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LEITURA LITERÁRIA NO ENSINO MÉDIO: UMA ANÁLISE
DIALÓGICA DO LIVRO DIDÁTICO
1
Maxwell Souza dos Santos
2
Marcel Alvaro Amorim
3
RESUMO
Subscreve-se esse artigo com o objetivo de divulgar a pesquisa realizada, cujo intuito é contribuir com
as reflexões sobre o ensino de literaturas no sistema brasileiro de educação básica, principalmente, no
que tange à leitura literária. Sendo assim, traça-se uma estratégia metodológica de observar e investigar
a parte de literatura do primeiro capítulo de um livro didático referente ao Ensino Médio, intitulado
Português: contexto, interlocução e sentido sob a perspectiva da Análise Dialógica do Discurso (ADD).
Para tanto, embasamo-nos em conceitos importantes para o Círculo de Bakhtin como Dialogismo e
Responsividade (BAKHTIN, 2016; VOLÓCHINOV, 2017) e, também, em pesquisas relevantes sobre
o ensino de literaturas, tais como Cosson (2006) e Rezende (2013). Os resultados evidenciam práticas
dialógicas de leitura literária em coexistência com visões mais tradicionais do ensino de literaturas.
Destaca-se, sobretudo, a ausência de uma abordagem referente à dimensão estética, tendo em vista que
os exercícios parecem não evidenciar os processos de compenetração, avançando muito timidamente na
construção de sentido do literário com participação dos leitores.
Palavras-chave: Leitura Literária, Ensino de Literaturas, Livro Didático, Análise Dialógica.
INTRODUÇÃO
Uma sociedade onde os livros não apenas são proibidos, como também são incinerados.
Uma distopia onde os leitores são vistos como rebeldes. Um sistema que criminaliza o
pensamento crítico e que controla a massa por meio de aparelhos televisivos. Essa é a descrição
geral de Fahrenheit 451, obra de Ray Bradbury, publicada em 1953. A visão quase profética
do autor aos poucos parece vir se cumprindo, pois, vozes ultraliberais, como aquela reverberada
por Paulo Guedes, atual Ministro da Economia, defendem uma reforma tributária pautada, por
exemplo, na taxação de tributos e impostos sobre os livros.
Sabendo-se que este produto poderá tornar-se ainda mais encarecido e mais inacessível
aos mais vulneráveis nesse sistema estratificado e desigual, o argumento utilizado pelo governo
é que os livros pertencem à elite, ficando subentendido, portanto, que os pobres não leem. Esse
1
Este artigo é produto do projeto de pesquisa “Práticas de letramento literário no livro didático de português”,
financiado pela agência de fomento CNPq.
2
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de janeiro - UFRJ, maxwell@letras.ufrj.br;
3
Professor orientador: pós-doutor, UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro e IFRJ – Instituto Federal do
Rio de Janeiro, marceldeamorim@yahoo.com.br.
contexto não pode ficar obscurecido quando se discute leitura literária nas escolas brasileiras.
Fica, ainda, o questionamento sobre a possibilidade de ser leitor no Brasil e quais condições
perpassam essa leitura.
Dados apontados pelo editor da Companhia de Letras, Luiz Schwarz, encaminham para
a interpretação de que a fala feita pelo atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, é uma falácia,
tendo em vista que há um crescimento exponencial quanto à compra de livros por pessoas mais
pobres desde os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva e, além
disso, na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro, por exemplo, os dados revelam que
concernente ao público total do evento (cerca de 600 mil pessoas) “97% se declararam leitores
frequentes de livros, 51% têm entre 10 e 29 anos, 72% são de não brancos e 68% pertencem às
classes C, D, E!”
4
.
E o que a educação tem a ver com todos esses fatores? A escola como espaço de
educação formal tem como um dos papéis principais a formação de leitores, em geral, e leitores
literários, em específico, assim como já era previsto em documentos oficiais como nas
Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – OCEM (BRASIL, 2006) e na Base
Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018). Contudo, reconhece-se a existência de
múltiplas dificuldades enfrentadas tanto pela instituição escolar como pelos docentes de praticar
uma didática efetivamente de leitura literária, pois existem aspectos que precisam ser levados
em consideração, como aqueles apontados por Amorim (2013), seja a falta de formação
adequada do professor para o ensino de literaturas, seja pela escassez de obras literárias nas
bibliotecas das escolas ou ainda pela a ausência de acesso à internet.
