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Narco-cenários latino-americanos: a busca por modos de identificação

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O cinema é uma importante ferramenta para atribuição de significados e construção de identidades, para o bem e para o mal. No presente artigo, a partir de diferentes lentes cinematográficas, propomos analisar a construção da identidade latino-americana e alguns dos estigmas e mazelas sociais que herda de seu passado colonial e sua consequente posição marginal na divisão internacional do trabalho. Tal análise virá sobretudo por meio de uma reflexão sobre os narco-cenários produzidos pelo cinema hegemônico. Na primeira parte, abordaremos aspectos do conteúdo ideológico que tem produzido historicamente uma violência simbólica contra as nações latino-americanas, construindo e reforçando estereótipos. Na segunda parte, adentraremos à cadeia de relações econômicas que sustenta esse tipo de produção e que, como veremos adiante, na terceira parte, encontra respaldo no discurso e nas políticas de Guerra às Drogas, promovida por governos estadunidenses e que gera consequências devastadoras para a região. Na última parte, traremos a abordagem das produções cinematográficas não-hegemônicas, que têm proposto, nos últimos anos, problematizar e repensar os narco-cenários e a própria narco-economia.
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Narco-cenários latino-americanos: a busca por
modos de identicação
Latin-american narco-scapes: the search for ways of identica-
tion
Rayssa Mendes
Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosoa, Letras e Ciênciais Humanas.
Larissa Santos
Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosoa, Letras e Ciênciais Humanas.
RESUMO
Analisaremos a construção da identidade
latino-americana a partir de alguns dos
estigmas que a região herda de seu
passado colonial e de sua consequente
posição marginal na divisão internacional
do trabalho, por meio de uma reexão
sobre os narco-cenários produzidos pelo
cinema hegemônico.
PALAVRAS-CHAVE: narcotráco,
estigma, cinema, violência, América
Latina.
ABSTRACT
We will analyze the construction of the
Latin American identity through some of
the stigmas associated with its colonial
past and its consequent marginal
position in the international labour
division, through a reexion about the
narco-scapes produced by mainstream
lms.
KEYWORDS: narco-tra󱐰cking, stigma,
cinema, violence, Latin America.
INTRODUÇÃO
Na obra “La hojarasca” (1984 [1955]), o escritor colombiano Gabriel García Márquez
mencionou pela primeira vez a cidade de Macondo, povo imaginário que metaforiza a
sociedade colombiana, em particular, e a realidade cultural, política, social e identitária
latino-americana de forma mais geral. Uma linha tênue separa o mítico, o imaginário
e o ccional da realidade concreta em Macondo, esfera onde se reproduzem uma
série de fatos cotidianos da América Latina. Este
pueblo
mítico é o cenário onde se
desenvolvem todo tipo de fantasias e acidentes da vida real e, ao mesmo tempo,
sobrenatural latino-americana. Em “Cien años de soledad”, obra de referência do
realismo mágico de García Márquez e da literatura latino-americana, o autor conta
propriamente a história deste pueblo. Em linhas gerais, sua trajetória parte de uma
condição ideal, “onde ninguém tinha mais que trinta anos e onde ninguém havia
morrido” (García Márquez, 2009 [1967], p. 9, trad. livre) em direção a um fatalismo
degradante, que conduz à destruição de Macondo.
É interessante notar que a decadência de Macondo, bem como sua história
propriamente dita, se inicia com a conexão da aldeia com o mundo exterior, com
a chegada de Melquíades, um cigano que visita com frequência o pueblo trazendo
consigo invenções e artefatos estranhos e modernos. O marco dessa conexão se
quando Úrsula, matriarca da família e protagonista do romance (os Buendía),
atravessa o pântano e retorna com o primeiro contingente de migrantes. Estes vêm
para construir a linha férrea e trabalhar na companhia bananeira que se instala em
território macondista, fazendo referência ao fato histórico passado na Colômbia, com
a instalação da companhia bananeira estadunidense United Fruit Company, no nal
do século XIX, suscitando uma série de conitos na região (Hsin-Mei Chiu, 2014).
