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Cláudio de Pina
GIMC/CESEM (FCSH)
candidato a doutoramento em Artes Musicais (FCSH/ESML)
2020
Órgão Histórico da Igreja Paroquial da Nossa Senhora da Ajuda
Sumário
Este artigo foca-se no órgão histórico da Igreja Paroquial da Nossa Senhora da Ajuda localizada na freguesia
da Ajuda em Lisboa. Este local situa-se perto do palácio da Ajuda e é conhecida pelos seus habitantes como
Igreja da Boa-Hora, devido ao convento augustiniano adjacente. Não existe muita documentação sobre este
instrumento. A pouca informação que existe aponta para a possibilidade da sua origem em 1792. O organeiro
que o construiu, António Xavier Machado e Cerveira, foi um profícuo construtor de órgãos nesta época. A
reconstituição e o restauro em 1988 pelo organeiro António Simões tornou possível o funcionamento deste
instrumento. A registação, funcionamento e peculiaridades do instrumento são pertinentes e relevantes.
Machado e Cerveira criou uma tipologia e função para o instrumento na época e este órgão é um desses
exemplos. Uma especificação deste instrumento revela algumas semelhanças e diferenças face a outros
órgãos históricos de Machado e Cerveira. Através de pesquisa de antigos titulares e organistas é possível
compreender o percurso deste instrumento. Um enquadramento histórico da edificação da Paroquial, após o
terramoto de 1755, corrobora uma possível justificação da existência de um instrumento deste género, neste
local. Certos elementos maçónicos e monárquicos no instrumento indicam a estética e financiamento na sua
construção.
Palavras-Chave
Órgão histórico, órgão ibérico, Real Barraca, Paroquial da Nossa Senhora da Ajuda, António Xavier
Machado e Cerveira.
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Abstract
The historical organ of the Parochial Church of Nossa Senhora da Ajuda. The origin of its construction in
1792 and his organ builder, António Xavier Machado e Cerveira. Restoration by António Simões in 1988.
Registration and operation of the organ. Peculiarities of this organ, former organists and titular resident
organists. Historical background and relationships with the Old Royal Patriarchal Church.
Keywords
Iberian organ, historical organ, Parish Church of Nossa Senhora da Ajuda, António Xavier Machado e
Cerveira, Royal House of Ajuda Palace.
Estado da Arte
O Convento de N.ª Sr.ª da Boa-hora e S.tª Rita na Freguesia de N.ª Sr.ª da Ajuda, junto ao lugar de Belém ao
pé de uma pena de água, foi fundado pelos Agostinhos Descalços no sítio chamado Espargal, nas terras
oferecidas por Sua Majestade. Sendo padroeira a Rainha N.ª Sr.ª D. Mariana Vitória, com a aprovação de
SS.mo Pe Benedito XIV por Breve seu, na data de 27 de Julho de 1749 e licença de Sua Majestade e Exmo
Cardeal Patriarca Manuel no ano de 1756. Por ocasião do grande terramoto sucedido a sábado 1 de
Novembro de 1755, fugiram os Agostinhos da ruína e incêndio do Convento de N. a Srª da Boa-Hora de
Lisboa em 16 de Janeiro de 1756 para o sítio do Espargal, sendo o seu primeiro Prior, o mesmo que era no
Convento, o Mto. R. Pe Fr. José da Santa Ana. Lançou-se a primeira pedra da nova Igreja, sendo Prior o Pe Fr.
José de Santo António, dedicada a N.ª Sr.a da Boa-Hora e S.ta Rita em 7 de Abril de 1766, dia da N.ª Sr.a dos
Prazeres.