As próprias OCEM chamam atenção para o fato de a literatura ser tratada na escola
como um conteúdo secundário. De acordo com o documento,
A prática escolar em relação à leitura literária tem sido a de desconsiderar a leitura
propriamente e privilegiar atividades de metaleitura, ou seja, a de estudo do texto
(ainda que sua leitura não tenha ocorrido), aspectos da história literária, características
de estilo, etc., deixando em segundo plano a leitura do texto literário, substituindo-o
por simulacros, como já foi dito, ou simplesmente ignorando-o (BRASIL, 2006, p.
70).
Nesse sentido, o objetivo deste texto é contribuir com algumas reflexões a partir da
análise de um livro didático de português do Ensino Médio sob uma perspectiva dialógica do
discurso. De fato, acredita-se que o livro didático é, em muitos contextos, o principal veículo
4
SCHWARCS, Luiz. A falácia de Paulo Guedes sobre a taxação de livros. Folha de S. Paulo. São Paulo, 10 de
agosto de 2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/a-falacia-de-paulo-guedes-
sobre-a-taxacao-de-livros.shtml. Acesso em: 24 de setembro de 2020.
responsável por dirigir o funcionamento das aulas, pois atua como complemento às carências
educacionais mencionadas.
OS DESAFIOS DE ENSINAR LITERATURA
Todo professor guarda em seu âmago um anseio de que seus alunos leiam, interpretem
e sejam engajados nos estudos, todavia não é novidade que a realidade nas escolas muitas vezes
não se alinha com as expectativas dos docentes. Sendo assim, resta-nos pensar o que pode ser
feito com o objetivo de obter melhores resultados. Algumas denúncias e reflexões feitas por
diversos autores apontam práticas, que permanecem sendo exercidas no sistema educacional
referente ao ensino de literaturas. Essas reflexões nos auxiliam a encontrar um caminho que
seja viável ou próximo de um ideal.
No que concerne ao ensino de literatura, Cosson (2006) retrata a expressão de uma
realidade enraizada, pois a literatura permanece sendo majoritariamente tratada como
secundária ao ensino de língua portuguesa. Tendo perdido sua autonomia, ela vem sendo
reduzida, submetida ao desenvolvimento da escrita e aos aspectos linguístico-gramaticais. Há,
também, o cânone enrijecido de literatura brasileira e portuguesa como noção única de
literariedade, acrescenta-se a isso o foco exacerbado quanto aos estilos de época, exercícios que
enfocam dados sobre a vida dos autores e demasiado contexto histórico.
A literatura, por esse viés, tem sido apresentada como algo obsoleto e associada à
antiguidade, logo, se os estudantes não se identificam com o conteúdo, muito dificilmente seus
interesses serão despertados. Nas palavras de Cosson, “O letramento literário trabalhará sempre
com o atual, seja ele contemporâneo ou não. É essa atualidade que gera a facilidade e o interesse
de leitura do aluno” (2006, p. 34).
Para além dessas questões, é necessário ressaltar que ler literatura exige a
disponibilidade de tempo, porém, no contexto escolar, há o impasse do currículo a ser seguido,
as metas a serem cumpridas, as avaliações a serem feitas, todo o conteúdo a ser ministrado.
Rezende (2013), reconhece que ler literatura exige tempo hábil para tal, por isso, ratifica a
necessidade de mudança da escola. Sendo assim, “Talvez um dos maiores problemas da leitura
literária na escola (...) não se encontre na resistência dos alunos à leitura, mas na falta de espaço-
tempo na escola para esse conteúdo que insere fruição, reflexão e elaboração” (p. 110).
Ao discutir sobre leitura literária é necessário dar um passo atrás e entender como
funciona o processo de ler. Entende-se leitura aqui, a partir de Freire (2001), como uma prática
ampla e situada, já que, segundo o autor, a leitura de mundo precede a leitura da palavra. Ler é
interpretar sinais, sejam eles climáticos, corporais, faciais e gestuais, gráficos, entre tantos
outros códigos e linguagens. Desta forma, o ato de ler não está vinculado, necessariamente, à
prática formal de escolaridade ou, ainda, pode-se dizer que não é uma prática ausente das
comunidades ágrafas, tendo em vista que esse processo de letramento permeia outros tipos de
textos, além dos escritos e múltiplas tecnologias, tais quantas forem necessárias para
oportunizar as diversas expressões culturais e modos de vida na sociedade.