Esta rica metáfora geográca é precursora no que diz respeito às formas de retratar
a realidade latino-americana, algo latente no narco-cinema. Além de um retrato,
18 19
essa linguagem contribuiu para a criação de um imaginário que, em maior ou menor
medida, permeia a identidade latino-americana internacionalmente. A história desta
construção imagética, assim como em Macondo, está fortemente associada à inserção
marginal da América Latina em uma divisão internacional do trabalho liderada
por potências externas que, como tais, detinham (e detêm) fortes ferramentas de
produção simbólica, como o cinema.
Macondo se mantém em um processo cíclico de mudanças constantes, que por sua
vez conservam suas estruturas e características principais - dando a impressão de
repetição da história - no qual em algum momento é sempre necessário retornar
ao ponto de origem, o que é notório nas repetidas ‘coincidências’ que passam de
geração para geração em “Cien años de soledad”. Neste artigo propomos vericar a
inuência da produção cinematográca na construção de uma identidade regional
latino-americana profundamente marcada por estigmas, retornando também ao
ponto de origem, que se encontra situado em um passado de exploração colonial
e que, por sua vez, se repete em diversos pontos de nossa história sob diferentes
formas. A primeira delas, a partir do posicionamento econômico marginal nas
relações de troca que se projetam no sistema-mundo contemporâneo. A segunda,
através dos conteúdos identitários que nos são atribuídos por uma violenta dinâmica
de produção simbólica que relega à América Latina uma identidade marcada pela
ilegalidade e degradação moral.
Na primeira parte do texto, trataremos do conteúdo ideológico das construções
representativas (simbolismos e estereótipos) que o cinema tem historicamente
produzido a respeito da América Latina, através de um processo de violência
simbólica [1]. Essa produção culmina na emergência de uma narco-cultura não
amparada por produções cinematográcas, mas por músicas, telenovelas e outras
linguagens. Nesta parte, trataremos precisamente do processo de construção dos
“narco-cenários” que permeiam o inconsciente coletivo global acerca da América
Latina.
Na segunda parte, nos aprofundamos ainda mais nesse universo de produção
representativa, nos referindo à cadeia de relações econômicas que a sustenta. A
narco-economia é assumida como parte integrante do desenvolvimento capitalista
contemporâneo, embora a mesma seja comumente negada como tal, relegada à
condição desviante de imoralidade e ilegalidade.
Na terceira parte adentramos em um aspecto largamente abordado pelo cinema, que
é a política de guerra às drogas, liderada pelo governo dos EUA na região como uma
forma de mitigar e conter as ameaças impostas pela proliferação e aprofundamento
da narco-economia, mas que tem historicamente surtido efeitos contrários e adversos,
legando resultados problemáticos para a região.
Na quarta e última parte abordamos o cinema, sobretudo pelo gênero documental,
como uma potencial ferramenta de subversão à construção de identidades
deteriorantes e violentas. A produção cinematográca não-hegemônica tem sido
instrumentalizada no sentido de evidenciar implicações pouco mencionadas da
política de guerra às drogas, suscitando debates como a legalização e descriminalização
dos narcóticos. Concluímos esta reexão retornando a Macondo e apontando as
limitações e prejuízos da construção de “mono identidades”, desenvolvida pela
produção cinematográca hegemônica e endossada pelos narco-cenários que elas
constroem.
A PRODUÇÃO IDEOLÓGICA DOS NARCO-CENÁRIOS
Desde os anos 1970, a temática das drogas tem tido grande relevância na produção
cinematográca latino-americana, em obras como “Contrabando y traición” (Arturo
Martínez, 1977) e “La banda del carro rojo” (Rubén Galindo, 1978). Foi na mesma década
20 21
em que houve o desenvolvimento de complexas rotas de distribuição e métodos
de contrabando pelos tracantes latino-americanos, que a série de televisão “Miami
Vice” (Anthony Yerkovich e Andres Carranza 1984-1990) retrataria alguns anos mais
tarde. Exibida primeiramente pela NBC, a série trouxe, uma versão “glamourizada”
da guerra às drogas para o público global, em que dois policiais estadunidenses -
claramente retratados como heróis - se arriscam e se aventuram no submundo das
drogas na Flórida (CineGRI, 2020, p. 44).