A Igreja Paroquial da N.ª Sr.a da Ajuda faz parte desse complexo conventual fundado em 1758, sobre
um antigo convento dominicano entregue posteriormente à Ordem dos Agostinhos Descalços. O antigo
Convento da Boa Hora é um edifício barroco, com uma fachada principal notável e de grande impacto
urbanístico. As obras fundamentais decorreram na 2.ª metade do séc. XVIII por Eugénio dos Santos com
uma arquitectura religiosa pombalina. Após a extinção das Ordens Religiosas, em 1834, o antigo convento
foi adaptado a outras funções, acolhendo desde 1892 o Hospital Militar de Belém, que presentemente se
encontra inactivo. A igreja passou a Paroquial da Nossa Senhora da Ajuda da freguesia da Ajuda, tendo sido
praticamente reconstruida na década de 70 no séc. XIX. Este complexo conventual apresenta uma planta
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quadrada, definida pela articulação de três alas rectangulares com o corpo da igreja em torno do claustro,
perfazendo um quadrado. A igreja, de planta rectangular, apresenta uma nave única para a qual abre capela
lateral e a capela-mor. Antigamente terá existido outra capela, ou passagem para o salão, que presentemente
se encontra fechada. A sua fachada principal, estruturada em dois níveis, surge verticalmente dividida por
pilastras lisas em cinco panos murários e torre sineira. Na fachada, uma escadaria leva para uma galeria
rectangular. Por cima existem três amplos janelões encimados por um frontão recortado. A zona central, ao
nível do piso térreo, é rasgada por três arcos de volta inteira que permitem o acesso à galilé por uma
escadaria, enquanto que o segundo piso surge rasgado por três janelões rectangulares. O coroamento é feito
por painel quadrangular exibindo o emblema mariano, ladeado por aletas e rematado por um frontão
triangular. A fachada exibe o símbolo da coroa portuguesa. As antigas dependências conventuais estendem-
se contiguamente à igreja, para Este, organizadas em dois níveis com abertura de janelas rectangulares de
emolduramento simples. O acesso ao coro alto é feito pela passagem d e um salão, denominado, Sala de
Pedra, daí segue uma escadaria que leva ao piso superior. No nível térreo, por cima da entrada, ergue-se um
coro vasto e encontra-se do lado do Evangelho, o órgão histórico construido por António Xavier Machado e
Cerveira. Tanto a igreja como o antigo convento encontra-se classificados como Monumento de Interesse
Público.
Devido à extinção das Ordens Religiosas, que extinguiu o convento da Boa Hora dos Agostinhos
Descalços, foi esta igreja destinada para sede da paróquia de Nossa Senhora da Ajuda. Ainda hoje em dia é
denominado pela população como Igreja da Boa-Hora, assim como a zona circundante de Boa-Hora.
A Igreja, é coberta por um tecto de arco rebaixado, cuja pintura imita baixos-relevos de estuque. O
Inventário de Lisboa (XII, 26) atribui-o a Pedro Bordes, contudo, no dicionário Portugal, de Esteves Pereira
e Guilherme Rodrigues diz-se que José Maria Pereira Júnior pintou a Igreja de N. Sr.a da Ajuda (V. 636).
Dada a semelhança estilística destas pinturas com as dos tetos da Biblioteca da Ajuda, é provável que sejam
desse pintor.
Para além do órgão histórico de carácter ibérico e de grande relevo para a organaria portuguesa, é de
realçar os painéis de azulejos com cenas que retratam a vida do Santo Agostinho, marcando uma Via Sacra
equiparada a cada etapa da vida do Santo, são ladeados por motivos decorativos que se encontram em todos
os azulejos da igreja. A parte central da figuração a azul é emoldurada por composições típicas da transição
para o Neoclássico, com suas pilastras da ordem jónica. É excepcional a qualidade da pintura da parte
monumental e os quadros existentes, espalhados pela Igreja e de alto teor histórico, muitos dos quais já
foram restaurados e outros tantos se encontram guardados.
Na ‘Tabela dos Incêndios’, constante do Regulamento para os Empregados da Repartição de
Incêndios, consta que a Torre da Igreja da Boa Hora em caso de incêndio deveria tocar 34 badaladas. Hoje
com auxílio de sistema de activação electrónica, marca a hora e a anunciação das celebrações, apesar de
alguns dos sinos já não funcionarem.