DIALOGISMO E RESPONSIVIDADE
O Círculo de Bakhtin traz contribuições relevantes para os estudos de linguagem e da
literatura. O conceito de dialogismo, vinculado à ideia de discurso, refere-se ao fato de que todo
enunciado é um átomo na constituição da célula discursiva, mais do que isso, o enunciado está
em diálogo com outros enunciados e assim por diante. Desta maneira,
Todo enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está
ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Todo enunciado deve ser
visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado
campo [...]; ele os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como
conhecidos, de certo modo os leva em consideração (BAKHTIN, 2016, p. 57).
Isso significa dizer que cada enunciado está em conversa com enunciados anteriores,
seja apoiando-o, questionando-o, afirmando-o etc. Da mesma forma, que o enunciado será
sempre construído como resposta, como manifestação da posição ativa do falante (2016, p. 47).
As relações estabelecidas no contexto discursivo mediam a compreensão de modo ativo por
ambas as partes falantes. Essa concepção de responsividade leva ao entendimento de que todo
enunciado espera por uma resposta, ou seja, uma postura responsiva e ativa.
Portanto, o leitor de forma alguma, pode ser visto como passivo, este se vê em
constante interação com o texto, de maneira que sua leitura não pode estar indissociável à
construção de sentidos e postulações. Baseado nessa ideia, compreende-se a importância do
dialogismo e da responsividade para a discussão de leitura literária.
PROCESSO DE LEITURA
Prosseguindo na discussão teórica, faz-se necessário explicitar a interação que ocorre
entre autor e leitor mediado pelo texto. Segundo Cosson (2006, p. 40), “o ato de ler, mesmo
realizado individualmente, torna-se uma atividade social”, isso porque há um processo que se
subscreve linearmente por antecipação, decifração e interpretação.
A primeira etapa se refere às ponderações feitas pelo leitor antes de iniciar a leitura
propriamente dita, como os objetivos que o estimulam a adotar posturas diferentes frente aos
variados gêneros. Por exemplo, quando lemos um poema nos comportamos diferente de quando
lemos uma receita de bolo. Além disso, a capa, o título, o número de páginas, também
influenciam essa postura do leitor, chama-se essa etapa de antecipação. A segunda etapa tem a
ver com o mergulho no mundo das palavras, das imagens e das letras, desta maneira, conforme
o nível de conhecimento do leitor sobre aqueles códigos for mais alto, mais rápido fluirá a
leitura, e inversamente, caso o nível de conhecimento do leitor seja menor, mais demorado será
o avanço, a esta etapa o autor nomeia de decifração. Por fim, a terceira etapa, proferida por
interpretação, está condicionada às relações que o leitor faz com o mundo e as palavras, são as
inferências, o reconhecimento das ideologias subentendidas, a observação das entrelinhas, as
intertextualidades estabelecidas.
Esta última, no entendimento de Cosson (2006, p. 41), tem a ver com o diálogo que o
leitor faz com o texto, tendo como limite o contexto, ou seja, a comunidade, a cultura, o
discurso, o autor, as leituras que antecedem a escrita do autor e o entendimento que essa
comunidade leitora julga como próprio da leitura.
O fator relevante é compreender que ler envolve muitas dimensões e percepções
peculiares do indivíduo. Sejam aspectos neurofisiológicos como os citados acima, cognitivos,
argumentativos e simbólicos, pois “age nos modelos do imaginário coletivo, quer os recuse,
quer os aceite” (JOUVE apud REZENDE, 2013, p. 110) e envolve também a dimensão afetiva-
emocional. Nessa dimensão, o leitor se identifica, torce a favor ou contra um personagem, julga
uma atitude como certa ou errada, repensa ou ratifica sua ética e se põe no lugar do outro,
chamamos esse processo comumente de empatia.
De acordo com o verbete do glossário CEALE, publicado pela Faculdade de Educação
da UFMG, a leitura se diz literária quando
A ação do leitor constitui predominantemente uma prática cultural de natureza
artística, estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa. O gosto da leitura
acompanha seu desenvolvimento, sem que outros objetivos sejam vivenciados como
mais importantes, embora possam também existir. O pacto entre leitor e texto inclui,
necessariamente, a dimensão imaginária, em que se destaca a linguagem como foco
de atenção, pois através dela se inventam outros mundos, em que nascem seres
diversos, com suas ações, pensamentos, emoções. (PAULINO, 2014, n.p.).