O registro cinematográco mais antigo nessa linha, no entanto, data de 1940, quando
Irving Cummings dirigiu “Down Argentine way”. A obra retrata de forma clara a
construção dos EUA como terra do trabalho e da dignidade, em oposição à Argentina,
microcosmo latino-americano que incorpora a terra da fuga e da realização de
fantasias (CineGRI, 2020, p. 44). Uma verdadeira Macondo sul-americana. A Argentina,
entretanto, lugar à Colômbia e ao México como contextos mais recorrentes nas
produções cinematográcas que abordam a questão do narcotráco, reforçando a
versatilidade da metáfora macondista.
O mexicano, desde os primeiros anos do narco-cinema, é comumente representado
como imigrante clandestino e miserável, criminoso e vagabundo, que traz doenças
e problemas (CineGRI, 2020, p. 47). É importante ressaltar que a construção de
narco-cenários está muito associada à construção da identidade de determinado
povo, assim como o delineamento de Macondo se através da construção das
personagens que ali habitam e que, a partir das relações sociais que estabelecem,
produzem o espaço do pueblo.
Tais representações dos narcotracantes, por sua vez, têm dominado ideias que
norteiam particularmente a política externa estadunidense e, em última instância,
o próprio capitalismo transnacional. A gura do narcotracante no cinema tem
se mostrado bastante ambígua nos últimos anos, na medida em que ao mesmo
tempo que incorpora aspectos do vilão a ser combatido pelos “mocinhos” brancos e
ocidentais, é crescentemente representada sob as características de “herói” à juventude
latino-americana. O diretor mexicano Miguel Marte se refere à representação dos
narcos como “personagens ideais, violentos, que usam armas, tem caminhonetes e
mulheres” (Marte, 2016 apud CineGRI, 2020, p. 47).
O documentário “Narco cultura” (Shaul Schwarz, 2013) expressa este fenômeno
com maestria, a partir de paralelos com o “narco-corrido” mexicano, estilo musical
que mistura ritmos tradicionais mexicanos com letras que gloricam os atos de
narcotracantes, assim como outros fenômenos culturais, como o “funk ostentação”
no Brasil ou o “gangsta rap” dos Estados Unidos. Em “Narco cultura” também
presenciamos os atos brutais dos cartéis, envolvendo gravações de cabeças
decapitadas e corpos incinerados ao som de “narco-corridos”. “Narco cultura” se
concentra nos impactos generalizados do narcotráco na cultura em Ciudad Juárez
e no México em geral. O documentário propõe uma reexão nal importante para
pensar o processo que fez dos narcotracantes modelos a serem seguidos por parte
da juventude mexicana (CineGRI, 2020, p. 62). Além dos
corridos
, também existem
produções audiovisuais de histórica tradição e crescente importância e que retratam
os narcos como vilões (e vilãs, como um fenômeno mais recente) heroicizados - as
narco-novelas, como “La reina del Sur” (México), “Las muñecas de la maa” (Colômbia)
e “Pablo Escobar: el patrón del mal” (Colômbia).
Há poucos lmes, contudo, que não abordam a história de grandes lordes da droga,
dando protagonismo aos que sofrem com a guerra às drogas. Não encontramos no
circuito hegemônico de produção cinematográca, obras que tratem das “mulas”, em
sua maioria mulheres em situação de extrema vulnerabilidade social, que arriscam
suas vidas ao carregar em seus corpos pequenas quantidades de droga. Segundo
dados da ONG ITTC (2015), 58% das mulheres encarceradas no Brasil estão presas
22 23
por delitos relacionados ao comércio de drogas (CINEGRI, 2020, p. 47). Com raras
exceções [2], essas histórias não são contadas.
NARCO-ECONOMIA: A IMORALIDADE INTRÍNSECA AO CAPITALISMO
O tráco de drogas foi sempre um negócio capitalista, por ser organizado
como uma empresa alentada, como qualquer outra, pelo estímulo do lucro. [...]
A narco-economia, longe de ser um submundo alheio à norma capitalista, está
rigorosamente organizada de acordo com os parâmetros da economia de mercado
(Coggiola, 2005).
