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Muros Discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S.Paulo entre 1960 e 2017

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Abstract

Este mapeamento aborda quase 6 mil textos da cobertura trans publicados na Folha de S.Paulo entre 1960 e 2017 e parte da compreensão da mídia como agente fundamental na esfera das representações, influenciando diretamente a dinâmica das sociedades contemporâneas. A reflexão sobre os discurso e narrativas veiculadas nesse periódico, em que as travestis e transexuais paulatinamente migram das associações às artes e espetáculos (23,19% das ocorrências), publicadas no caderno Ilustrada, passando a ser associadas à marginalidade e criminalidade (36,88% do total), no Cotidiano, revela fluxo discursivo das citações em direção aos anúncios de prostituição, fato que nos convida a percorrer essa narrativa histórica a fim de problematizar como tais conteúdos se configuram na atualidade.
A Revista Contracampo é uma
revista eletrônica do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Federal Fluminense
e tem como objetivo contribuir
para a reexão crítica em torno do
campo midiático, atuando como
espaço de circulação da pesquisa e
do pensamento acadêmico.
AO CITAR ESTE ARTIGO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
Ao citar este artigo, usar a seguinte referência: PICCHIAI, Daniela; MARTINEZ, Monica; AZOUBEL, Diogo. Muros
discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017. Contracampo, Niterói,
v. 39, n. 3, p. XXX-YYY, dez./mar. 2020.
Submissão em: 19/03/2020. Revisor A: 11/05/2020; Revisor B: 21/06/2020. Aceite em:
21/06/2020.
DOI – http://doi.org/10.22409/contracampo.v39i3.41070
Edição v. 39
número 3 / 2020
Contracampo e-ISSN 2238-2577
Niterói (RJ), 39 (3)
dez/2020-mar/2021
Muros discursivos: mapeamento da
cobertura trans pela Folha de S. Paulo
entre 1960 e 2017
Discursive walls: mapping trans coverage
through Folha de S. Paulo between 1960
and 2017
DANIELA PICCHIAI
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) – São Paulo, São
Paulo, Brasil.
E-mail: danipicchiai@gmail.com. ORCID: 0000-0002-2431-1191.
MONICA MARTINEZ
Universidade de Sorocaba (Uniso) – Sorocaba, São Paulo, Brasil.
E-mail: martinez.monica@uol.com.br. ORCID: 0000-0003-1518-8379.
DIOGO AZOUBEL
Secretaria de Educação do Governo do Estado do Maranhão (SEDUC MA) –
São Luís, Maranhão, Brasil. | Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC SP) – São Paulo, São Paulo, Brasil.
E-mail: diogoazoubel@gmail.com. ORCID: 0000-0002-2839-5011.
Resumo
Este mapeamento aborda quase 6 mil textos da cobertura trans publicados na Folha
de S. Paulo entre 1960 e 2017 e parte da compreensão da mídia como agente
fundamental na esfera das representações, inuenciando diretamente a dinâmica
das sociedades contemporâneas. A reexão sobre os discurso e narrativas veiculadas
nesse periódico, em que as travestis e transexuais paulatinamente migram das
associações às artes e espetáculos (23,19% das ocorrências), publicadas no caderno
Ilustrada, passando a ser associadas à marginalidade e criminalidade (36,88% do
total), no Cotidiano, revela uxo discursivo das citações em direção aos anúncios
de prostituição, fato que nos convida a percorrer essa narrativa histórica a m de
problematizar como tais conteúdos se conguram na atualidade.
Palavras-chave
Análise de conteúdo; Folha de S. Paulo; Travestis e transexuais.
Abstract
This mapping addresses almost 6 thousand texts of the trans coverage published in
Folha de S. Paulo between 1960 and 2017 and part of the understanding of the media
as a fundamental agent in the sphere of representations, directly inuencing the
dynamics of contemporary societies. The reection on the discourses and narratives
published in this periodical, in which transvestites and transsexuals gradually migrate
from associations to arts and shows (23.19% of the occurrences), published in the
Illustrated notebook, becoming associated with marginality and criminality (36.88%
of the total), in the Daily, reveals a discursive ow of quotations towards the ads of
prostitution, a fact that invites us to go through this historical narrative in order to
problematize how such contents are congured today.
Keywords
Content analysis; Folha de S. Paulo; Transvestites and transsexuals.
Contracampo, Niterói, v. 39, n. 3, dez/2020-mar/2021, pp. xx-xx, 2020
3
Introdução
O tema desta pesquisa é a cobertura jornalísca impressa do universo trans pelo periódico Folha
de S. Paulo. No entanto, esse é apenas um recorte dado a uma pesquisa mais ampla na qual diferentes
meios de comunicação, do independente ao mainstream – como é o caso da Folha de S. Paulo – são
abordados. Nesse sendo, as análises feitas não estão distantes das mídias comunitárias (COVER, 2002).
Nesta primeira etapa, invesmos em uma análise induva a parr da cobertura das matérias que referiam
as travess e transexuais entre os anos de 1960 e 2017.
Quanto ao lapso temporal extenso, nossa proposta é comparlhar este mapeamento panorâmico
inicial tanto à Bardin (2016) quanto à Marnez e Azoubel (2018), de forma a subsidiar invesgações mais
profundas e pormenorizadas sobre a conguração do jornalismo nacional neste quesito, em especial
sobre o seu papel na construção de subjevidades. Para tanto, usamos o método de procedimento
monográco via revisão de autores como Guaari (1986), Hardt (2000), Lazzarato (2006), Hardt e Negri
(2005) e, também, Lago e Bene (2010).
Especicamente sobre a coleta dos dados, essa se deu ao longo do biênio 2016-2017, tendo sido
concluída em dezembro de 2017, no acervo digital1 da Folha de S. Paulo a parr de buscas pelas palavras
traves e transexual de março de 1960 a dezembro de 2017.