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O terramoto de 1755 fez muitas vítimas em toda a cidade e destruiu muitos edifícios. Parte da Ajuda
não escapou e muito do seu património desapareceu. Entre esses edifícios está o Convento da Nossa Senhora
da Boa-Hora que foi reconstruido pelos frades Agostinhos, persistindo até aos dias de hoje. Grande parte do
Hospital Militar de Belém, já extinto e abandonado, recentemente encontra-se em transição para outra
instituição.
A família real também foi afectada pela catástrofe. Esta foi forçada a abandonar o Palácio da Ribeira
e a instalar-se, com a sua corte na Ajuda, ficando alojados numa estrutura provisória de madeira conhecida
como a Real Barraca. A insegurança que o terramoto deu à população fez-se notar pelo aumento de
população no local que passou de 1059 para 4748 habitantes na época.
António Xavier Machado e Cerveira, natural de Tamengos, Anadia. Viveu de 1 de Setembro de 1756 a 14
de Setembro de 1828, tendo falecido em Caxias. Foi um organeiro português, considerado um dos mais
notáveis do período Barroco. Era filho do organeiro e escultor em madeira, Manuel Machado Teixeira de
Miranda, e de sua segunda esposa, Josefa Cerveira. Era irmão consanguíneo do escultor Joaquim Machado
de Castro (que também terá feito obra sacra em talha). Segundo algumas fontes, Manuel Machado, foi o
construtor do grandioso órgão do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. Acredita-se que tenha tido sido
auxiliado pelo seu filho, uma vez que, à época (1781), já se encontrava em idade avançada. António Xavier
contava então, com vinte e cinco anos de idade. Portanto, esse órgão terá sido o número 1, assinado pelo pai.
Devido ao órgão dos Mártires ser construído em 1785 e o de São Roque em 1784, permanece a dúvida sobre
a sua numeração, esta suposição é sugerida por Ernesto Vieira e inscrições em outros órgãos sobre a
actividade do pai e filho Machado e Cerveira.
O órgão da Igreja de São Roque, correspondente ao número 2, o órgão dos Mártires, o número 3,
assim como os órgãos do Convento da Estrela, do Mosteiro de Odivelas, do Sacramento, de Santa Justa, os
três de Mafra, o da Capela Real de Queluz, o do Socorro, de Santa Isabel, da Boa Hora (na Igreja Paroquial
da Nossa Senhora da Ajuda, do qual se refere o presente artigo), dos Anjos, de São Tiago, de São Lourenço,
da Ermida da Vitória, da Encarnação entre outros. Revela-se a importância do órgão da Bem-Posta
(Academia Militar, datado em 1793) que é similar a nível estético e registação e possivelmente ajuda a situar
a criação do órgão da Ajuda, em sua data e numeração. Fabricou ainda muitos instrumentos para diversas
igrejas das proximidades de Lisboa, como o Barreiro, Lavradio, Coruche, Marvila, Santarém, Santa Quitéria
de Meca. Este facto deve-se à carência de órgãos em Lisboa nesta época, coincidindo com a reedificação das
igrejas que foram afectadas pelo terramoto de 1755. Muitos de seus órgãos, alguns deles de grandes
dimensões, seguiram para os Açores e Brasil. Por motivo de ter construído os órgãos de Mafra e de Queluz
(Vieira), foi condecorado com o hábito da Ordem de Cristo e nomeado organeiro da casa real ‘Organorum
regalium Rector’.
Um dos últimos instrumentos que construiu foi o órgão que existe na freguesia do Barreiro, com o
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número 103, datado de 1828, ano em que faleceu. Machado e Cerveira entrou para a Irmandade de Santa
Cecília em 22 de Novembro de 1808, onde exerceu até falecer, o cargo de primeiro assistente, onde “exerceu
com a maior pontualidade e zelo, durante os últimos annos e até poucos mezes antes de fallecer, o cargo de
primeiro assistente, presidindo a todas as sessões da mesa” (Vieira 1900:54). Nota-se uma capacidade de
realização para além da qualidade do serviço prestado, tanto em órgãos de maior ou menor porte.