Na década de 1990, o mercado do tráco internacional de drogas gerava uma
renda anual de mais de US$500 bilhões, constituindo o segundo maior negócio da
economia capitalista mundial, perdendo apenas para a indústria militar, com US$700
bilhões. Por isso, é essencial entender o mercado oriundo do tráco de drogas como
um fenômeno diretamente vinculado ao sistema econômico de base capitalista
(CineGRI, 2020, p. 52). No quarto episódio da série documental “Na rota do dinheiro
sujo” (Jigsaw Productions, 2018), intitulado “Banco dos cartéis” (Kristi Jacobson,
2018), essa relação é evidenciada a partir da história de lavagem de dinheiro de cartéis
mexicanos e de organizações paramilitares como o Hezbollah por meio do banco
HSBC. O episódio traz evidências de que o sistema nanceiro, além de altamente
transnacionalizado, encontra-se intrinsecamente vinculado ao narcotráco.
O tamanho e a importância que tem a “narco-economia” no sistema econômico
capitalista se reete na cultura de nações impactadas por essa atividade. No México,
“narco-cinema” é um gênero cinematográco, no qual essa realidade é retratada
por meio de lmes de categoria B repletos de violência, drogas e as “tradicionais”
caminhonetes. Nestas obras recentes do cinema e da televisão é possível observar
com frequência os custos morais do capitalismo e sua indústria cultural. A temática do
narcotráco tem sido abordada recorrentemente por meio de obras como “Narcos”
(José Padilha, 2015), sobre o tracante colombiano Pablo Escobar, representado
por Wagner Moura, que se dene diversas vezes como um “homem de negócios”.
O verdadeiro Pablo Escobar armava explicitamente essa condição, estabelecendo
assim seu posicionamento político e distante dos movimentos revolucionários de
guerrilha da América Latina (CineGRI, 2020, p. 52).
Não aceito que me associem à guerrilha, pois isto prejudica minha dignidade.
Sou um homem de negócios e esta é a razão pela qual não posso estar de acordo
com as guerrilhas, que lutam contra a propriedade privada (Escobar Gavíria apud
Coggiola, 2005, p. 117).
Um dos mais emblemáticos lmes sobre o narcotráco, “Tra󱐰c” (Steven Soderbergh,
2001) é bastante didático e nos permite entender mais sobre o assunto. Este lme
retrata desde a fabricação das drogas, nos campos de plantação de coca na América
Latina, até seus consumidores nais, que residem em todos os outros continentes
do planeta. Apresentando toda a complexidade que envolve essas relações por meio
de uma narrativa que permeia simultaneamente três histórias. “Tra󱐰c” fornece uma
excelente base para discussões a respeito da legalidade e da legitimidade de uma
questão tão delicada (CineGRI, 2020, p. 66). Nesse mesmo sentido, a série documental
“Amazonas clandestino” (David Beriain, 2015) busca elucidar o caminho das drogas
na oresta Amazônica, desde o cultivo até sua distribuição, que se encontra também
associada a outros mercados ilícitos, tais como a exploração de recursos como ouro
e madeira.
A intermediação do mercado, ao dar consistência à exaltação do irracionalismo e da
imoralidade como essência do latino-americano, contribui hoje para que as xações
fundamentalistas da identidade sigam se opondo às leituras mais amplas e abertas da
multiculturalidade latino-americana. As indústrias culturais (como a cinematográca)
24 25
e a massicação urbana deveriam caminhar no sentido de fomentar a maior abertura
e transnacionalização com vistas a preservar as culturas locais. O que se nota, no
entanto, é um processo de perversão das mesmas, instrumentalizando o caráter
profundamente marcado pela fantasia e pelos mitos para justicar um mercado por
denição associado ao entorpecimento e à inconsciência.
