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Finisterra, LV (114), 2020, pp. 173‑188
ISSN: 0430-5027
doi: 10.18055/Finis19629
Artigo
FORMAS RESILIENTES DA TRADIÇÃO NA DIÁSPORA
AFRICANA EM LISBOA:
KOLA SAN JON E O DIREITO À CIDADE
A
J C
RESUMO – O urbano contemporâneo coloca desaos de várias (des)ordens, sendo em
si, uma das maiores questões enfrentadas. Focamos o uso coletivo da cidade em contexto
neoliberal e nas modalidades e consequências da sua apropriação para a vida social, segundo
Lefebvre. Este ensaio incide sobre o Bairro da Cova da Moura e a inscrição, em 2013, da prá-
tica performativa cabo-verdiana Kola San Jon, no Inventário Nacional de Património Cultu-
ral Imaterial. A análise baseia-se em pesquisa etnográca realizada entre 2011 e 2018, inci-
dindo sobre o Kola San Jon, simultaneamente como prática cultural que actualiza os processos
sociais e como dispositivo identitário estratégico que reivindica a visibilidade da comuni-
dade. Assim, focamos a festividade organizada anualmente na Cova da Moura e a agenda
anual de atividades externas, na sua relação com a luta pela valorização do lugar na Área
Metropolitana de Lisboa (AML), bem como o próprio processo de patrimonialização do Kola
San Jon em Portugal. A reexão sobre esta prática comprometida com estratégias de ação que
geram formas de resistência e armação de base identitária, remete-nos para a questão do
direito à cidade, na sua qualidade de prática cultural de um lugar que o capitalismo empurra
para as margens, mas também enquanto evento lúdico com capacidade de gerar centralida-
des cidadãs. Kola San Jon faz jus à noção de que habitamos hoje, com crescente intensidade,
redes que cruzam um emaranhado de trajetórias mais importantes do que as fronteiras.
Palavras-chave: Kola San Jon; agnosticismo patrimonial; direito à cidade; Cova da
Moura; Área Metropolitana de Lisboa; diáspora africana.
ABSTRACT – RESILIENT FORMS OF TRADITION IN THE AFRICAN DIASPORA
IN LISBON: KOLA SAN JON AND THE RIGHT TO THE CITY. e contemporary urban
Recebido: março 2020. Aceite: julho 2020.
1 Doutorado, Departamento de Antropologia e Museologia, Centro de Filosoa e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco, Av. Prof. Moraes Rego, 1235 – Cidade Universitária, PE, 50670-901, Recife, Brasil. E-mail: tchida.pesquisa@gmail.com
2 Investigadora, Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD), Faculdade de Arquitetura, Universi-
dade de Lisboa, Lisboa, Portugal. E-mail: jcarolino@outlook.pt
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sphere presents us with challenges of dierent (dis)orders and is itself one of the main issues
to be addressed nowadays. is article deals with the public use of city space in neoliberal
times and the modalities and consequences of its appropriation for social life, according to
Lefebvre. e essay focuses on the Bairro Cova da Moura and the inscription, in 2013, of the
Cape Verdean Kola San Jon in the National Inventory of Intangible Cultural Heritage. e
analysis is based on ethnographic research undertaken between 2011 and 2018 and deals
with Kola San Jon both as a cultural practice that actualises social processes and as a strate-
gical identity device that reclaims the visibility of the community. We focus on the yearly
festival at Cova da Moura and the schedule of activities outside the neighbourhood, consi-
dering the struggle for the valorisation of the place in Lisbon Metropolitan Area, as well as
the process of recognising Kola as heritage in Portugal. e reection around a practice
committed to strategies of action that generate forms of resistance and identity-based asser-
tion, takes us to the question of the right to the city, both in relation to a place that capitalism
pushes to the margins as well as a playful event capable of the generating citizens’ centrali-
ties. Kola San Jon calls to the fore the notion that we currently inhabit, with increasing
intensity, webs in which tangled trajectories cross each other, in ways that are more impor-
tant than frontiers.
Keywords: Kola San Jon; heritage agnosticism; right to the city; Cova da Moura; Lisbon
Metropolitan Area; African diaspora.
RÉSUMÉ – FORMES RÉSILIENTES DE LA TRADITION DANS LA DIASPORA
AFRICAINE À LISBONNE: KOLA SAN JON ET LE DROIT À LA VILLE. L’urbain con-
temporain pose des dés de divers (dés)ordres, étant un des plus grands problèmes à nos
jours. Nous nous concentrons sur le problème de l’usage collectif de la ville dans un contexte
néolibéral, sur les modalités et les conséquences de son appropriation pour la vie sociale,
selon Lefebvre. Cet essai se concentre sur le Bairro da Cova da Moura et sur l’inscription, en
2013, de la pratique capverdienne Kola San Jon dans l’inventaire National du Patrimoine
Culturel Immatériel. L’analyse se base sur des recherches ethnographiques menées entre
2011 et 2018, se concentrant sur le Kola San Jon, à la fois comme une pratique culturelle qui
actualise les processus sociaux et comme un dispositif identitaire stratégique qui revendique
la visibilité de la communauté. Ainsi, nous nous concentrons sur les festivités annuelles
organisées à Cova da Moura et l’agenda annuel des activités externe, dans sa relation avec la
lutte pour la valorisation du lieu dans l`Aire Metropolitaine de Lisbonne, ainsi que sur le
processus de patrimonialisation de Kola San Jon au Portugal. La réexion autour de cette
pratique dans des stratégies d’action qui génèrent des formes de résistance et d’armation
de base identitaire, nous amène à la question du droit à la ville, en tant que pratique cultu-
relle dans un lieu que le capitalisme repousse à la marge, mais aussi, comme un événement
ludique avec la capacité de générer des centralités citoyennes. Kola San Jon est à la hauteur
de l’idée que nous habitons aujourd’hui, avec une intensité croissante, dans des réseaux dans
lesquels un enchevêtrement de trajectoires plus important que les frontières se croisent.