A partir desse conceito, é possível inferir que a questão estética da relação com a arte é
o diferencial que caracteriza uma leitura como literária. Faz-se necessário frisar que a
experiência de percepção e vivência da literatura que leva à fruição de prazer, simplesmente
por atingir o gozo estético é o que descreve o contato com o literário. Nesse sentido, a literatura
supre uma necessidade humana de criar narrativas, fabular ou imaginar. Candido (2011, p. 175)
afirma que ela é um dos direitos incompreensíveis e que, portanto, não pode ser negada a
ninguém. Desse modo, o leitor estabelece uma relação que é literária e estética com a leitura.
Aprofundando um pouco mais a reflexão, retoma-se os estudos do Círculo de Bakhtin
para entender o funcionamento dessa compenetração. Para o autor, esta última é a primeira
etapa da atividade estética, pois “eu devo vivenciar - ver e inteirar-me - o que ele vivencia,
colocar-me no lugar dele, como que coincidir com ele” (BAKHTIN, 2011, p. 23-24). Por essa
perspectiva, compenetrar-se é projetar-me em outro sujeito ou narrativa, o que por conseguinte
pode suscitar empatia. Esse ‘eu’ deve voltar-se para si mesmo e avaliar a experiência vivenciada
a fim de que se analise de fora, tendo em vista que “somente tal consciência que retorna a si
mesma confere forma estética” (BAKHTIN, 2017, p. 61).
Esse movimento dinâmico chama-se exotopia e sintetiza o modo como a literatura age
sobre o indivíduo e este manuseia o objeto. Suas crenças, seus preconceitos, suas ideologias,
seus engajamentos, seus valores morais são levados ao texto, assim como o texto traz uma gama
de ideias que podem confrontar, concordar, estimular à mudança e propiciar novas formas de
enxergar o mundo.
METODOLOGIA
A análise que faremos mais a frente se refere a um capítulo do livro didático intitulado
Português: contexto, Interlocução e Sentido, aprovado no PNLD de 2018, ainda em vigor para
o Ensino Médio. O objetivo geral é compreender quais discursos acerca da leitura literária se
manifestam por meio desse instrumento pedagógico. Desta forma, partiremos da concepção
sócio-histórica da pesquisa em Linguística Aplicada (cf. ROJO, 2006) em contribuição com a
Análise Dialógica do Discurso - ADD (BRAIT, 2004; SOBRAL E GIACOMELI, 2016).
Para Brait (2004), a ADD pretende refletir acerca dos fenômenos que engendram
interpretações, assim como, suas consequências no mundo. É indispensável ter em mente que
o discurso acontece na interação social e seus sentidos permeiam o diálogo entre os sujeitos a
fim de que se construam essas interpretações. Não obstante, “a interação é a base das relações
dialógicas” (SOBRAL E GIACOMELI, 2016, p. 1077).
Ademais, compreende-se que o discurso é dotado de caráter ideológico, haja vista que
a linguagem não é neutra e que os sujeitos são social e historicamente situados. Por esse viés,
sempre há um interesse implícito de quem diz, ainda que essa pessoa não saiba exatamente
quais os interesses.
A ADD se constrói sob enunciados reais - neste caso, aqueles do livro didático -,
conforme seus gêneros, sendo o amálgama da significação e contexto da enunciação que forma
os significados. Para os autores,
Uma análise da ADD envolve, para dar conta dos dois componentes considerados - a
língua e a enunciação -, os seguintes passos: descrever o objeto concreto em termos
de sua materialidade linguística e de suas características enunciativas; analisar as
relações estabelecidas entre esses dois planos, o língua (nível micro) e o da enunciação
(nível macro); e, por fim, interpretar que sentidos cria a junção contextual da
materialidade e do ato enunciativo (SOBRAL E GIACOMELI, 2016, p. 1092).
Esse movimento se faz de forma dialógica (BAKHTIN, 2016; VOLOCHINOV, 2017),
entendendo que todo enunciado é constituído de outros enunciados. Acredita-se, portanto, que
a ADD serve como ferramenta propícia à análise do livro em questão, permitindo uma
interpretação dialógica a partir dos enunciados linguísticos, cujo caráter reflete uma expressão
socioideológica.