GUERRA ÀS DROGAS: RECOLONIZAÇÃO COMERCIAL E SIMBÓLICA
A política de guerra às drogas, isto é, a instrumentalização da militarização com
o pretexto de lutar contra as mazelas sociais supostamente ocasionadas pelo
consumo de drogas ilícitas, é um aspecto fundamental da recolonização comercial
e chantagem nanceira em curso na América Latina, inspirando muitas narrativas
cinematográcas contemporâneas. A guerras às drogas, originada no fenômeno do
proibicionismo, que data da primeira metade do século XX, estrutura-se, assim como
este, a partir de uma “combinação entre moralismo e repressão seletiva a certos
grupos sociais” (Rodrigues, 2012, p. 11) e se constitui como uma tática de controle
social. O discurso construído a partir do pretexto de combate ao narcotráco teve seu
viés militar intensicado nos governos de Ronald Reagan, nos anos 1980. América
Latina e Caribe são particularmente atingidos por esse discurso quando as políticas
de segurança estadunidenses passam a associar as guerrilhas de esquerda, como as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Sendero Luminoso no Peru,
ao narcotráco e a caracterizá-las como uma ameaça continental.
Na série Narcos, é possível encontrar outras questões problemáticas que contribuem
para a estereotipação e estigmatização da região, aqui principalmente por seu
aspecto simplista, sobre a região. O ator principal (Wagner Moura) e o diretor (José
Padilha) são brasileiros e trata-se de uma co-produção Brasil/Colômbia/EUA, em que
a escalação de um ator brasileiro para o papel de uma gura colombiana emblemática
(para o bem ou para o mal) colabora, ainda que indiretamente, com a ideia de
homogeneização da América Latina. Além disso, a produção adota uma abordagem
recorrente da região como terra da violência, sem regras e sem leis, aspectos que,
em outros contextos e atrelados à narrativa dos estados enfraquecidos, justicam
intervenções externas à região, inclusive militares (CineGRI, 2020, p. 45).
Outros aspectos regionais não são levantados e o narcotráco acaba sendo
explorado de forma a “glamourizar” a vida de luxos e violência de Escobar. Esse
cenário corrobora com a ideia de que o tráco de drogas é um problema distante e
restrito à América Latina e, ainda pior, de responsabilidade dessa região. Contribui
para o distanciamento do debate sobre saúde e segurança pública, desigualdade
social, dependência econômica e demais fatores que conduzem ao tráco e ao uso
de drogas (CineGRI, 2020, p. 46).
Diferente do que ocorre quando assistimos a esse tipo de lme, cuja violência e a
própria guerra às drogas são romantizadas, acompanhar cenas reais nos faz perceber
a frieza e a brutalidade produzidas por estes conitos. Esses são alguns elementos
que fazem “Cartel land” (Matthew Heineman, 2015) um documentário singular, no
qual o diretor traz cenas reais de trocas de tiros entre narcotracantes e cidadãos
armados. As tensões e desdobramentos revelados na produção estabelecem um
arco original sobre o complexo problema do tráco de drogas e o envolvimento
do governo com os cartéis. Ainda que trate de aspectos particulares do contexto
mexicano, traz elementos importantes para análise de outras conjunturas latino-
americanas (CineGRI, 2020, p. 62).
O discurso - e as políticas - da guerra às drogas tem conduzido o povo latino-
americano a acessar e internalizar uma versão especíca de identidade, garantida
por séculos de dominação cultural (Larraín, 2001, p. 51). Isto signica dizer que temos
em comum não apenas o passado colonial e escravista, que nos coloca em uma
26 27
posição subalterna do ponto de vista social e econômico, mas também diz respeito às
inuências sobre a construção da nossa identidade. Este processo sintetiza a odisseia
da nossa constituição, enquanto povo e enquanto região, ainda em grande medida
inconclusa (Silva, 2005, p. 143-145). A identidade latino-americana encontra-se em
processo permanente de construção, o que se conrma com os dinâmicos processos
políticos e econômicos e de identicação que se levam a cabo no marco das relações
internacionais de espaços globalizados.
CINEMA E SUBVERSÃO: A CONSTRUÇÃO DE OUTROS CENÁRIOS
A questão do narcotráco na América Latina, em toda sua complexidade, só pode ser
satisfatoriamente interpretada a partir da ressignicação de narrativas, via de regra
construídas de maneira unilateral e autoritária como tem mostrado ser grande parte
da produção cinematográca hegemônica criada sobre o assunto. A cultura é o
lugar em que se produz o intercâmbio comunicativo através de uma série de re-
codicações da realidade, onde os espaços individuais pertencentes a distintos grupos
sócio-históricos, conuem. Nesse sentido, nesta parte do artigo, nos dedicaremos a
visibilizar narrativas que revelam aspectos por vezes velados destes narco-cenários.