Ajuda
Em 1792, por ordem de D. Maria I, a Patriarcal foi transferida para a capela da Ajuda, anexa à residência
real. Desta forma conseguiria albergar a quantidade de músicos, compositores e clero que vinha algum tempo
a acompanhar a coroa e a crescer na localidade. Um documento da colecção Pombalina (P-ln, Pba 464, p.
224) datado de 3 de Março de 1792 relata a transferência da Patriarcal para a Ajuda. Obras a cargo do
arquitecto Manuel Caetano de Sousa, com aquisição de terrenos e casas próximas da Real Capela. Passando
a Procissão do Corpo de Deus a figurar outro caminho, devido à grande distância da Patriarcal.
"Quis ainda [D. Maria I] que esta [Patriarcal] se restituisse ao Paço Régio, aonde fora instituída, e de que havia
mais de 36 annos se achava separada. Para este fim, S. Majestade resolveu que a Sta. Igreja Patriarcal se
tresladasse para a Capella do Palácio de Nossa Sra. da Ajuda, aonde se fizeram as obras interinas, e totalmente
necessárias para a devida acomodação: projectando na Mente Real construir um soberbo edifício, e Majestoso
Tempo, competente à grandeza do objecto, e da sua conhecida Liberalidade" (Torres 1796: 136).
Da Patriarcal na Ajuda, que tinha um grande órgão histórico de Machado e Cerveira, existe ainda
hoje a Torre Sineira, denominada pela população por Torre do Galo, por figurar um galo no topo. No
Compêndio do Código da Santa Igreja Patriarcal, Teixeira Torres descreve o projecto dos sinos: "8 sinos
novos e 3 sinos de relógio que tocaram pela primeira vez no nascimento da princesa D. Maria Thereza,
Princeza da Beira, a 29 de Abril de 1793" (Torres 1796). Supomos através da citação que não só a
quantidade, como a qualidade existente no que a coroa dedicava à Patriarcal. Ao longo dos tempos estes
projectos seriam alvo de contenção. Em 1793 as obras extraordinárias são suspensas. Em 10 de Novembro de
1794 a Real Barraca é alvo de um incêndio, que durante 8 horas se propagou pelo Palácio. Só depois se
decidiu construir um novo palácio na Ajuda. O serviço litúrgico e religioso continuam na Patriarcal, apesar
da família real mudar de residência, funcionando em paralelo com as outras Capelas Reais (como a de
Queluz) enquanto o templo da Ajuda assumia as funções de catedral. As obras na Capela Real e Patriarcal da
Ajuda continuam até finais do século XVIII e inícios do século XIX.
Existem fontes onde figura a ordem de pagamentos ao organeiro Joaquim António Peres Fontanes
(célebre pela construção de 3 órgãos em Mafra), para manutenção do órgão da Real Capela de N. Sr a da
Ajuda.
No Compêndio do Código da Santa Igreja Patriarcal, redigido por Manuel Jozé Teixeira Torres,
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enumera um total de 94 cantores, 12 organistas e 67 capelães cantores por volta de 1790, todos os residentes
no bairro da Ajuda.
Durante a Invasão Francesa existiu continuidade na actividade musical, apesar de a coroa se refugiar
em Mafra, sítio onde também teve actividade musical. Essa actividade muda com a partida da família real e
coordenação com as restantes Capelas Reais, o qual retira a importância da Capela Real, agora sem a
presença da coroa. Também grande parte dos nobres atravessam o Atlântico até ao Rio de Janeiro,
diminuindo a quantidade dos nobres na Capela e Patriarcal havendo menos necessidade cultural. Muito do
espólio, livros, prata em caixas e baús seriam esquecidos e não chegariam a fazer a viagem até ao Rio de
Janeiro, voltando para a Patriarcal, enquanto que outros haveres seriam distribuídos por outras igrejas e
palácios (Queluz e Vila Viçosa), daí a existência de ruas na freguesia com o nome, Guarda-Jóias, onde
supostamente se guardou as jóias da coroa. Só em 1809, D. João VI requer que parte do espólio seja
encaixotado e enviado para o Brasil. De acordo com uma lista existente no Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro (Cf. Marques 2004:66) só alguns músicos acompanharam D. João VI, os restantes mantiveram-se na
Ajuda. Portanto, muitos dos músicos e compositores da Capela e Patriarcal, com certeza tiveram actividades
na actual Paroquial da Nossa Senhora da Ajuda em tempos idos. Samuel Broughton refere numa carta:
"A Música, que raramente se interrompia ao longo do ritual, era solene e de grande efeito. A tribuna do coro
está equipada com um órgão de superior qualidade, o qual juntamente com um conjunto de cantores italianos,
produzia um dos mais belos coros que alguma vez ouvi..." [Carta IV, Belém, Dezembro 1912] (Broughton
1815: 37; Nery VE).