Mot clés: Kola San Jon; agnosticisme patrimonial; droit à la ville; Cova da Moura;
L`Aire Metropolitaine de Lisbonne; diaspora africaine.
RESUMEN – FORMAS RESILENTES DE LA TRADICIÓN EN LA DIÁSPORA AFRI-
CANA EN LISBOA: KOLA SAN JON E EL DERECHO A LA CIUDAD. El urbano contem-
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poráneo plantea desafíos de varias (des)órdenes, siendo en sí, una de las grandes cuestiones
enfrentadas. Nos centramos aquí en el uso colectivo del espacio de la ciudad en un contexto
neoliberal y en las modalidades y consecuencias de su apropiación para la vida social, según
Lefebvre. Este ensayo incide sobre el barrio Cova da Moura y la inscripción de la práctica
performativa caboverdiana Kola San Jon en el Inventario Nacional del Patrimonio Cultural
Inmaterial, en 2013. El análisis se basa en investigación etnográca realizada entre 2011 y
2018, centrándose en Kola San Jon simultáneamente como una práctica cultural que actua-
liza los procesos sociales y como un dispositivo identitario estratégico que reivindica visibi-
lidad de la comunidad. Consideramos la festividad anual en Cova da Moura y la agenda
anual de actividades fuera de ella, en su relación con la lucha por valorizar el lugar en la Area
Metropolitana de Lisboa; así como, el proceso de patrimonialización de Kola San Jon en
Portugal. La reexión en torno a esta práctica, comprometida con estrategias de acción que
generan formas de resistencia y armación basadas en la identidad, nos remite a la cuestión
del derecho a la ciudad, en su cualidad como práctica cultural de un lugar que el capitalismo
empuja hacia los márgenes, y también, como un evento lúdico con la capacidad de generar
centralidades ciudadanas. Kola San Jon reeja la noción de que vivimos hoy, con una inten-
sidad creciente, de redes en las que se cruza una maraña de trayectorias más importantes
que las fronteras.
Palabras clave: Kola San Jon; agnosticismo patrimonial; derecho a la ciudad; Cova da
Moura; Area Metropolitana de Lisboa; diáspora africana.
I. INTRODUÇÃO: KOLA SAN JON, MÚSICA E DANÇA NA CONSTRUÇÃO DO
ESPAÇO RELACIONAL
Dia 12 de junho de 2018. Numa tarde amena, o grupo de Kola San Jon da Cova da
Moura apanha o comboio na estação de Santa Cruz – Damaia, periferia de Lisboa, pouco
depois das 19 horas. Na plataforma de embarque escuta-se já o reverberar dos tambores
de San Jon, os apitos e as exclamações cadenciadas de homens e mulheres entusiasmados:
Oh que Sabe! Oh Sébe! Oh Jon! Um pequeno grupo de crianças distribui folhetos que
convidam os transeuntes para a festa a realizar, no bairro, no dia 23, véspera de São João.
O branco e o azul-marinho, cores de Cabo Verde, predominam na identicação do grupo
de Kola San Jon e tanto os adultos como as crianças envergam os rosários de San Jon
sobre os ombros, cruzando o tronco na diagonal.
A viagem até ao centro lisboeta dura menos de uma dúzia de minutos. Deixando a
estação, todos se reúnem no Largo do Corregedor, contíguo à Rua 1º de Dezembro, junto
ao Teatro D. Maria II e à Praça Dom Pedro IV: a comandante Filó “veste” seu naviozinho
(artefacto usado no cortejo), o Sr. Teodoro, em sintonia com Niche Delgado, organiza o
cortejo, enquanto outros se juntam trazendo à cabeça ramos, balaios (cestos) com ali-
mentos e bebidas, as bandeiras da Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), de
Cabo Verde e de Portugal.
A julgar pela recente história da cidade de Lisboa – cidade da imigração; cidade con-
temporânea, cosmopolita, turística e gentricada – é no mínimo simbólica a escolha
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deste ponto para o início do cortejo. Pelo Rossio passa “um mundo” todos os dias: a esta-
ção é uma das “portas” quotidianas de entrada e saída de Lisboa, pela qual transita um
notável uxo de pessoas oriundas dos arredores, a caminho do metropolitano e dos auto-
carros que as transportarão a outros lugares da cidade. Cruzam-se, no seu percurso, com
o movimento dos turistas, característico de uma “babel transnacional”, que preenche o
Largo do Regedor, os restaurantes e esplanadas, a Praça do Rossio, as ruas próximas. É
neste ambiente que o Kola San Jon, o elemento lúdico mencionado por Lefebvre, emerge
durante a construção de um espaço tridimensional, sob a perspetiva do elemento corpó-
reo assinalado por Merleau-Ponty.i
Rufadas espontâneas fazem-se ouvir no Rossio. As células rítmicas tocadas individu-
almente pelos tamboreiros começam a ser reproduzidas por outros músicos presentes na
roda, como que em eco. Num “ritmo emergente” (Lopes, 2017), as rufadas vão-se multi-
plicando, até que um deles dita o andamento e assume as “rédeas” da toca.ii
Fig. 1 – Cortejo de Kola San Jon no Largo do Corregedor, Rossio (É possível identicar as bandeiras
Cabo Verdeana, Portuguesa e da ACMJ): 12 de junho de 2018.