O documentário “Cortina de fumaça” (Rodrigo Mac Niven, 2010), por exemplo, procura
abordar a questão das drogas e seus tabus a partir de uma perspectiva cultural e das
consequências político-sociais geradas pelas atuais formas de regulação, no Brasil
e no mundo. Com a participação de intelectuais e pesquisadores, o debate gira em
torno de mostrar a intrínseca relação entre o ser humano e o consumo de diferentes
substâncias. Conta com a participação de Henrique Carneiro, professor e pesquisador
do Departamento de História da Faculdade de Filosoa, Letras e Ciências Humanas
da USP, que vem trabalhando com esse tema há algum tempo. Em algumas de suas
contribuições, Carneiro enfatiza que sempre buscamos na ora plantas que pudessem
nos ser úteis e descobrimos, entre elas, algumas que propiciam alterações sensoriais
e de percepção (CineGRI, 2020, p. 59).
Outro exemplo é “Quebrando o tabu” (Fernando Grostein Andrade, 2011), um
documentário que procura abrir o debate sobre a descriminalização e legalização
das drogas, abordando diversos problemas sociais e de saúde pública relacionados
com o tema, no Brasil e no mundo. Ancorado pelo ex-presidente brasileiro, Fernando
Henrique Cardoso, o lme entrevista diferentes autoridades políticas sobre o assunto,
como os ex-presidentes estadunidenses, Bill Clinton e Jimmy Carter, e médicos,
como Dráuzio Varella. Busca-se, com isso, desestigmatizar o usuário - nesta produção
especicamente aquele que faz uso da cannabis - e apresentar o uso das drogas
como um problema de saúde pública e sociabilidade, não devendo ser alvo apenas
de políticas que foquem na repressão estatal e penalização. “Quebrando o tabu” foi
um dos responsáveis por reacender o debate sobre a política de drogas no Brasil à
época de seu lançamento, em 2011 (CineGRI, 2020, p. 57).
a obra “Ilegal” (Tarso Araújo e Raphael Erichsen, 2014), documentário também
brasileiro, trata do tema das drogas com um recorte bastante especíco: a luta
judicial de pais e mães para importar legalmente medicamentos com a substância
canabidiol, produzido à base da cannabis sativa (sem propriedades psicotrópicas),
para seus lhos que sofrem de convulsões (em doenças como epilepsia, CDKL
5 e a Doença de Crohn). Também são abordados outros casos de doenças cujos
tratamentos demandam medicamentos à base de canabidiol. Um dos trunfos
desta produção cinematográca é mostrar como a luta pela legalização das drogas
também passa por demandas medicinais urgentes, à parte da reivindicação, liderada
por movimentos antiproibicionistas, do direito individual ao uso de substâncias
psicotrópicas. Como fala Katiele Bortoli, uma das mães mostradas no lme, “se para
salvar a vida da minha lha e dar uma vida melhor para ela eu tiver que tracar, eu
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tracarei. A palavra é essa, tracar.” (Araújo e Erichsen apud CineGRI, 2020, p.58).
Enquanto não regulamentação sobre o uso de algumas substâncias para ns
medicinais, toda e qualquer comercialização é tratada a partir do aspecto penal e
congura crime. Nesse sentido, o lme tem enorme potencial para sensibilizar um
público que reduz a questão da legalização de algumas drogas ao viés moral e da
busca pelo prazer individual.
“Leaving la oresta” (Caleb Collier e Dan Roge, 2011) é um documentário estadunidense
que busca tratar dos danos da guerra às drogas na Colômbia, levada a cabo por meio
do Plan Colombia, política externa norte-americana que consiste em um conjunto de
interferências militares dos EUA no país sul-americano para “combater o narcotráco”.