Idencadas as nocias em que tais termos ocorrem, durante a pré-análise dos dados foram
descartados os materiais em que eles são referidos não mais do que uma ou duas vezes. O corpus
estabelecido encontra-se referido na tabela 1, em que é possível discur sua distribuição e predominância
por editoria e ano. São mais de 6 mil textos nos quais, a parr da operacionalização de análise longitudinal,
as palavras traves e transexual guram nas manchetes, leads das nocias e/ou são repedas no corpo
jornalísco.
Cumpre destacar que, embora compreendendo as diferenças entre travess e transexuais a parr
do próprio reconhecimento da pessoa e de como ela se idenca e se apresenta socialmente, no que toca
à cobertura jornalísca, ambas os termos permanecem ligados nas narravas jornalíscas ora analisadas
e, portanto, neste texto.
Por isso e para dar conta de responder ao problema de pesquisa, qual seja: como se congura
historicamente a abordagem das transexuais e travess no Brasil a parr das edições impressas do jornal
Folha de S. Paulo circuladas entre março de 1960 e dezembro de 2017, as seções que seguem foram
organizadas hierarquicamente a parr de duas perspecvas, a temporal e a editorial; bem como são
seguidas pela interpretação dos dados, que está temporalmente organizada.
No que concerne aos objevos estabelecidos, esses dizem respeito à: a) invesgação do enfoque
dado a esse universo nesse que é um dos mais tradicionais veículos jornalíscos impressos nacionais; b)
enumeração as principais caracteríscas de sua cobertura dentro do lapso temporal estabelecido e; c)
problemazação discursiva do tema pela análise longitudinal das matérias.
Já a hipótese refere-se ao fato de que ao longo das úlmas décadas é possível armar que a mídia
reforça a lógica sociopolíca vigente naquele período histórico a m de avigorar seus próprios interesses
ao mesmo tempo em que é possível idencar, mesmo que em algumas nocias, que os jornalistas tentam
romper com discursos conservadores de um tempo. Logo, os discursos produzidos sobre essas vidas trans
acompanham a lógica vigente no período de sua veiculação, com resultado no sensível desequilíbrio do
número de matérias distribuídas por editoria ao longo dos anos e efeito no processo de segregação das
vidas que fazem parte de tal universo frente ao avanço dos discursos conservadores.
Complementarmente, e como juscava para esta invesda preliminar, entre outros pontos,
aludimos à necessidade de se discur os caminhos do jornalismo nacional impresso a parr do que é
1 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/index.do. Acesso em: 30 out. 2018.
Muros discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017
4
entendido como temas marginais.
O próprio tulo desta reexão apresenta-se como uma provocação para (des)construir muros que
nos separam (o eu) daqueles sujeitos (o outro) via páginas de jornal. Mas que muros são esses e como
eles impactam na percepção das subjevidades das pessoas? Para tentar responder tal quesonamento
acreditamos ser necessário dar forma a uma discussão mais ampla sobre o papel da práxis jornalísca
em face da construção das subjevidades individuais e mesmo de pseudo-objevidades que rasgam e
polarizam o mundo. Mais do que isso, sobre como o jornalismo contribui para denir o que está à margem
daquilo que se julga bom, belo, justo e/ou verdadeiro.
Já no que tange aos resultados esperados, acreditamos que a cobertura jornalísca que aborda
as travess e transexuais posicionam essas vidas como sinônimos de marginalidade e de criminalidade.
Finalmente, como limites do estudo, ressalta-se que a invesgação não abrange o período do governo Jair
Bolsonaro (ainda do PSL quando da submissão do manuscrito e iniciado formalmente em janeiro de 2019,
em que essa questão foi sobremaneira tensionada).
Isso posto, na próxima seção é disposta uma breve abordagem sobre como se congura o campo
midiáco no Brasil, com destaque ao veículo foco desta invesgação a m de alicerçar a análise e discussão
dos dados.
Conguração do campo midiáco nacional
É fundante perceber que ao estabelecer uma comunicação utilizamos padrões que fortalecem
estereótipos que vão se fixando nas relações e na vida cotidiana. É possível que no desenrolar das relações
sociais as palavras ganhem novos significados a partir da abertura do campo no qual a relação se dá ao
novo, o que possibilita rupturas e fortalecimentos dos padrões que vão se estabelecendo.
A parr dessa ideia, as mídias emergem como agentes importantes na esfera das representações,
inuenciando diretamente a dinâmica de funcionamento da sociedade. Os meios de comunicação são
poderosos produtores e mediadores do discurso, mantêm e reproduzem as convenções sociais sobre
masculinidades, feminilidades, desejo sexual, além de etnia, classe e geração etc. A mídia age, portanto,
como coautora do discurso que produz modos de vida que, por sua vez, reproduzem a lógica normava
hegemônica. Alzira Alves de Abreu lembra que inúmeros estudos que ulizam a imprensa como
fonte de informações, mas que “faltam análises sobre a inuência que ela exerceu sobre os rumos dos
acontecimentos” (ABREU, 2017, p. 220).
No Brasil, a mídia é comandada por grandes grupos de comunicação que concentram a produção
de máxima parte da informação consumida pelos brasileiros, o que em termos concretos equivale a dizer
que cinco famílias controlam metade dos 50 veículos com maior audiência. Para se ter uma noção do
impacto disso, em uma pesquisa realizada pela Media Ownership Monitor (MOM)2, o Brasil está em 102º
lugar em uma lista de 180 países no Índice Global de Liberdade de Imprensa 2018. Segundo tal pesquisa,
além da alta concentração de audiência, na realidade midiáca brasileira ocorre dependência excessiva
de patrocinadores, sejam eles órgãos públicos, empresas privadas ou mesmo instuições religiosas; bem
como alta concentração geográca, isso é, a maior parte do comando das redes de informação e mídia
está na região Sudeste e em Brasília.
Desse modo, podemos concluir que as decisões editoriais, as prioridades de pauta e as
representações de imagens e de codiano presentes na mídia, que todo o discurso produzido é
majoritariamente marcado pelos interesses dos seus mantenedores, fato que culmina na construção e
reprodução de uma lógica discursiva especíca, compavel com o contexto sociopolíco histórico no qual
2 O MOM foi criado e implantado pela Repórteres Sem Fronteiras (RSF), uma organização internacional
cujo objetivo é defender os direitos humanos, em particular a liberdade da imprensa e o direito de informar
e ser informado em qualquer lugar do mundo.