Fig. 1 – Kola San Jon ’s Cortege at Largo do Corregedor, Rossio (It is possible to identify the Cape Verdean,
Portuguese, and ACMJ ags): June 12th 2018.
Fonte: Alcides Lopes
Caracteristicamente monolítico, o bloco sonoro cresce como uma onda polirrítmica,
provocando as coladeiras, que se lançam na dança coreográca do Kola San Jon (Lopes,
2017, 2020), contaminando os presentes com a sua performance arrebatadora e enérgica.
Os navios de San Jon começam a “navegar” entre a multidão curiosa, que não resiste em
captar o momento “dançando com os ombros” ao ritmo da música percussiva que invade
a paisagem. Sendo sempre alvo das atenções de quem por ali está, o cortejo dançante
atravessa o Rossio, desce a Rua Augusta e avança pela Rua da Madalena. Para junto à
Igreja de Santo António de Lisboa, homenageando o santo e retemperando forças, antes
de se meter pelas ruas da Mouraria, noite adentro.
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Com vida própria, o cortejo de Kola San Jon envolve os transeuntes, conquistando-os
para a festa, enquanto disputa com automóveis, motocicletas e tuk tuks, a fruição do
espaço citadino. Ao vê-lo e experienciá-lo, não podemos deixar de pensar no Direito à
Cidade e na ênfase que Lefebvre põe na festa como instância de apropriação da cidade,
fazendo irromper num espaço crescentemente dominado por lógicas mercantis, subver-
sivas centralidades cidadãs (Carolino, 2015).
O reconhecimento de experiências absurdamente desiguais e violentas na condição
urbana contemporânea voltou a trazer para o debate a ideia de “direito à cidade”, lançada
por Lefebvre em meados do século XX, enquanto direito à vida urbana, transformada e
renovada (Lefebvre, 2012). Distanciando-se do que considerou serem as esperanças ili-
mitadas e insensatas colocadas no urbanismo nas décadas de 1960-70, Lefebvre desen-
volveu uma reexão crítica sobre as dinâmicas capitalistas de produção do espaço que o
levou não apenas a expor a segregação urbana e fragmentação socio-espacial da cidade,
mas também a procurar ampliar o campo do possível e da reinvenção da vida social
urbana. Numa cidade crescentemente marcada por processos de mercadorização, a espa-
cialidade resultante da experiência e produção de sentido por parte dos grupos mais afas-
tados do poder foi perspetivada por Lefebvre como “o aspeto clandestino e subterrâneo
da vida social” (Lefebvre, 1991, p. 33), capaz de subverter a produção capitalista do
espaço. Lefebvre prestou grande atenção ao quotidiano, identicando o potencial de
resistência popular que este encerra. Sendo o espaço um “produto” muito particular,
causa e instrumento de encontro entre os homens, é também motor inesgotável de possi-
bilidades de socialização. Sendo parte das estruturas de dominação, é também contes-
tado/transformado pelos grupos sem poder, nas práticas quotidianas.
No entanto, a performance do Kola San Jon facilmente convida a uma visão da cidade
“multicultural”, expressão cara à forma como Lisboa se reinventou, sobretudo a partir da
década de 1990, como capital da lusofonia, à medida que a ideia de multiculturalidade se
foi tornando mais popular (Almeida, 2000). Pelo seu aparato alegre e envolvente, o cortejo
anual do Kola San Jon pela Baixa Pombalina pode, mesmo, aparecer para muitos como
parte integrante do programa das Festas da Cidade. Em 2015, o Grupo foi, mesmo, convi-
dado a integrar (em representação de Cabo Verde) o coletivo da Comunidade de Países de
Língua Portuguesa (CPLP) que deslou, com os bairros lisboetas, nas Marchas de Lisboa,
instância central das Festas da Cidade. Tal levanta a questão de um possível processo de
cooptação da sua energia lúdica pela indústria cultural e do lazer, que é hoje um recurso
estratégico para as cidades globais.iii Neste contexto, e regressando ao Verão de 2018,
quanto há de “espetáculo” na forma como tamboreiros, coladeiras, navios e outros brincan-
tes de Kola San Jon se tornam, por um momento, o centro da tarde festiva que preenche o
Rossio, em vésperas de Santo António? Nesta linha de preocupações, autoras como Miguel
(2016), Nogueira (2016) e Queiroz (2019) abordam a possível folclorização da festa de Kola
San Jon; questão que nos remete para o papel que noções de veracidade histórica e de
autenticidade têm desempenhado no campo dos estudos sobre património cultural.
De acordo com Brumann (2009; 2014), parte considerável dos trabalhos realizados
no campo das ciências sociais orienta-se, de facto, pelo que este autor designa por ateísmo
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patrimonial, abordagem que geralmente compele os pesquisadores a investir no desmas-
caramento das transformações operadas pelos processos de patrimonialização. A folclo-
rização pode, nesta linha, ser descrita de forma técnica, como envolvendo quatro tipos de
processos: falsicação, petricação, dessubstancialização e encapsulamento.