A família Real ao regressar do Brasil em 1821, reforçou a quantidade de músicos na Real Capela
Patriarcal, mas devido às Lutas Liberais acabariam por diminuir. A patriarcal funcionou na Ajuda durante 41
anos e 3 meses. Foi extinta por D. Pedro IV a 4 de Fevereiro de 1934 aposentando os Principais,
Monsenhores e reformulada a sé arquipiscopal de Lisboa à sua condição anterior a 1716. O edifício da
Capela Real, deixado ao abandono, foi-se degradando ao longo do tempo. Depois de várias tentativas de
obras frustradas é ordenada a sua demolição a 29 de Agosto de 1849. Ficando apenas, como foi referido
anteriormente, a torre sineira, ou a Torre do Galo.
Jordão de Freitas (1909:15) refere que entre 14 e 15 de Julho de 1843, teriam sido roubados tubos do
órgão da Patriarcal. Nesse documento, refere também ao longo do texto da possibilidade de ser Inglaterra o
destino do órgão:
"...foi parar o grande órgão do templo, o qual havia sido concedido por el-rei D. Luiz em Maio de 1864, à junta
de parochia da freguesia de S. Pedro de Alcântara, mas que annos depois o trocou pelo actual, já usado, dando
ainda cerca de 400$000 réis em dinheiro!" (Freitas (1909:15)
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Edificação e laços entre a Real Barraca e a Patriarcal são evidentes. Probabilidade de tubaria deste órgão
originar do órgão histórico da Patriarcal é uma hipótese, assim como a traça, possível estética e aplicação. O
uso amplo de música sacra e o estabelecimento de diversos organistas, cantores e mestres de capela,
asseguravam o acto continuado de prática musical na criação da Paroquial da Ajuda, que com grande certeza
continuou exercício comparável ao da antiga Patriarcal. É notável o apoio que a coroa teve nesta Paroquial,
que reza a lenda popular, devia-se ao facto de D.ª Maria ter interesse pelos Agostinhos e visitar regularmente
a Igreja. Desta forma se explica a relocalização dos Agostinhos para esta zona. Existe a lenda popular que
nesta zona existiriam ligações subterrâneas que ligariam o Mosteiro, Palácio e Paroquial da Ajuda. Em obras
realizadas recentemente conseguiu-se encontrar vestígios desses túneis. Também é de notar que no coro alto
existe uma pintura, mesmo no centro da alçada por cima das janelas, onde figura um livro aberto com
neumas, determinando a importância da prática musical neste local. Existem mais motivos musicais em
quadros e azulejos, mas a do coro-alto é mais exemplificativa da importância da prática musical.
A inexistência de numeração do órgão da Ajuda, não estando figurada por cima do teclado (mesmo
na intervenção de restauro de 1988 por António Simões) e em mais nenhum sítio, representa uma questão.
António Xavier Machado e Cerveira numerava todos os seus órgãos. É possível que a numeração esteja
escondida dentro de um tubo, por detrás de um azulejo ou dentro do someiro, como em certos casos, citando
conversa informal com especialistas no Simpósio Internacional do Órgão Histórico em Portugal (2015, P. N.
Mafra). O mais natural é que tenha havido intervenção no órgão que tenha retirado a placa onde figurava o
número. Aponta-se, por razões de estética, materiais e registos e comparando com outros órgãos da época do
mesmo organeiro, que o seu número seja entre 23 e 36. 1988 é uma data muito tardia em relação à sua
criação original, para especular o que poderá ter acontecido, já que passou pelo Liberalismo, Invasões e fim
das ordens religiosas.