Contracampo, Niterói, v. 39, n. 3, dez/2020-mar/2021, pp. xx-xx, 2020
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se insere. Tal lógica e tais discursos produzidos não fogem da normazação quando aplicados às temácas
de gênero. Tudo o que não se encaixa no padrão estabelecido parametrizado pelas lógicas mercadológicas
e do capital tende a ser marginalizado.
É importante pontuar que em 2016, o site de pornografia RedTube realizou uma pesquisa na
qual foi idencado que os brasileiros procuram 89% a mais conteúdos pornográcos de transexuais
quando em comparação com outros países do mundo que acessam o site. Conforme Germano (2020), na
mesma pesquisa, o site de pornograa arma que o termo shemale, ulizado para a busca de vídeos com
pessoas trans, é o quarto tópico mais buscado por brasileiros. Embora sem revelar os números especícos,
a procura por conteúdos pornográcos trans aumenta quando a busca soma os vocabulários regionais
como: traves e Brazilian shemale. Um achado interessante se considerado que no ranking mundial o
mesmo termo de pesquisa ocupa o nono lugar.
Na mesma direção, é imperioso ressaltar que, atualmente, o Brasil é um dos países mais
intolerantes com travess e transexuais no mundo, sendo o primeiro na lista de morte e assassinatos
dessas pessoas, de acordo com a pesquisa realizada pela Transgender Europe3 (TGEu), entre primeiro de
outubro de 2017 e 30 de setembro de 2018.4
Segundo os mesmos dados, entre 2017 e 2018 foram contabilizados 369 homicídios de
transexuais, travess e indivíduos não-binários. Decorrente do fato de que esses números crescem a cada
ano, a expectava de vida dessas pessoas cai para 35 anos de idade enquanto a média nacional é de 75
anos de idade. Acreditamos, portanto, que a lógica normava produzida no discurso midiáco fortalece
esses dados e solidica a conguração de dura realidade ao criar enunciados que despotencializam esses
sujeitos, como detalhado adiante.
Folha de S. Paulo
A Folha de S. Paulo foi fundada em 1921 e pertence à família Frias – uma das que controlam mais
da metade dos veículos com maior audiência no País –, que também é proprietária do jornal Agora São
Paulo, dos classicados Alô Negócios e da agência de nocias Folha Press, além do UOL, um dos portais
mais acessados na Internet, e do instuto de pesquisa Data Folha.
Esse veículo foi escolhido por ser o maior em circulação digital e o terceiro em formato impresso
no Brasil, segundo dados auditados5 pelo Instuto Vericador de Circulação (IVC)6. Sua audiência nas
primeiras décadas de circulação concentrava-se no Estado de São Paulo. Com o advento da digitalização
do conteúdo, entretanto, os leitores pulverizaram-se em todo o território nacional e mesmo fora do País.
Ainda assim, mais de 70% dos consumidores da Folha de S. Paulo pertencem às classes A e B (42% e 31%,
respecvamente), de acordo com levantamento próprio.7
Análise e discussão dos dados
Para facilitar a percepção de como são distribuídos os textos jornalíscos sobre as travess e
transexuais na Folha de S. Paulo, elaboramos a tabela I. Nela dispomos horizontalmente a quandade de
textos encontrados por lapso temporal (a distribuição dos anos não segue uma regularidade, como se vê
3 Estabelecida no Conselho de Viena, em 2005, essa organização não governamental trabalha em prol
da autonomia de vida de pessoas trans.
4 Disponível em: https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/. Acesso em: 30 out. 2018.
5 Disponível em: hps://ivcbrasil.org.br/#/home. Acesso em: 30 out. 2018.
6 O ICV é uma entidade nacional sem ns lucrativos, responsável pela auditoria das mídias.
7 Disponível em: http://www.publicidade.folha.com.br/folha/perl_do_leitor_nacional.shtml. Acesso em:
30 out. 2018.
Muros discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017
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adiante) e, vercalmente, aquela por editoria naquele veículo.
Conforme segue, a prevalência de textos jornalíscos nas editorias Codiano | Primeiro
Caderno, Classicados e Cultura | Ilustrada, com 452, 295 e 283 ocorrências, que somam, respecvamente,
36,88%, 24,18% e 23,19% do total. Nos 15,57% restantes cabem as ocorrências das demais editorias, o
que evidencia um desequilíbrio nas pautas dispostas em Interior, Norte e Nordeste, Saúde e Esportes e
conduz à conrmação parcial da hipótese estabelecida.
Para além da variação de abordagens discursivas das palavras traves e transexual vista ao longo
dos anos, o pico8 de matérias que abordam essas palavras se dá entre 1985 e 1987, totalizando 100 textos
(cerca de 8% do total); seguido pelos intervalos de 1960-1965, 1976-1980 e 1998-1999, com 90 textos
cada9 (cerca de 7% do total cada). Outro ponto importante diz respeito ao silenciamento desses termos
no referido jornal nos anos de 1966, 1974, 1975, 1981 e 1982, reexos da Ditadura Militar. Já nos anos
de 1988, 1989 e 1990 as referências às travess e transexuais aparecem sem relevância, ou seja, não
constam nas manchetes e no corpo do texto, não possuem força de signicado, o que sugere que outros
temas nham um conteúdo mais ligado ao valor-nocia daqueles momentos históricos, sendo essa uma
hipótese a ser invesgada oportunamente.
Dessa forma, acreditamos que tais períodos possam ser referidos como uma espécie de espaço
oportuno para ressignicar os termos, o que jusca os vazios na tabela 1 e nos conduz à necessidade de
averiguação dessa temáca em oportunidade vindoura.