A questão da demanda popular pela autenticidade colocada por Brumann (2014), é
substancial devido ao tratamento central despendido com a categoria tradição: “um con-
junto de conteúdos simbólicos representados por determinadas características estéticas
pertinentes” (Lopes, 2017, p. 21) aos interesses especícos que identicam grupos e orde-
nam as suas relações, e não uma “mera viagem ao passado”. Portanto, no caso do Kola San
Jon, devemos manter em mente a noção de tradição como uma “categoria que opera para
regular o conjunto de conteúdos simbólicos (Lopes, 2017). Em outras palavras, o campo
simbólico de contestação em torno da autenticidade deve ser concebido de forma que a
exibição pública da cultura tradicional como estratégia de ação comunitária fortaleça o
sentimento e a valorização desta como autêntica (Linnekin, 1991; Ehrentraut, 1993;
Comaro & Comaro, 2009; citados em Brumann, 2014).
Brumann (2014) propõe-nos, em alternativa, uma perspetiva agnóstica, atenta ao
processo e às novas realidades com ela geradas, incluindo a possibilidade criativa de
novas classicações, geradoras de novas existências, passíveis de interagir com concep-
ções e experiências dos sujeitos ou grupos classicados (Hacking, 2007). Nesta linha,
argumentamos que o grupo de Kola San Jon da Cova da Moura vem negociando um novo
espaçoiv, fruto de uma trajetória peculiar e com um sentido importante para o grupo,
durante o cortejo realizado nos dias de festa (Lopes, 2020, p. 356). Dito de outro modo, e
com recurso à linguagem dos tamboreiros de Kola San Jon, o Grupo vem negociando a
realização da festa através do domínio experiente dos cabrestos (constrangimentos) e das
adriças (capacidades) locaisv. Olhado a esta luz, por exemplo, o deslocamento da festa
para o sábado mais próximo ao dia de Santa Cruz ou de São João, em vez da sua tradicio-
nal realização nas vésperas, de modo a garantir a participação de todos os envolvidosvi,
revela um movimento de resistência, não fazendo sentido a ideia de falsicação ou, com
ela, a da maior ou menor autenticidade das festas de Kola San Jon da Cova da Moura.
Argumentamos que as peculiaridades da festa de Kola San Jon da Cova da Moura
remetem para as condições especícas que apenas são parcialmente visíveis, como se de
uma tapeçaria, ou pano di téra se tratasse: como num tear, onde o tecido ou a tapeçaria
resultante exibe uma superfície geometricamente concordante, nas suas cores e traçados
diversos, escondendo o seu avesso. Também a beleza do “verdadeiro património” convive
com a parte de trás, geralmente fora do campo de visão, onde é patente a laboriosa com-
posição de os soltos e cores confusas.
Fazendo jus à imagem do pano tecido, acima invocada, propomo-nos neste artigo dar
conta da dimensão de resistência que o Kola transporta consigo, relacionada com experi-
ências e associações de sentido que não são imediatamente percetíveis a quem não parti-
lhou com os seus membros trajetórias e vivências especícas. Ao atualizar, na forma como
lida com constrangimentos e oportunidades, o Grupo dá corpo a uma experiência rizo-
mática que leva em consideração os aspetos sustentáveis das redes de relações e de mobi-
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lização para a resistência ou interação. São estas mesmas redes que sustentam a prática das
festividades, através de um domínio transnacional e da mobilização em ciclos espontâneos
e/ou programados. Pode dizer-se que pela sua performance o Kola San Jon propõe a Lis-
boa um lugar urbano relacional, distinto do que as representações dominantes sobre o
Bairro da Cova da Moura denem como “um enclave migrante” (Horta, 2000).vii
O argumento que se segue resulta de pesquisa etnográca e documental realizada
por ambos os autores em momentos distintos, entre 2011 e 2018, acompanhando o Grupo
de Kola San Jon e a Associação Cultural Moinho da Juventude na preparação e realização
da festa em 2012, 2017 e 2018, em deslocações várias do Grupo para fora do bairro/da
cidade/do país, tocando com os tamboreiros (no caso de um dos autores), entrevistando
vários protagonistas e participantes e tomando parte, mais amplamente, da vida quoti-
diana e diferentes contextos de sociabilidade do bairro.
II. A “ILHA DA COVA DA MOURA”: UMA HISTÓRIA DE SEGREGAÇÃO E SINER
GIA
Localizado no concelho da Amadora e connando, às portas do concelho de Lisboa,
com a freguesia de Benca, o bairro da Cova da Moura tem sido historicamente represen-
tado como um enclave migrante em território metropolitano, expressão que sublinha a
morfologia e génese distintas em relação à envolvente (g. 2), bem como a segregação
socio-espacial dos que ali residem. O bairro resulta da ocupação de terra agrícola expec-
tante, a que se seguiu, num contexto de crise habitacional aguda, a construção de habita-
ção própria por famílias originárias de países africanos anteriormente colonizados por
Portugal, com destaque para Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola e do interior
rural português.