O documentário acompanha a família de Abelardo e Olga, pequenos agricultores
colombianos de cacau, iúca e banana-da-terra, que tiveram que abandonar sua
propriedade familiar após suas plantações serem dizimadas por pesticidas atirados
por aviões estadunidenses. Estes visavam as áreas de plantio de coca, com o intuito
de impedir a produção de cocaína. Tendo perdido tudo e sem a menor proteção
jurídica, os camponeses se veem em uma situação kafkiana, desprovidos de qualquer
perspectiva para conseguir moradia e trabalho. Este relato, no âmbito micro,
também ajuda a reetir sobre os impactos negativos que a ininterrupta política de
Guerra às Drogas deixa pelo caminho, atingindo grupos sociais vulneráveis e que
frequentemente nada têm a ver com a produção, distribuição ou mesmo consumo
de ilícitos (CineGRI, 2020, p. 58). No Brasil, com suas próprias particularidades, existem
paralelos possíveis de serem estabelecidos, sobretudo ao considerarmos que
como nos demais países americanos, o tráco de drogas é (...) associado a populações
pobres, habitantes de favelas e periferias e vinculado aos chamados comandos ou
partidos do crime. Apesar de a situação da produção, tráco e consumo de drogas
ilícitas no Brasil não congurar um quadro tão simples, o vínculo entre narcotráco
e pobreza tem justicado seguidos programas de segurança pública que insistem
na repressão e no proibicionismo como meios para lidar com a questão das drogas
(Rodrigues, 2012, p. 28).
Essas produções cinematográcas, ainda que com destacadas diferenças, são
exemplares da recente ascensão do debate sobre a criminalização de substâncias
ilícitas e as políticas de Estado em relação a elas vale ressaltar que todas foram
lançadas na última década. Mais do que isso, oferecem uma bela amostra de como
o tema abarca importantes aspectos jurídicos, medicinais, sociais, econômicos e
diplomáticos, indicando a relevância deste debate - e, igualmente, sua complexidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Macondo conuem identidades próprias de uma cultura generalizada. Estas
identidades se veem cada vez menos a partir das diferenças, e mais a partir dos
espaços comuns, como a colonização, os mitos de origem, o indigenismo e a barbárie
da civilização. Porque nós, latino-americanos, compartilhamos um passado comum
muito peculiar. Na hora em que nos encontramos, essa história comum, tão poderosa
e intensa, vem à tona invisível e se traduz pela sensação de que já nos conhecíamos
há muito tempo (Aldaco, 2008, p. 91).
Essa riqueza de diversidade é coibida pela homogeneização promovida pela
massicação da cultura latino-americana sob a marca da narco-violência - e
seus desdobramentos. Vale a pena nos perguntarmos se o deslocamento das
“monoidentidades” nacionais para uma multiculturalidade global, sob a égide
do latino-americanismo, não incorre em um “fundamentalismo reverso”. Este se
manifestaria através de um “fundamentalismo macondista” que congela o latino-
americano como santuário da natureza pré-moderna e sublima o continente como
o lugar em que a violência social é fetichizada pelos afetos. Encerrar a cultura
30 31
latino-americana a um paradigma de recepção é apenas uma forma de situar a
heterogeneidade da América Latina em um contexto de globalização.
É fundamental que reconheçamos que, de fato, existe uma profunda identidade
latino-americana que pode ser recuperada e que se manifesta em muitas formas de
resistência e sobrevivência, manifestas inclusive nas obras apresentadas, ao invés
de violência e imoralidade. Mas tal identidade não se refere a conteúdos essenciais
xos, sendo melhor concebida como um processo de identicação (Larraín, 1994, p.
59, grifo nosso). O que deve encontrar-se não é tanto um conteúdo, mas modos de
identicação que mostrem a presença de um centro energético próprio, complexo e
caleidoscópico. O cinema, assim como a literatura, é uma das janelas que podem nos
levar a essa complexidade.
NOTAS
[1] Segundo a denição de Pierre Bourdieu, entende-se como violência simbólica as
humilhações e legitimações da desigualdade e hierarquia desde sexismo e racismo
até íntimas expressões de poder de classe (1997; 2000). Ela é exercitada através da
cognição e incompreensão, conhecimento e sentimento, com consentimento do
dominado (2002).
[2] Obras como “Maria cheia de graça” (Joshua Marston, 2004) e A mula (Clint
Eastwood, 2018) fogem a essa generalização.
REFERÊNCIAS
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