Tabela 1 – Distribuição de textos por editorias e anos
ANO EDITORIA Cotidiano | 1º
Caderno
Cultura |
Ilustrada Interior Norte e
Nordeste Saúde Classicados Esportes Moda* TOTAL
1960 - 1965 10 80 0 0 0 0 0 0 90
1966 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1967 - 1973 40 30 0 0 0 0 0 0 70
1974 - 1975 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1976 - 1980 55 35 0 0 0 0 0 0 90
1981 - 1982 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1983 - 1984 10 70 0 0 0 0 0 0 80
1985 - 1987 95 5 0 0 0 0 0 0 100
1988 - 1990 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1991 - 1992 0 10 70 0 0 0 0 0 80
1993 - 1995 0 10 0 70 0 0 0 0 80
1996 - 1997 52 3 0 0 10 15 0 0 80
1998 - 1999 35 0 0 0 0 55 0 0 90
2000 - 2004 40 0 0 0 0 40 0 0 80
2005 - 2007 35 0 0 0 0 45 0 0 80
2008 - 2009 20 0 0 0 0 40 20 0 80
2010 - 2011 10 10 0 0 0 40 0 0 60
2012 - 2014 30 15 0 0 10 30 0 0 85
2015 - 2017 20 15 0 0 0 30 0 10 75
TOTAL 452 283 70 70 20 295 20 10
Fonte: Produzida pelos autores
Perspecva temporal mudanças polícas, comportamentais e
sociais
Ao longo das décadas, notamos, pela posição desses sujeitos, uma mudança no seu regime de
8 Um indicativo para essa alta, cremos, é o m do período ditatorial no País.
9 Uma hipótese a ser investigada diz respeito aos efeitos do regime democrático no País e suas
implicações traduzidos e plasmados nas páginas do periódico.
Contracampo, Niterói, v. 39, n. 3, dez/2020-mar/2021, pp. xx-xx, 2020
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visibilidade. A parr da década de 1960, a palavra traves aparece no jornal, mais especicamente no
caderno Ilustrada e, naquele período (1960-1965), representa 88% das ocorrências.
É importante observar que a editoria Ilustrada foi criada em 1958, período marcado pelo fim da
escassez generalizada do pós-guerra, chegada da televisão ao Brasil e expansão da imprensa brasileira.
Nesse momento, mudanças significativas acontecem em diversos jornais, como a inclusão de fotos nas
primeiras páginas e aumento considerável de conteúdos organizados em várias editorias. Nesse sendo,
o jornal passou por uma expansão de formatos e conteúdos produzidos e o caderno Ilustrada foi uma
importante editoria que divulgava os movimentos culturais e contra culturais expressivos para a época.
Se antes do período ditatorial, início da década de 1960, as travess ganham existência no
caderno de arte e cultura – associados a performance, espetáculos de dança e teatro –, durante a Ditadura
o discurso é modicado e esses sujeitos são relegados às páginas policiais.
Entre 1965 e 1967 tais palavras, traves e transexual, desaparecem da mídia e, ao ressurgirem,
no nal da década de 1960 e início de 1970, vão se alinhando (e lá permanecem majoritariamente) com
o discurso das editorias do Codiano | Primeiro Caderno, que fazem a cobertura dos casos de violência,
urbanismo, ambiente, administração pública e comportamento.
Nesse período, o discurso muda, as travess e transexuais passam a ser associadas a algum po
de violência, polícas públicas de higienização, vidas precarizadas, sendo posicionadas à margem da
vida coleva, fenômeno que se intensica da metade para o nal da década de 1970.10 Tal fato ajuda a
conrmar parcialmente a hipótese estabelecida neste estudo, segundo a qual os discursos produzidos
sobre essas vidas trans acompanham a lógica sociopolíca histórica vigente no período de sua veiculação
no início de 1980, década marcada pela chamada transição democráca, uma mudança
de editoria em função da visibilidade conquistada por Roberta Close.11 Mesmo assim, o discurso de
marginalização e precariedade revela força ainda maior ao expandir-se, nos anos subsequentes, para os
jornais do interior do Estado e para os das regiões Norte e Nordeste. Associadas à marginalidade, as
travess e transexuais estão presentes na Folha de S. Paulo até os dias de hoje. Essa é, aliás, a maior
ocorrência encontrada: 37% do total especicado na tabela 1, ou seja, 452 textos idencados entre 1960
e 2017 estão na editoria Codiano | Primeiro Caderno.
Efeito de uma polarização social, em que o diferente cabe ao outro, cremos poder conrmar a
hipótese estabelecida a parr do fato de que os discursos produzidos acompanham a lógica sociopolíca
vigente no período histórico de sua veiculação, com efeito na expressão criava desses sujeitos que perde
espaço para sua criminalização. Essa questão, aliás, necessita ser aprofundada em oportunidade futura,
sobretudo para melhor sustentar o entendimento de tal transição.
Perspecva editorial conguração da cobertura do universo
trans por caderno
A parr do levantamento das editorias nas quais estão inseridas Classicados, Codiano |
Primeiro Caderno, Esportes, Cultura | Ilustrada, Interior, Moda, Norte e Nordeste e Saúde –, é possível
perceber os movimentos de transição e de signicação midiáca de ambas as palavras. Assim, constatamos
que no lapso-temporal estabelecido as travess e transexuais, de alguma forma, são inseridas nas páginas
do periódico em lógicas dicotômicas daquelas ligadas aos temas predominantes em cada editoria.
No Codiano | Primeiro Caderno, por exemplo, diferente das matérias policiais que tomam
diversas páginas, os textos jornalíscos são menores e se referem à Roberta Close como traves. Apesar
10 Vale ressaltar que no ano de 1977 o diretor de redação do jornal Claudio Abramo foi afastado jornal e o
jornalista Boris Casoy assumiu como editor chefe da Folha de S. Paulo.
11 Modelo e atriz brasileira que nasceu intersexual (pelos exames genéticos se comprovou que Roberta
possui características biológicas mistas).
Muros discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017
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das nocias pertencerem à Ilustrada, no início de 1980, a críca se faz presente na referência à modelo e
atriz, sempre como pessoa ambígua, carnavalesca, nunca como mulher.