Horta (2000) o classica não apenas como duplamente ilegal, mas também, exterior
à realidade lisboeta e, mais em geral, a portuguesa. A racialização dos seus habitantes, a
que se associa um imaginário dicotomizado de exotismo cultural, é quase emblemática
da alteridade contra a qual os portugueses se constituem como um povo (Almeida, 2000).
Profusamente retratado na comunicação social, o Bairro da Cova da Moura está como
que para além de si próprio, como locus simbolicamente associado à violência, crimina-
lidade e exotismo que participam na construção do seu contraponto, uma suposta nor-
malidade urbana no “país dos brandos costumes”.
Estabelecido numa área de cerca de 16,5ha, a Cova da Moura conta com pouco mais
de 1600 habitações, estimando-se que a sua população seja superior a 5000 habitantes
(Coelho & Vilhena, 2008, p. 7). O bairro mantém até hoje uma condição liminar, de
bairro precário em situação fundiária, urbanística e habitacional irregular, excluído da
cidade tout cour.viii Nas políticas públicas e discursos de pendor social, a abordagem às
questões enfrentadas pela população local faz-se predominantemente pelo prisma da
exclusão social, sendo a sua integração sempre projetada como objetivo futuro. No
entanto, a ligação do bairro e dos seus habitantes à metrópole lisboeta, às suas dinâmicas
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e sua história, é íntima e múltipla. O surgimento do bairro contextualiza-se numa das
modalidades de metropolização da capital portuguesa – os chamados, à época, bairros
clandestinos. Por outro lado, como argumenta Ferreira (1987), a sua localização rela-
ciona-se com o planeamento de Lisboa que deu forma à expansão da cidade em mancha
de óleo, ao longo de determinados eixos – entre eles, aquele que se prolonga para lá das
Portas de Benca (Nunes, 2011).
Em 1940, o Portugal colonial, sob o regime autoritário do Estado Novo, comemorava
os centenários da fundação da nação e da “Regeneração” que devolvera ao país à sua
soberania. Organizou-se nessa ocasião a Exposição de um suposto Mundo Português,
evento que deveria projetar, de forma inequívoca, Lisboa como capital do império e que
tornou consensual a realização de um conjunto de obras que estruturariam, de forma
decisiva, a expansão da cidade (Ferreira, 1987). Central nesse processo foi a visão de
Duarte Pacheco, duas vezes Ministro das Obras Públicas e, por um breve período, presi-
dente da Câmara Municipal de Lisboa. Fazendo valer o princípio de que o poder público
(e, com ele, o interesse público armado pelo regime) deveria controlar o processo
urbano, Duarte Pacheco promove um urbanismo de zonamento e especialização funcio-
nal, expresso no Plano De Groer, aprovado em 1948. O comércio e a administração loca-
lizados no centro, relacionam-se através de grandes eixos com áreas residenciais satélite
de menor intensidade construtiva e populacional (Costa, 2018). Na leitura de Ferreira
(1987), está já lançada, nesta época, uma dinâmica expansiva que relaciona dialetica-
mente um processo de centralização com um outro, de exteriorização metropolitana. A
este modelo corresponde já a cidade segregada que se expressará mais plenamente a par-
tir da década de 1960, com a decisiva metropolização de Lisboa.
A expansão urbana, expressiva a partir dos anos 1960 devido ao aprofundamento do
êxodo rural rumo à capital, acentua-se na década de 1970, após a queda do regime e a
independência dos países africanos até então colonizados por Portugal. Na época, cerca
de meio milhão de pessoas vieram para Portugal, tendo-se muitas delas xado na área de
Lisboa. O crescimento demográco da cidade ultrapassa em muito a oferta habitacional
e de serviços que vai sendo criada, gerando, à semelhança do que se passava com outras
cidades, grandes áreas de habitação precária, onde se instalavam novos residentes sem
outros recursos (Salgueiro, 2001). O município da Amadora é uma das áreas de forte
expansão demográca e urbana, na continuidade do eixo de Benca (Nunes, 2011).
É neste contexto que surge o Bairro da Cova da Moura, edicado sobretudo a partir
de 1977 por pessoas chegadas há pouco à cidade que procuram uma situação habitacio-
nal menos precária, construindo ali a sua residência. Ocupando solo expectante, maiori-
tariamente de propriedade privada, cedo os moradores se organizam numa Comissão,
procurando a interlocução com o poder público (na época, a Câmara Municipal de Oei-
ras) e vias para a regularização da situação emergente, assim garantindo a possibilidade
de permanecer naquele lugar. Ao longo dos anos, infraestruturam parcialmente o bairro
e constituem outras organizações locais que, unidas numa Comissão de Bairro, se oporão
energicamente a uma primeira proposta de Plano de Pormenor que, em 2002, previa a
demolição de cerca de 80% do tecido construido. Nos anos seguintes, duas iniciativas
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públicas – o Programa URBAN II e, posteriormente, a Iniciativa Bairros Críticos – viabi-
lizam a realização de alguns melhoramentos na Cova da Moura e área envolvente. Entre
2005 e 2012, a Iniciativa Bairros Críticos saldar-se-á pela elaboração de um Diagnóstico
e um Plano de Acção Local participado e gerará grandes expectativas quanto à resolução
de impasses ligados à situação fundiária e urbanística do bairro que não chegam, no
entanto, a concretizar-se (Raposo, 2012; Jorge & Carolino, 2019).