No que tange ao livro didático que compõe o corpus desta pesquisa, é relevante destacar
que o material foi o quarto mais escolhido pelos docentes atendidos no PNLD de 2018. O
material foi escrito por Maria Luiza Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara,
tendo sido publicado em 2016, pela editora Moderna. Neste artigo, faremos a opção de
apresentar um recorte da análise, utilizando o capítulo um da primeira unidade do livro do
primeiro ano de Ensino Médio, pois, normalmente, este espaço introduz as ideias gerais de
literatura, permitindo averiguar quais visões acerca da leitura literária são (des)legitimadas. O
livro didático será analisado a partir da versão do Manual do Professor.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A primeira unidade do livro objetiva introduzir os estudos sobre literatura, contudo,
como dito anteriormente, vamos nos ater ao primeiro capítulo que se inicia sob o título Arte,
literatura e seus agentes. É possível observar uma pintura do artista Christian Drummond, que
a priori mimetiza uma favela do Rio de Janeiro, essa concepção se confirma no título Favela
Carioca. Na sequência, há um bloco de exercícios com sete questões e nas sugestões ao
professor é enfatizado que as respostas devem ser orais para que os alunos troquem impressões.
Devido ao espaço não citarei questão por questão
5
, no entanto, pode-se perceber que esta
atividade funciona como guia de leitura da pintura. Pois, há perguntas como: “Descreva o que
você vê na tela”, “Que impressão o uso do espaço e das cores causam?”, além disso, existe uma
fotografia da Favela da Rocinha que se assemelha bastante com a pintura anterior. Surgem
perguntas como: “Quais elementos você destacaria?”, “É possível dizer que essas imagens
também são textos?”.
As perguntas desse bloco são parecidas entre si e aparentam estimular o diálogo entre
os estudantes, pois não há presença de resposta-padrão, o que conduz ao entendimento da
possibilidade de coexistir múltiplas formas de enxergar as duas imagens. Ademais, os paralelos
estabelecidos entre a arte e a realidade corroboram para uma aproximação entre os leitores
urbanos com seu contexto social. Acertadamente, as autoras do livro guiam a leitura da tela, de
modo que partem dos subjetivismos dos leitores para o polo da intencionalidade do autor, isso
significa dizer que em princípio é perscrutado o processo analítico dos alunos para, então, num
segundo momento refletir acerca das motivações do autor na sua própria criação artística e quais
teriam sido os efeitos almejados.
Na subseção Arte e Representação é interessante perceber a importância do autor como
recriador da realidade. Para tanto, utiliza-se mais uma pintura, desta vez, do artista Alma-
Tadema, nomeada como Posição vantajosa. A princípio percebemos três mulheres que estão
numa posição elevada e que se inclinam para ver, possivelmente, a chegada de um barco. Com
uso dessa pintura a discussão segue para o olhar do autor sobre a imagem como algo que
influencia a perspectiva de quem está vendo, pois a imagem retratada daquela forma permite o
olhar sobre vários planos.
À frente, existem alguns textos que refletem acerca do universalismo e atemporalidade
da arte. Logo, suscita o questionamento do que viria a ser definido como arte, a resposta sugere
uma noção muito debatida desde os gregos que é o conceito de belo. Em termos conclusivos,
entende-se que essa dimensão estética da arte é inerente ao contexto histórico, social e cultural,
podendo, portanto, variar ao longo dos tempos. Essa discussão inicial gera a expectativa de que
a literatura será trabalhada como ponte de acesso à reflexão, pois, como discutido na seção
anterior, a leitura literária dispõe desse lócus estético de vivência não atrelada a objetivos
práticos da vida cotidiana.
Na sequência, existem mais quatro questões baseadas na obra A Metamorfose, de Franz
Kafka.
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Para os interessados, compartilha-se o link oficial para o acesso completo do livro didático em análise:
https://pt.calameo.com/read/002899327289d21dd4ac6?authid=mpRdTMc0AFTW. (Acessado em 28/09/2020).
a) Observe as informações do texto sobre o quarto e a profissão de Samsa. Como você
caracterizaria a personagem a partir desses dados?
b) Samsa “encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. A
descrição de seu novo corpo justifica o adjetivo destacado? Por quê?
c) No caderno, procure descrever como você imagina que a personagem tenha se
sentido quando se deu conta dessa transformação. (ABAURRE; ABAURRE e
PONTARA, 2016, p. 13).