Em outras palavras, ao veicular a maior parte das nocias nesse caderno, bem como nos
Classicados, a Folha de S. Paulo se torna responsável pela marginalização social dessas pessoas, bem
como pela rápida associação de que as travess e transexuais estão ligadas à violência e à desordem social.
Sobre os Classicados e seguindo a análise macro do discurso da Folha de S. Paulo, as travess e
transexuais são inseridas com anúncios de prostuição a parr da segunda metade da década de 1990,
mais especicamente de 1996 em diante, com ápice entre 1998 e 1999 (mais de 18% dos 295 textos
idencados). Até então, a prostuição é apenas associada à marginalidade e à violência. Essa lógica é
modicada pela conguração e avanço da Internet, que impacta na remodelagem do modelo de negócio,
inclusive nos dias atuais.
Nesse período, as travess e transexuais aparecem, pela primeira vez, falando de si e por si
mesmas, embora, inicialmente, os anúncios sejam colocados em meio aos de imóveis, veículos, carreiras,
negócios, entre outros.
De volta à tabela 1, a lógica dos anúncios de prostuição nos Classicados permanece a mesma de
1990 a 2017, com variação apenas no número de ocorrências, que oscila entre 30 e 40 textos por período
designado do ano 2000 em diante. Em destaque, a prostuição nos Classicados divide espaço com as
nocias sobre as travess e transexuais no esporte a parr da repercussão do caso Ronaldinho (Ronaldo
Nazário), em que o jogador de futebol chamado de Fenômeno não teria pagado por um programa com a
traves Andréa Alberni em 2008.
Complementarmente, é relevante perceber que depois de uma década (1998-2008) sem que
as travess e transexuais sejam citadas nas editorias ligadas à arte e à cultura, em 2010, esses termos
reaparecem na Ilustrada a parr da abordagem do trabalho e dos debates produzidos e provocados pela
cartunista e chargista brasileira Laerte Counho.
Apesar de Laerte não ser uma jornalista, ela se uliza da sua arte parte romper com os discursos
conservadores, o que se coaduna com a hipótese estabelecida nessa pesquisa. A presença críca de Laerte,
como representante não apenas do público leitor, mas também produtor da publicação, faz com que haja
um microequilíbrio no discurso entre o marginalizado, o estereopado e os sujeitos que se propõem a
viver uma vida que rompe com esses padrões. Igualmente, poucos anos mais tarde, mais especicamente
entre 2016 e 2017, as travess passam a ser relacionadas à moda, com a produção de desles em que são
destaque.
Vale racar que este mapeamento leva em consideração o conteúdo abordado nas matérias,
ou seja, as tentavas de xação ou de estabelecimento de sendos pelos textos jornalíscos. Como o
periódico não possui uma editoria especíca para a moda, esse deslocamento necessário das ocorrências
idencadas nas editorias Codiano e Ilustrada culmina na abertura de um novo bloco que não segue à
risca as editorias apresentadas pela Folha de S. Paulo e, por isso, destacado com um asterisco na tabela 1.
Tal conteúdo, em geral, justapõe coberturas pautadas na divulgação dos desles, sendo a São
Paulo Fashion Week (SPFW) o conjunto de maior destaque. Notadamente, essas matérias trazem pouco
texto verbal, muitos textos visuais com destaque às fotos, além de manchetes que traduzem uma ideia de
representavidade e ruptura com guras, imagens e performances que são consideradas hegemônicas.
Finalmente, sobre as pautas de Saúde, a parr da metade da década de 1990, o HIV é diretamente
associado às travess e transexuais no periódico. Se por um lado as matérias abordam orientações e
prevenções com carlhas educavas e grupos de apoio e prevenção à AIDS, como o GAPA; por outro
indicam o interesse da Faculdade de Medicina de São Paulo da Universidade de São Paulo (FMUSP) e de
pesquisadores da saúde pública na mensuração da quandade de soroposivos e no comportamento
sexual desses indivíduos a despeito da diculdade de encontrar sujeitos que aceitem parcipar de tais
pesquisas no período.
Contracampo, Niterói, v. 39, n. 3, dez/2020-mar/2021, pp. xx-xx, 2020
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Além do comportamento sexual e do uso de preservavos, o consumo de drogas, trocas de
seringas e agulhas (no caso das drogas injetáveis) também são temas associados aos LGBTQ+ (lésbicas,
gays, bissexuais, travess e transexuais e mais) como fatores de disseminação do HIV. Outros tópicos
abordados são as las em hospitais e as ditas cirurgias de mudança de sexo (readequação de gênero). É
mister ressaltar que tais termos estão presentes em todos os dez textos idencados na editoria nesse
período (50% do total) sendo, embora impreciso12, comumente referido pelas pessoas atualmente.
Ao observar as matérias, notamos que, como é padrão na maioria daquelas ligadas à medicina e
saúde, o que se divulga é o discurso médico estabelecendo padrões de normalidade ao denir diagnóscos
com base em sistemas classicatórios. Esse processo de transição que, prioritariamente, esunido à
saúde das travess e transexuais, em geral, está inserido na editoria Codiano | Primeiro Caderno.
na década subsequente, a saúde das travess e transexuais curiosamente não aparece na
Folha de S. Paulo. É a parr de 2012, e por ocasião dos debates sobre hormônios, que elas retornam às
suas páginas impressas. Um texto em parcular chama a atenção por abordar o equilíbrio hormonal de
pessoas que biológica e identariamente se reconhecem como mulheres. Nele, as travess são citadas
como representação dos efeitos negavos do uso de hormônios, como o não desejável, exemplo do que é
ser uma mulher percebida como arcial.
Embora presentes nos dez outros textos na editoria e relevantes no processo de transição dos
corpos das travess e transexuais, nessa pesquisa não foi idencada qualquer narrava que aborde
questões especicamente hormonais nessas vidas. O discurso que prevalece é o da associação delas
com a marginalidade, a prostuição e a violência – o que sugere que este grupo não é percebido pela
publicação como parte signicava de sua audiência.