Uma das dimensões da atividade associativa do bairro, levada a cabo em particular pela
Associação Cultural Moinho da Juventude, passa pela armação da especicidade e pujança
da cultura local, sendo a Festa de Kola San Jon central nesse processo (Lopes, 2020).
Fig. 2 – O Bairro da Cova da Moura e a sua envolvente.
Fig. 2 – e Neighbourhood of Cova da Moura and its surroundings.
Fonte: Google Earth (2019)
III. O CORTEJO DE KOLA SAN JON, AS FORMAS RESILIENTES DA TRADIÇÃO E
O DIREITO À CIDADE DE LISBOA.
As festas de Kola San Jon de Cova da Moura atualmente são conhecidas, na sua
dimensão transnacional, por toda a diáspora cabo-verdiana globalizada. Arriscamos esta
armação, devido a peculiaridade da trajetória do grupo homónimo, o qual , além de
realizar ass festas sazonalmente desde 1991, também as tem celebrado ocasionalmente
em outros países. As festividades são celebradas em cortejo pelas ruas, largos e vielas do
bairro, bem como pela Baixa Pombalina na noite de 12 de junho, consagrada a Santo
António de Lisboa. Após quase três décadas de existência e de surpreendente trajetória
(Miguel, 2010), a festa foi em 2013 inscrita, em Portugal, no Inventário Nacional de Patri-
mónio Cultural Imaterial, vendo assim o seu valor cultural ocialmente reconhecido pelo
Estado Português.ix
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No início da década de 1990, período em que começa a celebrar-se na Cova da Moura
o Kola San Jon, as pesquisas sobre imigração e minorias étnicas em Portugal indicavam
que aproximadamente 80% dos imigrantes oriundos dos países africanos de língua ocial
portuguesa (PALOP) residia em habitações precárias, nos chamados “bairros clandesti-
nos”, e eram reféns de empregos marginais no mercado de trabalho, sem possibilidades
de mobilidade social (Bruto da Costa et al., 1991, citado em Horta, 2000). O mesmo
período é marcado pela retoma pública do debate sobre as condições habitacionais que
existiam na periferia das maiores cidades portuguesas , agora dentro do espírito que con-
duzirá ao lançamento do Programa Especial de Realojamento (PER) (Alves, 2013; Antu-
nes, 2017), orientado para a erradicação de barracas (sic) e negando-se a participar de um
debate sobre as diversas formas históricas de segregação a que estão sujeitos a população
roma e os imigrantes de origem africana, no país. Mais amplamente, a multiplicidade de
obstáculos interpostos entre as pessoas migrantes e seus descendentes e a cidadania de
facto (Horta, 2000) permanecia por reconhecer. É o caso da subtração do direito à edu-
cação e outros serviços municipais, a ostentação da vigilância e intervenção policiais,
através de atos de humilhação coletiva e da violência física explícita, como temáticas a
este tempo.
As festas de Kola San Jon estão associadas a um momento fundador evocado pelos
diferentes atores envolvidos, a partir de um contexto histórico recente e igualmente espe-
cíco. Elas nos remetem às qualidades criativas constitutivas dos seus membros em res-
posta às problemáticas proporcionadas pelos constragimentos socio-políticos. Portanto,
elas tiveram de ser necessariamente reiventadas a partir da negociação de “velhas” formas
da tradição à luz de novos conteúdos. Inicialmente referimo-nos ao momento em que a
Gualdina Valério, moradora do bairro e membro da ACMJ, propõe a realização das festas
sob o auspício de dar visibilidade e valorizar as tradições da ilha de Santo Antão, perante
o fato de a ACMJ já apoiar a dinamização do grupo de batuko Finka Pé, gênero represen-
tativo do patrimônio musical de Santiago. Na sequência, atentamos para o protagonismo
do Sr. Martinho, um assumido “conhecedor” do Kola, o qual insistiu em compartilhar
com os outros moradores do bairro interessados (os Rosário, os Duarte Rodrigues, entre
outros), as suas concepções sobre o funcionamento e o signicado do ciclo festivo, pro-
vavelmente, através das lembranças de experiências vividas durante as festividades antes
da emigração.
Em entrevista, uma moradora conta como o desenho do trajeto, executado anual-
mente pelo grupo, foi inicialmente estabelecido através de uma negociação coletiva dos
signicados atribuídos a factos e eventos considerados signicativos no seio da popula-
ção imigrante. Segundo Lieve: “Ele ia ditando as ideias, e dizia: “Tens que escrever”. E eu
ia registrando todas as informações sobre como é que se devia fazer o percurso. Eu, as
vezes questionava, é claro, pois era a primeira vez que fazíamos aquilo, e ele dizia:
“Temos que ir por aqui. Temos que parar naquele ponto. O acesso à rua tal deve ser feito
de tal maneira (…). Acolá (em um local especíco), as bandeiras devem ser trocadas”
(comunicação pessoal, Cova da Moura, fevereiro 2019). Portanto, argumentamos que a
forma tradicional do cortejo, expressa na sua musicalidade, ludicidade e lascividade
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durante a histórica celebração das festas no arquipélago, foi na ocasião considerada e
incorporada aos novos conteúdos (razões) subjacentes à sua prática. No bairro, a forma
do cortejo foi costurada a uma nova história, com outros conteúdos e respondendo à
outras necessidades, nomeadamente: atender às expectativas geradas a partir de 1989
sobre a promoção e valorização das manifestações culturais tradicionais das comunida-
des imigrantes residentes em Amadora (ACMJ, 2017). Nos anos seguintes, porém, passa
a circular, nos discursos associados particularmente à cultura, a ideia de uma Lisboa
multicultural, que ganha expressão plena quando mobiliza igualmente a noção de Luso-
fonia, enquanto espaço cultural que articula entre si os países de língua ocial portu-
guesa, sem problematizar a dimensão colonial, profundamente assimétrica, da sua
herança histórica comum.