A possível data de sua construção, 1792, necessita de verificação. Apesar de consulta com
especialistas em entrevista e investigação de livros antigos, é necessário encontrar recibo de pagamento de
construção ou qualquer outro tipo de assento, ou registo que corrobore a sua construção nessa data, o qual
ainda não foi encontrado (apesar de a Igreja ter bastante património ao nível de arquivo, esta informação em
particular não existe. Foi perdida no tempo, ou enviada para outro sítio).
Em 1988 foi restaurado por António Simões. Sendo modificado o fole para sistema eléctrico e mudado o seu
temperamento (aproximadamente 440 Hz, com temperamento igual). Em entrevista com Dinarte Machado
(2015), o próprio cita que viu alguns dos materiais originais e mais algumas partes constituintes do órgão,
durante o restauro e que confirma a construção por António Xavier Machado e Cerveira. Em entrevista com
João Vaz (2016), o próprio reconhece a denominação e ortografia em tubos de António Xavier Machado e
Cerveira. Numa inspecção posterior, de facto quase toda a tubaria e teclado permaneceram originais,
exceptuando um registo de Flautado Tapado. Em consulta com P. Francisco, a única informação que existe
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sobre esse registo não original, é que foi mandado fazer em França. É possível que muitos dos tubos dos
registos tenham sido substituídos ao longo do tempo, principalmente os ressoadores de palhetas, pois, à data
deste artigo, foi encontrado na Paroquial, um baú de 2,5m por 0,4m, onde num fundo falso adornado por uma
cruz, se encontraram diversos tubos, incluindo palhetas e ressoadores, todos originais de António Xavier
Machado e Cerveira. João Vaz aprova a autenticidade deste achado, durante a mesma entrevista. Inquirindo
membros mais antigos da Paroquial, não se tem a certeza se seriam tubos originais, danificados para além de
restauro, ou se foi decisão do organeiro, ou mesmo se seriam sobras de outro órgão (ou talvez os tubos
furtados do órgão da Patriarcal que refere Jordão de Freitas, assim como a já referida hipótese de parte do
órgão da Patriarcal ter sido vendido à coroa Inglesa).
Por cima da fachada do órgão encontra-se um símbolo heráldico, uma águia bicéfala, símbolo da
ordem militar dos Agostinhos, apesar de não ter a restante simbologia; Lua, Sol e corações a sangrar nas
garras da águia. Por cima dessa águia uma coroa e no brasão as quinasconsultar fig.6 em anexo. Em entrevista a
pessoas locais afirmam que poderá ser uma menção à maçonaria que existiu nesta localidade na época. Uma
entrevista com Vítor Manuel Adrião (2016) confirma essa hipótese, afirmando que o Bispo do Funchal, que
frequentou a localidade, seria maçom e deixou traços da sua afiliação no cemitério da Ajuda, assim como se
encontram traços herméticos no Jardim Real da Ajuda. Outra simbologia da águia bicéfala também é
atribuída a Kadosh o Consagrado, que neste caso se refere ao instrumento, por ser usado para Música Sacra.
O órgão, na fachada por cima das palhetas, figura algumas letras rendilhadas que se entrelaçam em estilo
monograma assemelhando-se a um A, X, M e C (António Xavier Machado e Cerveira) sendo o A mais
preponderante, havendo a possibilidade de ao A de Altíssimo, D. José. A mais provável interpretação será
de, A de Alfa, o Deus Altíssimo prenunciador do Verbo da Criação, sendo um instrumento musical para a
actividade de Música Sacraconsultar fig.6 em anexo. Por outro lado, o M encontra-se replicado no tecto da Igreja,
estando exactamente no centro, o que leva a crer que a simbologia remete, com mais probabilidade, para
Santíssima Trindade. Sendo M uma letra tipicamente associada a essa simbologia, por ser a única criada num
sistema tridimensional de um cubo.