Interpretação dos resultados
É sintomático que do ano de 1996 em diante, a presença das travestis e transexuais nos
Classificados esteja refletida também nas práticas acadêmicas, com a expansão dos estudos de história
oral e sua relação com o jornalismo, bem como técnicas dialógicas de entrevista (MARTINEZ, 2016;
MEDINA, 1990; MEIHY e RIBEIRO, 2011). Com o passar dos anos, porém, esses textos são entrelaçados
com os das demais editorias no periódico.
Consideremos, pois, que os Classicados, tal qual os anúncios publicitários, são fonte de renda
para o jornal. Dessa forma, seus editores criam estratégias cada vez mais elaboradas para que leitores
sejam alcançados e inuenciados pelos anúncios e para que anunciantes sejam atraídos e invistam no
veículo, seja em suas edições impressas ou digitais. Essa elaboração estratégica não se resume à compra
e venda de um produto ou serviço, abarca também a apropriação intencional de universos e modos de
expressão já dados previamente na esfera social.
Por mais que nos anúncios analisados as travess e transexuais usem a primeira pessoa do singular
verbal, a publicidade, nesse caso, tem uma ação de modulação entre as partes. Logo, a prostuição referida
não é somente um trabalho ou uma fonte de sustento, mas um modo de produção de feminilidades, de
um ideal feminino, e tem como fundamentos princípios socialmente estabelecidos.
Notamos que o tornar-se feminino é marcado pela produção de subjevidade, seja pela ulização
de vesmentas e marcadores ditos como femininos, pela ulização de hormônios ou, ainda pela realização
de cirurgias pláscas e/ou aplicação de silicone.
Complementarmente, durante a década de 1980, o lugar das travess e transexuais é tensionado
na Saúde com a criação do conceito do chamado grupo de risco que, embora tardiamente, é imediatamente
12 Isso porque se trata de um processo longo em razão das diversas exigências feitas pelo poder público.
Pode demorar até três anos e envolve a participação de diversos prossionais, como psicólogos,
assistentes sociais, médicos e psiquiatras para ser efetivado.
Muros discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017
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coligado a esses sujeitos via discursos midiácos produzidos sobre a questão. A lógica para sua criação é
rastrear pessoas vivendo com o vírus e prevenir novas infecções, sendo socialmente associado diretamente
aos LGBTQ+, em especial aos homens gays13, e popularmente referido como peste gay, o que expressa um
rebaixamento social dos sujeitos em questão.
O que se nota, assim, é a divulgação jornalísca impressa de novos casos de contaminação somada
à falta de informação concreta sobre os mecanismos de transmissão viral e tratamento da patologia que
dele decorre, bem como inexistência de tratamento – a primeira droga anviral (a azidomidina ou AZT)
é aprovada pelo Food and Drug Administraon (FDA) em 1986. O que leva a um julgamento moral da
doença. Esse contexto discursivo contribui para que a sociedade passe a evitar não apenas os infectados
pelo vírus, mas também os grupos de risco, nos quais gays foram protagonistas primários e, na sequência,
as travess e transexuais, com quem dividem esse lugar de exclusão social.
Invisibilizadas durante os longos anos da ditadura, as travess e transexuais e o HIV foram tema
nos jornais a parr da década de 90, ou seja, dez anos após o boom da doença. Como resultado disso,
engendra-se de um processo crescente de discriminação e violência contra esses sujeitos. Tal fato que
reforça a importância de se perceber que os discursos construídos jornaliscamente não associam os
casos de violência ao preconceito em relação ao HIV, mas às brigas, roubos, prostuição etc.
Discursos que enquadram grupos de risco reetem, naquele momento histórico em parcular,
outro fator de tensão importante para percepção do público leitor do jornal: as mudanças dos contornos
das suas fronteiras sicas, isso é, dos espaços de habitação da classe média/alta e as periferias da cidade.
Nelas, com a consolidação do narcotráco, as comunidades deixam de ser o local de residência de
trabalhadoras e trabalhadores, com a respecva ressignicação de matrizes discursivas ligadas à família,
ao trabalho, religião isso é, ao projeto de ascensão social – passando a ser espaço da expansão do
mundo do crime, com seu marco discursivo ligado ao risco à sociabilidade e criminalização plasmado na
“mulplicação imaginária do criminoso” (FELTRAN, 2008, p. 187).
Especicamente sobre o caso Ronaldinho x Andréa Alberni, em 2008, embora famoso
pela visibilidade daquele jogador de futebol, a abordagem da questão nas nocias segue a lógica de
marginalização dessas vidas. No discurso produzido pelo periódico, a expressão de desigualdade é
avigorada pelo destaque à semânca vocabular de Andréa, pelos ângulos das fotos veiculadas e mesmo
pela força da gura do jogador em questão no Brasil em face de sua opositora narrava.
Dicotomicamente, quando as travess e transexuais sobem à passarela, entre 2014 e 2017, os
holofotes de grande parte da mídia são voltados à SPFW que, sendo um dos maiores eventos de moda
do mundo, foi palco para eslistas como Vitorino Campos e Ronaldo Fraga apresentarem suas coleções
dando visibilidade a esses sujeitos. De certa forma, tais eslistas ajudam a ressignicar a importância
políca e social daquele espaço. Ronaldo Fraga, por exemplo, se valeu da visibilidade da Semana para
romper com as normas vigentes e com a hegemonia de mulheres biológicas, brancas e magras.
A temáca da moda é complexa e envolve várias dimensões – econômica, social, políca, histórica
etc. –, sendo comum a qualquer uma delas o fato de que a moda se adapta à sociedade e, ao mesmo
tempo, produz conteúdos culturais que também promovem mudanças de perspecvas sociopolícas (e
por que não também históricas?). Assim, os desles protagonizados pelas travess e transexuais deslocam
essas pessoas de um lugar diretamente associado à marginalidade.