A partir dos depoimentos colhidos junto dos moradores do bairro, atores ativos na
realização das festividades, durante o trabalho de campo e ao consultar as narrativas aca-
démicas publicadas ao longo destas três décadas, compreende-se que a realização da pri-
meira edição da festa, e a sua constante renegociação, nas edições seguintes, passam por
uma conguração da “costura do trajeto”, o qual é anualmente vivenciado e simbolizado
na realização do cortejo, considerado coletivamente como o mais apropriado para as
celebrações em honra de Santa Cruz e São João, no bairro da Cova da Moura em duas
datas diferentes. Nos sábados mais próximos aos dias 3 de maio e 24 de junho, respetiva-
mente. Tal evento, de feitura coletiva de um trajeto signicativo, é um marco importante
no processo mais amplo de transformação de localizações estratégicas em lugares de
encontro e sociabilidade, que constituem os largos, as associações, os cafés, barbearias,
etc. O surgimento da celebração das festas de Kola San Jon de Cova da Moura não pode
ser compreendido distintamente do processo de constituição do bairro, que já referimos
acima, durante o qual as casas foram edicadas com grande empenho pelos próprios
moradores – realizando assim o sonho da vida de muitos, e conferindo ao bairro não
apenas vivências, mas também geograas próprias.
No que tange ao cortejo de Kola San Jon, estes pontos têm uma história própria, cons-
truídos como espaços e locais de passagem signicativos na organização social de quem
habita o bairro. Nos referimos às condições nas quais se fundamentam as escolhas e o
mapeamento simbólico do trajeto realizado anualmente pelo grupo de Kola San Jon,
remetendo-nos assim ao “momento fundador especíco” da festividade praticada em
Portugal. De facto, a referência a um “momento fundador especíco” do grupo e da festa
de Kola San Jon do Bairro da Cova da Moura tem menos a haver com a essência de um
momento “autêntico”, do que com a identicação das redes de relações estabelecidas entre
diferentes atores individuais que agiram, consciente e coletivamente, no seio da comuni-
dade. Na dimensão transnacional contemporânea, como nos recorda Achille Mbembe
(2018), habitamos redes que se cruzam, com crescente intensidade, num emaranhado de
trajetórias mais importantes do que as fronteiras. Com as suas origens perdidas na
neblina secular das trajetórias e narrativas sobre os descobrimentos, o cortejo de Kola
San presta-se à celebração de um multiculturalismo de matriz lusófona, em linha com a
forma como Portugal olha para a sua própria história. É signicativo, a este propósito,
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que o Kola San Jon tenha sido em 2015 convidado a participar nas Festas da Cidade, não
a partir da sua ligação a um bairro de Lisboa (Área Metropolitana de Lisboa), mas sim
como representante de Cabo Verde e integrado num grupo de representações associadas
à CPLP como um todo.
Neste ponto, admitimos a sensatez de questionar: quais seriam as verdadeiras razões
envolvidas nesta mobilização? Durante o passado colonial secular, num contexto de
escravidão e trabalhos forçados, a tradição de caminhadas impulsionadas pela percussão
era motivada por motivos mercantis (o escoamento de pessoas escravizadas, urzela,
peles, carvão vegetal e produtos agropecuários) ou religiosos e afetivos (o ciclo festivo
associado ao solstício de verão, entre 3 de maio e 29 de junho no calendário católico).
Hoje, esta tradição, herdada do processo histórico e da sua ambiguidade inerente (Trou-
illot, 1995), mantida de acordo com os saberes vernáculos locais (Owusu, 1978; Mignolo,
2002) e amparada pela diversidade do uso da razão na experiência (Eze, 2008), reete seu
uso político sobre as ondas de imigrantes laborais provenientes dos atuais países ex-coló-
nias africanas, intensicadas desde os anos 1960 e continuadas sob condições de segrega-
ção nas áreas da habitação, educação, direitos trabalhistas, políticos e cívicos, representa-
tividade e racismo, durante o tão falado processo de democratização e a posterior adesão
à União Europeia (Fikes, 2009; Araújo, 2018; Maeso, 2018).
Em suas feições transnacionais, as celebrações a San Jon, na Cova da Moura, trazem
consigo as formas resilientes da tradição; as mesmas que lhe permitiram sobreviver, em
Cabo Verde, ao longo dos tempos difíceis de seca e inanição, bem como aos ciclos da vida
migrante. Referimo-nos, destarte, ao contexto histórico do processo colonial tardio
desencadeado nas colónias africanas, envolvendo aspectos como o trabalho forçado e os
programas de migração internacional voluntária e involuntária (Monteiro, 2018); ao pro-
cesso de manutenção de um regime considerado como um proeminente fabricador de
etnicidades por meio das categorizações elaboradas por ociais coloniais e antropólogos.