Especificidades do órgão da Paroquial da Ajudaconsultar fig.2 em anexo:
53 teclas com sistema de tracção mecânica de C a e3. Não existência de oitava curta ou quebrada. Dividido o
teclado em Baixos e Tiples (termo arcaico português para soprano). Baixos de C a b2 e Tiples de c2 a e3.
Registos de Baixo (mão esquerda)consultar fig.1 em anexo:
Tronbeta Magna (palheta horizontal. Designação peculiar, pois é um registo de 4´ em ressoadores de
8’)
Clarão 4F (simétrico em tiple no Clarim, anulável através de pisante)
Cheio 3F (anulável através de pisante)
Cimbala 4F (anulável através de pisante)
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Comp. 22ª (composta da Quinzena, anulável através de pisante)
Quinzena (anulável através de pisante)
Dozena (sem simétrico em tiple, anulável através de pisante)
Fl. 6 Tapº (flautado 4’, sem simétrico em tiple. Registo pouco típico para Baixo)
Oitava Real (não anulável com pisante “combinação geral fechar”. Algo típico nos órgãos de
Machado e Cerveira)
Fl. 12 Tapº (flautado fechado 8’. Este com certeza, não é original para além de estar posicionado de
uma forma estranha na fileira)
Fl. 12 Abº (flautado aberto 8’ Principal inteiro. Com grande probabilidade, a totalidade é original de
Machado e Cerveira)
Registos de Tiples (mão direita)consultar fig.1 em anexo:
Clarim (palheta horizontal, anulável através de pisante)
Corneta 4F (simétrico em baixo Clarão, anulável através de pisante)
Cimbala 3F (anulável através de pisante)
Cheio 4F (anulável através de pisante)
Comp. Quinzena (quinzena composta, simétrico em baixo; Quinzena + Comp. 22ª, anulável através
de pisante)
Oitava Real (anulável através de pisante)
Voz Humana (sem simétrico em baixo)
Fl. Travessa (sem simétrico em baixo)
Pífano (sem simétrico em baixo. Este registo é similar ao de Fl. Travessa, não tendo o carácter
habitual de um Pífano 4’, pois, aparenta ser um registo de 8’)
Fl. 12 Abº (flautado aberto 8’ Principal)
Fl. 12 Tapº (flautado fechado 8’)
A afinação oscila, como todos os órgãos, entre 430hz e 440hz de acordo com as estações do ano e
humidade relativa. Nos últimos anos, devido à falta de intervenção no telhado e janelas, o órgão desce
bastante de tom, principalmente durante o período do Inverno, estes dados foram reunidos ao longo dos anos
recorrendo a afinador e medições regulares.
O temperamento é igual para tubos Abertos e ligeiramente diferente para Fechados e como é óbvio,
Voz Humana, ou muito provavelmente, consequência da intervenção de restauro em 88. Outra possibilidade
reside no facto de tubos abertos e fechados reagirem de forma diferente à humidade e frio, mudando a sua
afinação e temperamento ao longo do tempo.
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Oitava Real nos baixos e Flautados Abertos e Fechados não são afectados pela anulação dos pisantes, no
caso da Oitava real, algo típico em Machado e Cerveira, como, por exemplo nos órgãos de Mafra. O mesmo
acontece com as palhetas, que se anulam conforme a combinação real e tem duplicação na oitava central,
mais uma vez algo que se encontra em certos órgãos de Machado e Cerveira. A denominação de Tronbeta
Magna é peculiar, sendo registos de 4’ em ressoadores de 8’, o que não faz sentido aparentemente. Palhetas
de 4’ não é algo incomum em órgãos de Machado e Cerveira. O Pífano que deveria ser de 4’ é neste caso de
8’, aqui poderá ser resquícios de um outro registo, ou reaproveitamento de tubaria para preencher fileira.
Também é curioso o flautado aberto no baixo, sem simétrico no tiple.