Pensamos, assim, que tornar visíveis corpos marginalizados possibilita novos uxos sociais e a
manifestação da potência de vida, bem como os organiza segundo sua produvidade. Anal, como explica
Guaari, em Revoluções moleculares:
13 Tal lógica permanece até hoje, sendo diretamente referida nos materiais gestados pelo Ministério da
Saúde, seja para campanhas de prevenção ou de contenção das doenças sexualmente transmissíveis
(DSTs).
Contracampo, Niterói, v. 39, n. 3, dez/2020-mar/2021, pp. xx-xx, 2020
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A marginalidade é o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura nas estruturas
sociais e os esforços de problemáca nova no campo da economia desejante coleva.
Trata-se de analisar a marginalidade, não como uma manifestação psicopatológica,
mas como a parte mais viva, a mais móvel das colevidades humanas nas suas
tentavas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais
(GUATTARI, 1986, p. 46).
Nesse sendo, a moda, ao tentar romper com a lógica discursiva construída em torno das
travess e transexuais, representa por um lado sempre uma possibilidade de abrir o social para novos
agenciamentos, que antes estavam cristalizados em um pensamento hegemônico; por outro, o tom de
manifestação apresentado nos desles citados, em um evento que, organizado por marcas notáveis,
remete à inclusão das travess e transexuais na lógica do capital. Não é à toa que os corpos escolhidos por
Ronaldo Fraga se coadunam com o padrão da moda, ou seja, altos, magros e, em sua maioria, brancos.
Para pensar tal padrão, buscamos as palavras de Hardt, em A sociedade mundial de controle:
O império sempre aceita as diferenças raciais e étnicas que encontra e sabe
como ulizá-las; permanece na sombra, observa estes conitos e intervém
quando um ajuste é necessário. Qualquer tentava de permanecer um
forasteiro diante do Império é inúl. O império se alimenta da alteridade,
relavizando-a e gerenciando-a (HARDT, 2000, p. 157).14
Dessa forma, com a alteridade nutrindo a ordem do capital, a vida das travess e transexuais,
marcadas por uma série de atravessamentos, vai sendo, gradavamente, inserida nessa lógica. É com essa
roupagem que uxos atuais do capital exploram as subjevidades, criavidades, conhecimentos, relações,
e tudo se torna comercializável. Pois, “o Império só pode ser concebido como uma república universal,
uma rede de poderes e contrapoderes estruturada numa arquitetura ilimitada e inclusiva” (HARDT e
NEGRI, 2005, p. 185).
Finalmente, pensando que a lógica atual funciona amplamente e captura as rupturas, das mais
simples às mais complexas, percebemos que o uso dos corpos das travess e transexuais nos desles de
moda toma os discursos de inclusão e representavidade, congela e segmenta essas pessoas; captura
vários e diferentes processos e uxos, os reorganiza e apresenta em um funcionamento existente e
segundo uma única lógica possível.
Outras considerações e encaminhamentos
Nesta reexão inicial começamos a desnovelar as implicações das vidas traves e transexuais
no campo das mídias via abordagem de narravas jornalíscas veiculadas na Folha de S. Paulo entre os
anos de 1960 e 2017, em que paulanamente migram das associações ligadas às artes e espetáculos, de
cadernos como a Ilustrada, passando a ser associadas à marginalidade e criminalidade conforme uma
série de alterações socioculturais ocorrem, caso da mudança das periferias como espaço de moradia
dos trabalhadores para redutos dominados por narcotracantes, notado com a expansão do mundo do
crime nestes espaços a parr dos anos 1990. Essa transferência na produção referente às pessoas que se
reconhecem como travess e transexuais, em que 37% das matérias são publicadas no caderno Codiano
(vide tabela 1).
Somado a isso, quase 25% das citações do jornal se refere aos anúncios de prostuição, uma
14 No original: “El império acepta siempre las diferencias raciales y étnicas que encuentra, y sabe ulizarlas; permanece a la som-
bra, observa esos conitos e interviene cuando es necessario un ajuste. Cualquier tentava de seguir siendo outro en el cara-a-cara
del Imperio es vana. El império se nutre de la alteridade, relavizándola y gesonándola”.
Muros discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017
12
prossão duplamente marginalizada no País, já que não possui qualquer scalização do Estado sendo, ao
mesmo tempo, mais profundamente discriminada no universo trans. O fenômeno é notado especicamente
de 1996 em diante, com ápice entre 1998 e 1999 (mais de 18% dos 295 textos idencados), registrando
o desenvolvimento a seguir da Internet, que altera o mercado jornalismo como um todo e causa uma
mudança no modelo de negócio em curso até os dias atuais. Ainda assim, nos anos de 2016 e 2017
30% das referências aos termos remete aos Classicados, o que é um impacto que por si só mereceria
invesgação mais aprofundada. Na mesma direção, quase 62% das matérias localizam essas pessoas em
um lugar instuído, porém à margem do corpo social.
Ainda que ao longo dos anos a invisibilidade e a marginalidade tenham sido associadas
discursivamente a esses corpos, o caderno Ilustrada, ligado ao campo das artes, expressa uma tentava do
jornal de romper com essa ordem a parr da divulgação de peças e espetáculos teatrais, performances e
cartoons, entre outros, criados, produzidos e realizados por essas pessoas. Transexuais como o cartunista
Laerte, no ano 2010, – que representa não apenas o universo do público leitor, mas também o do produtor
do jornal exercem inuência no discurso entre o marginalizado, o estereopado e os sujeitos que se
propõem a viver uma vida que rompe com esses padrões. Igualmente, poucos anos mais tarde, mais
especicamente entre 2016 e 2017, as travess passam a ser relacionadas à moda, com a produção de
desles em que são destaque.
Esses achados ligados à história da representação das narravas jornalíscas da Folha de S.