E neste caso, introduz-se um terceiro elemento – o poder. De acordo com Trajano Filho,
devido ao grande diferencial de poder entre o colonizador e o colonizado, o processo de
categorização, aplicado ao longo do tempo, acabou por ser assimilado pelo grupo catego-
rizado como forma de identicação (Trajano Filho, 1998).
A seguir às transformações operadas em Portugal, após a capitulação, referimo-nos
ao processo de chegada de grupos oriundos das ex-colônias principalmente, que se desig-
nou por “crise dos retornados”; à intensicação gradual da imigração proveniente dos
“novos” países ex-colónias; ao prolongamento de um olhar que, armando-se como mul-
ticultural, projeta um outro e continua a representar os lisboetas afro-descendentes como
não sendo portugueses. No bairro, esta experiência histórica cruzou-se com a crise habi-
tacional e a crise em torno da propriedade que marcaram o período da democratização
após 1974. E nalmente, interpretamos as festas de Kola San Jon como um elemento
legítimo que integra o clabedótxex (o todo diverso) das estratégias de ação e dos modos de
regulação que buscam fazer sentido dos fenômenos que sobrevivem até aos problemas
enfrentados pela sociedade portuguesa na atualidade.
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IV. CONCLUSÃO
Enquanto segue pelas ruas da capital portuguesa, o cortejo de Kola San Jon resiste,
enérgica e freneticamente, através da relação que estabelece com a história, constituída
pela dimensão prática socio-espacial, a qual procura superar os preconceitos socio-raciais
através da interação, confraternização e sinergia cultural. Nesta esteira, tem-se consciên-
cia de que, mesmo “travestido” de processo de luta, o direito à cidade não é absoluto.
Nesta ótica, consiste no enfrentamento entre as categorias espaço-tempo do corpo sub-
-mercantilizado e o projeto nacional que negligencia o seu direito à qualidade de vida,
liberdade e mobilidade social: a efetivação de uma prática social que surge em meio aos
atos de coação.
A recriação, enquanto festa da Cova da Moura (Amadora), da romaria cabo-verdiana
de Kola San Jon acontece durante um processo histórico de luta e resistência contra a
discriminação do bairro e a criminalização da sua população. Ao mesmo tempo, ocorre
em um clima de resiliência cultural e de valorização dos vernaculares linguísticos asso-
ciados a um processo colonial recente e silenciado.
Concebemos a tradição como campo dinâmico de negociações e contestações sim-
bólicas, onde os conteúdos e as lógicas inerentes à prática da festa passam por uma recon-
guração de acordo com as especicidades e qualidades/precariedades do lugar (Gil-
more, 2018). Na dimensão transnacional contemporânea, como refere Achille Mbembe,
habitamos redes que se cruzam, com crescente intensidade, num emaranhado de trajetó-
rias mais importantes que as fronteiras. Uma realidade na qual o conceito de pessoa é um
lugar autoconstruído a partir dos recursos disponíveis, de modo tão temporário quanto
imperativo, nas brechas da vida quotidiana, tomada pela lógica da acumulação.
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i Em seus últimos textos, Merleau-Ponty chama a atenção para a propriedade sensível-corpórea como horizonte ontológico
do mesmo estofo do domínio sensível-histórico-material da realidade (Merleau-Ponty, 1991; 1999).
ii O som que se estabelece em um time cycle de seis por oito é chamado de “ritmo resultante” (Agawu, 1987, Anku, 1997).
iii Um caso que pode ser considerado semelhante acontecera anteriormente: a participação do Grupo na Exposição Mundial
de 1998 em Lisboa – EXPO’98.
iv Que poderíamos designar como um “terceiro espaço”, recorrendo à expressão de Homi Bhabha quando este discute as
modalidades de negociação entre os sujeitos e/ou grupos nos espaços transnacionais pós-coloniais (Bhabha, 1994).
v Cabresto (arreio ou corda de couro, usado para prender animal), aqui com o signicado de algo que controla, subjuga; adriça
(corda utilizada para içar velas, vergas, bandeiras), cuja conotação nos remete a algo que leva a, lidera, são termos utilizados como
uma dinâmica metodológica que se refere a uma noção holística de compreensão das relações estabelecidas entre a categoria tradição
e o fazer lúdico musical do oeste africano. Em um sentido mais amplo, neste ensaio, nos remete à dialéctica das negociações ocorridas
entre os diversos atores individuais e coletivos envolvidos no proceso estudado (Lopes, 2020).
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vi Os festejos realizam-se sempre ao sábado porque durante a semana os participantes estão a trabalhar, não sendo expectável
que possam tirar um dia para si.
vii Para informações etnográcas sobre estes ciclos vide Miguel (2010, 2016) e Lopes (2017, 2020).
viii Por exemplo, os serviços municipais de saneamento não operam no espaço do bairro nos moldes em que tal se dá em outras
áreas do concelho da Amadora.
ix Queiroz (2019) aborda esta questão a fundo em pesquisa recente e chama a atenção para o fato de o processo de inventário
da festa de San Jon Kola San Jon da Cova da Moura ter acontecido ainda durante a etapa experimental (2019, p. 224), em prol da
consolidação das políticas públicas, legislação e instituições com competência para decidir sobre as questões concernentes ao patri-
mônio cultural imaterial em Portugal.
x Diz-se de uma colcha de retalhos, constituída por uma diversidade contrastante de cores e de qualidade dos tecidos usados,
típica das regiões montanhosas da ilha de Santo Antão.
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