Resumo dos pisantes: combinação geral abrir/fechar, anula cheios/palhetas e oitava real em tiple. O
Pisante Palhetas abrir/fechar, anula a palhetas em baixos e tiples conforme a combinação geral. As Palhetas
assimétricas em baixos e tiples pode representar uma necessidade do reportório típico da época, ou uso de
sobras de outro órgão para formar o registo de palhetas horizontais, daí provavelmente o uso de ressoadores
de 8’. Quinzena nos tiples corresponde à mistura Composta de Quinzena, tendo o seu simétrico semelhante
nos baixos, à separação da mistura em Quinzena e Composta de Quinzena. Neste caso provavelmente é
apenas uma questão de nomenclatura, ou necessidade em dividir a Composta.
A inexistência de tambor, rouxinol ou campainha, apesar de existir pisante para esse efeito, provavelmente
terá sido perdido ao longo dos séculos. Furto ou simplesmente não ser necessário para a prática na altura,
pois, o pisante não está ligado a nada, e nota-se um espaço vazio por detrás do pisante, com marcação no
chão que remete à existência de algo nesse lugar consultar fig.2 em anexo.
De acordo com vários registos existentes na Paroquial e ainda presentes na memória de todos, pelo
menos 3 organistas do Instituto Gregoriano, alunos de Antoine Sibertin-Blanc, tocaram regularmente neste
órgão. Permaneceu com a titularidade, Antoine Sibertin-Blanc até ao seu falecimento em 17 de Novembro de
2012. Foram promovidos vários concertos e recitais acompanhados por este órgão, onde figuraram outros
organistas como João Vaz e Rui Paiva, vários solistas e coros; o coro Olisipo, coro Stella Maris, tenor Carlos
Guilherme, soprano Liliana Bizinec, baixo João Oliveira e clarinetista António Saiote, citando apenas alguns.
Todas estas iniciativas culturais foram feitas pelo Prior José Bernardo Gonçalves que esteve na Paroquial de
1970 a 2005 o ano que faleceu. Pela ocasião do bicentenário da Paroquial em 1987, o Prior José mandou
restaurar o órgão histórico, tendo promovido grande actividade cultural, principalmente no ano de 1988 e
restantes anos. Desde 1996 que o organista é Cláudio de Pina, o actual titular do órgão histórico da Paróquia
da Ajuda desde 2013. É promovido regularmente um Masterclass de Música Antiga e Sacabuxa com
concerto de entrada livre todos os anos, onde figuram na direcção Adam Woolf e Win Becu. De notar que a
Igreja tem uma acústica bem presente, provavelmente devido à configuração do tecto e azulejos, para o
instrumento e prática de actividade musical. A acústica da Igreja está a ser alvo de investigação e medições
por parte de Cláudio de Pina. Regularmente são feitos concertos com visita guiada, onde é partilhada a
informação sobre o instrumento, igreja e local.
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Anexos
Fig. 1: Registos de Baixos (Esquerda) e Tiples (Direita)
Fig. 2: Pisantes da esquerda para a direita: Palhetas Abrir, Combinação Geral Fechar, Palhetas Fechar, Combinação
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Geral Abrir. Pistante sem efeito à direita
Fig. 3: Sistema de tracção do teclado e à direita mecanismo de registo
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Fig. 4: Tubaria e someiro. Tubos Fechados no canto inferior esquerdo. Fole canto inferior direito
Fig. 5: Coro Alto e posicionamento do Órgão
Fig. 6: Fachada frontal e perfil do Órgão. Nota: Simbologia na fachada.
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Fig. 7: Estado do Órgão antes da intervenção de restauro em 1988 por António Simões. (fotos gentilmente cedidas pelo
próprio)
Fig. 8: Estado dos tubos e palhetas antes da intervenção de restauro de 1988 por António Simões. (fotos do próprio)
Vídeo de concerto de Música Antiga dirigido por Adam Woolf:
https://www.youtube.com/watch?v=V38XUyHE7KM
Bibliografia
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http://www.orgaos.acer-pt.org/
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Lisboa, 51-II-72
VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes, trans., Franscisco Falcão, Lisboa,
1900.
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Agradecimentos:
Paula Gomes Ribeiro
João Vaz
Cristina Ferreira
Vítor Manuel Adrião
António Simões
Pe Francisco
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