Paulo, somados ao seu alcance como mídia e à sua relevância na formação da opinião pública, visibilizam
a contribuição do jornal para a presente violência contra os corpos das travess e transexuais, pois a
predominância facvel de matérias que marginalizam e apresentam tais corpos como ameaça social
reete tal violência. Entendemos o trabalho de comunicadores e jornalistas como coprodutores da vida
social. Sendo assim, são corresponsáveis pela práca vivenciada não apenas por um grupo, bem como
pela forma com que enxergamos o mundo e com que nos relacionamos com ele.
Mesmo quando escapam da lente de aumento policial, essas pessoas são postas como peças
mantenedoras dessa instuição jornalísca via anúncios publicitários. Logo, e ainda que as artes tentem
irromper os discursos conservadores de seu tempo, o que se nota ao longo dos anos é a assimetria na
distribuição de textos por editoria. Torna-se visível, portanto, o muro discursivo construído para proteger a
narrava conservadora. Essa estrutura é a mesma realçada pela mídia para racação da lógica sociopolítica
própria a cada período histórico em que é veiculada com a nalidade de reforçar seus próprios interesses.
Isso posto, evidencia-se a oportuna provocação constante no tulo desta reexão no sendo
de reconhecer a urgente e connua problemazação os impactos da práxis jornalísca na construção de
pseudo-objevidades que tendem a desacreditar e a marginalizar subjevidades individuais que, embora
inalienáveis, são colocadas à margem da sociedade.
Paradoxalmente, encontram-se contextualizados em uma nação que mais mata pessoas trans
no mundo. Lembramos também que esta análise inicial dos dados, ainda que abranja quase 6 mil textos
distribuídos em quase 60 anos, não inclui a tentava de compreensão do impacto do governo atual,
iniciado em janeiro de 2019, em que esses e outros termos ans estão sobremaneira tensionados e cuja
análise demandará invesgações futuras para averiguar seu impacto.
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Daniela Picchiai é doutora pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COS | PUC SP). Neste artigo, contribuiu com a concepção
do desenho da pesquisa, provinda das reexões necessárias à efetivação da sua tese doutoral; coleta,
pré-análise, consolidação, análise, interpretação e pós-análise dos dados; desenvolvimento da discussão
teórica; e redação do manuscrito.
Monica Martinez é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade
de Sorocaba (Uniso), São Paulo. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
(SBPJor) e co-chair do Strategic Scientic Committee (SSC) da IALJS (International Association for
Literary Journalism Studies). Organizou o livro Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo
(Intercom, 2018) com Marcos Paulo Silva e Leonel Aguiar. Neste artigo, contribuiu com a pesquisa e
embasamento históricos; articulação da discussão teórica; apoio na revisão do manuscrito nas versões
em português e em inglês.
Muros discursivos: mapeamento da cobertura trans pela Folha de S. Paulo entre 1960 e 2017
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Diogo Azoubel é professor da Secretaria de Educação do Governo do Estado do Maranhão (SEDUC MA)
e doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (COS | PUC SP). Neste artigo, contribuiu com a escolha e submissão
de originais à apreciação d_s editor_s e avaliador_s do periódico; concepção do desenho da pesquisa;
desenvolvimento da discussão teórica; sistematização, pré-análise, consolidação, análise, interpretação
e pós-análise dos dados; redação, revisão e adequações no manuscrito nas versões em português e em
inglês.
Article
Full-text available
In this paper, we present a sample of the results of the research Discursive facets around the criminalization of homophobia and transphobia (TAVARES, 2019TAVARES, R. C. L. (2019). Facetas discursivas em torno da criminalização da homofobia e da transfobia. Trabalho de Conclusão de Curso (Letras – Português), Faculdade de Ciências da Linguagem, Universidade Federal do Pará. Disponível em: https://bdm.ufpa.br:8443/jspui/handle/prefix/3623 https://bdm.ufpa.br:8443/jspui/handle/pr... ), whose objective was to analyze how the decision of the Brazilian Federal Supreme Court to typify homophobia and transphobia as a crime was mobilized in a chain of discursive events published by the news portal O Antagonista. Based on the theoretical assumptions of critical discourse studies and using the language of description of the transitivity system, we take three texts from the corpus to show how the events and social actors involved are represented, which discourses such texts update and what potential meaning effects they have. The results indicate that the representation thematizes the possible discontent of religious people and erases the benefits to the LGBTQIA+ community. Such erasure is used ideologically to sustain LGBTphobia as a social structure in which LGBTQIA+ lives are unimportant or not worthy of protection. Keywords: homophobia; transphobia; critical discourse studies
Article
Full-text available
Este artigo reflete sobre as aproximações entre o jornalismo e a história oral, concentrando-se em três eixos. O primeiro é o mapeamento de um breve comparativo históricos dos métodos, onde fica clara a importância das entrevistas radiofônicas para o desenvolvimento da história oral. O segundo aborda a noção da veracidade que permeia as áreas, enfatizando que tanto formas mais aprofundadas do jornalismo − caso do Jornalismo Literário − e a história oral têm uma visão compreensiva e abrangente da realidade, por entenderem que os entrevistados, ao se basearem em sua memória, transitam numa esfera subjetiva. Finalmente, o terceiro eixo é dedicado à questão da autoria, que difere nas duas abordagens. Acima de tudo, sugere-se que se tratam de práticas complementares, cujo uso combinado supera lacunas em cada um dos métodos.
Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo
  • Gabriel Feltran
  • De Santis
FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais, área de Cultura e Política) -Universidade Estadual de Campinas, 2008.
Brasil é o país que mais procura por transexuais no RedTube -e o que mais comete crimes transfóbicos nas ruas. Superinteressante, 08 maio
  • Felipe Germano
GERMANO, Felipe. Brasil é o país que mais procura por transexuais no RedTube -e o que mais comete crimes transfóbicos nas ruas. Superinteressante, 08 maio 2016. Disponível em: http://super.abril.com.br/ comportamento/brasil-e-o-pais-que-mais-procura-por-transexuais-no-redtube-e-o-que-mais-cometecrimes-transfobicos-nas-ruas/. Acesso em: 02 fev. 2020.
Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense
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LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
Entrevista: o diálogo possível. 2. ed. São Paulo: Ática
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Guia prático de história oral
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