalho da Promotoria do TEL na investigação do atentado, especialmente
no aspecto da análise das redes de telefonia dos perpetradores do atentado contra Rak
Hariri, foi admirável e primoroso.
Mas, por ora, não podemos concluir que o julgamento à revelia, sem prisões,
de um petit comité de terroristas radicalizados ligados a uma das mais ferozes milícias
criminosas do mundo, o Hezbollah, que faz do assassinato seletivo e do terror o seu modus
operandi, dissuadirá os criminosos do futuro que queiram agir da mesma forma.
É até de se questionar se o Líbano de fato conseguiu pôr todo o seu apoio e
peso no trabalho de um tribunal que investiga atos de integrantes de uma de suas principais
facções políticas, já que o Hezbollah é uma entidade que tanto atua politicamente (com
representantes no Parlamento libanês e em outros órgãos públicos) quanto fora dos canais
ociais, com organização militar e paramilitar e criminosa (tráco de drogas, terrorismo,
assassinatos políticos).
Um político do Parlamento libanês tem de fato liberdade de se opor à
existência do Hezbollah, ou criticar a inuência do Irã ou da Síria na política interna de
57 Ou 2,836 bilhões de reais, considerado o câmbio do euro comercial de R$ 4,41 na data de 31 de março de
2019.
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seu país? Pode este parlamentar propor estender uma mão de paz na direção de Israel, algo
que faria com que seu país poupasse recursos usados em gastos militares sem necessidade?
Ou este hipotético político logo encontraria o mesmo destino de Rak
Hariri, sendo atacado em plena luz do dia por pistoleiros ou terroristas suicidas?
A tolerância do Líbano com a participação do Hezbollah na sua vida política
é contraditória. O grupo terrorista tem assentos no Parlamento libanês, mas, ao mesmo
tempo, comete atos terroristas contra civis indefesos, no Líbano e fora dele, com seu braço
dito “militar”. É impossível separar os dois “lados” do Hezbollah.
Quiçá um tribunal de fato internacional, sem tanta participação do país no
qual ocorreram os fatos investigados pelo TEL, poderia ter obtido melhores resultados (ou
ao menos mais céleres).
Enm, serve este breve artigo como forma de provocar discussões adicionais
sobre a repressão internacional ao terrorismo e quanto à forma de funcionamento e custos
de tribunais internacionais.
São Paulo, abril de 2019.
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