As questões que acompanham o texto trabalham conceitos da teoria literária e elementos
linguístico-gramaticais, pois se interessam em fazer o aluno perceber as características do
personagem, a justificativa do uso do adjetivo, interpretações superficiais, cujas respostas estão
expressas no fragmento. Apesar disso, na letra c há uma provocação ao desenvolvimento da
empatia, pois estimula o aluno a se colocar no lugar do personagem.
Adiante, surge um texto falando sobre os agentes da arte, ou seja, meio de publicação e
outros fatores, além de um exercício que muito se assemelha à atividade inicial, portanto, basta
dizer que se comparam duas pinturas famosas, a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci e a Mona
Lisa de Jean-Michel Basquiat. As perguntas novamente são feitas com a intenção de direcionar
a leitura das imagens e nas sugestões ao professor as autoras indicam uma abordagem que exige
criticidade para se falar sobre a comercialização da arte. Essa questão é interessante, haja vista
que se amalgama com a ideia de Freire (2001) no que se refere à leitura do mundo antes da
leitura da palavra.
Finalmente, a discussão se encaminha especificamente para a arte literária trazendo textos
expositivos sobre suas funções. Nos primeiros parágrafos, ressalta-se que os leitores atribuem
valor literário de acordo com seu tempo. No entanto, suprimiu-se o fato de que o mercado
editorial e a academia por muito tempo se caracterizaram como instituições elitizadas e
influenciaram diretamente na publicação e divulgação do que era considerado literatura, sendo
assim, fica o questionamento de que tipo de leitor o texto está falando, pois é evidente que
justamente por esse processo de canonização muitas obras produzidas nesses períodos foram
excluídas e marginalizadas.
Apesar disso, fala-se da literatura como algo que faz sonhar, divertir, refletir e construir
identidades, esses textos se encontram de acordo com as noções trazidas nas seções anteriores
de literatura como apreciação. Como exemplo desses tópicos, algumas obras chamam atenção
por fugir do tradicionalismo, obras como Harry Potter e Senhor dos Anéis são menos comuns
no livro didático do Ensino Médio. Esse fato parece demonstrar que o livro dialoga com uma
visão ampliada de texto literário, não restrita àquelas obras consideradas clássicas.
Por fim, apesar deste artigo ter analisado apenas alguns exemplos de atividades do livro didático
em escrutínio, ressalto que as demais questões do capítulo analisado parecem se concretizar na
mesma linha das atividades analisadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos apontamentos anteriores, faz-se necessário dizer que o livro didático em
sua construção teórica se aproxima da discussão proposta, tendo em vista que permite múltiplas
respostas, dando espaço à interação dos leitores. Todavia, há um excesso de textos expositivos
e quase uma ausência de textos literários. De acordo com Rezende (2013) e Cosson (2006), a
melhor forma de aprender literatura é propiciando a leitura literária em sala de aula. Os textos
literários além de serem escassos também são todos recortados, inclusive, o único poema que
existe neste capítulo.
No que se refere às atividades, estas se apresentam como superficiais, trabalhando
muitas vezes com teoria literária e algumas inferências, sem avançar para uma experiência
estética da obra e sem realizar reflexões acerca do mundo. Embora em alguns momentos se
estabeleça uma relação de deslocamento do eu para a narrativa, há carência da segunda parte
do processo de compenetração exotópica, ou seja, o retorno do eu para si mesmo com o objetivo
de analisar e construir sentidos.
Não obstante, verifica-se, também, demasiado foco nas intenções do autor e nas
características tangenciais das obras apresentadas, ficando quase ausente as verdadeiras
contribuições dos alunos, pois, apesar de ser pedido algumas vezes suas opiniões e sensações
pessoais, existem outras perguntas que levam ao entendimento implícito de que a construção
de sentidos pode ser particular, contanto que o produto final da reflexão seja homogeneizada
pela intervenção do professor. Ratifica-se, em consonância com Rezende (2013), a necessidade
de transposição do polo do ensino de literatura para o polo de leitura literatura, pois, desta
forma, o docente sai da posição de holofote para emersão do discente nesse mesmo lugar.
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